Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
7321/23.2T8STB.E1
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
INDEFERIMENTO LIMINAR DA PETIÇÃO
DESPACHO DE CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
DANO IRREPARÁVEL
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Todos os danos são suscetíveis de tutela cautelar, verificados que sejam os demais requisitos das providências cautelares.
1. Se um construtor não puder concretizar ou correr o risco de não poder concretizar, no prazo a que obedece um licenciamento, a realização do mesmo e a subsequente construção e comercialização dos edifícios planeados, em razão duma ocupação de parte desse espaço por terceiro, comprometedora da edificação da obra no seu conjunto, poder-se-á estar perante uma lesão grave ou dificilmente reparável do seu direito, a justificar o recurso a uma tutela cautelar.
2. Para a valoração do dano grave e irreparável ou de difícil reparação, não é necessário que se trate de um dano irreparável em termos absolutos, bastando que implique uma reconstituição dificultada do status quo anterior.
3. Só se pode concluir pela falta de instrumentalidade da providência cautelar se a ação principal foi anteriormente instaurada e os pedidos de uma e outra não apresentam correspondência funcional.
4. A provisoriedade das providências cautelares significa que os efeitos de qualquer providência cautelar (exceto se for decretada a inversão do contencioso e o requerido notificado não fizer uso da ação de impugnação do direito acautelado), são necessariamente limitados no tempo.
5. Pode haver lugar a despacho de aperfeiçoamento nas providências cautelares.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 7321/23.2T8STB.E1
2ª Secção

Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I

Em 06/11/2023 deu entrada o presente procedimento cautelar comum intentado por (…), Lda., com sede na Estrada da (…), n.º 27, 2900-534 Setúbal, contra (…), com domicílio em Praça (…), n.º 16, 6.º Esq.º, 2900-285 Setúbal, tendo sido pedido dispensa de contraditório prévio do Requerido, nos termos do artigo 366.º do CPC.

Pretende a Requerente seja decretada a entrega imediata pelo Requerido à Requerente, da parte urbana do Prédio misto que identifica, sendo dispensada do ónus de propositura da ação principal na decisão que decrete a providência.

Alega em suma que, dedica-se à atividade de compra e venda, revenda e alojamento local de imóveis.

Nesse âmbito adquiriu a um terceiro (“Fundo Aberto de Investimento…”), entre outros, o prédio misto que identifica, sito em Palmela, livre de ónus e encargos.

Sucede que a parte urbana do referido prédio encontra-se indevidamente ocupada pelo Requerido, estando a Requerente privada do seu uso e fruição.

A Requerente por carta registada de 27/06/2023 interpelou o Requerido para entregar o Prédio, carta que foi recebida, mas o Requerido não respondeu e mantém a ocupação.

A intenção da Requerente ao adquirir o Prédio foi a sua rentabilização, em conjunto com outros imóveis dos quais é dona e que fundaram a preferência, concedida à Requerente pelo Fundo vendedor, na aquisição do prédio ocupado.

A Requerente apresentou um Pedido de Informação Prévia (PIP), junto da Câmara Municipal de Palmela, em 28/07/2023, no sentido de obter um parecer sobre a viabilidade da realização de uma operação de loteamento, tendo como objeto, entre outros prédios, este Prédio, com vista a definir lotes habitacionais destinados à construção de edifícios de habitação para construção bifamiliar ou unifamiliar.

Estando o Prédio ocupado vê-se impedida de o aproveitar, para prosseguir o referido objetivo, na medida em que a total inacessibilidade do Prédio, por via da atuação do Requerido, impedirá a realização de obras necessárias à construção dos edifícios de habitação.

Esta privação tem efeitos na capacidade de aproveitamento dos restantes imóveis de que a Requerente é dona, uma vez que o projeto comercial visado pela Requerente para a rentabilização do Prédio envolve um uso, fruição e disposição conjunta de todos os imóveis de que é dona, e que se encontram incluídos no acima referido PIP.

Assim, a ocupação ilegítima do Prédio da parte do Requerido impede a realização de obras necessárias à construção unitária do pretendido loteamento sobre todos os imóveis incluídos no referido PIP.

É intenção da Requerente usar o Prédio logo no início da execução das obras que pretende realizar, como estaleiro de apoio (escritório de obras e guarda de materiais).

O que traz prejuízos à Requerente por estar impedida de usar, fruir e dispor do Prédio que legitimamente adquiriu, mormente através da exploração do mesmo, no contexto da sua atividade.

A ocupação indevida é geradora de avultada indemnização.

A Requerente não conhece, como não tem forma de conhecer bens ou rendimentos ao Requerido, e muito menos se suficientes para suportar os prejuízos gerados pela sua atuação – tanto os já causados, como os que ainda se haverão de produzir se a mesma se mantiver.

Aberta conclusão nos autos e sem precedência de audição da Requerente sobre o propósito da decisão que viria a ser proferida, foi em 10/11/2023, proferido despacho de indeferimento liminar com fundamento em que “a inviabilidade da presente providência é manifesta, quer por falta de alegação de factos que comportem uma lesão grave e dificilmente reparável, quer por lhe faltar a provisoriedade/instrumentalidade, pelo que a mesma deverá ser liminarmente indeferida”.

Inconformada com tal decisão, veio a Requerente recorrer assim concluindo as suas alegações de recurso:

C.1) DO OBJECTO DO RECURSO

I. O presente recurso tem por objeto o despacho proferido nos autos em 10/11/2023, em que foi indeferido liminarmente o requerimento inicial de procedimento cautelar comum proposto pela Recorrente.

II. Salvo o devido respeito pela decisão recorrida, a mesma assentou sobre uma interpretação incorreta dos pressupostos do procedimento cautelar comum e do poder de indeferimento liminar.

C.2) DA INADMISSIBILIDADE DO INDEFERIMENTO LIMINAR

III. O indeferimento liminar consiste no poder do julgador de pôr termo ao processo sem que se proceda à instrução da causa.

IV. Tal poder apenas pode ser exercido, nos termos dos artigos 226.º, n.º 1, alínea b) e 590.º, n.º 1, do CPC, quando a petição inicial tem de ser apresentada a despacho liminar e nesse momento o julgador se vê confrontado com uma exceção dilatória insuprível ou com um pedido de tutela jurisdicional que não tem o mínimo de fundamento jurídico, configurando esta última hipótese uma manifesta improcedência.

V. Assim, um requerimento inicial de procedimento cautelar comum apenas pode ser indeferido liminarmente por manifesta improcedência nos casos em que, de forma manifesta e indiscutível, não se encontram preenchidos os pressupostos de facto e de Direito para poder ser decretada a tutela cautelar requerida.

VI. A jurisprudência estabelece unanimemente que não pode ser proferido despacho de indeferimento liminar nos casos de fronteira, em que o julgador tem dúvidas sobre o cabimento jurídico da pretensão formulada.

VII. Entendeu o Tribunal a quo na decisão recorrida que o alegado no requerimento inicial não é de molde a preencher os requisitos do procedimento cautelar comum, pelo que o requerimento inicial seria manifestamente improcedente.

VIII. O primeiro desses pressupostos consiste na alegação dos factos que constituem o fundado receio da Recorrente de que ocorra uma lesão grave e de difícil reparação ao direito a acautelar, nos termos do artigo 362.º, n.º 1, do CPC.

IX. O segundo desses pressupostos consiste na falta de instrumentalidade e provisoriedade do procedimento cautelar, nos termos do artigo 364.º, n.º 1, do CPC.

X. O entendimento patente na decisão recorrida não tem a mínima correspondência com a realidade, pois, foram alegados os factos que consubstanciam o fundado receio de lesão grave e de difícil reparação ao direito de propriedade da Recorrente sobre o Prédio.

C.3) DA ALEGAÇÃO COMPLETA DOS FACTOS QUE CONSTITUEM O PERICULUM IN MORA

I. A Recorrente alegou todos os factos que fundamentam o seu receio de lesão grave e de difícil reparação do direito a acautelar, no caso de propriedade, conforme obriga o artigo 362.º, n.º 1, do CPC.

II. Com efeito, a Recorrente alegou que adquiriu o Prédio, de natureza mista, em conjunto com outros prédios, de natureza rústica, com o objetivo de os lotear e de neles construir edifícios para habitação de natureza unifamiliar e bifamiliar, tendo já avançado com Pedido de Informação Prévia junto da Câmara Municipal de Palmela.

III. Atendendo a que o Prédio se encontra ocupado, a operação de loteamento e de subsequente construção fica completamente inviabilizada, atendendo a que não existe qualquer previsão de saída da Recorrida do Prédio, não sendo sequer viável iniciarem-se as obras pelos prédios rústicos por essa mesma razão.

IV. A ocupação do Prédio impede igualmente a Recorrente de utilizar o mesmo como estaleiro de obras, conforme é sua legítima pretensão.

V. Ficou ainda a constar do requerimento inicial que, tanto quanto sabe a Recorrente, a Requerida não tem património ou meios financeiros para fazer face aos prejuízos causados pela manutenção da ocupação da Recorrida do Prédio.

VI. Alegou ainda a Recorrente que, nos termos da melhor jurisprudência, a mera ocupação de um prédio por terceiro ao ponto de impedir a utilização e gozo do mesmo é quanto basta para que seja causado um prejuízo grave e de difícil reparação.

VII. Não obstante a Recorrente ter alegado de forma completa todos os factos que motivam o seu receio de lesão grave e de difícil reparação ao direito de propriedade, o Tribunal recorrido entendeu que os danos causados pela ocupação da Recorrida são "em abstrato" de fácil reparação.

VIII. Mais entendeu que o facto da Recorrente desconhecer o património da Recorrida não acarreta necessariamente um perigo de que a mesma não tenha meios para a compensar pelos prejuízos causados pela manutenção da sua ocupação ilegítima.

IX. Ora, a decisão recorrida não acompanha os critérios avançados pela jurisprudência dos Tribunais superiores sobre a avaliação da gravidade do dano e da sua dificuldade de reparação.

X. O facto de a Recorrida, pela sua ocupação ilegítima do Prédio, estar a impedir a Recorrente de usar, fruir e dispor em condições normais desse mesmo Prédio é, por si só, motivo suficiente, segundo jurisprudência sedimentada, para que surja um dano grave.

XI. A acentuar a gravidade desse dano, considere-se que a que a Recorrente é uma sociedade comercial que adquiriu o Prédio, bem como outros dois prédios rústicos, por um preço de € 53.400,00 (cento e cinquenta e três mil e quatrocentos euros) para os lotear e neles construir habitações.

XII. Não existindo previsões para um futuro próximo de que a Recorrida vá desocupar o Prédio, dando a sua atuação a entender precisamente o contrário, ver-se-á a Recorrente obrigada a manter na sua titularidade um Prédio que não pode rentabilizar, não conseguindo sequer recuperar o capital investido.

XIII. Para além da ocupação da Recorrida criar uma lesão grave, essa lesão é igualmente de difícil reparação atendendo aos critérios objetivos e subjetivos avançados pela doutrina para avaliar a dificuldade de reparação.

XIV. Considerando o critério subjetivo, que manda atender às capacidades económicas do requerido em sede de procedimento cautelar para reparar os danos por si causados, releve-se que, tanto quanto é do conhecimento da Recorrente, a Requerida não tem recursos financeiros que lhe permitam fazer face aos prejuízos futuros causados pela manutenção da ocupação ilegítima.

XV. Ao contrário do que consta da decisão recorrida, o desconhecimento da situação financeira da Recorrida em nada implica que esta tenha meios para compensar financeiramente os prejuízos que irá causar à Recorrente.

XVI. Sendo que tal entendimento do Tribunal a quo, a proceder, operaria uma inversão ilegal do ónus da prova, pois a jurisprudência tem entendido que é ao requerido em sede de procedimento cautelar que cabe provar ter meios financeiros para fazer face aos prejuízos.

XVII. Já considerando o critério objetivo, que manda atender ao tipo de lesão, bem como ao perigo e consequências que se fazem repercutir na esfera jurídica do requerente de tutela cautelar, tem entendido a jurisprudência que a mera ocupação de um prédio, ao ponto de impedir o seu legítimo proprietário de usar, fruir e dispor do mesmo em condições normais, é suficiente para causar um prejuízo de difícil reparação.

XVIII. Ou seja, a atuação da Recorrida, ao impedir a Recorrente de usar e fruir do Prédio, é suficiente para que seja causado um prejuízo de difícil reparação.

XIX. Ocorreu, assim, um manifesto erro decisório relativamente à apreciação do grau de gravidade e de dificuldade de reparação da lesão, à luz do requisito do periculum in mora, devendo por isso a decisão recorrida ser substituída por outra que ordene a prossecução dos autos, o que expressamente se requer.

XX. Mesmo que o Tribunal entendesse não estarem concretamente alegados os factos constitutivos do receio fundado de lesão grave e de difícil reparação ao direito da Recorrente, o que apenas por mera cautela de patrocínio se concebe, sem conceder, deveria o mesmo ter convidado a Recorrente a aperfeiçoar o seu requerimento inicial, nos termos do artigo 590.º, n.º 4, do CPC.

XXI. Ao não tê-lo feito, ocorreu uma violação de um dever funcional do Tribunal, pelo que a sentença recorrida deverá ser revogada com esse fundamento subsidiário e substituída por outra que determine o aperfeiçoamento do requerimento inicial, o que expressamente se requer.

C.4) DA INSTRUMENTALIDADE E PROVISORIEDADE DO PROCEDIMENTO CAUTELAR

XXII. Nos termos do artigo 364.º, n.º 1, do CPC, os procedimentos cautelares caracterizam-se pela sua provisoriedade e pela sua instrumentalidade em relação à ação principal.

XXIII. Provisoriedade significa que a tutela cautelar é válida apenas até ser tomada uma decisão definitiva em sede de ação principal sobre o direito a acautelar.

XXIV. Já instrumentalidade significa que a tutela cautelar não serve para tutelar definitivamente o direito em perigo de lesão.

XXV. Entendeu o Tribunal recorrido que os pedidos formulados pela Recorrente violavam a provisoriedade e instrumentalidade dos procedimentos cautelares.

XXVI. Ora, a Recorrente requereu, a título de pedido principal, que o prédio lhe fosse imediatamente entregue, livre de pessoas e bens.

XXVII. Mas essa entrega traduz um meio – entenda-se: o único meio idóneo – para a atingir o objetivo primacial da providência cautelar, que é o de prevenir os danos futuros, graves e de difícil reparação, que seguramente resultariam do decurso do tempo até ser proferida a correspondente sentença condenatória em sede de ação principal (e no pressuposto de que viesse a ser indeferido o pedido de inversão do contencioso).

XXVIII. Com o decretamento de tal providência deixaria a Recorrente de ter de requerer, na ação principal, qualquer tipo de indemnização pelos prejuízos futuros decorrentes da ocupação, bem como de correr o risco de nunca ver esses prejuízos ressarcidos atendendo ao comprovado risco difícil reparação dos mesmos.

XXIX. O objetivo da Recorrente foi única e exclusivamente o de evitar danos futuros com a manutenção da ocupação ilegítima do Prédio pela Recorrida, o que é bem demonstrado por subsidiariamente ter requerido ao Tribunal que decretasse a providencia cautelar que no seu entendimento melhor salvaguardasse o direito de propriedade da Recorrente.

XXX. Pelo que a decisão recorrida padece de erro decisório relativamente à questão da instrumentalidade e provisoriedade do procedimento cautelar, devendo por isso ser revogada e substituída por outra que ordene a prossecução dos autos, o que expressamente se requer.

A final requer que o recurso seja julgado procedente e,

i) se determine a revogação da sentença recorrida, com fundamento em erro decisório, substituindo-a por outra que ordene a prossecução dos autos, para que seja decretada providência cautelar com dispensa da audição prévia da Recorrida;

Ou, caso assim não se entenda, o que se admite por mera hipótese e sem conceder,

ii) se proceda à revogação da sentença recorrida, com fundamento em preterição do dever de conceder à Recorrente a oportunidade de aperfeiçoar o requerimento inicial, substituindo-a por outra que determine o mencionado aperfeiçoamento, dando as devidas indicações para o efeito, ao abrigo do artigo 590.º, n.º 4, do CPC.


II

É o seguinte o objeto do recurso:

- Se mal avaliou o tribunal a quo o circunstancialismo fáctico descrito no requerimento inicial, que integra o elemento constitutivo das providências cautelares designado de periculum in mora ou, fundado receio que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, bem como da característica da instrumentalidade e provisoriedade do procedimento cautelar face à ação definitiva.

- Devendo dar-se os mesmos por suficientemente alegados e, em conformidade, determinar-se o prosseguimento da providência;

- Ou, ocorrendo insuficiência de alegação, dar-se à Requerente a oportunidade de corrigir o seu requerimento inicial.


III

Da factualidade em apreciação.

Integrando a mesma matéria descritiva, no caso, os factos tal como foram alegados pela Requerente, acima sintetizados, e os fundamentos em que assentou o indeferimento liminar, importa ora conhecer o teor o despacho recorrido.

Sendo estes os seus segmentos relevantes:

“2. O caso concreto:

Dito isto, vejamos a providência ora peticionada.

Pretende a Requerente que o Requerido seja condenado a entregar de imediato o imóvel que ocupa ilegalmente.

Refere a Requerente que a ocupação do imóvel causa-lhe o prejuízo de lhe ficar vedado o uso e fruição do mesmo, bem como ficar impedida de proceder a obras que englobam o prédio e outros de que é proprietária, tendo para o efeito apresentado um plano de informação prévia junto da Câmara Municipal.

No que diz respeito ao primeiro pressuposto subjacente ao procedimento cautelar – probabilidade séria da existência de um direito – cumpre referir que o mesmo se encontra verificado, tendo em conta que indiciariamente se encontra demonstrada a propriedade e foi alegada a ocupação ilegal que ofende esse mesmo direito.

Porém, no que tange ao segundo requisito – fundado receio de que outrem, antes da ação ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito – entendemos que a factualidade aduzida não sustenta indiciariamente a lesão grave e dificilmente reparável.

No que tange a este requisito dir-se-á que in casu estamos perante uma lesão que se perpetua no tempo, isto é, o Requerido encontra-se alegadamente a ocupar ilegalmente o imóvel desde data anterior à aquisição pela Requerente e assim se mantém.

Cumpre, no entanto, verificar se consiste numa lesão grave e dificilmente reparável.

Invoca a Requerente que a privação do gozo de um imóvel é por si só um dano de difícil reparação.

Ainda que, tendo o Requerido de indemnizar, terá de fazê-lo em elevado valor, desconhecendo as suas capacidades económicas.

A propósito da lesão grave e dificilmente reparável pode ler-se, com relevância, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20/09/2018, Relator Jorge Leal, disponível em www.dgsi.pt que «(…) não basta que a delonga na efetivação do direito acarrete prejuízo. É necessário que este seja grave e dificilmente reparável. Só assim se justifica a urgente, provisória e por vezes não contraditada intromissão do tribunal na esfera jurídica do requerido, correndo-se o risco de se praticar um ato posteriormente qualificado de injustificado (artigos 363.º, 366.º, 374.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Apenas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum as lesões graves que sejam simultaneamente irreparáveis ou de difícil reparação. Quanto aos prejuízos materiais, “o critério deve ser bem mais restrito do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva” (cfr. Abrantes Geraldes, “Temas da reforma do processo civil”, III volume, 2ª edição, Almedina, páginas 84 e 85). Relativamente a este último tipo de danos, deverão ser ponderadas “as condições económicas do requerente e do requerido e a maior ou menor capacidade de reconstituição da situação ou de ressarcimento dos prejuízos eventualmente causados” (Abrantes Geraldes, citado, pág. 85; na jurisprudência, vide, v.g., acórdão da Relação de Guimarães, de 21.9.2017, processo n.º 2931/17.0T8BRG.G1, consultável in www.dgsi.pt).».

No caso destes autos, está em causa o exercício de um direito de natureza patrimonial, por parte de uma pessoa coletiva. Os prejuízos decorrentes da demora na efetivação do direito, decorrente das delongas de uma normal ação declarativa, têm natureza patrimonial, na medida em que a Requerente poderá por via da ocupação não levar a cabo o seu objetivo com a aquisição dos imóveis, ficando privada de proceder rapidamente ao loteamento e construção de habitações.

Os danos de natureza patrimonial serão, pelo menos em abstrato, facilmente reparáveis com a compulsão do Requerido no pagamento dos respetivos custos e, bem assim, no ressarcimento de prejuízos eventualmente decorrentes da privação do uso do imóvel por parte da Requerente.

Note-se que a própria Requerente afirma desconhecer a situação económica do Requerido, logo inexiste um eventual perigo da impossibilidade do mesmo vir a suportar o agravamento dos encargos decorrente do arrastamento da ação principal.

Desta forma, salvo melhor opinião, falha a verificação do referido requisito.

Ainda, dir-se-á, que são características comuns das providências cautelares: a provisoriedade, a instrumentalidade e a sumario cognitio.

A primeira daquelas características emana da circunstância da providência cautelar prosseguir uma tutela distinta da facultada pela ação principal, de que é dependente, e pela necessidade de a substituir pela tutela que vier a ser definida por essa ação.

(…)

Assim, os procedimentos cautelares servem para dar utilidade ao que for decidido na ação a favor da Requerente, para assegurar a efetividade do direito que lhe for reconhecido, então a lesão que se receia acontecer enquanto se aguarda pela decisão definitiva da ação será de considerar como grave e de difícil reparação quando, na hipótese de ela se concretizar, retirar efeito útil à decisão definitiva da causa ou impedir a efetividade do direito que for reconhecido ao requerente na decisão definitiva.

Ora, pretende a Autora que seja o Requerido condenado a entregar o imóvel que adquiriu, sendo que o mesmo já era ocupado em data anterior à aquisição.

Imaginando que era intentada uma ação declarativa comum, o facto da mesma seguir os seus trâmites normais não vai claramente impedir ou retirar utilidade à restituição peticionada, nem mesmo impedir a efetividade do direito da Autora.

Ou seja: como resulta do exposto, é evidente que a Requerente não pretende a tomada de qualquer providência com vista a acautelar o efeito útil de uma ação, mas pretende, por via da presente providência, a tomada de uma decisão que deverá na ação principal, se for caso disso, vir a ser tomada.

E, muito embora uma providência cautelar possa comportar uma decisão antecipatória da decisão final (que será tomada na ação de que a mesma é incidente ou preliminar – cfr. artigo 369.º do Código de Processo Civil), não pode, por sua própria natureza (cautelar e provisória) tornar definitivo um direito, que, precisamente, só por via da definição definitiva de tal direito em ação instaurada para o efeito, adquire tal carácter.

Assim, a inviabilidade da presente providência é manifesta, quer por falta de alegação de factos que comportem uma lesão grave e dificilmente reparável, quer por lhe faltar a provisoriedade/instrumentalidade, pelo que a mesma deverá ser liminarmente indeferida.


IV

Do Direito

A necessidade da composição provisória própria das providências cautelares decorre, entre outros fundamentos, do prejuízo que a demora na decisão da causa e na composição definitiva possa provocar na parte cuja situação jurídica pretende acautelada ou tutelada.

A finalidade específica das providências cautelares é, assim, evitar que outrem cause lesão grave ou dificilmente reparável (na expressão do artigo 362.º, 1, do CPC) ao seu direito, proveniente da demora na tutela da situação jurídica. Ou seja, obviar ao chamado, periculum in mora.

Se faltar o periculum in mora, ou seja, se o requerente da providência não se encontrar, pelo menos, na iminência de sofrer qualquer lesão ou dano, cuja prevenção imponha uma decisão urgente, falta a necessidade de composição provisória.

O tribunal a quo considerou suficientemente alegado “o direito” por parte da Requerente, mas não «a lesão grave ou dificilmente reparável ao seu direito», ou seja, o periculum in mora.

De acordo com a sentença, os prejuízos decorrentes da demora na efetivação do direito, decorrente das delongas de uma normal ação declarativa, têm natureza patrimonial, na medida em que a Requerente poderá por via da ocupação não levar a cabo o seu objetivo com a aquisição dos imóveis, ficando privada de proceder rapidamente ao loteamento e construção de habitações. E, os danos de natureza patrimonial serão, pelo menos em abstrato, facilmente reparáveis com a compulsão do Requerido no pagamento dos respetivos custos e, bem assim, no ressarcimento de prejuízos eventualmente decorrentes da privação do uso do imóvel por parte da Requerente.

Ou seja, de acordo com a decisão liminar, a factualidade aduzida não sustenta indiciariamente a lesão grave e dificilmente reparável, uma vez que, em regra, os prejuízos materiais são passíveis de ressarcimento.

Acrescentando a decisão liminar que, tendo a Requerente afirmado no articulado inicial, desconhecer a situação económica do Requerido, tal afirmação compromete a existência de um eventual perigo por impossibilidade do Requerido em suportar o agravamento dos encargos decorrente do arrastamento da ação principal.

Cremos que esta ponderação assentou, com todo o respeito, numa configuração simplificada e redutora da finalidade das providências cautelares, sugerindo o afastamento da tutela da providência cautelar não especificada, dos danos de natureza patrimonial e, desconsiderando o facto de, no juízo probatório, dever o tribunal contar com as regras da experiência da vida, da normalidade e do senso comum, quando não se impuser uma prova direta.

Desconsidera, ainda que, face à lei, todos os danos são compensáveis, independentemente da sua natureza patrimonial ou não patrimonial, logo, todos os danos são suscetíveis de tutela cautelar, verificados que sejam os demais requisitos das providências cautelares.

Assim, e em abstrato, se um construtor não puder concretizar ou correr o risco de não poder concretizar, no prazo a que obedece um licenciamento, a realização do mesmo e a subsequente construção e comercialização dos edifícios planeados, em razão duma ocupação de parte desse espaço por terceiro, comprometedora da edificação da obra no seu conjunto, poder-se-á estar perante uma lesão grave ou dificilmente reparável do seu direito, a justificar o recurso a uma tutela cautelar.

Para a valoração do dano grave e irreparável ou de difícil reparação, não é necessário que se trate de um dano irreparável em termos absolutos, bastando que implique uma reconstituição dificultada do status quo anterior.

A privação ou limitação do gozo e fruição plena da propriedade de um prédio, ainda que analisada apenas na sua expressão patrimonial, é suscetível de constituir um dano de difícil reparação, não se mostrando exigível a alegação e demonstração económica do requerido, sendo bastante concluir que o prejuízo com a não concretização do loteamento, construção e venda das habitações é suscetível de atingir valores incomportáveis para o cidadão médio.

Esta uma realidade que, com todo o respeito, a decisão recorrida não esgota na sua ponderação e cuja possibilidade de demonstração probatória de forma ampla, a boa tutela aconselha.

Invocou ainda o tribunal a quo como fundamento do indeferimento liminar a falta de provisoriedade/instrumentalidade do pedido, pois que, se o Requerido for condenado a entregar o imóvel, a ação declarativa comum que venha a ser intentada não terá já qualquer efeito útil, estando o direito decidido em definitivo.

Mas tal só acontecerá, como em todas as providências cautelares, se ocorrer a inversão do contencioso, sem oposição. O que, estando legalmente previsto, a ter lugar, não inviabiliza a providência cautelar.

Estabelece o artigo 364.º do Código de Processo Civil que:

«1 - Exceto se for decretada a inversão do contencioso, o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de ação declarativa ou executiva.

2 - Requerido antes de proposta a ação, é o procedimento apensado aos autos desta, logo que a ação seja instaurada e se a ação vier a correr noutro tribunal, para aí é remetido o apenso, ficando o juiz da ação com exclusiva competência para os termos subsequentes à remessa.

(…)

4 - Nem o julgamento da matéria de facto, nem a decisão final proferida no procedimento cautelar, têm qualquer influência no julgamento da ação principal

Por sua vez, dispõe o artigo 369.º do mesmo Código que:

«1 - Mediante requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência, pode dispensar o requerente do ónus de propositura da ação principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio.

2 - A dispensa prevista no número anterior pode ser requerida até ao encerramento da audiência final; tratando-se de procedimento sem contraditório prévio, pode o requerido opor-se à inversão do contencioso conjuntamente com a impugnação da providência decretada.

(…)»

O procedimento cautelar caracteriza-se pela instrumentalidade (dependência da ação principal, a menos que se decrete a inversão do contencioso), pela provisoriedade (por não estar em causa a resolução definitiva de um litígio, a menos que se conceda a inversão do contencioso) e, ainda, pela sumariedade (porque implica uma cognição sumária da situação em litígio através de um procedimento simplificado e rápido.

Lê-se, a propósito, no Acórdão de 08-04-2021 do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 7/21.4YFLSB (Catarina Serra) in www.dgsi.pt:

«I- Os pedidos formulados no processo cautelar devem ter a necessária correspondência funcional com os pedidos formulados ou a formular na ação principal e ser adequados a acautelar a utilidade da sentença que vier a ser proferida no processo principal – consiste nisto o requisito da instrumentalidade das providências cautelares»

Como refere António Abrantes Geraldes in Temas da Reforma do Processo Civil, Procedimento Cautelar Comum, Vol. III, pág. 120:

“A relação de instrumentalidade ou de dependência entre ambas as ações deverá verificar-se ou ser aferida em função do que delas consta efetivamente e não em função do que, eventual ou “virtualmente”, delas poderia ou poderá, futuramente, vir (ou não) a ocorrer”.

Só se pode concluir pela falta de instrumentalidade se a ação principal foi anteriormente instaurada e os pedidos de uma e outra não apresentam correspondência funcional.

Porque no caso não foi instaurada a ação principal, tendo sido requerida a inversão do contencioso, não é possível aferir da existência ou falta de instrumentalidade entre pedidos.

A provisoriedade das providências cautelares significa que os efeitos de qualquer providência cautelar (exceto se for decretada a inversão do contencioso e o requerido notificado não fizer uso da ação de impugnação do direito acautelado), são necessariamente limitados no tempo.

E esses efeitos estão dependentes do resultado coincidente que vier a ser conseguido na ação definitiva, caducando se essa ação não for instaurada, se a mesma for julgada improcedente ou, ainda, se o direito que se pretende tutelar se extinguir.

Como afirma Abrantes Geraldes na obra citada, os procedimentos cautelares “… são uma antecâmara do processo principal, possibilitando a emissão de uma decisão interina ou provisória destinada a atenuar os efeitos erosivos decorrentes da demora na resolução definitiva ou a tornar frutuosa a decisão que, porventura, seja favorável ao requerente”.

Quando uma providência cautelar é decretada, é-o no pressuposto de vir a ser favorável ao requerente a decisão a produzir no processo principal.

Com esta abrangente definição das características da providência cautelar, mostra-se prematuro concluir numa apreciação liminar pela falta de instrumentalidade e falta de provisoriedade dos pedidos, sem que a ação principal tenha sido instaurada.

Procedem, por isso, os fundamentos do recurso que pretendem a inadmissibilidade, no caso, do indeferimento liminar.

Subsiste a questão de saber se os autos estão em condições de prosseguir para probatório, caso se defira a dispensa de contraditório, ou de prosseguir para contraditório, caso se indefira tal dispensa.

Antecipando que o exercício do contraditório prévio, constitui o regime regra, permitindo acautelar melhor segurança na justiça do caso, como prevê o artigo 366.º do CPC: «1 - O tribunal ouve o requerido, exceto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.», coloca-se-nos a questão de, previamente, decidir se se justifica um despacho de aperfeiçoamento, convidando a Requerente a suprir eventuais deficiências da sua alegação.

Consideramos que sim.

Assentando a sua invocação de prejuízos num Pedido de Informação Prévia (PIP), junto da Câmara Municipal de Palmela, com data de 28/07/2023, ou seja, com data relativamente recente, com vista a obter um parecer sobre a viabilidade da realização de uma operação de loteamento, nada mais diz a Requerente quanto ao resultado de tal pedido.

Deve a Requerente esclarecer se foi já dado parecer positivo a tal pedido.

Se o parecer sobre a viabilidade da obra ainda não foi concedido, aparentemente não se materializou ainda qualquer possibilidade de execução de obra que se veja frustrada pela ocupação do Requerido. Podendo apenas afirmar-se a probabilidade maior ou menor de o licenciamento ser concedido. Sendo a probabilidade elevada, cabe à Requerente esclarecer porque o é e, que danos estão subjacentes.

Se ainda não obteve pronúncia, não ocorrerão danos emergentes diretamente da privação do uso e fruição, mas apenas lucros cessantes. Devendo referi-los.

Postas tais questões a justificar melhor concretização, vai a Requerente convidada a fazê-lo no prazo de 10 dias.

Em suma:

Todos os danos são suscetíveis de tutela cautelar, verificados que sejam os demais requisitos das providências cautelares.

1. Se um construtor não puder concretizar ou correr o risco de não poder concretizar, no prazo a que obedece um licenciamento, a realização do mesmo e a subsequente construção e comercialização dos edifícios planeados, em razão duma ocupação de parte desse espaço por terceiro, comprometedora da edificação da obra no seu conjunto, poder-se-á estar perante uma lesão grave ou dificilmente reparável do seu direito, a justificar o recurso a uma tutela cautelar.

2. Para a valoração do dano grave e irreparável ou de difícil reparação, não é necessário que se trate de um dano irreparável em termos absolutos, bastando que implique uma reconstituição dificultada do status quo anterior.

3. Só se pode concluir pela falta de instrumentalidade da providência cautelar se a ação principal foi anteriormente instaurada e os pedidos de uma e outra não apresentam correspondência funcional.

4. A provisoriedade das providências cautelares significa que os efeitos de qualquer providência cautelar (exceto se for decretada a inversão do contencioso e o requerido notificado não fizer uso da ação de impugnação do direito acautelado), são necessariamente limitados no tempo.

5. Pode haver lugar a despacho de aperfeiçoamento nas providências cautelares.


V

Termos em que, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, que se substitui por outra de deferimento liminar e simultaneamente de convite à Recorrente no sentido de, em 10 dias, esclarecer as dúvidas suscitadas na parte final da fundamentação deste acórdão.

Custas pela Recorrente, atento o proveito (artigo 527.º, n.º 1, do CPC).

Évora, 11 de janeiro de 2024

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Vítor Sequinho dos Santos (1º Adjunto)

Mário João Canelas Brás (2º Adjunto)