Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2428/13.7TBPTM-A.E1
Relator: TOMÉ RAMIÃO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CHEQUE PRESCRITO
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
Data do Acordão: 02/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Prescrita a obrigação cartular incorporada no cheque ( art.º 52.º da L. U. C), este mantém a sua natureza de título executivo, enquanto documento particular assinado pelo devedor, nos termos do pretérito art.º 46.º /1, al. c) do C. P. Civil e atual art.º 703.º/1, al. c), desde que no requerimento executivo se mencionem os factos constitutivos da relação subjacente ou causal.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora

I- Relatório.
Por apenso à execução n.º 2428/13.7TBPTM, para pagamento de quantia certa, intentada pelo exequente AB contra a executada PB, esta deduziu oposição à execução mediante embargos, pedindo a extinção da instância executiva, invocando a inexistência do título executivo por prescrição dos cheques, a inexequibilidade do título executivo por falta de alegação dos factos relativos á relação subjacente à emissão dos cheques, a ilegitimidade da executada e a nulidade dos contratos celebrados no âmbito da relação jurídica subjacente.
Contestou a exequente pugnando pela improcedência dos embargos.
Foi proferido saneador sentença que julgou improcedente a oposição.
Desta sentença veio a oponente interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
A) Tendo o exequente apresentado um requerimento executivo com fundamento em cheques (enquanto títulos cambiários) como títulos executivos ao abrigo do art. 46.º n.º1, al. d) do CPC (anterior redação) e art. 29.º LUC, e estando tais cheques prescritos, é vedado ao Tribunal a quo transformar, oficiosamente e automaticamente, os cheques (como documento particular – meros quirógrafos) em títulos executivos ao abrigo do art. 46.º n.º1, al. c) do CPC (anterior redação).

B) Os cheques prescritos deixam de valer como título cambiário, perdendo as características que a autonomia, abstração e literalidade lhes conferiam, pelo que não poderão valer como título executivo ao abrigo do disposto no art. 46.º, n.º1, al. d) do CPC.

C) No requerimento executivo dos autos o exequente não apresenta os cheques como meros quirógrafos, isto é, não os apresenta como títulos executivos ao abrigo da alínea c) do n.º do art. 46.º CPC (ou 703.º, n.º 1, al. c) NCPC), mas sim como títulos com força executiva ao abrigo do disposto no art. 46.º n.º1, al. d) do CPC, ora provando-se que os cheques estão prescritos, não há título executivo válido, o que constitui uma exceção perentória, o que importa a absolvição da instância.

D) Mesmo por absurdo, se se julgar que a alteração oficiosa do título executivo pelo Tribunal a quo é legítima, para o cheque constituir título executivo ao abrigo do art. 46., n.º1 al. c) do CPC na versão anterior, ou seja, como mero quirógrafo, era fulcral que no título se indicasse a relação fundamental ou causal da emissão do próprio cheque (como documento), para que a executada pudesse conhecer essa causa em ordem a uma conveniente defesa.

E) Não pode Tribunal a quo julgar sanada a insuficiência da instância – falta de alegação pelo exequente da relação material subjacente – pela mera junção ao requerimento executivo de dois contratos, sem qualquer alegação concreta e detalhada dos factos por detrás da emissão daquele documento de reconhecimento de dívida, nomeadamente dizendo que os “cheques” emitido destinou-se v.g ao pagamento de qual dos dois contratos, a período de execução, que deve enumerar e descrever com pormenor.

F) A executada não é parte na relação material subjacente, sem prejuízo de ter assinado os cheques, e portanto, é parte ilegítima nos presentes autos, pois não traduzindo os cheques o reconhecimento de dívida, falta-lhe o interesse em contradizer.

G) Estando os cheques prescritos, os mesmos nunca poderão valer como título de câmbio, logo o Tribunal a quo não podia socorrer-se da norma do art. 11.º da LUC para concluir pela obrigação de pagamento e legitimidade nos presentes autos.

H) O cheque, enquanto mero quirógrafo, não tem força bastante para importar, por si só, a constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária. É, apenas, um meio de mobilização de fundos depositados pelo sacador em estabelecimento bancário e não importa, em si mesmo, a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias a favor de terceiro de quem é emitido, apenas servindo como um meio de prova da relação fundamental, que terá de ser demonstrada pelo credor na ação.

I) Esta separação da causa não permite concluir que, na base da emissão do cheque (negócio abstrato), se encontra uma relação fundamental em que o emitente é o devedor. Assim será na maioria dos casos, mas não é certo que assim seja sempre e não é assim no caso dos autos.

Por isso, nos negócios abstratos, a emissão do cheque não pode valer como declaração tácita de reconhecimento de dívida porque, de modo algum, essa emissão constitui facto que, com toda a probabilidade, revele uma tal manifestação de vontade (artigo 217º do Código Civil).


***
O exequente/recorrido contra-alegou, defendendo a manutenção da sentença recorrida e a improcedência do recurso.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
***
II – Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil em vigor, constata-se que as questões essenciais decidendas consistem em saber:
a) Se os cheques dados à execução constituem, ou não, títulos executivos e respetiva exequibilidade.
b) Se a executada é parte legítima.
***
III – Fundamentação fáctico-jurídica.
1. Matéria de facto.
A matéria de facto considerada pela 1.ª instância, e que não vem posta em causa, é a seguinte:
1. A executada assinou pelo próprio punho na parte identificada como “Assinaturas”, os seguintes cheques emitidos a favor do exequente e dados à execução:
a. Cheque n.º 7035923965, datado de 10 de outubro de 2010 no valor de 10.000,00€.
b. Cheque n.º 6135923966, datado de 30 de outubro de 2010 no valor de 11.180,00€.
c. Cheque n.º 2535923970, datado de 10 de novembro de 2010, no valor de 6.740,00€
2. Os cheques foram entregues ao exequente no âmbito do cumprimento dos contratos juntos com o requerimento executivo a fls. 09 a 11 dos autos principais e que aqui se dão por inteiramente reproduzidos.
***
E acrescenta-se, ainda, a seguinte factologia ( art.º 607.º/4, ex vi art.º 663.º/2 do C. P. Civil:
3. No requerimento executivo, relativamente aos factos, o exequente refere:
1º- A Executada subscreveu três cheques, cujo titular é o seu pai JC: um no valor de €10.000,00 (dez mil euros), datado de 10.10.2010, outro no valor €11.180,00 (onze mil cento e oitenta euros), datado de 30.10.2010 e outro no valor de €6.740,00 (seis mil setecentos e quarenta euros), datado de 10.11.2010, tendo sido tais cheques entregues à exequente - Cf. Doc. nº 1.
2º- Os referidos cheques foram entregues para pagamento dos preços devidos nos Contratos designados por "Contrato de Exploração de Apartamento" e "Contrato de Aluguer de Móveis", em que o referido JC subscreveu ambos, na qualidade de Fiador - Cf. Doc. nº2 e Doc. nº3.
3º- Os referidos cheques, apresentados a pagamento, vieram devolvidos do banco sacado, por motivo de falta de provisão.
4º-Apesar de interpelada para efetuar o pagamento da quantia no valor global de €27.920,00 (vinte e sete mil novecentos e vinte euros), a Executada, não procedeu a qualquer pagamento.
5º-Assim, encontra-se em dívida a quantia de €27.920,00 (vinte e sete mil novecentos e vinte euros), acrescida dos respetivos juros vencidos à taxa de juro legal de 4%, calculados desde a data dos cheques até 24.06.2013, data de entrada do presente requerimento executivo, no valor de €2.985,00 (dois mil novecentos e oitenta e cinco euros)”.
4. A recorrente subscreveu o contrato intitulado “CONTRATO DE EXPLORAÇÃO DE APARTAMENTO”, junto com o requerimento executivo, em 30 de dezembro de 2005, na qualidade de fiadora.
5. A recorrente subscreveu o contrato intitulado “CONTRATO DE ALUGUER DE MOVEIS”, junto com o requerimento executivo, em 30 de dezembro de 2005, na qualidade de fiadora.
***
2. O Direito.
1. Vejamos, pois, qual a resposta à questão colocada e que consiste apenas em saber se os cheques dados à execução são títulos executivos e se são exequíveis.
A ação executiva foi proposta em 26 junho de 2013, ou seja, em momento anterior à entrada em vigor da Lei 41/2013 de 26 de junho.
Assim, e face ao disposto no seu art.º 6.º/3, que estabelece que relativamente aos títulos executivos a nova lei só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor (1/9/2013), é aplicável em matéria de títulos executivos o regime previsto no pretérito C. P. Civil.
No âmbito do art.º 45.º/1 do pretérito regime do C. P. Civil é o título que determina o “fim e os limites da ação executiva”, e como fim possível, o seu n.º2 indica o “ pagamento de quantia certa”, a “entrega de coisa certa” ou a “prestação de facto, “quer positivo, quer negativo” – Eurico Lopes Cardoso, in “Manual da Ação Executiva”, pág. 31.
Idêntico regime passou a figurar no art.º 10.º, n.ºs 5 e 6 do atual C. P. Civil, sendo que o título, nas palavras de Lebre de Freitas, in “ A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013”, 6.ª Edição, pág. 43, “constitui a base da execução, por ele se determinando o fim e os limites da ação executiva, isto é, o tipo de ação e o seu objeto, assim como a legitimidade, ativa e passiva”.
Como refere Rui Pinto, in “Manual da Execução e Despejo”, Coimbra Editora, pág. 142/143, “deve considerar-se que o título executivo é um documento, i. é., a forma de representação de um facto jurídico, o documento pelo qual o requerente de realização coativa da prestação demonstra a aquisição de um direito a uma prestação, nos requisitos legalmente prescritos”.
Neste sentido se escreveu no Acórdão do STJ de 15/3/2007, Proc. N.º 07B683 (Salvador da Costa): “A relevância especial dos títulos executivos que resulta da lei deriva da segurança tida por suficiente da existência do direito substantivo cuja reparação se pretende efetivar por via da ação executiva.
O fundamento substantivo da ação executiva é, pois, a própria obrigação exequenda, constituindo o título executivo o seu instrumento documental legal de demonstração. Ele constitui, para fins executivos, condição da ação executiva e a prova legal da existência do direito de crédito nas suas vertentes fáctico-jurídicas (…)”.
Como já ensinava José Alberto dos Reis, in “Processo de Execução”, Vol. I. 3.ª Edição, pág. 147, a propósito dos requisitos substanciais do título executivo, “O segundo requisito não está expressamente previsto na lei, mas é uma exigência da própria natureza e função do título executivo. O título executivo pressupõe necessariamente a afirmação de um direito em benefício de uma pessoa e a constituição de uma obrigação a cargo de outra.”
O art.º 46.º, n.º1, do anterior CPC, fixava taxativamente as várias espécies de títulos executivos, nomeadamente “os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem confissão ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes…” – alínea c) ( nosso sublinhado).
Ao abrigo deste preceito legal, na sequência da revisão de 1995/96, os documentos particulares eram considerados títulos executivos, podiam servir de base à execução, sendo reconhecida a sua exequibilidade.
E assim era ainda que tal documento contivesse um reconhecimento da obrigação (como é o caso dos autos), como realça Lopes do Rego: “(…) estabelece-se expressamente que a força executiva tanto é conferida aos que incorporem o ato ou negócio constitutivo do débito exequendo, como aos de carácter puramente recognitivo, que envolvam mero reconhecimento pelo devedor de uma obrigação pré-existente»( [1]).
A propósito da natureza executiva dos documentos particulares, referia Abrantes Geraldes [2]: «A apresentação de um documento a que a lei reconhece exequibilidade deixa em segundo plano a substância da relação de crédito, erigindo como fator determinante aquilo que é formalmente revelado pela simples análise do título. Por isso, para efeitos de ação executiva, mais importante do que a efetividade do crédito é a sua formalização num documento legalmente idóneo. A mera existência de um direito de crédito será irrelevante para efeitos da ação executiva se não se encontrar consubstanciado num documento que, de acordo com a lei, seja dotado de exequibilidade.
O título executivo é, assim, condição necessária da ação executiva, já que sem título não pode ser instaurada ação executiva; se for instaurada, deve ser indeferida liminarmente; se o não for, pode ser objeto de oposição à execução.
Mas, por outro lado, o título executivo é também condição suficiente da ação executiva, uma vez que a sua apresentação faz presumir as características e os sujeitos da relação obrigacional, correspondendo à necessidade reclamada pelo processo executivo de se encontrar assegurada, com apreciável grau de probabilidade, a existência e o conteúdo da obrigação. Assim, a análise do título deve demonstrar, sem necessidade de outras indagações, tanto o fim como os limites da ação executiva”.
A recorrente não questiona a aptidão do cheque como título executivo e enquanto título de crédito, desde que observados os prazos estabelecidos na L.U.C ( Lei Uniforme Relativa ao Cheque), em particular a sua apresentação a pagamento no prazo de oito dias contados da data da sua emissão ( art.º 29.º), a documentação da recusa de pagamento por ato de protesto ou declaração (art. 40.º) efetuada no referido prazo de oito dias ou, caso a apresentação ocorra no último dia do prazo, no primeiro dia útil seguinte (art. 41.º), e que a ação contra o sacador seja instaurada no prazo de seis meses contados do termo do prazo de apresentação, sob pena de prescrição ( art.º 52.º).
Ora, no caso dos autos, isso não sucedeu, ou seja, mostram-se ultrapassados esses prazos, razão pela qual os cheques dados à execução, não sendo títulos cambiários ou de crédito, não constituem, enquanto tais, título executivo, ao abrigo da LUC, de acordo com o disposto na alínea d) do n.º1 do citado art.º 46.º do anterior C. P. Civil.
Todavia, tem sido admitida a sua exequibilidade como documentos quirografários da obrigação causal, não como títulos cambiários, desde que sejam alegados no requerimento executivo os factos constitutivos dessa obrigação ou constem do próprio documento, tal como se veio a consagrar expressamente no âmbito da alínea c) do n.º1 do art.º 703.º do atual C. P. Civil – cf. J. H. Delgado de Carvalho, “ Ação Executiva Para Pagamento de Quantia Certa”, 2.ª edição, Quid Juris, pág. 385 e segs.
Neste sentido se pronunciou o Acórdão do STJ, de 4/12/2007 (Mário Cruz) advertindo que “ Os Acórdãos mais recentes deste Tribunal têm vindo nessa linha, confirmando essa posição como a mais sustentável face à “ratio legis” e aos interesses em conflito: Manteve os cheques, letras, livranças e extrato de faturas como títulos executivos nos precisos termos em que as respetivas leis reguladoras lhos continuavam a permitir; e alargou-lhes a validade executiva como documento quirógrafo desde que nele invocada ou na petição executiva a relação causal, a menos que se para a relação causal fosse exigida qualquer formalidade especial ali não observada – o que de resto é uma observação também válida para os outros documentos, estando nessa situação em absoluta igualdade com os outros documentos em que se constituam ou reconheçam obrigações pecuniárias” .
Com efeito, a doutrina e a jurisprudência vinha admitindo que face à redação que foi introduzida na alínea c) do n.º1 do art.º 46.º do anterior C. P. Civil, pela reforma de 1995/1996, extinta a obrigação cartular incorporada na letra, livrança ou cheque, estes mantinham a sua natureza de título executivo, enquanto documento particular assinado pelo devedor, desde que neles se mencionasse a causa da relação jurídica subjacente ou que tal causa de pedir fosse invocada no requerimento executivo.
Reafirmando esta orientação cita-se, a título de exemplo, o Acórdão do S. T. J., de 29/04/2014 (Fernandes do Vale), disponível em www.dgsi.pt, no qual se enuncia a vasta jurisprudência e doutrina que a sustentam, aí se afirmando que “quer a jurisprudência deste Supremo, a qual vem sustentando, ao que cremos, “una voce”, que, embora extinta, por prescrição, a obrigação cambiária incorporada no cheque, este pode continuar a valer como título executivo, enquanto documento particular assinado pelo devedor, no quadro das relações credor originário/devedor originário e para execução da respetiva obrigação subjacente, causal ou fundamental, desde que, nesse caso, o exequente haja alegado, no requerimento executivo, essa obrigação (a relação causal) e que esta não constitua um negócio jurídico formal”.
Posição também defendida por Amâncio Ferreira, “Curso de Processo de Execução”, 11.ª edição, 2009, págs. 45/46, expressando: “Também o cheque não apresentado a pagamento no prazo de oito dias, nos termos do primeiro parágrafo do art.º 29.º da LUC, ou não acionado dentro do prazo de seis meses previsto no art.º 52.º da mesma Lei Uniforme, pode fundamentar uma execução, não como título cambiário, mas como documento particular respeitante à constituição ou reconhecimento de crédito que incorpora e causal da sua emissão, a menos que provenha de um negócio formal”.
No mesmo sentido se pronuncia o Prof. Lebre de Freitas, sublinhando: “Quando o título de crédito mencione a causa da relação jurídica subjacente, não se justifica nunca o estabelecimento de qualquer distinção entre o título prescrito e outro documento particular, enquanto ambos se reportem à relação jurídica subjacente
Quanto aos títulos de crédito prescritos dos quais não conste a causa da obrigação, tal como quanto a qualquer outro documento particular, nas mesmas condições, há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam emerja ou não dum negócio jurídico formal. No primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não poderá constituir título executivo (arts. 221º-1 CC e 223º-1 CC). No segundo caso, porém, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento da dívida (art. 458º-1 CC) levam a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada na petição executiva e poder ser impugnada pelo executado”; mas, se o exequente não a invocar, ainda que a título subsidiário, no requerimento executivo, não será possível fazê-lo na pendência do processo, após a verificação da prescrição da obrigação cartular e sem o acordo do executado (art. 272º), por tal implicar alteração da causa de pedir”.
A recorrente não discorda deste entendimento, como flui das suas conclusões, assentando a sua divergência apenas na circunstância de que o recorrido haja alegado essa relação causal no requerimento executivo.
Assim sendo, podemos concluir, tal como na decisão recorrida, que os cheques dados á execução valem como simples quirógrafos da obrigação causal ou fundamental que lhe está subjacente, sendo título executivo bastante, desde que se invoque no requerimento executivo os respetivos factos constitutivos dessa obrigação, da relação subjacente ou causal.
Ora, a verdade é que o exequente alegou no requerimento executivo a relação causal ou subjacente à emissão dos mencionados cheques.
Com efeito, aí afirmou que a executada subscreveu três cheques, cujo titular é o seu pai JC: um no valor de €10.000,00 (dez mil euros), datado de 10.10.2010, outro no valor €11.180,00 (onze mil cento e oitenta euros), datado de 30.10.2010 e outro no valor de €6.740,00 (seis mil setecentos e quarenta euros), datado de 10.11.2010, tendo sido tais cheques entregues à exequente para pagamento dos preços devidos nos Contratos designados por "Contrato de Exploração de Apartamento" e "Contrato de Aluguer de Móveis", em que o referido JC subscreveu ambos, na qualidade de fiador.
Assim, urge concluir que o exequente alegou os factos constitutivos da relação subjacente no seu requerimento executivo relativamente aos cheques prescritos e dados à execução.
A simples menção dessa causa ou fundamento no requerimento executivo é suficiente para esse efeito, ou seja, que os cheques foram subscritos pela executada e que lhe foram entregues para pagamento dos preços devidos nesses contratos, os quais foram também por ela assinados, na qualidade de fiadora, bem como representante legal da 2.ª Outorgante (… - Sociedade Imobiliária, Turística e Hoteleira Ld.ª) e de onde decorre a obrigação de pagamento anual de €19.000,00 pela exploração do apartamento e €9.431,00 pela exploração dos móveis, pagamentos a efetuar parcialmente nos meses de junho, agosto e setembro de cada ano, como decorre desses contratos.
Como se refere na decisão recorrida, “resulta assente que os cheques foram entregues ao exequente para pagamento das obrigações decorrentes dos contratos juntos aos autos, o que a executada acaba por assumir em sede de embargos quando invoca o vício da nulidade dos próprios contratos”.
Acresce que a recorrente não questiona a sua assinatura nos cheques, sua entrega ao exequente e subscrição dos contratos em causa na qualidade de fiadora e única responsável pelo pagamento das quantias (rendas) mencionadas nesses contratos, reconhecendo que nas referidas datas manifestou junto do exequente a intenção de pagar as quantias que no mesmo constam.
Decorrentemente, os citados cheques, enquanto documentos particulares, mostram-se assinados pela recorrente, importando o reconhecimento de dever as quantias pecuniárias aí inscritas, ou seja, foi devidamente individualizada a obrigação subjacente, causal ou fundamental – pagamento das rendas mencionadas nos contratos identificados.
Assim, não tem razão a recorrente ao afirmar que o exequente não fez “qualquer alegação concreta e detalhada dos factos por detrás da emissão daquele documento de reconhecimento de dívida”.

Resumindo, os cheques dados à execução constituem documentos particulares revestidos das características indicadas no artigo 46º, nº 1, alínea c) do C. P. Civil, ou seja, têm a natureza de título executivo e a necessária exequibilidade.

E deles decorre igualmente a legitimidade da recorrente para a execução, tendo presente o disposto no art.º 55.º/1 do C. P. Civil, pois que a execução foi instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor.
Improcede, pois, a apelação, não merecendo censura a decisão recorrida.
Vencida no recurso, suportará a recorrente as respetivas custas – Art.º 527.º/1 e 2 do C. P. Civil.

***
IV. Sumariando, nos termos do art.º 663.º/7 do C. P. C.
Prescrita a obrigação cartular incorporada no cheque ( art.º 52.º da L. U. C), este mantém a sua natureza de título executivo, enquanto documento particular assinado pelo devedor, nos termos do pretérito art.º 46.º /1, al. c) do C. P. Civil e atual art.º 703.º/1, al. c), desde que no requerimento executivo se mencionem os factos constitutivos da relação subjacente ou causal.
***
V. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e manter a decisão recorrida.
Custas da apelação pela recorrente.
Évora, 2017/02/23
Tomé Ramião
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro
__________________________________________________
[1] In “Comentários ao Código de Processo Civil”, Almedina, 1999, p. 69.
[2] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de Junho de 2007, proc. 5194/2007-7, in www.dgsi.pt