Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
89/19.9T8TMR.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
ERRO
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
Data do Acordão: 01/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – O art. 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007, de 31.12 exige que o erro de julgamento seja demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido o erro e por via dos meios impugnatórios que, in casu, forem admissíveis.
2 – Só assim não será se o erro de julgamento consistir na violação de Direito Comunitário – que tem de ser invocada na ação de responsabilidade civil proposta contra o Estado - e houver sido cometido por tribunal que haja decidido em último grau de jurisdição.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 89/19.9T8TMR.E1 (1.ª Secção)

Relator: Cristina Dá Mesquita

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…), autor na ação declarativa de condenação que moveu contra o Estado Português, interpôs recurso do despacho-saneador-sentença proferido pelo Juízo Local Cível de Tomar, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, o qual julgou a ação totalmente improcedente e, consequentemente, absolveu o réu Estado Português do pedido contra o mesmo deduzido.

Na ação o autor pedira ao tribunal que condenasse o réu a 1) reconhecer que o processo destinado a cessação das relações patrimoniais entre o autor e a sua ex-mulher (…) era o processo regulado nos arts. 925.º e seguintes do Código Civil e não o regulado nos arts. 1404.º e seguintes do Código Civil revogado; 2) reconhecer que a transmissão da dívida do autor para (…) só seria válida se existisse uma declaração expressa da Caixa Geral de Depósitos a exonerar o autor por força do disposto no art. 595.º, n.º 2, do Código Civil; 3) pagar ao autor uma indemnização correspondente ao valor em dívida à Caixa Geral de Depósitos, a saber, € 32.055,56; 4) indemnizar o autor a título de danos não patrimoniais, no montante de € 1.000,00.
Para fundamentar a sua pretensão o autor alegou o seguinte: o autor casou com (…), sob o regime da separação de bens, no dia 8 de abril de 2000; no dia 19.10.2009, o autor e a sua mulher adquiriram cada um ½ do prédio urbano sito em (…), freguesia de (…), concelho de Abrantes, inscrito sob o artigo matricial n.º (…), atual artigo matricial n.º (…) da União de Freguesias de (…) e (…), tendo sido constituída hipoteca voluntária a favor da Caixa Geral de Depósitos; o casamento supra referido foi dissolvido por sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Abrantes, transitada em julgado em 08.07.2013; na Instância Central Cível de Tomar, 2.ª secção de Família e Menores, correu termos um processo de inventário para partilha de bens em casos especiais e no âmbito do mesmo foi partilhado o imóvel acima descrito e identificada a dívida à Caixa Geral de Depósitos; no âmbito daquele processo de partilha, o referido imóvel foi adjudicado à ex-mulher do autor, para quem foi também transmitida a dívida à Caixa Geral de Depósitos; na sentença proferida foi omitida a seguinte declaração expressa da Caixa Geral de Depósitos junta aos autos antes da Conferência de Interessados: «que na hipótese de acordo em partilha de bens, não prescinde, porém, do regime de solidariedade da dívida nos termos iniciais contratado»; o que significa que a sentença ali proferida não produziu quaisquer efeitos relativamente à Caixa Geral de Depósitos, continuando o autor responsável pela dívida à mesma; entretanto, a ex-mulher do autor não pagou atempadamente algumas prestações em dívida que foram cobradas ao autor, e deixou de pagar o prémio de seguro que garantia o empréstimo.
Alegou, ainda, o autor que o tribunal não podia transferir a dívida do autor para a sua ex-mulher porque não havia autorização expressa da CGD, pelo que aquele não só continua vinculado a uma dívida no montante de € 32.055,56 como está impedido de obter qualquer financiamento junto do Banco até à liquidação total das dívidas referidas.

O Ministério Público, em representação do Estado, contestou a ação por exceção, invocando a prescrição do direito à indemnização, e por impugnação, alegando, designadamente, que o autor não respeitou o estatuído no art. 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007, de 31.12, na medida em que não fez prova da revogação da decisão que eventualmente haja incorrido em erro judiciário, o que impede de se considerar verificada a ilicitude. Alegou que a prova da revogação da decisão danosa «não é um requisito especificamente processual de que depende uma apreciação de mérito da causa (em sentido favorável ou desfavorável), mas sim uma condição da ação, ou seja, um requisito que interessa ao fundo da causa e se conexiona com a relação jurídica substancial. A revogação relevante, para efeitos do disposto no artigo 13.º, n.º 2, é aquela que tenha por base a existência de um erro de facto ou de direito, e é também em função dos termos em essa revogação se operou que o juiz do processo indemnizatório irá efetuar a qualificação do erro para efeitos de responsabilidade civil». Mais alegou que em face da factualidade alegada, não resulta minimamente a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado Português.

O tribunal de primeira instância convidou o autor a pronunciar-se sobre a exceção invocada pelo réu, o que aquele fez, defendendo a improcedência da exceção.

Foi designada data para a realização de audiência prévia e, no âmbito desta, foi proferido despacho-saneador, fixado o valor da ação e o tribunal conheceu do pedido por ter considerado que era possível fazê-lo naquele momento, «atenta a factualidade que deriva dos documentos apresentados e a posição assumida pelas partes».

I.2.
O recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«I. Apesar do Recorrente ter alegado na petição inicial e trazido aos autos os elementos que, no seu entender, consubstanciam um erro grosseiro do julgador na apreciação dos respetivos pressupostos de direito de ação anterior.
II. A 1.ª instância considerou que o Autor não esgotou todas as instâncias de recurso, logo não está preenchido, no caso concreto, o disposto no artigo 13°, n.º 2, da Lei n.º 67/2007, de 31/12 - daí advindo a improcedência da presente ação;
III. Pois como porque se tratava de uma ação com o valor de recurso, deveria ter recorrido até ao Supremo Tribunal de Justiça, por força dos artigos 629°, n.º 1 do CPC e 44°, n.º 1, da LOSJ;
IV. De acordo com a Recorrente, admitir a prévia revogação da decisão danosa proferida em último grau de jurisdição, como pressuposto da responsabilidade civil extra-contratual do Estado, implica a violação do artigo 22° da CRP, pois não se vislumbram "outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos" que possam justificar essa restrição, nos termos do artigo 18°, n.º 2, da CRP.
V. No direito comunitário é criticado o pressuposto da prévia revogação da decisão danosa para a efetivação da responsabilidade civil do Estado por danos causados no exercício da função judicial, uma vez que para o TJCE basta que (i) a norma de direito comunitário confira direitos aos particulares, (ii) a violação seja suficientemente caracterizada e (ii) exista um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
VI. Mais afirmou o TJCE que, de acordo com um princípio de equivalência, "as condições fixadas pelas legislações nacionais em matéria de reparação dos danos não podem ser menos favoráveis do que as respeitantes a reclamações semelhantes de natureza interna" e de acordo com o princípio da efetividade, "não podem estar organizadas de forma a, na prática tornarem impossível ou excessivamente difícil a obtenção da reparação".
VII. Logo, pelo menos nos casos referentes a violações suficientemente caraterizadas de normas de direito comunitário que se destinam a conferir direitos aos particulares, e exista um nexo de causalidade entre o facto e o dano, entende a Recorrente que a Lei n.º 67/2007 é desconforme ao direito comunitário, na medida em que existe um requisito adicional para que se intente ação de responsabilidade civil contra o Estado – vide Acórdãos Kobler e Traghetti del Mediterraneo SpA.
VIII. Nestes casos a "prévia revogação da decisão danosa" constitui uma violação do direito comunitário pela decisão jurisdicional causadora de danos, ou seja, é uma restrição, não autorizada pelo direito comunitário e pela interpretação dele feita pelo TJCE, do direito dos particulares a obterem a reparação dos danos causados por violações, pelos Estados-Membros, dos direitos conferidos pelo Direito Comunitário.
IX. Porquanto, e tendo em conta a jurisprudência do TJCE, a condição de "prévia revogação da decisão danosa" não deve ser aplicada nos casos em que está em causa a responsabilidade do Estado por violação do direito comunitário, sob pena de se pôr em causa o princípio do primado afirmado na jurisprudência do TJCE nos acórdãos Costa vs Enel (C-6/64), Simmenthal (C-106/77) e Internationale Handelgesellschaft (Proc. 11/70).
X. E mais ainda, no artigo 41.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, permite-se que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condene o Estado que viola um direito fundamental a indemnizar os danos que resultaram, para o lesado, desse comportamento.
XI. Assim, ao inverso do que tem sido entendido pela doutrina nacional, a prévia revogação da decisão danosa não é um pré-requisito aferidor da ilicitude da atuação do Estado para efeito de imputação de responsabilidade civil extracontratual por danos causados no exercício da função jurisdicional e, consequentemente, mesmo as decisões de órgãos jurisdicionais insuscetíveis de recurso ordinário, ou não revogadas, podem fundamentar ação de responsabilidade contra o Estado.
XII. Como o Tribunal decidiu afastar da dívida o recorrente, apesar da oposição do credor, não restam dúvidas que o erro judiciário existe.
XIII. Nestes termos, e nos melhores de direito ao caso aplicáveis, deve ser dado provimento à presente apelação, revogando-se a douta sentença recorrida e, consequentemente, julgar a presente ação procedente».

I.3.
O recorrido apresentou resposta às alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«1. Apresente ação só poderia ser proposta depois da revogação da decisão considerada danosa, exigência decorrente da lei (artigo 13 ° da Lei n° 67/2007, de 31.12);
2. Esta disposição legal (artigo 13°, n° 2, da Lei nº 67/2007, de 31.12) não é inconstitucional pois que não retira, limita ou diminui às partes qualquer acesso ao Direito e aos tribunais; antes consagra a possibilidade e o direito de expor e discutir as suas razões e o poder de vir a obter uma decisão justa.
3. Constatando-se a não verificação de tal pressuposto essencial, a revogação prévia da decisão danosa, foi decidida a improcedência da ação, decisão que não viola o disposto nos artigos 19° e/ou 20° da Constituição da República Portuguesa;
4. Não ocorre violação de normas de Direito Comunitário nem o Autor, ora recorrente, menciona uma que tenha sido violada;
5. A decisão – fundamento da pretensão do Autor – de homologação de acordo obtido entre o próprio e seu ex-cônjuge nos termos do qual o "passivo atribuído à Caixa Geral de Depósitos será pago única e exclusivamente pela cabeça de casal (…)" não constitui erro grosseiro, porquanto se fundamenta no disposto no artigo 1353° do Código de Processo Civil (versão vigente à data da prolação da decisão) e ainda no art. 2100° do Código Civil.
6. A sentença agora em apreço não merece censura e deverá ser mantida, improcedendo o recurso».

I.4.
O recurso interposto pelo autor foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no art. 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (art. 608.º, n.º 2 e art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (arts. 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
A questão que cumpre decidir é a seguinte: saber se a prévia revogação da decisão danosa é, ou não, um requisito aferidor da ilicitude da atuação do Estado para efeito de imputação de responsabilidade civil extracontratual por danos causados no exercício da função jurisdicional e, em caso afirmativo, se a «prévia revogação da decisão danosa» exigida pelo nº 2 do artigo 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31.12 é desconforme à Constituição e contrária ao Direito Comunitário.

II.3.
FACTOS
O Tribunal de primeira instância julgou provados os seguintes factos:
1 - O Autor (…) casou no dia 8 de abril de 2000 com (…), sob o regime de separação de bens;
2 - No dia 19 de outubro de 2009, o Autor e a referida (…) adquiriram cada um 1/2 do prédio urbano sito em (…), freguesia de (…), concelho de Abrantes, inscrito sob o art. (…), atual artigo matricial n.º (…), da União de Freguesias de (…) e (…);
3 - Para efetuar a aquisição referida em 2, o Autor e (…) constituíram hipoteca voluntária a favor do credor CGD;
4 - O casamento referido em 1 foi dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida no Tribunal Judicial de Abrantes, transitada em julgado em 8 de julho de 2013;
5 - Correu termos processo de Inventário/Partilha de Bens em Casos Especiais com o n.º 1368/12.1TBABT-A, na comarca de Santarém, Instância Central, 1.ª Secção de Família e Menores, J1, na qual foi cabeça de Casal a referida (…) e interessado o ora Autor;
6 - No processo mencionado em 5 foi partilhada a casa referida em 2, que foi adjudicada à interessada (…) na totalidade;
7 - Da Conferência de Interessados, realizada em 4 de junho de 2015 e na qual estiveram presentes apenas os interessados, foi lavrada a respetiva ata, constante de fls. 42 a 44, tendo na mesma sido proferidos os seguintes despacho e sentença, com o seguinte teor, além do mais que aqui se dá por reproduzido:
«(. . .)
DESPACHO
Nos termos do art. 1353.º, n.º 5, do CPC, a deliberação dos interessados presentes e relativa à questão do passivo vincula os que não comparecerem, uma vez que a Caixa Geral de Depósitos foi devidamente notificada para a presente diligência.
Quer isto dizer que o tribunal decide de acordo com a deliberação dos ora interessados, em como passivo atribuído à Caixa Geral de Depósitos será pago única e exclusivamente pela cabeça de casal, (…).
Notifique.
Desta forma o outro interessado (…), fica desvinculado do respetivo débito junto da entidade bancária Caixa Geral de Depósitos.
Notifique
«(…)
SENTENÇA
Atendendo à qualidade e capacidade judiciária dos intervenientes e o objeto da ação, que não versa sobre direitos indisponíveis, julgo válida a transação que antecede e por isso a homologo por sentença, condenado as partes a cumpri-la nos seus precisos termos, tudo de acordo com o disposto nos artigos 283.º, 284.º, 289.º e 290.º, n. º 1, 3, 4, do Código do Processo Civil.
Custas na forma acordada nos termos do artigo 537.º, n.º 2, do Código do Processo Civil, sem prejuízo do apoio judiciário concedido à cabeça de casal.
Registe e Notifique.
(…)».
8 - Apesar de ausente na conferência de interessados, o credor CGD juntara aos autos, em momento prévio, o requerimento de fls. 32, com o seguinte teor, além do mais que aqui se dá por reproduzido:
(…)
e, bem assim, informar que não se oporá a um eventual acordo para a partilha dos bens, não prescindindo, porém, do regime de solidariedade da divida nos termos inicialmente contratados.
(…)».
9 - Após a diligência mencionada em 7, o Autor diligenciou junto da CGD para que a dívida a esta entidade fosse titulada na sua totalidade pela interessada (…), o que foi recusado, nos termos constantes de fls. 49, que aqui se dão por reproduzidos.

II.4.
Apreciação do objeto do recurso
Está em causa nos autos a (eventual) responsabilidade do Estado Português e subsequente obrigação de indemnização por um pretenso erro de julgamento do tribunal de primeira instância que, no âmbito de um processo de inventário para partilha de bens em casos especiais, proferiu uma decisão em que determinou a transferência de uma dívida à Caixa Geral de Depósitos para o recorrente, sem que tivesse havido autorização expressa daquela entidade bancária para tal desiderato, e declarou, concomitantemente, que o aqui autor/recorrente ficava desvinculado do respetivo débito junto daquela entidade bancária.
O tribunal de primeira instância entendeu que do disposto no art. 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007, de 31.12 decorre que para o reconhecimento do direito indemnizatório reclamado pelo autor, com fundamento em erro judiciário, a ilicitude tem de estar previamente demonstrada no próprio processo judicial em que foi cometido o erro e por via dos meios impugnatórios que, in casu, forem admissíveis. Consequentemente, aquele tribunal decidiu que, não tendo a decisão alegadamente errada e em que se funda a presente ação sido objeto de qualquer recurso ou reclamação, ou seja, não tendo sido revogada, não se mostra verificada a condição essencial à ação prevista no citado art. 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007.
Liminarmente se dirá que não nos merece censura a interpretação da norma em causa nos termos em que foi empreendida pelo juiz a quo.
Apreciando.
Não é controvertido que a decisão judicial proferida no âmbito do processo de partilha de bens em casos especiais não foi objeto de recurso ou de reclamação, pelo que transitou em julgado.
Sendo imputado à referida decisão um erro de julgamento, há que chamar à colação o art. 13.º da Lei n.º 67/2007 que, sob a epígrafe Responsabilidade por erro judiciário, dispõe o seguinte:
«1 – Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto.
2 – O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.»

O referido normativo define os pressupostos materiais da responsabilidade do Estado por erro judiciário em relação a todos os casos que não se reconduzam às situações específicas de privação inconstitucional ou ilegal de liberdade e de condenação injusta.
A propósito do “erro judiciário” previsto no normativo em apreço refere Carlos Alberto Fernandes Cadilha[1]: «exige-se que o erro judiciário resulte da prolação de uma decisão judicial manifestamente inconstitucional ou ilegal ou injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto. Tal significa que o erro judiciário pode consistir num erro de direito ou num erro de facto.
O legislador exige uma especial qualificação do erro de direito, não se bastando, para efeito do funcionamento do dever de indemnizar, com a mera existência da ilegalidade ou inconstitucionalidade da solução jurídica adotada na decisão judicial, quando esta tenha vindo a ser revogada por decisão de tribunal superior. O erro de direito, enquanto fundamento de responsabilidade civil, deverá revestir-se de um suficiente grau de intensidade, no sentido de que deverá resultar de uma decisão que, de modo evidente, seja contrária à Constituição ou à lei, e por isso desconforme ao direito, e que não possa aceitar-se como uma das soluções plausíveis da questão de direito. Deverá tratar-se, nestes termos, de uma decisão proferida contra lei expressa e que, em si, represente um comportamento antijurídico suscetível de gerar, nos termos gerais, um dever de indemnizar. […] Por outro lado, também o erro na apreciação dos pressupostos de facto só origina responsabilidade civil do Estado em caso de erro grosseiro. […] Compreende-se assim que a responsabilidade civil por erro quanto à matéria de facto se circunscreva aos casos em que houve um clamoroso erro de avaliação dos meios de prova, ressalvando as situações em que a decisão de facto, ainda que tenha sido alterada por um tribunal de recurso, ainda se enquadra dentro dos limites da contingência e da falibilidade de um juízo de convicção psicológica sobre a valoração da prova».
O n.º 2 do art. 13.º impõe que o requisito da “ilicitude” – consubstanciado na existência de um erro de julgamento – seja demonstrado, não através da ação de responsabilidade civil que se destine a efetivar o direito de indemnização pelo exercício da função jurisdicional, mas no próprio processo judicial em que foi cometido o erro e por via dos meios impugnatórios que, no caso, forem admissíveis. Ou seja, o reconhecimento judicial do erro tem de ser empreendido pelo tribunal superior com competência para proferir, na respetiva ordem jurisdicional, a decisão definitiva sobre o caso concreto.
Por outras palavras, a verificação do requisito da “ilicitude” exige a existência de uma decisão que, com efeitos de caso julgado, determine a revogação da decisão que haja incorrido em erro de julgamento.
Naquele preceito normativo o legislador estatuiu uma condição de procedência da ação para efetivação da responsabilidade por erro judiciário. Pelo que a ausência de revogação da decisão danosa fundada num vício de julgamento qualificável como erro judiciário determina, só por isso, a improcedência da ação[2].
Assim, não estando provada nos autos a revogação da decisão que haja incorrido em erro judiciário, a ação teria necessariamente de improceder, como julgou o tribunal de primeira instância.
*
Nesta sede recursiva o recorrente invoca a inconstitucionalidade do referido normativo (n.º 2 do art. 13.º da Lei n.º 67/2007), por violação do art. 22.º da CRP.
Apreciando.
A responsabilidade do Estado por erro judiciário tem como fundamento constitucional o princípio da responsabilidade patrimonial do Estado por danos causados pelo exercício das diversas funções estaduais.
Princípio decorrente diretamente do disposto no art. 22.º da CRP[3], segundo o qual:
«Art. 22.º
Responsabilidade das entidades públicas
«O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus orgãos, funcionários ou agentes, por ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem».
Jorge Miranda e Rui Medeiros[4] referem que «O art. 22.º, na medida em que consagra um direito fundamental à reparação dos danos causados ilícita e culposamente pelo Estado ou demais entidades públicas, constitui – por imperativo constitucional (artigos 17.º e 18.º, n.º 1, da Constituição) – uma norma diretamente aplicável, sendo aplicável, não apenas contra legem, mas também na ausência de lei, cabendo ao órgão aplicador estabelecer, a partir das coordenadas constitucionais e do sistema legal, os critérios de decisão no caso concreto
Mas acrescentam também que: «A intervenção do legislador, se bem que não seja, em rigor, necessária para tornar exequível o artigo 22.º da Constituição, pode, em qualquer caso, revelar-se conveniente. Embora os juízes em geral possam e devam assegurar a tutela do direito fundamental dos lesados à reparação dos danos, uma tal via apresenta inconvenientes, tanto do ponto de vista da separação de poderes e do papel que, num Estado democrático, deve estar reservado ao legislador legitimado democraticamente, como na perspetiva da igualdade e da segurança jurídica. O legislador pode, pois, densificar os pressupostos da obrigação de indemnizar e o regime da responsabilidade, cabendo-lhe, designadamente delimitar o conceito de ilicitude relevante e esclarecerem que medida uma ideia de culpa – entendida, evidentemente, numa aceção normativa e não psicológica – constitui pressupostos da responsabilidade.
A lei não pode, porém, restringir arbitrária ou desproporcionadamente o direito fundamental à reparação dos danos consagrado no artigo 22.º da Constituição. O problema pode surgir tanto na definição do regime substantivo da responsabilidade, como na estruturação da ação de responsabilidade» (negritos nossos).
Também no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 45/99[5] escreveu-se: «O art. 22.º da Constituição reconhece aos cidadãos o direito à reparação dos danos que lhes forem causados por ações ou omissões praticadas por titulares de órgãos do Estado e das demais entidades públicas, ou por seus funcionários ou agentes, no exercício das respetivas funções, reparação essa que deve ser integral e assumida solidariamente pela Administração. Mas o mesmo artigo 22.º não estabelece os concretos mecanismos processuais através dos quais se há-de exercitar esse direito: ponto é que o legislador, ao fazê-lo, não crie entraves ou dificuldades dificilmente superáveis, nem encurte arbitrariamente o quantum indemnizatório» (negritos nossos).
No acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/2015[6] também se enfatizou que o facto de o art. 22.º da CRP se referir a atos que podem ser praticados no âmbito de qualquer uma das funções do Estado, obriga a concretizar, no plano infraconstitucional, a garantia da responsabilidade direta do Estado «de modo a adequá-la à diferente tipologia de atuações que pode estar em causa». E que aquilo que releva é que «as cláusulas legais limitativas ou excludentes da responsabilidade direta do Estado não eliminem nem esvaziem de sentido a garantia da responsabilidade direta do Estado» (negritos nossos).
A propósito das “especificidades próprias do regime do erro judiciário”, escreveu-se no mesmo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/2015: «Diferentemente de um órgão ou agente administrativo que faz aplicação de uma norma legal, um órgão judicial «diz o direito» - o «direito do caso» -, e a sua declaração é plenamente válida (já acima de recordou) se e enquanto não for revogada, em sede de recurso, por um tribunal superior. Por isso mesmo, se se compreende que um «ato definitivo» da Administração possa ser posto em causa por uma instância judiciária só para efeitos indemnizatórios, não obstante para a generalidade dos efeitos haver entretanto constituído «caso resolvido», compreende-se do mesmo modo que coisa idêntica não possa suceder com um ato judicial «consolidado». Quer dizer: compreende-se que este último – não havendo sido impugnado, ou, como quer que seja, apreciado pela competente instância de recurso – não possa vir a ser ulteriormente «desautorizado» por outro tribunal (porventura de diferente espécie, ou pertencente a uma diversa ordem de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior) mesmo só para aqueles limitados efeitos».
Também no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29-10.2013, processo n.º 1668/12.0TVLSB.L1-7 (relatora Ana Resende)[7] referiu-se que: «Subjacente ao requisito da revogação prévia está uma razão dogmático-institucional, ligada à própria natureza da função jurisdicional, consolidada, independentemente de ter sido apreciada em recurso, ser objeto de desautorização, ainda que com efeitos limitados à verificação de um caso de erro, por um outro tribunal, de possível diversa espécie, ou mesmo grau inferior, num verdadeiro ilogismo institucional, consubstanciado na subversão da divisão dos poderes, enquanto também aplicável à organização da ordem judiciária».
Temos, pois, que o art. 22.º da CRP permite que o legislador ordinário defina o âmbito e os pressupostos da responsabilidade do Estado consagrada naquele normativo constitucional, designadamente da responsabilidade por atos ou omissões praticados no âmbito do exercício de funções jurisdicionais. Essencial é que o legislador não exclua em absoluto tal direito ou que limite de forma arbitrária ou desproporcionada a responsabilidade direta do Estado pelos danos causados a particulares no exercício das suas funções.
No acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/2015 apreciou-se já a questão da (in)constitucionalidade do n.º 2 do art. 13 do RCEEP, decidindo «não julgar inconstitucional a norma do art. 13.º n.º 2 do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na própria revogação da decisão danosa pela jurisdição competente». Com efeito, declarou-se naquele aresto que «[a norma do art. 13.º, n.º 2 do RCEEP não elimina o direito à indemnização por erro judiciário, limitando-se a acomodar no regime respetivo, as exigências correspondentes à estrutura e ao modo de funcionamento do sistema judiciário constitucionalmente consagrado. Inexiste, por conseguinte, qualquer evidência de desrespeito pelo conteúdo essencial do referido direito. Se à partida, e de modo constitucionalmente legítimo, o direito à indemnização em causa é delimitado negativamente em função da possibilidade legal de reapreciação judicial pelo tribunal competente antes do trânsito em julgado da decisão tida como danosa, também não se coloca qualquer problema de acesso ao direito. Este último, enquanto direito-garantia, pressupõe um direito material, que, no caso, inexiste. Finalmente, as referidas exigências orgânico-funcionais relacionadas com o sistema judiciário explicam satisfatoriamente a solução legal, afastando a ideia de que a mesma seja arbitrária».
Não padece, pois, o referido preceito normativo da inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente, improcedendo, assim, este segmento do recurso em análise.

*

O recorrente invoca também uma desconformidade do art. 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007 com o direito comunitário «na medida em que existe um requisito adicional para que se intente ação de responsabilidade civil contra o Estado, nestes casos a “prévia revogação da decisão danosa”» o que «é uma restrição, não autorizada pelo direito comunitário e pela interpretação dele feita pelo TJCE do direito dos particulares a obterem a reparação dos danos causados por violações, pelos Estados Membros, dos direitos conferidos pelo Direito Comunitário».

O recorrente traz à colação, designadamente, os acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia proferidos, respetivamente, nos casos Kobler e Tragheti del Mediterraneo, Spa.

Apreciando.

Liminarmente se dirá que em ambos os acórdãos supra referidos o que estava em causa era o incumprimento por parte dos órgãos jurisdicionais em causae que decidiram em último grau de jurisdição – da sua obrigação de reenvio prejudicial[8].

Situação que não ocorre no caso sub judicie, como veremos infra.

Também se dirá, como ponto prévio, que o Tribunal de Justiça da União Europeia tem vindo a afirmar, desde o acórdão Francovich, de 19.11.1991 (procs. n.ºs C-6/90 e C-9/90), o princípio da responsabilidade do Estado-membro por violação do direito da União Europeia como sendo um princípio estruturante da mesma, sendo a finalidade de tal responsabilidade (patrimonial) garantir uma plena eficácia da aplicação das normas comunitárias, a uniformidade do direito e a proteção dos particulares.[9]

Com efeito, ali se sustentou que «a plena eficácia das normas comunitárias seria posta em causa e a proteção dos direitos que as mesmas reconhecem estaria enfraquecida se os particulares não tivessem a possibilidade de obter a reparação quando os seus direitos são lesados por uma violação de direito comunitário imputável ao Estado-membro» (n.º 33) e que «o princípio da responsabilidade do Estado pelos prejuízos causados aos particulares por violações do direito comunitário que lhe sejam imputáveis é inerente ao sistema do Tratado.» (n.º 35).

A jurisprudência posterior ao acórdão Francovich veio precisar as condições de admissibilidade da responsabilidade patrimonial dos Estados por violação do direito comunitário, sendo atualmente jurisprudência consolidada de que as três condições de admissibilidade são as seguintes: que a norma jurídica violada tenha por objeto conferir direitos aos particulares, a exigência de uma violação suficientemente caracterizada e o nexo de causalidade entre a violação da obrigação que incumbe aos Estados-membros de acordo com o direito comunitário e o prejuízo sofrido pelas pessoas lesadas[10].

Retornando aos acórdãos do Tribunal de Justiça mencionados pelo recorrente, neles suscitou-se a possibilidade de dispensa do requisito da prévia revogação da decisão danosa, mas em casos de incumprimento do direito comunitário (designadamente, da obrigação de reenvio prejudicial) por parte de tribunais que julgaram em última instância.

No acórdão Kobler, de 30.09.2003, proc. C-224/01, o Tribunal de Justiça decidiu que o princípio da responsabilidade do Estado por violação do Direito Comunitário é válido para qualquer violação independentemente da entidade do Estado-membro que gerou o incumprimento, incluindo, por conseguinte, e também, órgãos jurisdicionais, sobretudo aqueles de cujas decisões não cabe recurso.

No acórdão Kobler declarou-se que: «Atendendo ao papel essencial do poder judicial na proteção dos direitos que as normas comunitárias conferem aos particulares, a plena eficácia destas seria posta em causa e a proteção dos direitos que as mesmas reconhecem ficaria diminuída se os particulares não pudessem, sob certas condições, obter ressarcimento quando os seus direitos são lesados por uma violação de direito comunitário imputável a uma decisão de um órgão jurisdicional de um Estado-membro decidindo em última instância» (n.º 33); «[…] resulta das exigências inerentes à proteção dos direitos dos particulares que invocam o direito comunitário que os mesmos devem ter a possibilidade de obter, junto de um órgão jurisdicional nacional, ressarcimento do prejuízo causado pela violação destes direitos por uma decisão de um órgão jurisdicional nacional decidindo em última instância […]» (n.º 36).

Mais declarou aquele Tribunal no referido acórdão Kobler, e no que respeita às condições da responsabilidade do Estado, que: «No respeitante às condições em que um Estado-membro está obrigado a reparar os prejuízos causados aos particulares por violações do direito comunitário que lhes são imputáveis, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que elas são três, a saber, que a norma jurídica violada vise atribuir direitos aos particulares, que a violação seja suficientemente caracterizada e que exista um nexo de causalidade entre a violação da obrigação que incumbe ao Estado e o prejuízo sofrido pelas pessoas lesadas […] (n.º 51) e que «A responsabilidade do Estado por danos causados pela decisão de um órgão jurisdicional nacional decidindo em última instância que viole uma regra de direito comunitário rege-se pelas mesmas condições» (n.º 55).

No referido aresto, o Tribunal de Justiça considerou que para determinar se a violação é suficientemente caracterizada quando a mesma resulte de um órgão jurisdicional decidindo em última instância, o juiz nacional competente deve, dada a especificidade da função jurisdicional, apurar se o referido órgão jurisdicional violou de forma manifesta o direito aplicável (n.º 59).

Sublinha-se que o Tribunal de Justiça no acórdão Kobler apenas refere a responsabilidade do Estado pela atuação dos tribunais nacionais de última instância.

Sofia Oliveira Lopes, ob. cit., p. 137-138, refere existirem “argumentos de peso” no sentido da restrição da responsabilidade dos Estados-membros à atuação dos tribunais de última instância, afirmando que a limitação da responsabilidade do Estado à decisão das instâncias superiores se encontra «em sintonia com as soluções seguidas no direito internacional», designadamente, com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cujo art. 41.º tem permitido ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenar um Estado que violou um direito fundamental a indemnizar os danos que resultaram desse comportamento para a pessoa lesada, resultando da jurisprudência daquele tribunal que tal compensação pode ser igualmente concedida quando a violação resulta do conteúdo de uma decisão de um órgão jurisdicional nacional decidindo em última instância.

No acórdão Tragheti del Mediterraneo, Spa, de 13.06.2006, proc. n.º C-173/03, declarou-se que responsabilidade do Estado-membro por violações do direito comunitário só pode existir quando o tribunal nacional viola de forma suficientemente caracterizada, isto é, de forma manifesta e grave o direito comunitário aplicável e que para determinar se esta condição se mostra preenchida, o juiz nacional a quem caiba conhecer do pedido de indemnização deve considerar e ponderar o grau de certeza e de precisão da norma violada, o caráter desculpável, ou não, do erro de direito, o âmbito da margem de apreciação que a regra violada deixa às autoridades nacionais ou comunitárias, a atitude eventualmente adotada por uma instituição comunitária isto é de ela ter podido contribuir para a omissão. Em suma, neste acórdão, o Tribunal de Justiça reiterou que a efetivação da responsabilidade do Estado-membro por decisões jurisdicionais depende da verificação dos três requisitos fixados na jurisprudência designadamente do acórdão Kobler e que o tribunal nacional deve tyer em consideração que estará perante uma situação exceional.

Resulta pois quer dos acórdãos do Tribunal de Justiça invocados pelo recorrente e supra mencionados quer da jurisprudência daquele tribunal de justiça anterior e subsequente aos mesmos que o princípio da responsabilidade patrimonial do Estado implica a violação, por parte dos Estados-membros, designadamente, dos seus órgãos jurisdicionais, do direito da União Europeia, quer essa violação se traduza na violação (manifesta) da obrigação de reenvio prejudicial, quer na prolação de decisões contrárias a disposições do Direito da União Europeia.

Refira-se que embora a Lei n.º 67/2007 apenas aluda à responsabilidade civil extracontratual do Estado por violação do direito comunitário no domínio da função político-legislativa (cfr. artigo 15.º, n.º 1), o erro judiciário previsto no art. 13.º daquele diploma pode resultar de incumprimento pelo órgão jurisdicional do direito comunitário, decorrência necessária do princípio do primado do direito da União Europeia[11].

Retornando ao caso concreto, logo se verifica que não está em causa o incumprimento da obrigação de reenvio prejudicial por parte do tribunal que proferiu a decisão danosa. Tão pouco o autor/recorrente invoca normas ou princípios do direito comunitário que hajam sido violados pelo tribunal que proferiu a decisão danosa, não havendo notícia de que o tenha feito naquele mesmo processo. Com efeito, na petição inicial o autor limitou-se a invocar o disposto no art. 595.º do Código Civil, cujo n.º 2 prevê que a transmissão a título singular de uma divida só exonera o antigo devedor havendo declaração expressa do credor; caso contrário, o antigo devedor responde solidariamente com o novo obrigado. Finalmente, dir-se-á que a referida decisão foi proferida por um tribunal de primeira instância, sendo que o valor da causa permitiria o recurso ordinário (cfr. art. 629.º do CPC).

Em face do exposto, não tendo sido invocada a violação de direito comunitário na ação de responsabilidade civil que foi proposta pelo recorrente contra o Estado e não estando em causa um erro de julgamento cometido por um tribunal superior com competência para proferir, na respetiva ordem jurisdicional, a decisão definitiva sobre o caso concreto, a exigência da prévia revogação da decisão danosa não se afigura contrária à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia nem ao Direito da União Europeia.

Improcede, pois, a presente Apelação.


III. DECISÃO
Em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente a Apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
As custas de parte na presente instância recursiva são da responsabilidade do recorrente (arts. 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º, 533.º ex vi art. 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil).
Notifique.
Évora, 30 de janeiro de 2020
Cristina Dá Mesquita
José António Moita
Silva Rato


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[1] Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Coimbra Editora, 2008, p. 210.
[2] Carlos Alberto Cadilha, ob. cit., p. 220.
[3] Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, 1984, p. 185: «Este artigo consagra o princípio da responsabilidade patrimonial direta das entidades públicas por danos causados aos cidadãos […] um dos princípios estruturantes do estado de direito democrático, enquanto elemento do direito geral das pessoas à reparação dos danos causados a outrem.»
[4] Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 213.
[5] Consultável em www.tribunalconstitucional.pt.
[6] DR n.º 186/2015, Série II de 23.09.2015,
[7] Publicado em www.dgsi.pt. e citando José Manuel Cardoso Costa, Sobre o Novo Regime da Responsabilidade do Estado por Atos da Função Judicial, RLJ n.º 3954, janeiro-fevereiro de 2009.
[8] A competência prejudicial do Tribunal de Justiça está prevista no art. 234.º do Tratado CE.
O mecanismo do reenvio previsto no art. 234.º do TCE permite os órgãos jurisdicionais nacionais obter esclarecimentos sobre o sentido, o alcance e o efeito de uma norma Comunitário quando tal se revele necessário para a solução de um caso concreto.
A decisão de reenvio não está sempre na discricionariedade do juiz nacional. Caso contrário, a unidade da aplicação do Direito Comunitário ficaria posta em causa.
Assim, o art. 234.º, § 3, impõe quanto a alguns tribunais a obrigação de suscitarem a competência prejudicial do Tribunal de Justiça da União Europeia. De acordo com aquele normativo, sempre que uma questão que convoque uma norma de direito comunitário seja suscitada perante um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao tribunal de Justiça.
[9] Como refere Inês Quadros, A Função Subjetiva da Competência Prejudicial do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, Almedina, 2006, p. 167: «Da jurisprudência Francovich se retirou, a propósito da afirmação da responsabilidade do Estado pela não implementação das diretivas, a regra geral relativa à responsabilidade do Estado pelo incumprimento do Direito Comunitário, fundada no princípio da lealdade e alicerçada na afirmação do Tribunal de Justiça segundo a qual “o princípio da responsabilidade do Estado pelos danos causados aos particulares pelas violações do Direito Comunitário que lhe são imputáveis é inerente ao sistema do Tratado”».
[10] Sofia Oliveira Pais (coord.), Princípios Fundamentais de Direito da União Europeia, 3.ª edição, 2018, Almedina, p. 120.
[11] Assim, Carlos Alberto Fernandes Cadilha, ob. cit., p. 213.