Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
316/21.2T8SNS.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
TRABALHADOR INDEPENDENTE
QUEDA EM ALTURA
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA NO TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO DO ACIDENTE
Data do Acordão: 06/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - Um trabalhador independente que vai executar uma atividade profissional que tem um manifesto risco de queda em altura está obrigado a implementar as medidas de segurança no trabalho que se revelem necessárias para evitar ou minimizar esse risco.
II - Tendo ficado demonstrado que o trabalhador, que era apanhador de pinhas, tinha condições para utilizar um equipamento de proteção individual (EPI), que se mostrava apto a prevenir o risco de queda no solo, e não o estava a utilizar no momento em que se deu a queda de uma altura de cerca de seis metros do pinheiro onde se encontrava a trabalhar, o acidente deve ser descaracterizado, ao abrigo do artigo 14.º, n.º 1, alínea a), 2.ª parte, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (LAT).
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]

I. Relatório
Na presente ação especial emergente de acidente de trabalho que AA intentou contra Crédito Agrícola Seguros – Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A., foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, o Tribunal julga a presente ação totalmente improcedente e, em consequência:
1. Absolve a ré “Crédito Agrícola Seguros, Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A.” de todos os pedidos contra si deduzidos pela autora, AA.
2. Absolve a ré do pedido de reembolso de prestações sociais deduzido pelo Instituto da Segurança Social, IP.
3. Absolve a ré do pedido de reembolso de prestações sociais deduzido pelo Instituto da Segurança Social, IP, Centro Distrital de Setúbal.
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Custas pela autora e pelos intervenientes na proporção dos respetivos decaimentos [art.º 527.º do Código do Processo Civil, aplicável ex vi art. 1.º n.º 2 al. a) do Código de Processo do Trabalho].
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Valor da ação: €72.344,01 (setenta e dois mil trezentos e quarenta e quatro euros e um cêntimo), cfr. art.º 120.º do Código de Processo do Trabalho.
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Registe e notifique, observando o disposto no artigo 24.º, do Código de Processo do Trabalho.».

Inconformada, veio a Autora interpor recurso para esta Relação, finalizando as suas alegações com as conclusões que, seguidamente, se transcrevem:
«1) Em relação aos factos ns. 26 (“alguns dos ramos mais baixos do pinheiro em questão poderiam ser suficientemente sólidos para a colocação/fixação de corda de segurança”) e 27 (“alguns desses ramos podiam ser acessíveis a partir do solo, para poder criar um ponto de fixação para corda de segurança”), a decisão recorrida assentou (de acordo com a motivação de facto) nas fotografias ns. 1 e 3, de fls. 511 e 513, tiradas sem qualquer teleobjetiva, a não menos de 10 metros de distância de tais ramos.
2) Pelo que, por tal via, é impossível aferir da solidez estrutural de um ramo de pinheiro, dado que a simples fotografia (ou o olhar à distância) nada nos diz sobre a possibilidade de qualquer um dos ramos em questão estar rachado, apodrecido ou afetado por qualquer parasita da madeira (nemátodo-da-madeira-do-pinheiro, térmita ou caruncho) que, como é sabido, para além de microscópico, se aloja na madeira, destruindo a solidez desta a partir do interior, não sendo, por tal motivo, percetível a partir do solo ou com base numa fotografia como aquela em que se ancora a decisão recorrida.
3) A solidez suficiente para fixação de corda teria que ser aferida, aquando da investigação das causas prováveis do acidente, por via de uma perícia adequada, como seria o caso, por exemplo, de um teste à resistência dos ramos em questão, através da colocação de uma corda de segurança com um peso idêntico ao do sinistrado ou de uma análise à própria saúde da árvore, por parte de laboratório com competência para tal, ou, até, por uma pronúncia por parte de perito em trabalho vertical identificando os riscos e as técnicas que poderiam ter sido utilizadas em face dos mesmos.
4) Ora, de uma leitura do relatório do ACT e do “relatório pericial” junto como documento n.º 1 com a contestação, é manifesto que tais diligências averiguatórias não foram levadas a cabo, sendo por isso impossível concluir pela solidez e segurança dos ramos em questão para suportar o peso do falecido, nem se poderia considerar como provado que tais ramos poderiam permitir a fixação de um ponto de segurança a partir do solo.
5) No que respeita ao facto n.º 29 (“aquando da sua queda, o sinistrado pretendia proceder à apanha de pinha, e encontrava-se posicionado no pinheiro, a uma altura do solo de cerca de seis metros”), resulta da motivação de facto que nenhuma testemunha assistiu ao momento da queda.
6) E para além de não existir qualquer prova que permita concluir, com segurança, o que estaria o sinistrado a fazer no momento da queda (e muito menos o que este pretendia fazer), certo é que, como resulta dos depoimentos das testemunhas BB e CC, e dos resumos de tais depoimentos na própria motivação de facto, a prova testemunhal produzida aponta no sentido oposto à conclusão a que o Tribunal chegou.
7) De facto, ambas as testemunhas depuseram no sentido de que, no dia em questão, e enquanto se encontraram ao pé do sinistrado, este colocava primeiro a escada e subia, a fim se se assegurar, com o gancho, da solidez dos ramos nos quais poderia colocar a corda de segurança, para depois proceder à apanha da pinha já com o EPI devidamente colocado.
8) Tais testemunhas depuseram de forma credível, sem hesitações, de modo circunstanciado e não há incongruências ou contradições em tais depoimentos nem entre os depoimentos.
9) Pelo que o simples facto de se encontrarem colocados o gancho e escada, na árvore em causa, não permite concluir que, no momento da queda, o sinistrado já se encontrava a proceder à apanha da pinha ou que pretendesse fazê-lo.
10) Considerando, aliás, que, pelas testemunha BB e CC, foi referido não se encontrarem pinhas no chão quando acudiram ao sinistrado, forçoso é concluir que a prova testemunhal, constituída pelas duas pessoas que se encontravam próximo do local do acidente quando este ocorreu, aponta no sentido de que aquele não tinha intenção de proceder – nem procedia – à apanha da pinha no momento da queda.
11) E, dos respetivos depoimentos extrai-se, também, que o sinistrado possuía EPI (arnês e corda de segurança) e que este se encontrava no local.
12) E, como também resulta de págs. 7 de tal documento, BB, irmão do falecido sinistrado, declarou à averiguadora que o pinheiro do qual o sinistrado caiu era a primeira árvore à qual aquele subira após o almoço.
13) Tais fatos também permitem afastar a conclusão de que o sinistrado procedia ou procedia à apanha da pinha no momento da queda: 1) o sinistrado possuía EPI no local, não fazendo sentido que não o usasse, podendo; 2) durante toda a manhã, nas várias árvores a que subiu, verificou primeiro a solidez dos ramos, sem arnês nem corda, subindo com a escada e gancho, e só após iniciou a apanhada pinha, já com arnês e corda colocados; 3) o sinistrado caiu na primeira árvore em que se propôs apanhar pinha após o almoço, sendo por isso mesmo natural que se preparasse para vir colocar o EPI, tal como fizera toda a manhã, quando se deu o acidente.
14) Em abono da verdade, dir-se-á que o Tribunal dispunha de um meio de prova fiável, por provir de representante da autoridade com competência para apurar as causas do acidente, sem qualquer relação com qualquer das partes, totalmente idóneo e isente: o depoimento da Dra. DD, inspetora do ACT responsável pela investigação das causas do acidente (52m55s da gravação constante do ficheiro 20230118095852_3674244_2871805 wma).
15) Extrai-se deste depoimento que, segundo esta testemunha:
 A causa e circunstâncias concretas do acidente não foram apuradas;
 A utilização da escada, sem arnês ou corda, é a regra na atividade em causa, pois, como a própria testemunha refere, na maior parte dos casos, não há outra forma de aceder às copas das árvores, sendo o procedimento normal menos seguro do que aquele que o sinistrado observou durante o período da manhã (subir primeiro com escada à base da copa para verifica a solidez dos ramos e só depois iniciar a apanha já com EPI colocado) e que nada aponta para que não estivesse a observar no momento em que caiu (da primeira árvore a que subira depois do almoço);
 É necessário ou aconselhável a utilização prévia da escada para subir aos primeiros ramos na base da copa, para confirmar que os mesmos não estão podres e que têm solidez suficiente para ancorar uma corda de segurança;
 Quando confrontada com o procedimento descrito pelas testemunhas BB e CC, como sendo aquele que o sinistrado levava a cabo (subir primeiro com escada e gancho a fim de verificar a solidez dos ramos para fixação da corda, após o ia buscar o EPI para iniciar a apanha da pinha), a testemunha confirmou, sem qualquer hesitação, que tal era um procedimento adequado.
16) Finalmente, e ao contrário do que o Tribunal parece ter compreendido, como se depreende do resumo deste depoimento na motivação, esta testemunha nunca referiu que nessa primeira fase de subida pela escada, o sinistrado devesse usar arnês e corda, pois tal seria, até, contraditório com o risco que a mesma apontou de fixação de corda sem prévia verificação de que o apoio não se encontra apodrecido.
17) O que a testemunha referiu, claramente, e parece ter gerado a confusão do Tribunal, é que o risco existe SEMPRE, quando se trabalha em altura, podendo ser minimizado, mas nunca totalmente afastado.
18) E, como se disse, a testemunha referiu, claramente, que o procedimento que o sinistrado levava a cabo era adequado a minimizar tal risco.
19) Da motivação da matéria de facto torna-se patente que o Tribunal desconsiderou os depoimentos de BB, CC e Dra. DD, e se ancorou no depoimento da testemunha Dra. EE, ou, pelo menos, que seguiu o raciocínio desta.
20) Tal testemunha, averiguadora de seguros e advogada (como resulta da ata da audiência de discussão e julgamento) foi a pessoa responsável pela averiguação levada a cabo a pedido da recorrida, averiguação essa que se mostra transcrita no documento n.º 1, junto com a contestação.
21) Ora, do depoimento da testemunha FF, gestora de sinistros da recorrida (1h33m49s – 1h35m17s da gravação constante do ficheiro 20230118095852_3674244_2871805 wma), resulta, sem margem para dúvidas, que o relatório elaborado pela testemunha EE, se inseriu no âmbito de uma relação contratual, reiterada ou duradoura, entre a entidade patronal da dita testemunha e a recorrida.
22) E, analisando tal relatório, temos que o averiguador se limitou – como já vimos – a fotografar a árvore, nada tendo feito no sentido de aferir se os ramos eram, de facto, sólidos e se o sinistrado tinha alternativa segura em relação ao procedimento que foi descrito pelas testemunhas que o viram a trabalhar naquele dia.
23) No mais, tal relatório assemelha-se mais a um projeto de parecer jurídico, tendo-se substituído a realização de diligências com vista ao apuramento de factos concretos, por considerações, especulações e referências a normas e jurisprudência (como é o caso de um acórdão da Relação de Évora, que a averiguadora não terá lido pois que os pressupostos factuais eram totalmente diversos dos do presente caso (ali, a vítima de AT desenvolvia outra atividade – esgalhava ramos – sem escada nem EPI)), aludindo-se a meros indícios de culpa do sinistrado, mas concluindo-se, sem justificação factual, de que não existiam dúvidas quanto aos pressupostos da descaracterização do acidente.
24) Faltava, pois, rigor, isenção e objetividade a tal meio de prova, e, consequentemente, ao depoimento da responsável pela sua elaboração, para ser considerado credível e de molde a sustentar uma decisão no sentido da descaracterização do acidente por culpa grosseira do sinistrado e/ou falta de causa justificativa para não observação de condições de segurança.
25) A douta sentença recorrida fez errada interpretação do direito aplicável, pois, nos termos do disposto no art.º 342º, do CC, com vista à descaraterização do acidente, à participada cabia demonstrar que o mesmo ocorreu porque o sinistrado agiu com negligência grosseira, de forma temerária perante a habitualidade do perigo ou usos da profissão, ou que o mesmo violou as regras de segurança, sem causa justificativa para tal, nos termos do disposto no art.º 14º, n.º 1, al. a) e b), da LAT.
26) E não existe qualquer disposição legal que regulamente as regras de segurança a observar, especificamente, na atividade de apanha da pinha, aplicando-se, pois, as disposições do DL n.º 50/2005, de 25.2, e, naturalmente, à interpretação que delas vem sendo feita pela jurisprudência dos tribunais superiores em casos análogos (em www.dgsi.pt):
27) Em primeiro lugar, temos o Ac. da Relação de Évora, de 12.9.2018 (Proc. 684/16.8T8STC.E2 – João Nunes), que foi citado pela averiguadora da Ré: aí foi descaraterizado o acidente, porque, contrariamente ao caso dos autos, o sinistrado esgalhava uma árvore, após ter subida à mesma, com moto serra, sem recorrer ao uso de escada ou qualquer EPI, sendo por demais evidente que aí se tratou de uma conduta temerária, contrariamente ao caso dos autos, em que, apesar de não utilizar EPI no momento da queda, o sinistrado tinha o EPI no local, e recorria a uma escada para subir à base da copa, tudo indicando que o fazia com vista a assegurar-se da viabilidade de proceder à colocação do EPI para prosseguir para a apanha de pinha com o mesmo colocado, como havia feito até então.
28) Acórdão de 15.11.2012, Proc. 335/07.1TTLRS.L1.S1 (Pinto Hespanhol): ignorando-se a razão da queda que vitimou o sinistrado, não há fundamento para descaracterizar o acidente ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro.
29) Atenta a semelhança do enquadramento fático, e correta interpretação do direito aplicável, com maior pertinência para a decisão do caso concreto, está o acórdão do STJ, de 6.7.2017, Proc. 1637/14.6T8VFX.L1.S1 (Ferreira Pinto):
1. Tendo-se provado apenas que o sinistrado estava em cima de um escadote, sem arnês de segurança, a reparar uma unidade de frio e que se desequilibrou, caindo ao chão de cabeça, sofrendo lesões que lhe causaram a morte, não pode o acidente ser descaracterizado, pois não se provou inexistir causa justificativa para aquele comportamento omissivo.
2. Prova essa que competia quer à empregadora quer à seguradora, como entidades responsáveis pela reparação do acidente, por serem factos conducentes â sua descaracterização, e, por isso, impeditivos do direito invocado pelos beneficiários legais do falecido sinistrado (artigo 342º, n.º 2, do Código Civil).
30) Ora, nos presentes autos, desconhecem-se, TAMBÉM, as circunstâncias em que ocorreu a queda (nomeadamente o que o sinistrado se encontraria a fazer em tal momento e de onde caiu), mas sabe-se, pois tal resulta da prova testemunhal, que até ao momento do acidente o sinistrado observou um procedimento que a própria inspetora do ACT considerou adequado perante os riscos de falta de solidez dos ramos a utilizar como ponto de apoio para a corda de segurança.
31) E nada, na prova produzida, aponta para que o sinistrado não estivesse a observar tal procedimento no momento da queda. Antes pelo contrário, tudo aponta para que o estivesse a fazer: era o primeiro pinheiro a que subia depois do almoço, a escada estava corretamente colocada, e não existiam pinhas no chão.
32) Como é lógico, o trabalho em altura envolve e envolverá sempre um risco, seja qual for o equipamento de segurança utilizado.
33) Porém, contrariamente àquele que parece ser o entendimento do tribunal recorrido, a Lei não impõe a utilização de corda e arnês pelo trabalhador, independentemente das circunstâncias concretas, apenas estipulando que o risco deve ser minimizado, atentas tais circunstâncias. O que significa que o arnês e corda de segurança deverão ser utilizados SEMPRE QUE POSSÍVEL.
34) Isto mesmo foi, aliás, confirmado pela inspetora do ACT, que até referiu não ser do seu conhecimento que na apanha da pinha se recorra à utilização de EPI como corda de segurança, dada a impossibilidade de tal utilização na maior parte das situações.
35) Pelo que, perante tal depoimento, era forçoso concluir que o procedimento que o sinistrado vinha levando a cabo, ao longo do dia (utilizando corda e arnês após verificação da solidez dos ramos), estava acima dos parâmetros habituais de segurança em tal atividade profissional.
36) Em segundo lugar, torna-se a referir que nenhuma prova séria e convincente foi levada a cabo com vista a determinar se os ramos na base da copa tinham solidez para servirem de ponto de fixação à corda de segurança.
37) E muito menos foi feita prova de que o sinistrado pudesse aferir de tal solidez sem ser pelo meio que empregava habitualmente: subir primeiro com a escada para testar os ramos com o gancho.
38) Ora, resulta da própria motivação de facto que, no dia em causa, o procedimento que o sinistrado levava a cabo era o de subir, primeiro, com o auxílio de uma escada, para, com o gancho, testar a solidez dos ramos de modo a, posteriormente, voltar a subir colocando a corda de segurança e arnês, e, a partir daí, proceder à apanha da pinha.
39) E, reitera-se, a própria inspetora do ACT confirmou ser este o procedimento adequado, sublinhando que, na falta de tal procedimento, existia risco de queda inerente à fixação de corda de segurança num ramo apodrecido.
40) Também resulta da motivação de facto que a escada se encontrava corretamente colocada, fixa à árvore no momento da queda, mantendo-se, inclusivamente, em tal posição, no dia seguinte ao do acidente.
41) Pelo que da discussão dos autos resulta demonstrado que a conduta do sinistrado se enquadrou no disposto no art.º 36º, ns. 1 e 7, e 38º, nº 1, do DL n.º 50/2005, de 25.2.
42) Em caso algum se poderá considerar, perante a globalidade da prova descrita, que o sinistrado tenha agido de forma temerária, ou com negligência grosseira.
43) E muito menos se pode dar como provado que o mesmo tenha violado, sem causa justificativa, qualquer regra de segurança.
44) Termos em que deverá a douta sentença recorrida ser revogada e, em consequência, ser a ré condenada no pagamento das prestações previstas na LAT e peticionadas pela A..».

Contra-alegou a Ré, pugnando pela improcedência do recurso.

A 1.ª instância admitiu o recurso com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Tendo o processo subido à Relação, foi observado o prescrito no n.º 3 do artigo 87.º do Código de Processo do Trabalho.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer favorável à manutenção da sentença recorrida.
Não foi oferecida qualquer resposta.
O recurso foi mantido e forma colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, as questões suscitadas no recurso podem ser, assim, identificadas:
1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
2. Ocorrência de um acidente de trabalho reparável.

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III. Matéria de Facto
A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
1. Em 18 de Fevereiro de 2021, GG encontrava-se a trabalhar por contra própria, como trabalhador independente, dedicando-se à apanha de pinhas. (1)
2. GG auferia então a remuneração base mensal de €1.000,00 x 14 meses, correspondente a €14.000,00 anuais. (2)
3. Nesse dia 18.02.2021, pelas 13:45 horas, no Brejo da Amada, Muda, em Grândola, quando GG se encontrava no exercício das suas funções, caiu em altura de um pinheiro, vindo a embater no solo. (3)
4. Devido ao embate no solo, GG ficou inanimado. (4)
5. De imediato, por BB foram chamados os Bombeiros de Grândola e o INEM. (5)
6. À chegada destes ao local, GG foi induzido em coma e transportado de helicóptero para o Hospital de S. José, em Lisboa. (6)
7. Aí, deu entrada politraumatizado, com focos de contusão cerebral, hemorragia subdural, fratura da coluna cervical (C1 e C2) e pneumotórax traumático, fraturas dos arcos costais à esquerda, tetraparesia espastica e manteve-se internado em tal unidade hospitalar até 13.04.2021. (7)
8. Durante o internamento sofreu ainda uma pneumonia, infeção do cateter e infeção respiratória a KPC. (8)
9. Em 13.04.2021, apresentava-se afásico, sem resposta motora, com limitações das amplitudes articulares e espasticidade de grau 3 na escala de Asworth, tetraparésia espástica, traqueostomizado, alimentado por PEG, com escassos progressos na recuperação, caquético, sem capacidade de comunicação, anquilosado e totalmente dependente de terceiros nas AVD´s. (9)
10. Foi transferido para a UMD de Odemira na referida data, onde se manteve internado, com internamentos esporádicos no Hospital do Litoral Alentejano, por exacerbação do quadro respiratório infecioso. (10)
11. Assim, em consequência direta e necessária do acidente, GG sofreu:
- ao nível da coluna trauma nível III, com fratura da vertente anterior da faceta articular superior esquerda de C1 e da ver tente anterior da faceta articular superior direita de C2, sem envolvimento do forâmem transversário;
-ao nível crânio encefálico e maxilofacial: coleção hemática em topografia subdural frontotemporal à esquerda, com cerca de 4 mm de maior espessura, foco contusão edema-hemorrágico e temporo-basal à esquerda em fase aguda, nível hemático agudo no prolongamento occipital do ventrículo lateral direito;
-ao nível do tórax: Pneumotórax hipertensivo à esquerda... Fraturas alinhadas do 2º e 3º arcos costais anteriores e 4º arco costal posterior à esquerda;
-Tetraparesia espastica e traqueostomia, osteotomia percutânea PEG, com escassos progressos na recuperação, caquético, não comunicável, anquilosado, totalmente dependente. (11)
12. Devido ao agravamento do seu estado clínico em consequência das lesões resultantes do acidente, GG veio a falecer em 05.09.2021. (12)
13. GG faleceu no estado de casado com AA, nascida em 23.02.1975. (13)
14. Á data do sinistro, GG tinha a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho, por conta própria, transferida para a R., mediante contrato de seguro de acidentes de trabalho titulado pela apólice n.º ...18, pela retribuição anual de €14.000,00. (14)
15. Em consequência das lesões advenientes do acidente, GG sofreu ITA de 19.02.2021 até 05.09.2021. (15)
16. Em 12.04.2021, a R. comunicou a não assunção de responsabilidade pela reparação dos danos resultantes do acidente de trabalho, alegando que o falecido não estaria munido de corda, arnês e capacete no momento do acidente. (16)
17. Os primeiros ramos do pinheiro do qual o sinistrado caiu encontravam-se a uma altura do solo não inferior a 5 metros. (17)
18. Em consequência do falecimento do beneficiário GG, com o NISS n.º ... e por solicitação da viúva, AA, o ISS, IP/CNP pagou a esta, a título de subsídio por morte, o montante de €1.316,43. (18)
19. O ISS, IP/CNP tem ainda vindo a pagar á viúva, pensões de sobrevivência no total de €2.412,52, no período de Outubro/2021 a Setembro/2022, sendo o atual valor mensal da pensão atribuída e a pagar de €175,18. (19)
20. Em virtude do acidente e das lesões provocadas por este, o ISS, IP pagou ao sinistrado GG, no período entre 18 de Fevereiro e 5 de Setembro de 2021, a título de subsídio de doença, a quantia de €2.406,70. (20)
21. No período de Outubro/2022 a Janeiro/2023, o ISS, IP/CNP continuou a pagar á viúva pensões de sobrevivência, sendo o valor mensal atual de €183,64, perfazendo o total pago no período de Outubro/2021 a Janeiro/2023, €3.384,48.
22. No dia 18.02.2021, GG deslocou-se com o seu irmão, BB e CC, ao Brejo da Amada, Muda, em Grândola, a fim de aí procederem à apanha manual de pinha.
23. GG tinha vários anos de experiência em tal atividade.
24. Encontravam-se fixos à arvore a escada em ferro e uma vara com gancho, ferramentas utilizadas pelo sinistrado antes da sua queda.
25. Estas ferramentas são utilizadas na colheita da pinha na árvore.
26. Alguns dos ramos mais baixos do pinheiro em questão poderiam ser suficientemente sólidos para a colocação/fixação de corda de segurança.
27. Alguns desses ramos podiam ser acessíveis a partir do solo, para poder criar um ponto de fixação para corda de segurança.
28. Em virtude do sinistro, a autora suportou despesas no valor de 1.675,00 €, nestas incluindo o valor de €.1050,00 por despesas de funeral do sinistrado.
29. Aquando da sua queda, o sinistrado pretendia proceder à apanha de pinha, e encontrava-se posicionado no pinheiro, a uma altura do solo de cerca de seis metros.
30. Nessas circunstâncias o sinistrado não usava arnês, com um chicote apetrechado de um mosquetão, por forma a permitir a sua fixação no tronco da árvore ou em ramos robustos e não usava corda de segurança.
31. Ao não utilizar este equipamento, tal não permitiu evitar a queda do sinistrado no solo e as lesões que vieram a provocar a sua morte.
32. O sinistrado também não usava capacete.
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E julgou não provada a seguinte factualidade:
A. O sinistrado não procedeu ao planeamento do trabalho e à avaliação dos riscos que corria.

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IV. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Em sede de recurso, a Apelante impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, relativamente aos pontos 26, 27 e 29 dos factos assentes.
No seu entender, a factualidade constante dos aludidos pontos deveria ter sido julgada como não provada.
Mostrando-se observado o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável ao processo laboral, nada obsta ao conhecimento da impugnação.
Apreciemos, então.
Os pontos factuais impugnados têm o seguinte conteúdo:
26. Alguns dos ramos mais baixos do pinheiro em questão poderiam ser suficientemente sólidos para a colocação/fixação de corda de segurança.
27. Alguns desses ramos podiam ser acessíveis a partir do solo, para poder criar um ponto de fixação para corda de segurança.
29. Aquando da sua queda, o sinistrado pretendia proceder à apanha de pinha, e encontrava-se posicionado no pinheiro, a uma altura do solo de cerca de seis metros.
Procedemos à análise da prova documental junta ao processo, com especial destaque para o “Auto de Notícia” elaborado pela GNR, para o “Inquérito de Acidente de Trabalho”[2] elaborada pela ACT e para o “Relatório de Averiguação”[3] elaborado pela empresa “TECNOPER Consultadoria”.
Ouvimos, também, toda a prova gravada.
E, após ponderação, afigura-se-nos que os meios de prova suportam a decisão proferida pelo tribunal a quo que se mostra impugnada.
Dos testemunhos prestados por BB, DD e EE, conjugados com as fotografias existentes no “Inquérito” e no “Relatório”, resulta que a escada que estava encostada e fixa ao pinheiro tinha cerca de seis metros de altura.
Esta é uma escada muito especial, que termina com um gancho de ferro na extremidade superior para que seja possível prendê-la num galho ou ramo da árvore.
No dia do acidente e no dia imediato, esta escada encontrava-se presa ao pinheiro no mesmo sítio onde havia sido colocada pelo falecido GG, o que permitiu que fosse fotografada pela Inspetora da ACT (DD) e pela perita averiguadora (EE),
A partir dessas fotos, que integram o “Inquérito” e o “Relatório”, consegue-se perceber que existem ramos, no pinheiro, que estão a uma altura inferior à do ramo onde foi presa a escada.
E, analisando as fotografias mencionadas, os ramos mais baixos afiguram-se estarem tão sólidos quanto o ramo onde foi presa a escada, que teve de suportar o peso do falecido. O aspeto é semelhante.
Aliás, não houve uma única testemunha que tenha aludido a qualquer aparente fragilidade dos referidos ramos.
Por isso mesmo, afigura-se-nos ter resultado provado que alguns dos ramos mais baixos do pinheiro poderiam ser suficientemente sólidos para a colocação/fixação de uma corda de segurança, fixação essa possível a partir do solo (se o falecido conseguiu fixar a escada num ramo com, pelo menos, seis metros de altura, por maioria de razão, conseguiria lançar e fixar a corda num ramo mais baixo).
Destarte, a prova produzida suporta a verificação da factualidade descrita nos pontos 26 e 27, pelo que improcede a impugnação nesta parte.
Quanto ao ponto 29, os meios de prova são, igualmente, consistentes para se dar como demonstrada a materialidade aí descrita.
BB (irmão do falecido e que estava a trabalhar com ele no dia do acidente, na atividade da apanha da pinha ) referiu que não viu o falecido cair mas quando chegou ao pé dele, viu que a escada estava fixa no pinheiro e que o gancho para apanhar as pinhas estava na copa da árvore a uma altura de cerca de 6 metros. Depois confirmou que o pinheiro em causa, as escadas e o gancho eram os que estavam retratados nas fotos n.os 1 a 4 do “Relatório”. Mais esclareceu que aquele pinheiro era a primeira árvore em que o seu irmão ia apanhar pinhas, após o almoço.
CC (que no dia do acidente também estava a trabalhar junto com o falecido e o irmão) declarou que o pinheiro de onde o falecido caiu tinha cerca de seis metros e que a escada estava bem fixa na árvore e que o gancho estava fixo também na árvore, a uma altura mais elevada, correspondente à do alcance do braço de um homem que tivesse os pés ca escada.
DD (Inspetora da ACT, responsável pelo “Inquérito”, e que se deslocou ao local do acidente ainda no próprio dia da sua ocorrência, acompanhada do irmão do falecido), referiu que tirou as fotos que constam do “Inquérito” em que a escada se mostra visível, e que embora não a tenha medido estimou que a mesma deveria ter cerca de seis metros. Também declarou que o gancho estava numa altura superior à da escada, preso na copa da árvore. Por fim, referiu que por o irmão do falecido lhe disse que o falecido estava a apanhar pinhas naquele pinheiro, o que se tornava evidente pela posição das escadas e do gancho, pois o falecido teve que subir a escadas para colocar o gancho onde estava. Acrescentou que a escada e o gancho eram os instrumentos de trabalho do falecido.
Finalmente, EE (perita averiguadora), relatou que no âmbito da averiguação ao acidente, que realizou, tirou as fotos n.os 1 a 4 que integram o “Relatório”, onde se mostram bem visíveis o pinheiro, a escada e o gancho pendurado na copa da árvore, mais elevado relativamente ao cimo da escada. Também acrescentou que a queda ocorreu de uma altura de cerca de seis metros, quando o falecido procedia ao desenvolvimento da atividade para que havia sido contratado.
Ora, conjugando todos estes meios probatórios, ficámos com a convicção que o falecido teve de cair do pinheiro quando pretendia proceder à apanha da pinha, tendo a queda ocorrido a uma altura do solo de cerca de seis metros.
Só este facto explica o posicionamento da escada, com cerca de seis metros, fixa ao tronco do pinheiro e o gancho preso num galho superior na copa da árvore, sendo que a escada e o gancho eram os instrumentos de trabalho do falecido.
Ademais, a violência das lesões sofridas dificilmente seria explicável caso este estivesse no solo e tivesse, porventura, caído.
Em suma, os depoimentos testemunhais referidos e a prova documental indicada, designadamente as fotos do “Inquérito” e do “Relatório”, são idóneos e suficientemente consistentes para dar por verificado, também, o facto descrito no ponto 29.
Por conseguinte, improcede, na totalidade, a impugnação da decisão fáctica.
*
V. Caracterização do acidente
A 1.ª instância descaracterizou o acidente que vitimou GG, com base na seguinte fundamentação:
«De acordo com o disposto no art.º 8.º n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, «é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte».
Assim, o conceito de acidente de trabalho é delimitado por três elementos cumulativos: um espacial – o local de trabalho – outro temporal - o tempo de trabalho – e, por último, um causal – o nexo de causa e efeito entre o evento e a lesão, perturbação ou doença (vd. o acórdão do STJ, de 07.10.1999, in www.dgsi.pt).
Como se considerou no acórdão da Relação de Coimbra de 23 de Junho de 1994 (in, C.J., 1994, Tomo III, págs. 68 e ss.), «para que haja acidente de trabalho é necessário que se verifique um acidente no local e tempo de trabalho, isto é, que ocorra qualquer facto ou evento naturalístico, que produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou redução na capacidade de trabalho ou de ganho».
Em conclusão dir-se-á que «acidente de trabalho é pois uma cadeia de factos em que cada um dos respetivos elos estejam entre si sucessivamente interligados por um nexo causal: o evento naturalístico tem que resultar da relação de trabalho; como a lesão, perturbação ou doença, terão que resultar daquele evento; e, finalmente, a morte ou incapacidade para o trabalho deverão filiar-se causalmente na lesão, perturbação ou doença» (Vítor Ribeiro, in Acidentes de Trabalho, Reflexões e Notas Práticas, Rei dos Livros, 1984, pág. 219 e seguintes).
Na tentativa de conciliação, bem como nos respetivos articulados, a R. aceitou/reconheceu o acidente participado como acidente de trabalho, tendo por isso resultado desde logo assente, prestando o GG atividade por contra própria, como trabalhador independente (pontos 1 a 4), bem como aceitou o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões sofridas pelo sinistrado (pontos 4 a 7 e 11), cujo agravamento foi causa direta e necessária da sua morte, em 05.09.2021 (pontos 8 a 12).
Assim, tem-se por assente a verificação do acidente de trabalho, prestando o sinistrado GG atividade por contra própria, como trabalhador independente, bem como o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões sofridas pelo sinistrado.
Atento o alegado pela R., cumprirá aquilatar da eventual descaracterização do acidente. In casu, a R. alega a descaracterização do acidente, afastando, em consequência, o direito a reparação, com fundamento na circunstância de o mesmo ter ocorrido por culpa exclusiva do sinistrado que fundamenta: na total ausência de planeamento da execução dos trabalhos e falta de avaliação dos riscos que os mesmos ofereciam e no facto de o sinistrado não usar equipamento de proteção individual, em concreto, capacete, arnês, com um chicote apetrechado de um mosquetão, por forma a permitir a sua fixação no tronco da árvore ou em ramos robustos e corda de segurança.
A R. concretiza nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 14.º, da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, sendo que, por reporte àquela primeira, apenas será de atender à respetiva segunda premissa, isto é, a circunstância de o acidente se ter ficado a dever a ato ou omissão do sinistrado que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei. Com efeito, não está em causa, nem foi alegado qualquer atuação dolosa por parte do sinistrado que cumprisse analisar á luz da primeira parte da alínea a) do n.º 1 do preceito citado.
Estatui o art.º 14.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, que «[O] empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que: a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado; c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.»
Á luz do Lei n.º 2127 de 3 de Agosto de 1969, mais concretamente da sua Base VI, sob a epígrafe “Descaracterização do Acidente” Carlos Alegre, in Acidentes de Trabalho, 1995, Almedina, pág. 49 notava que «[C]contrariamente com o teor da sua epígrafe, a Base VI parece, assim, continuar a aceitar que os acidente ocorridos nas circunstâncias das suas quatro alíneas são acidentes de trabalho, apenas, não dão direito a reparação. Em rigor, portanto, um acidente de trabalho somente porque não dá direito a reparação, não deixa de ser aquilo que é: e não é o facto de não haver lugar a reparação que o descaracteriza.
(…)
Ao fim e ao cabo o que se pretende significar é que, apesar do acidente ter todas as características de um acidente de trabalho, algo no comportamento da própria vítima ou no caso da Natureza faz com que o direito à reparação, genericamente atribuído na Base I, não tenha lugar. Só isso.»
Tal nota manteve-se atual face á epígrafe e redação do art.º 7.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, como se mantém válida face á epígrafe e redação do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.
A prova dos pressupostos que permitem a descaracterização do acidente cabe, nos termos do disposto no art.º 342.º n.º 2 do Código Civil, à entidade responsável (neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ, de 28.06.1994, 16.06.2004 e 13.07.2004, todos in www.dgsi.pt.
No quer ao caso importa, tratando-se o sinistrado de trabalhador independente, não tendo, por isso, entidade empregadora, resulta da enunciada circunstância que o acidente que provier de ato ou omissão do sinistrado só não dará direito a reparação se se verificarem cumulativamente as seguintes condições: (i) que sejam voluntariamente violadas as condições de segurança previstas na lei, aqui se exigindo a intencionalidade ou dolo na prática ou omissão do ato, o que, naturalmente, exclui as denominadas culpas leves ou provenientes de mera inadvertência, imperícia, distração, esquecimento ou outras atitudes que se prendem com os denominados atos involuntários; (ii) que a violação das condições de segurança não assente em qualquer causa que a justifique, o que passa pelo claro conhecimento do perigo que possa resultar do ato ou omissão; (iii) que as condições de segurança sejam estabelecidas pela entidade empregadora ou derivem da lei; (iv) finalmente, o acidente há-de ser consequência necessária do ato ou omissão do sinistrado, cfr. neste sentido, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 13 de Abril de 2005, proc. n.º 9978/2004-8, e de 19.12.2012, proc. n.º 686/10.8TTLRS.L1-4, consultáveis in, www.dgsi.pt. e exatamente nos mesmos moldes Carlos Alegre, in Ob. cit. pág. 50 e 51.
Na alínea b) é exigida a negligência grosseira, sendo que de acordo com o n.º 3 do art.º 14.º, do citado diploma legal «[E]ntende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.»
Ao qualificar a negligência de grosseira, o legislador está a afastar implicitamente a simples “imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contra”, vd. Carlos Alegre, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, 2ª edição, pág. 63. Negligência grosseira “é aquela que in concreto não seria praticada por um suposto homo diligentissimus ou bonus pater-familias”, Carlos Alegre, in ob. e loc. cit..
Conforme sumariado no acórdão do STJ 09.06.2010, P. 579/09.1YFLSB, in www.dgsi.pt: «I - A negligência ou mera culpa consiste na violação de um dever objetivo de cuidado, sendo usual distinguir entre aquelas situações em que o agente prevê como possível a produção do resultado lesivo mas crê, por leviandade ou incúria, na sua não verificação (negligência consciente) e aquelas em que o agente, podendo e devendo prever aquele resultado e cabendo-lhe evitá-lo, nem sequer concebe a possibilidade da sua verificação (negligência inconsciente). II - A negligência também pode assumir diferentes graus, em função da ilicitude e da culpa: será levíssima quando o agente tiver omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excecionalmente diligente teria observado; será leve quando o parâmetro atendível for o comportamento de uma pessoa normalmente diligente e será grave quando a omissão corresponder àquela em que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta teria também incorrido. III - Correspondendo a “negligência grosseira” à “culpa grave”, a sua verificação pressupõe que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum. IV - A “negligência grosseira” deve ser apreciada em concreto – conferindo as condições do próprio sinistrado – e não com referência a um padrão abstrato de conduta.»
Por último, o ato descaracterizador do acidente tem de ter “resultado exclusivamente, isto é, sem concurso de qualquer outra ação, de negligência grosseira” Carlos Alegre, in ob. e loc. cit..
Na verdade, tal como se considerou no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.05.2005, Processo 9391/2004-4, in, www.dgsi.pt), «para que o acidente de trabalho se possa considerar descaracterizado por culpa do trabalhador é necessário que este tenha tido um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência, uma imprudência e temeridade inútil e indesculpável, embora não intencional e que tal comportamento seja causa única do acidente.» (cfr. também neste sentido e relativo à inexistência de concorrência de culpas, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.06.2005, Processo 0542819, in, www.dgsi.pt).
Como resulta do próprio relatório do Decreto-Lei n.º 441/91 de 14 de Novembro, este diploma pretendeu transpor para a ordem interna a Diretiva 89/391/CEE e dar cumprimento às obrigações decorrentes da ratificação por Portugal da Convenção da O.I.T. n.º 155 sobre Segurança, Saúde dos Trabalhadores e Ambiente de Trabalho. Por conseguinte, o diploma em apreço estabeleceu o regime jurídico do enquadramento nacional da segurança, higiene e saúde no trabalho.
O referido Decreto-Lei veio a ser sucessivamente revogado pela Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro, a qual veio a ser sucessivamente alterada pela Lei n.º 42/2012, de 28 de Agosto, pela Lei n.º 3/2014, de 28 de Janeiro, pelo Decreto-Lei n.º 88/2015, de 28 de Maio, Lei n.º 146/2015, de 9 de Setembro e pela Lei n.º 28/2016, de 23 de Agosto.
No que ao caso importa, a citada Lei n.º 102/2009 aplica-se a todos os ramos de atividade do sector privado, ao trabalhador por conta de outrem, na definição dada pela al. a) do art.º 4.º, como também ao independente, tudo cfr. artigo 3.º, n.º 1.
Estabelece o artigo 5.º, n.º 1 que o trabalhador tem direito á prestação de trabalho em condições que respeitem a sua segurança e a sua saúde, asseguradas pelo empregador ou, nas situações identificadas na lei, pela pessoa, individual ou coletiva que detenha a gestão das instalações em que a atividade é desenvolvida.
Por seu turno, no seguimento do disposto pelos artigos 59.º e 64.º, da CRP, o n.º 1 do artigo 281.º do Código do Trabalho estipula que o trabalhador tem direito a prestar trabalho em condições de segurança e saúde, pelo que o seu n.º 2 estabelece que o empregador deve assegurar aos trabalhadores condições de segurança e saúde em todos os aspetos relacionados com o trabalho, aplicando as medidas necessárias tendo em conta os princípios gerais de prevenção.
O artigo 15.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro estipula as obrigações gerais do empregador em matéria de condições de segurança e de saúde em todos os aspetos do trabalho, algumas das quais resultam já dos deveres do empregador estabelecidos nas alíneas c), g), h) e i) do n.º 1, e dos n.º 2 e 3 do art.º 127.º, do CT, destacando-se o dever de proporcionar boas condições de trabalho do ponto de vista físico e moral e de fornecer ao trabalhador a informação e a formação adequadas à prevenção de riscos de acidente ou doença. Dos n.º 2 e 3 do artigo 281.º, do CT estabeleceu-se respetivamente que o empregador deve assegurar aos trabalhadores condições de segurança e saúde em todos os aspetos relacionados com o trabalho, aplicando as medidas necessárias tendo em conta princípios gerais de prevenção, e que na aplicação das medidas de prevenção, o empregador deve mobilizar os meios necessários, nomeadamente nos domínios da prevenção técnica, da formação, informação e consulta dos trabalhadores e de serviços adequados, internos e externos à empresa.
Por seu turno, o art.º 17.º, da Lei n.º 102/2009 elenca as obrigações do trabalhador, algumas das quais já resultam das estabelecidas nas alíneas e), g), i) e j), do n.º 1 do artigo 128.º, do Código do Trabalho. Entre essas obrigações destaca-se no n.º 1 al. a), a obrigação de cumprir as prescrições de segurança e de saúde no trabalho estabelecidas nas disposições legais e em instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, bem como as instruções determinadas com esse fim pelo empregador; na al. b) zelar pela sua segurança e pela sua saúde.
Para concretização da regulamentação anunciada no n.º 2 do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 441/91, foi publicado o Decreto-Lei n.º 348/93, de 1 de Outubro, que transpôs para a ordem jurídica interna, a Diretiva n.º 89/656/CEE, do Conselho, de 30 de Novembro, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde dos trabalhadores na utilização de equipamentos de proteção individual. Aquele diploma veio a ser alterado pela Lei n.º 113/99, de 3 de Agosto.
Segundo aquele Decreto-Lei, entende-se por equipamento de proteção individual todo o equipamento, bem como qualquer complemento ou acessório, destinado a ser utilizado pelo trabalhador para se proteger dos riscos, para a sua segurança e para a sua saúde (n.º 1 do artigo 3.º), o qual deve ser utilizado quando os riscos existentes não puderem ser evitados ou suficientemente limitados por meios técnicos de proteção coletiva ou por medidas, métodos ou processos de organização do trabalho (artigo 4.º).
De acordo com o art.º 7.º, a descrição técnica do equipamento de proteção individual, bem como das atividades e sectores de atividade para os quais aquele pode ser necessário, é objeto de portaria do Ministro do Emprego e da Segurança Social, cuja execução foi concretizada pela Portaria n.º 988/93, de 6 de Outubro. Segundo o Anexo II daquela Portaria, intitulado «Lista indicativa e não exaustiva dos equipamentos de proteção individual», a proteção da cabeça é feita por “Capacetes de proteção para a indústria”, por “Coberturas de cabeça ligeiras para proteção do couro cabeludo (bonés, barretes), coifas, com ou sem viseira)” e “Coberturas de proteção da cabeça (barretes, bonés, chapéu de oleado, etc, em tecido, em tecido revestido, etc.)” e constituem equipamentos de proteção do corpo inteiro, sendo adequados à proteção contra quedas: “Equipamentos ditos «antiquedas» (equipamentos completos, incluindo todos os acessórios necessários para a sua utilização); Equipamentos com travão «absorvente de energia cinética» (equipamentos completos, incluindo todos os acessórios necessários para a sua utilização);Dispositivos de preensão do corpo (cintos de segurança)”.
Conforme analisado, para que a descaracterização do acidente possa operar é desde logo necessário que o trabalhador viole regras de segurança que estejam estabelecidas por disposição legal, o que se enquadra na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º da LAT, isto é, violação pelo sinistrado, sem causa justificativa, das regras previstas na lei.
O Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25-02, transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2001/45/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Junho, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho.
Este diploma legal estipula a observância de condições de segurança na execução, entre outros, de trabalhos em altura (artigo 36.º).
O n.º 1 do artigo 36.º prescreve que, não sendo possível executar o trabalho em altura a partir de uma superfície adequada, «(…) deve ser utilizado equipamento mais apropriado para assegurar condições de trabalho seguras».
Segundo o n.º 2 do mesmo artigo, nos trabalhos em altura deve dar-se prioridade a medidas de proteção coletiva em relação a medidas de proteção individual. E nos termos do n.º 4 a escolha do meio de acesso mais apropriado a postos de trabalho em altura deve ter em consideração a frequência da circulação, a altura a atingir e a duração da utilização.
Por sua banda, o artigo 38.º prevê a utilização de escadas e o artigo 39.º a «utilização de técnicas de acesso e de posicionamento por cordas», considerando a utilização desta técnica nas situações em que a avaliação do risco indique que o trabalho pode ser realizado com segurança e não se justifique a utilização de equipamento mais seguro (n.º 1 do artigo), devendo em tais situações o trabalhador utilizar arneses adequados através dos quais esteja ligado à corda de segurança, a qual deve estar equipada com um mecanismo seguro de subida e descida e dispositivo móvel antiqueda que acompanhe as deslocações do trabalhador [alíneas b), c) e d) do n.º 2 do mesmo artigo].
É consabido que a subida a um pinheiro implica risco de queda em altura, pelo que, tendo em conta que o sinistrado trabalhava por conta própria, caberia ao mesmo dispor e utilizar equipamento de proteção individual adequado a tal risco.
Tratando-se o sinistrado de um trabalhador independente, não existe obrigação de organização dos serviços de higiene e segurança, tendo o próprio trabalhador de assegurar as condições da sua segurança/saúde.
Não se provou que o sinistrado não procedeu ao planeamento do trabalho e à avaliação dos riscos que corria, conforme melhor justificado na fundamentação de facto.
No caso provou-se que aquando da sua queda, o sinistrado pretendia proceder à apanha de pinha, e encontrava-se posicionado no pinheiro, a uma altura do solo de cerca de seis metros (29), sendo que, nessas circunstâncias, o sinistrado não usava arnês, com um chicote apetrechado de um mosquetão, por forma a permitir a sua fixação no tronco da árvore ou em ramos robustos e não usava corda de segurança (30) e também não usava capacete (31).
Por conseguinte, terá de se concluir que o sinistrado violou regras de segurança previstas na lei.
Pugna a autora, que; (a) o uso do capacete em nada relevaria para evitar as gravíssimas lesões torácicas e na coluna sofridas pelo sinistrado; (b) os primeiros ramos do pinheiro do qual o sinistrado caiu encontram-se a uma altura não inferior a 5 metros do solo, não se podendo concluir que fossem suficientemente sólidos para suportar o peso do sinistrado, não sendo possível saber se eram acessíveis a partir do solo, para criar um ponto de fixação para corda de segurança; (c) mostrava-se colocada a escada em ferro que era utilizada pelo sinistrado no momento da queda, sendo esta e a vara com gancho as ferramentas de trabalho comumente utilizadas na colheita da pinha, nomeadamente quando não existem pontos de fixação para a corda de segurança acessíveis a partir do solo, ou para permitir o acesso a tal ponto de fixação, pelo que nada permite concluir que o acidente tenha ocorrido por dolo do sinistrado ou que tenha sido consequência exclusiva de conduta grosseiramente negligente.
A primeira circunstância será analisada quanto ao nexo causal entre a violação da regra de segurança estabelecida por lei e o acidente.
Quanto à segunda circunstância, esta reconduz-se à alegada inacessibilidade a partir do solo para poder criar um ponto de fixação para corda de segurança, pelo facto de os primeiros ramos do pinheiro do qual o sinistrado caiu se encontrarem a uma altura não inferior a 5 metros e ao não apuramento da solidez desses dos ramos, para a fixação de corda de segurança.
A este propósito provou-se que alguns dos ramos mais baixos do pinheiro em questão eram suficientemente sólidos para a colocação/fixação de corda de segurança (26) e que alguns desses ramos eram acessíveis a partir do solo, para poder criar um ponto de fixação para corda de segurança (27).
Mas ainda que assim não fosse, certo é que o sinistrado, posicionado no pinheiro a uma altura do solo de cerca de seis metros, não utilizava EPI, nomeadamente arnês, com um chicote apetrechado de um mosquetão, por forma a permitir a sua fixação no tronco da árvore ou em ramos robustos, corda de segurança não se surpreendendo, nem tendo sido alegada qualquer impossibilidade e/ou qualquer outra justificação para não o fazer.
A terceira circunstância, refere-se ao facto de se mostrar colocada a escada em ferro que era utilizada pelo sinistrado no momento da queda, sendo esta e a vara com gancho as ferramentas de trabalho comumente utilizadas na colheita da pinha, nomeadamente quando não existem pontos de fixação para a corda de segurança acessíveis a partir do solo, ou para permitir o acesso a tal ponto de fixação.
Como se analisou na fundamentação de facto e aqui se respiga, a constatação levada a cabo pela autora encerra em si mesma a confusão entre instrumentos de trabalho, isto é, ferramentas que visam a execução de tarefas inerentes à atividade e, por outro lado, equipamentos de segurança que visam acautelar os riscos inerentes à execução dessas tarefas. Se não restam dúvidas de que tal como apurado e provado, encontravam-se fixos à arvore a escada em ferro e uma vara com gancho, ferramentas utilizadas pelo sinistrado antes da sua queda (24) e que estas se tratam de ferramentas de trabalho utilizadas na colheita da pinha na árvore (ponto 25), já não se poderá concluir que tais instrumentos sejam comumente utilizados (apenas estes) quando não existem pontos de fixação para a corda de segurança, acessíveis a partir do solo, ou para permitir o acesso a tal ponto de fixação, pois tal inculca que apenas estes instrumentos sejam os necessários e adequados no caso, sem a utilização de qualquer equipamento de segurança. Assim não é.
Poderá então questionar-se qual o procedimento adequado para a colocação do EPI, ao que se nos afigura correto não só a colocação da corda de segurança a partir do solo, quando possível, como o procedimento pela colocação de arnês, com um chicote apetrechado de um mosquetão, por forma a permitir a sua fixação no tronco da árvore podendo depois ser colocada a corda de segurança em ramo robusto. Tudo sem prejuízo de outros procedimentos que não impliquem eles próprios a colocação em risco do trabalhador, quando posicionado em altura.
Vejamos então da verificação do nexo de causalidade entre a constatada violação de regras de segurança pelo sinistrado e o acidente e suas consequências.
No que ao caso importar, a utilização de capacete visa efetivamente proteger a cabeça contra ferimentos causados pela queda de objetos de níveis mais elevados e prevenir lesões de embates da cabeça contra objetos fixos. Destarte, o uso do capacete pelo sinistrado não visaria evitar/precaver/minimizar o risco de queda em altura e assim sendo, a sua utilização não seria suscetível de evitar as lesões torácicas e na coluna sofridas pelo sinistrado e de cujo agravamento resultou o seu óbito.
Já a não utilização de arnês, com um chicote apetrechado de um mosquetão, por forma a permitir a sua fixação no tronco da árvore ou em ramos robustos e da corda de segurança (30), tal não permitiu evitar a queda do sinistrado no solo e as lesões que vieram a provocar a sua morte (31), verificando-se assim o nexo de causalidade.
Note-se que, embora a ré não tenha logrado provar que o sinistrado não procedeu ao planeamento do trabalho e à avaliação dos riscos [ponto A)], decorrendo os riscos do trabalho em executado em altura da perceção comum (subida a um pinheiro a uma altura de cerca de seis metros do solo), ainda assim o sinistrado decidiu correr o risco de queda em altura, pela não utilização de EPI.
A queda do sinistrado em altura proveio de omissão sua, que importou violação, sem causa justificativa, das condições de segurança previstas na lei.
Em conclusão, mostram-se verificados os requisitos da descaracterização do acidente, ou seja, a existência de condições de segurança que decorrem da lei para a subida a um pinheiro e desenvolvimento da atividade da apanha manual de pinha na árvore (trabalho em altura), as quais, por omissão e sem causa justificativa foram violadas pelo sinistrado, tendo a queda sido consequência da violação dessas condições de segurança.».
Em sede de recurso, a Apelante impugna esta decisão, pugnando para que o acidente que vitimou GG seja caracterizado como acidente de trabalho reparável.
Todavia, tendo em consideração a factualidade demonstrada e a legislação aplicável, desde já adiantamos que a sentença recorrida, quanto à questão sub judice, merece a nossa absoluta concordância.
Principiamos por referir que a indicação da legislação que se mostra aplicável ao caso concreto foi devidamente exposta, pelo que, para evitar tautologias, subscrevemos, sem reservas, o enquadramento jurídico exposto.
O ónus da alegação e prova da verificação da situação excludente do direito à reparação do acidente foi, igualmente, bem apresentado e considerado.
Posto isto, foquemo-nos nos factos provados.
Decorre da factualidade assente que, no dia 18/02/2021, pelas 13h45m, GG, quando se encontrava a trabalhar por conta própria, como trabalhador independente, dedicando-se à apanha de pinhas, caiu de uma altura de cerca de seis metros de um pinheiro, vindo a sofrer lesões, cujo agravamento foi causa direta e necessária da sua morte, em 05/09/2021.
Para alcançar as pinhas, o falecido utilizou, exclusivamente, as suas ferramentas de trabalho: uma escada em ferro e uma vara com gancho.
Ora, o trabalho que estava a ser desenvolvido quando ocorreu a queda implicava, necessariamente, trabalho em altura, com o consequente risco de queda.
O Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25 de fevereiro que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 89/655/CEE, do Conselho, de 30 de Novembro, alterada pela Diretiva n.º 95/63/CE, do Conselho, de 5 de Dezembro, e pela Diretiva n.º 2001/45/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Junho, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho, e que é aplicável em todos os ramos de atividade dos sectores privado, cooperativo e social, administração pública central, regional e local, institutos públicos e demais pessoas coletivas de direito público, bem como a trabalhadores por conta própria - artigo 1.º, n.os 1 e 2 - contém normas especificas respeitantes ao risco de queda – artigos 36.º a 42.º.
Do teor do artigo 36.º, n.º 1 infere-se que numa situação em que não seja possível executar os trabalhos temporários em altura a partir de uma superfície adequada, com segurança e condições ergonómicas apropriadas, deve utilizar-se o equipamento mais apropriado para assegurar condições de trabalho seguras.
Prescreve o n.º 2 do mesmo artigo que na utilização de equipamento destinado a trabalhos temporários em altura, o empregador deve dar prioridade a medidas de proteção coletiva em relação a medidas de proteção individual.
De acordo com o n.º 7 deste artigo, o trabalho sobre uma escada num posto de trabalho em altura deve ser limitado aos casos em que não se justifique a utilização de equipamento mais seguro em razão do nível reduzido do risco, da curta duração da utilização ou de características existentes que o empregador não pode alterar.
Por seu turno, estatui o artigo 39.º, respeitante à utilização de técnicas de acesso e de posicionamento por cordas:
1 - A utilização de técnicas de acesso e posicionamento por meio de cordas deve ser limitada a situações em que a avaliação de risco indique que o trabalho pode ser realizado com segurança e não se justifique a utilização de equipamento mais seguro.
2 - A utilização das técnicas de acesso e de posicionamento por meio de cordas deve respeitar as seguintes condições:
a) O sistema deve ter, pelo menos, a corda de trabalho a utilizar como meio de acesso, descida e sustentação, e a corda de segurança a utilizar como dispositivo de socorro, as quais devem ter pontos de fixação independentes;
b) O trabalhador deve utilizar arneses adequados através dos quais esteja ligado à corda de segurança;
c) A corda de trabalho deve estar equipada com um mecanismo seguro de subida e descida, bem como com um sistema autobloqueante que impeça a queda no caso de o trabalhador perder o controlo dos seus movimentos;
d) A corda de segurança deve estar equipada com um dispositivo móvel antiqueda que acompanhe as deslocações do trabalhador;
e) Em função da duração do trabalho ou de restrições de natureza ergonómica, determinadas na avaliação dos riscos, a corda de trabalho deve possuir um assento equipado com os acessórios adequados;
f) As ferramentas e outros acessórios utilizados pelo trabalhador devem estar ligados ao seu arnês ou assento, ou presos de forma adequada;
g) O trabalho deve ser corretamente programado e supervisionado de modo que o trabalhador possa ser imediatamente socorrido em caso de necessidade.
3 - Em situações excecionais em que se verifique que a utilização de uma segunda corda aumentaria os riscos, pode ser utilizada uma única corda desde que sejam tomadas as medidas adequadas para garantir a segurança do trabalhador.
Como trabalhador independente, competia ao falecido implementar, para si próprio, as medidas de segurança no trabalho necessárias, para evitar ou minimizar o mencionado risco de queda em altura.
E atenta a base factual apurada é possível concluir que, pelo menos, o falecido tinha condições para colocar/fixar uma corda de segurança nos ramos mais baixos do pinheiro (ou até no próprio ramo onde fixou a escada que suportou o seu peso) e podia ter usado um arnês, com um chicote apetrechado de um mosquetão preso no tronco da árvore ou em ramos mais robustos.
Este equipamento de proteção individual (EPI), que o falecido não estava a usar no trabalho que estava a executar em altura quando se deu o acidente, era apto a prevenir o risco de queda no solo, dado que permitia que o falecido tivesse ficado suspenso.
A escada utlizada pelo falecido é que não pode considerar-se um equipamento de proteção contra os riscos de queda em altura, para efeitos do Decreto-Lei n.º 50/2005.
Veja-se a foto n.º 2 que integra o “Relatório”.
Estamos a falar de uma escada que é composta por um ferro vertical, do qual saem alguns ferros, pouco compridos, na horizontal, que estão desencontrados e que servem para agarrar com as mãos e para assentar os pés, assumindo o varão central a forma de gancho na extremidade superior.
Ademais, da observação da foto n.º 1 constante do “Relatório”, parece que esta escada fica pendurada na árvore, pois não tem qualquer base de sustentação no solo.
Ora, é manifesta a instabilidade e inaptidão deste instrumento/ferramenta de trabalho para prevenir o risco de queda em altura inerente à atividade que estava a ser desenvolvida.
Face ao exposto, entendemos que a 1.ª instância decidiu corretamente quando declarou que o falecido violou normas de segurança estabelecidas na lei, sem qualquer causa justificativa, sendo evidente o nexo causal entre esse ato ilícito e a ocorrência do acidente.
E demonstrada esta realidade, o tribunal a quo apenas poderia concluir pela descaracterização do acidente ao abrigo do artigo 14.º, n.º 1, alínea a), 2.ª parte, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (LAT).[4]
Por outras palavras, o acidente ocorrido não é reparável, nos termos previstos pelo regime especial de acidentes de trabalho.
Em consequência, o recurso também não pode proceder, quanto à questão analisada.
Resta-nos, pois, concluir pela total improcedência do recurso, sendo as custas a suportar pela Apelante.
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VI. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.
Notifique.
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Évora, 15 de junho de 2023
Paula do Paço (Relatora)
Emília Ramos Costa (1.ª Adjunta)
Mário Branco Coelho (2.º Adjunto)

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[1] Relatora: Paula do Paço; 1.ª Adjunta: Emília Ramos Costa; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho
[2] Doravante, designado apenas por “Inquérito”.
[3] Doravante, designado apenas por “Relatório”
[4] Neste sentido, o Acórdão desta Secção Social de 12/09/2018, Proc. n.º 684/16.8T8STC.E2, acessível em www.dgsi.pt e o Acórdão de 05/12/2019, Proc. 350/18.0T8EVR.E1, que não encontrámos publicado.