Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
981/21.0PCSTB-A.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VÍTIMA ESPECIALMENTE VULNERÁVEL
INQUÉRITO CRIMINAL
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A criança ou jovem é vítima quer quando contra ela são praticados atos de violência como quando os presencia ou vivencia.
II. Perante a possibilidade dada ao juiz de instrução de deferir ou indeferir o requerimento do MP, para a tomada de declarações para memória futura a uma criança exposta a situações de violência doméstica praticadas pelo pai e cuja ofendida foi a mãe, impunha-se deferi-lo.
III. Atento o princípio do superior interesse da criança (artigo 3.º da CDC), o juiz de instrução deverá tomar declarações para memória futura à criança, no mais curto espaço de tempo possível, propiciando que a diligência decorra em ambiente informal, reservado e protetor, para viabilizar a prestação de um depoimento genuíno, espontâneo e o mais completo possível, envidando esforços para evitar eventuais falhas na tomada de declarações, que tendencialmente obstarão a que a criança tenha de ser ouvida em julgamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
1. Da decisão
No Processo de Inquérito (Atos Jurisdicionais) n.º 981/21.0PCSTB, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal Juízo de Instrução Criminal de Setúbal - Juiz 2 foi proferido o seguinte despacho:
“Conforme decorre do teor do artigo 271º, número 1, do Código de Processo Penal, a tomada de declarações para memória futura de menores de idade apenas tem lugar perante a investigação de determinados crimes de catálogo ou, em todos os casos, em caso de doença grave ou deslocação para o estrangeiro de uma testemunha.
Nos termos do disposto no artigo 33º da Lei número 112/2009, de 16 de Setembro, podem ser também tomadas declarações para memória futura a vítimas, assistentes, partes civis, peritos e consultores técnicos, e realizadas acareações.
Nos presentes autos, o Ministério Público vem suscitar a audição para memória futura de testemunha menor de idade, não sendo a mesma vítima do crime investigado (violência doméstica) nem sendo alegadas as circunstâncias a que alude o artigo 271º do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, e por se não verificaram as condições legalmente previstas para a tomada de declarações para memória futura (sempre podendo a testemunha ser ouvida, a todo o tempo, pelo Ministério Público), vai tal diligência indeferida.
Notifique e devolva os autos ao Ministério Público.”

2. Do recurso
2.1. Das conclusões do Ministério Público
Inconformado com a decisão proferida pelo JIC o MP interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1 — No âmbito do presente inquérito, por despacho de fls. 74 e se, datado de 29.03.2022, o Min. Público requereu a tomada de declarações para memória futura de AAA, nascida em 26.02.2008, actualmente com 14 anos de idade (id. a fls. 21). No referido despacho, é mencionado que no inquérito, resultam indícios suficientes da prática por parte do denunciado BBB (cujo paradeiro é ainda desconhecido), de um crime de violência doméstica, agravado, p. e p. pelo art.º 152.º n.º 1 al. b) n.º 2 e n.º 4 do Cód. Penal, praticado sobre a ex-mulher CCC, ambos progenitores da menor supra identificada.
Uma vez que a menor presenciou os factos denunciados, aliás como resulta claro do depoimento prestado pela ofendida CCC, junto a fls. 48, sendo a principal testemunha dos mesmos, o Min. Público entendeu requerer a tomada de declarações para memória futura, à menor AAA, nos termos e para efeitos do disposto no art.º 271.º do CPP e art.º 33.º n.ºs 1 a 5 da Lei n.º 112/2009, de 16/09, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 129/2015, de 3/09, com a finalidade de ver esclarecidas as questões ai mencionadas.
2— Não obstante, o Mmo. JIC indeferiu o requerido, com a seguinte fundamentação:
(…)
3— O presente recurso visa a revogação de tal despacho, por várias ordens de razões;
4— Em primeiro lugar, por se considerar que o Tribunal a quo incorreu em erro na determinação da norma aplicável, ao ter aplicado o previsto no artigo 26.º da Lei n.º 93/99, de 14 Julho, quando deveria ter aplicado o disposto nos artigos 67.º-A e 271.º, do Código de Processo Penal, bem como o disposto nos artigos 2.º e 33.º da Lei 112/2009 de 16 de Setembro, artigos 21.º, n.º 2, alínea d) e 24.º da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro:
- Em caso de pessoas vítimas do crime de violência domestica, tem aplicação o regime previsto na Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e na Lei 130/2015, de 4 de Setembro, bem como o disposto nos artigos 67.º-A e 271.º do Código de Processo Penal e não o disposto na Lei n.º 93/99, de 14 de Julho;
- De facto, a Lei 112/2009, de 16 de Setembro instituiu um regime específico para a tomada de declarações para memória futura a vítimas de violência doméstica, regime esse compaginável com o estabelecido na Lei n.º 130/2015 de 4 de Setembro e com o disposto no Código de Processo Penal, mas que não se confunde com o objecto da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, definido no seu artigo 1.º;
- A supletividade deste último diploma legal por correcção com aqueles, resulta também do disposto no artigo 20.º, n.º 6 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro;
- A tais argumentos, acrescenta-se o elemento literal, nomeadamente o conceito de "vítima especialmente vulnerável" previsto quer na Lei 112/2009, de 16 de Setembro, quer no artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, conceito que engloba todas as pessoas que sofrem dano emocional ou moral, ou perda material, directamente causada por acção ou omissão no âmbito de crime de violência doméstica, e que, por conseguinte, não inclui apenas os "ofendidos" da prática do crime";
De acordo com a literatura científica, as crianças/menores que vivem em contexto de violência doméstica, a esta sendo expostas por a assistirem, sofrem danos directos, sendo, pois, "vitimas" de tal crime, tendo, entre outros: um risco maior de problemas de saúde mental ao longo da vida (Bogat, DeJonghe, Levendosky, Davidson e von Eye, 2006; Meltzer, Doos, Vostanis, Ford e Goodman, 2009 Mezey, Bacchus, Bewley e White, 2005; Peltonen, Ellonen, Larsen e Helweg-Larsen, 2010); risco aumentado na saúde fisica (Bair-Merritt, Blackstone e Feudtner, 2006); risco de abandono escolar e outros desafios educacionais (Byrne e Taylor, 2007; Koenen, Moffitt, Caspi, Taylor e Purcell, 2003; Willis et al., 2010); risco de envolvimento em comportamentos criminais (R. Gilbert et al., 2009; T. Gilbert, Farrand, & Lankshear, 2012) e dificuldades interpessoais em relacionamentos e amizades futuras (Black, Sussman & Unger, 2010; Ehrensaft et al., 2003; Siegel, 2013); são também mais propensos a sofrer e a praticar bullying (Baldry, 2003; Lepistó, Luukkaala e Paavilainen, 2011) e são mais vulneráveis ao abuso e exploração sexual, além de maior probabilidade de se envolverem em relacionamentos violentos (Finkelhor, Ormrod, & Turner, 2007; Turner, Finkelhor & Ormrod, 2010).;
- Neste sentido, veja-se o Parecer da Procuradoria-Geral da República ao Projecto de Lei n.º 1183/XIII/4.0 do Bloco de Esquerda, disponível para consulta em http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc63765247396a6457316c626e527663306c7561574e7059585270646d464462323170633a097-ffiacdf81 .com último acesso a 7 de Março de 20201, onde se defende que as criança/menores que testemunham violência doméstica são vítimas deste crime de acordo com as citadas disposições legais;
- No caso concreto, as duas menores são especialmente vulneráveis, não apenas porque tal é uma decorrência dos dispositivos legais referidos, mas também porque: conta com 14 anos de idade; assistiu a factos susceptíveis de, em abstracto, integrar a prática do indicado crime de violência doméstica, o qual reveste um grau de agressividade passível de gerar sentimento de insegurança à vítima; viveu com o denunciado e a ofendida nos primeiros anos de vida, sendo aquele, durante este concreto e crucial período da vida da testemunha, uma das figuras adultas de referência;
5 — Ao não enquadrar a criança/menor no conceito de vítima especialmente vulnerável oferecido pelos artigos 2.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e 67.º-A do Código de Processo Penal, o despacho recorrido efectuou uma interpretação de tais normas desconforme aos artigos 8.º e 69.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa:
- Conjugados os regimes das leis aqui convocadas (112/2009, de 16 de Setembro, 130/2015, de 4 de Setembro, 93/99, de 14 de Julho) com a Constituição da República Portuguesa, a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção de Istambul, as crianças/menores que testemunhem actos de violência doméstica, são vítimas especialmente vulneráveis na acepção das Leis 112/2009, de 16 de Setembro, 130/2015 de 4 de Setembro e artigo 67.º-A do Código de Processo Penal;
- A interpretação do artigo 2.º, alínea b) da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro e do artigo 67.º-A, n.º 1, alíneas a) i) e b), e n.º 3 do Código de Processo Penal, no sentido que as crianças/menores que assistem a actos de violência doméstica não são vítimas especialmente vulneráveis, é desconforme aos artigos 8.º e 69.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que desde já expressamente se argui;
Defende-se a seguinte interpretação de tais normas, conforme à Constituição da República Portuguesa:
- As crianças/menores que assistem a actos subsumíveis ao crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º do Código Penal, ainda que não sejam objecto imediato da actuação do autor dos factos, e, portanto, ofendidos da prática do crime, são vítimas especialmente vulneráveis nos termos do artigo 2.º, alínea b) da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro e do artigo 67.º-A, n.º 1, alíneas a i) e b), e n.º 3 do Código de Processo Penal;
De facto,
- Dispõe o artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, que "l. As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português; 2. As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português. ; 3. As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos. ; 4. As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.".
- E dispõe o artigo 69.º, no seu n.º 1, que "As crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições.";
- A Convenção Sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, e, por conseguinte, em vigor no ordenamento jurídico português, estabelece no seu artigo 19. 0, um quase poder dever de tomada de declarações para memória futura quando em causa está o depoimento de uma criança/menor/menor;
- O mesmo ditam os artigos 26.º e 56.º da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Doméstica (Convenção de Istambul), aprovada em Istambul a 11 de Maio de 2011 e que Portugal aprovou, fazendo assim vigorar na ordem jurídica interna, pela Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, de 21 de Janeiro, a qual reconheceu ainda no seu preâmbulo, que "as crianças são vítimas de violência doméstica, designadamente como testemunhas de violência na família";
- Ora, da conjugação de todas estas normas resulta inequívoco que a Constituição da República Portuguesa apenas admite a interpretação de que as crianças/menores que testemunham actos de violência doméstica, são "vítimas especialmente vulneráveis" na acepção dos artigos artigo 2.º, alínea b) da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro e do artigo 67.º-A, n.º 1, alíneas i) e B, e n.º 3 do Código de Processo Penal.
6- Acresce que, o indeferimento da diligência de tomada de declarações para memória futura, implicará que a menor venha, num primeiro momento, a ser ouvida perante Magistrado do Min. Publico, e que em sede de julgamento, volte a ser ouvida, local onde estará presente o arguido, progenitor da testemunha, o que implicará a vitimização secundária / revitimização da mesma.
Sem prescindir,
7- Não se perfilhando o entendimento acima vertido, sempre se deverá concluir que o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 26.º e 28.º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho por não considerar a menor vítima especialmente vulneráveis:
- De facto, em face do disposto no artigo 26.º da Lei n.º 93/99, que institui que "A especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência. ", as duas menores em referencia, têm de considerar-se pessoa especialmente vulnerável e, por conseguinte, beneficiar da medida de protecção de tomada de declarações para memória futura;
- Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo efectuou uma incorrecta valoração da situação de facto e da especial vulnerabilidade das menores, ao limitar-se a atender ao disposto no art.º 271.º do CPP;
- No caso concreto, a especial vulnerabilidade da menor resulta, nomeadamente, do facto de a pessoa (neste caso, uma criança/menor) se ver constrangida a depor contra membro da família ou com quem habitou [sendo o arguido, durante esse período de tempo, uma figura adulta de referência]; de ter o depoimento de ser prestado em audiência com arguido ai presente; da circunstância dos factos em investigação terem ocorrido quando a menor tinha ainda tenra idade, o que aumenta o grau de danosidade experienciada por estas e a sua, consequente, vulnerabilidade;
- Tal como já referimos na conclusão n.º 4 (para onde aqui se remete por economia de meios), crianças/menores que assistem a actos subsumíveis ao crime de violência doméstica, ainda que não sejam objecto imediato do agressor e nessa medida, ofendidos da prática do crime, sofrem danos morais, emocionais, psíquicos e fisicos directos;
- Termos em que o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 26.º e 26.º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, ao não considerar a menor como testemunha especialmente vulnerável;
8- A interpretação dos artigos 26.º e 28.º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho encetada pelo Tribunal a quo é inconstitucional por ser desconforme aos artigos 8.º e 69, n.º da Constituição da República Portuguesa, aqui se remetendo para o exposto na conclusão n.º 2 relativamente às normas da Constituição da República Portuguesa aqui convocadas, bem como às disposições de direito internacional:
- A interpretação de que uma criança/menor com 14 anos de idade, filha de denunciado pela prática de crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1 e 2.º do Código Penal, sendo ofendida sua mãe, sendo aquele figura adulta de referência da criança/menor, não é testemunha especialmente vulnerável nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 26.º da Lei n.º 93/95, de 14 de Julho, é inconstitucional por violar o disposto nos artigos 8.º e 69.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que aqui expressamente se argui.
Defende-se, pois, a seguinte interpretação do artigo 26.º da Lei n.º 93/95, de 14 de Julho, conforme à Constituição da República Portuguesa:
- As crianças/menores que assistem a actos subsumíveis ao crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º do Código Penal, ainda que não sejam objecto imediato da actuação do autor dos factos, e nessa sequência ofendidas da prática de crime, que contem com menor se 18 anos de idade, que nos primeiros anos de vida tenham vivido com denunciado da prática do crime de violência doméstica, sendo ofendida do crime sua mãe, tendo sido o denunciado figura adulta de referência da criança/menor durante esse período, é testemunha especialmente vulnerável nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 26.º da Lei n.º 93/95, de 14 de Julho;
Destarte, requer-se a V. Exas. se dignem,
9- Revogar o despacho recorrido por ter aplicado norma distinta daquela a que é subsumível o caso concreto, determinando-se que sejam tomadas declarações para memória futura da menor AAA, nascida em 26.0.2008, actualmente com 14 anos de idade (id. a fls. 21), por esta ser vítima especialmente vulnerável nos termos do disposto artigo 2.º, alínea b) da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro e do artigo 67.º-A, n.º 1, alíneas a) i e iii e b) e n.º 3 do Código de Processo Penal;
10- Sendo esta, aliás, a única interpretação dos artigos artigo 2.º, alínea b) da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro e do artigo 67.º-A, n.º 1, alíneas a i) e b), e n.º 3 do Código de Processo Penal, conforme aos ditames dos artigos 8.º e 69.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa;
Caso assim se não entenda,
11- Revogar o despacho recorrido por não considerar a testemunha menor AAA, nascida em 26.02.2008, actualmente com 14 anos de idade, especialmente vulnerável, nos termos e para os efeitos do artigo 26.0 da Lei n.º 93/95, de 14 de Julho, determinando-se a sua substituição por outro que determine a tomada de declarações para memória futura da mesma, visto que é testemunha especialmente vulnerável na acepção de tal diploma legal — conta com 14 anos de idade, viveu com a ofendida e o agressor nos primeiros ano de vida, período crucial ao seu desenvolvimento, sendo o agressor seu progenitor, e por isso figura adulta de referência, e terão de prestar depoimento em audiência, na qual estará presente o arguido.
12- Por ser esta interpretação do artigo 26.º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, a única conforme aos ditames dos artigos 8.º e 69.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.”.

2.2. Do Parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido de ser julgada a procedência total do recurso interposto pelo MP.

2.3. Da tramitação subsequente
Atendendo à inexistência de sujeitos processuais afetados pelo recurso, porquanto o denunciado ainda não havia sido constituído arguido, não foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Da apreciação do recurso interposto pelo Ministério Público
O Tribunal a quo indeferiu o pedido de audição da criança AAA em declarações para memória futura por considerar que a mesma não era vítima do crime de violência doméstica cometido pelo seu pai sobre a ofendida (sua mãe).
A questão a apreciar consiste, pois, em determinar se a decisão recorrida, ao indeferir o requerimento do Ministério Público solicitando a prestação de declarações para memória futura de uma jovem de 14 anos, alegadamente exposta a situações de violência doméstica praticadas pelo pai e cuja ofendida foi a mãe, não respeitou os critérios legalmente estabelecidos para a realização de tal diligência, devendo em consequência aquela decisão ser revogada.
Parece-nos que, no atual contexto legislativo, a solução é líquida e positiva e encontra resposta na interpretação, conjugada, dos seguintes normativos:
- Artigo 271.º do CPP (Declarações para memória futura);
- Artigo 67.º-A do CPP – Aditado pela Lei n.º 30/2015 de 04.09, com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 57/2021 de 16 de agosto e que estendeu a proteção das vítimas de violência doméstica (Conceito de vítima);
- Artigos 2.º e 33º do regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistência das suas vítimas, aprovado pela Lei n.º 112/2009 de 16/09, na sua redação atual, conferida pela Lei n.º 57/2021 de 16 de agosto (Conceito de vítima; Declarações para memória futura).
- Artigo 26.º da Lei de proteção de testemunhas, aprovada pela Lei n.º 93/99, de 14 de julho, com a redação atual conferida pela Lei n.º 42/2010, de 03 de setembro (Testemunhas especialmente vulneráveis)
- Artigos 17.º e 24.º da Lei nº 130/2015, de 04 de setembro, que aprovou o Estatuto da Vítima, transpondo a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012 (Condições de prevenção da vitimização secundária; Declarações para memória futura);
Já antes da alteração operada ao artigo 67.º-A do CPP, pela Lei n.º 57/2021 de 16 de agosto, defendemos que perante a possibilidade dada ao juiz de instrução de deferir ou indeferir o requerimento do MP para a tomada de declarações para memória futura a uma criança exposta a violência doméstica, se impunha deferi-lo. Essa posição foi extensamente por nós explanada, no Acórdão da Relação de Évora de 23.06.2020[1] e em cuja argumentação nos continuamos a rever[2].
Essa é, também, a interpretação comumente aceite pelos tribunais superiores[3], que alinha no entendimento que sendo as crianças vítimas especialmente vulneráveis, quando expostas à violência no âmbito doméstico, têm de ser protegidas da revitimização inerente à prestação de depoimento em julgamento, em especial quando são chamadas a depor sobre factos praticados por um dos progenitores contra o outro.
A qualidade de vítima da criança exposta a contextos de violência doméstica resulta, aliás, de forma evidente do teor da atual subalínea iii) da alínea a) do n.º 1 do artigo 67.°-A do CPP (alterada pela Lei n.º 57/2021 de 16 de agosto) ao estabelecer que é vítima:
A criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica.”.

Se dúvidas, ainda persistissem, quanto ao poder-dever de o Juiz de Instrução Criminal ouvir em declarações para memória futura a criança, em situações de exposição desta a violência doméstica, por esta ter o estatuto de vítima, bastaria ler a exposição de motivos da Lei 57/2021 de 16 de agosto para, facilmente, se depreender que o Mm.º Juiz a quo incorreu em erro na interpretação da legislação em vigor:
“A violência doméstica tem um caráter pluriofensivo: ela viola não só direitos fundamentais da pessoa adulta, como frequentemente os da criança que é, muitas vezes, a vítima esquecida da violência em contexto familiar, apesar do reconhecimento de que tanto é vítima a criança contra a qual são praticados os atos de violência como aquela que os presencia ou vivencia. Além de constituir para a criança momento de sofrimento, com impactos negativos no seu desenvolvimento, saúde e bem-estar, que se manifestam em problemas de desajustamento comportamental, emocional e cognitivo, a violência doméstica constitui um poderoso modelo para a etiologia da violência familiar, dado que a sua banalização, enquanto elemento de socialização, se revela um terreno fértil à sua reprodução.” (sublinhado nosso)[4]

O teor da discussão da Lei na especialidade reforça este entendimento, designadamente o segmento onde o PS assinala que:
“(…) o Governo apresentou (…) uma proposta de lei, que está a ser discutida, na especialidade, (…) mas é importante, desde já, que se diga que as crianças não estão desprotegidas no nosso ordenamento jurídico. Contudo, (…) tem vindo a configurar-se a importância de clarificar a lei em vigor, nomeadamente o texto do (…) artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, de modo a evitarem-se dúvidas de interpretação na aplicação da legislação para se menorizarem efeitos negativos, que sabemos que existem, de interpretações menos corretas que podem ser prejudiciais à proteção das crianças.
(…) é fundamental que se esclareça, com clareza, sem quaisquer dúvidas interpretativas, que as crianças expostas à violência também são vítimas dessa violência.[5]

Revertendo ao caso em apreciação, no presente recurso são relevantes as seguintes circunstâncias: O Ministério Público requereu fosse ouvida para memória futura a jovem AAA de catorze anos de idade; A jovem é filha da ofendida (sua mãe) e do denunciado (seu progenitor); Indiciam os autor ter a jovem presenciado os factos denunciados (violência doméstica), sendo ela a principal testemunha do crime.
Assim, tendo a jovem sofrido necessariamente impacto no seu desenvolvimento, saúde e bem-estar pela exposição aos atos violentos perpetrados pelo progenitor sobre a mãe, é ela própria sempre vítima e daí estar prevista a sua audição em declarações para memória futura.
Não olvidando que no Código Processual Penal vigente a vítima foi elevada ao estatuto de sujeito jurídico processual penal e, ainda, que no nosso ordenamento vigora o princípio do superior interesse da criança (cf. ainda artigo 3.º da CDC), o JIC deverá tomar declarações para memória futura à jovem AAA, no mais curto espaço de tempo possível, propiciando que a diligência decorra em ambiente informal, reservado e protetor, para viabilizar a prestação de um depoimento genuíno, espontâneo e o mais completo possível, envidando esforços para evitar eventuais falhas na tomada de declarações, que tendencialmente obstarão a que a jovem tenha de ser ouvida em julgamento.
Nestes termos, revoga-se a decisão recorrida e determina-se a sua substituição por outra que designe data para tomada de declarações para memória futura à jovem AAA, como requerido pelo Ministério Público.

III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Concede-se provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência, revoga-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que designe, com urgência, data para a tomada de declarações para memória futura à jovem AAA, nos termos pretendidos pelo Ministério Público.
2. Sem custas.

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 24 de maio de 2022.
Beatriz Marques Borges - Relatora
Maria Clara Figueiredo
Gilberto da Cunha

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[1] Proferido no processo 1244/19.7PBFAR-A.E1, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtre.
[2] Assim, não o sendo se, eventualmente, estiver ausente em parte incerta ou o seu estado mental ou idade o não permitirem.
[3] Cf. neste sentido designadamente os acórdãos da RL de 4.6.2020, proferido no P. 69/20.1PARGR-A.L1-9, relatado por Abrunhosa de Carvalho; Ac. da RL de 14.4.2021, proferido no P. 123/20.0 PDAMD-A.L1-3, relatado por Leonor Botelho; Ac. RL de 23.9.2021, proferido no P. 141/21.0SXLSB-A.L1-9, relatado por Maria da Luz Batista; Ac. RP de 22.09.2021, proferido no P. 526/21.2PIVNG-A.P1, relatado por José Piedade; Ac. da RE de 23.02.2021, proferido no P. 702/20.5GCFAR-A.E1 e relatado por Alberto Borges; Ac. da RE de 23.03.2021, proferido no P. 218/10.8TASSB.E1 relatado por Sérgio Corvacho, todos disponíveis em www.dgsi.pt, e ainda o Acórdão desta RE de 24.5.2022, proferido no processo n.º 747/21.8PCSTB-A.E1 e relatado pela aqui Adjunta Maria Clara Figueiredo.
[4] Cf. a Exposição de motivos da Proposta de Lei 28/XIV/1, de 23.4.2020, constante da p. 2 e disponível para consulta em https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063484d364c793968636d356c6443397a6158526c6379395953565a4d5a5763765247396a6457316c626e527663306c7561574e7059585270646d45764d4442684d4442684d544d744e4451354d5330305a4759304c546b32593255744d7a566c595463784e546b795a575a6b4c6d527659773d3d&fich=00a00a13-4491-4df4-96ce-35ea71592efd.doc&Inline=true.
[5] Cf. Debates Parlamentares, p. 60-61, I Série, n.º 63, de 2.6.2021 disponível para consulta em https://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/14/02/073/2021-06-01/60?pgs=57-64&org=PLC&plcdf=true.