Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
90114/21.4YIPRT.E1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: INJUNÇÃO
ERRO NA FORMA DE PROCESSO
Data do Acordão: 12/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. A complexidade da causa de pedir do procedimento injuntivo não corresponde a um requisito legal que permita a invocação de erro na forma do processo, sobretudo quando, por via da oposição, a injunção se transmuta em processo comum.
II. Não se verifica erro na forma de processo quando a credora – companhia de seguros – apresenta requerimento injuntivo contra uma sociedade, tomadora do seguro de responsabilidade civil profissional, invocando o contrato de seguro, o contratualizado quanto ao acerto dos prémios de seguro, a falta de pagamento, o envio dos respetivos avisos de cobrança para pagamento dos valores acertados (capital e juros de mora vencidos) e a interpelação da tomadora para pagamento das quantias em dívida.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de ÉVORA

I – RELATÓRIO
LUSITÂNIA COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. intentou procedimento de injunção baseado em obrigação emergente de transação comercial contra BLACKELIT SECURITY UNIPESSOAL LD.ª pedindo a condenação desta a pagar-lhe €5.587,02[1] a título de capital e de €862,12 por juros de mora vencidos.

Para o efeito, alegou, em suma, que 07-07-2014, celebraram um contrato de seguro (ramo responsabilidade civil profissional), pelo prazo de um ano, prorrogável por igual período, titulado pela apólice n.º 5715043 [2], sendo a atividade segura a atividade de segurança privada.
A Ré (tomadora do seguro) obrigou-se a um prémio comercial anual, sujeito a uma taxa de ajuste de 2,30 por mil sobre o valor das retribuições constantes nas folhas de férias, tendo-se obrigado a enviar as folhas de férias, sendo devido no final de cada anuidade o pagamento dos correspondentes acertos.
Relativamente ao período de 01-07-2016 a 30-06-2017, a Autora emitiu o recibo n.º 541501, no montante de €1.924,70, vencido em 08-05-2019, correspondente ao acerto do prémio de seguro.
Relativamente ao período de 01-07-2017 a 31-08-2018, a Autora emitiu o recibo n.º 541502, no montante de €2.132,18, vencido em 12-01-2020, correspondente ao acerto do prémio de seguro.
Relativamente ao período de 01-07-2018 a 08-05-2019, a Autora emitiu o recibo n.º 544987, no montante de €1.530,14, vencido em 15-01-2020, correspondente ao acerto do prémio de seguro.
Apesar da Autora ter interpelado a Ré para que procedesse ao pagamento das quantias supra referidas, não efetuou o pagamento.

A Ré deduziu oposição à injunção, arguindo a ineptidão do requerimento injuntivo e, por impugnação, defendeu a improcedência do pedido.
Procedeu-se depois à distribuição do processo como ação declarativa comum.
Após ter sido notificada ao abrigo do artigo 3.º, n.º 3, do CPC, a Autora, para além de requerer a retificação do Requerimento Injuntivo, pronunciou-se sobre a arguida ineptidão do mesmo no sentido da sua não verificação.
Por despacho proferido em 24-02-2022 foi ordenada a notificação das partes para, querendo, se pronunciarem sobre a exceção de uso indevido da forma do processo.
O que vieram a fazer. A Ré afirmando que se verificava a referida exceção; a Autora negando a sua verificação.

Em 18-05-2022, foi proferida decisão, lendo-se na parte dispositiva:
«Em face do exposto e nos termos das disposições legais supracitadas, decide-se julgar procedente a exceção dilatória inominada de uso indevido do procedimento de injunção e, em consequência, absolve-se da instância o réu Blackelit Security Unipessoal Lda.»

Inconformada, apelou a Autora, pugnando pela revogação da sentença e pelo prosseguimento dos autos, apresentando as seguintes CONCLUSÕES[3]:
«(…)
27. A Recorrente reclama da Recorrida o pagamento da quantia de € 5.587,02 (cinco mil, quinhentos e oitenta e sete euros e dois cêntimos) referente a 3 prémios de ajuste emitidos no âmbito do contrato de seguro de responsabilidade civil profissional e que não foram pagos.
28. A presente ação insere-se, pois, no âmbito da responsabilidade civil contratual e estamos perante a figura jurídica do contrato de seguro.
29. Com o referido contrato, e por conta do risco assumido pela Recorrente, a Recorrida obrigou-se ao pagamento de um prémio anual fixo, ficando este sujeito a um ajuste, calculado no final da respetiva anuidade ou com a cessação do contrato, com base numa taxa de ajuste de 4,00 por mil, sobre o valor total as retribuições pagas pela Recorrida aos seus trabalhadores.
30. Em cumprimento com o acordado a Recorrente emitiu 3 recibos de ajuste, melhor identificados nos pontos[4]
31. E que, não obstante ter recebido os avisos de pagamento destes ajustes do prémio, a Recorrida não os pagou, tendo reclamado o seu pagamento através de requerimento de injunção;
32. Sendo, com o devido respeito, de repudiar a teoria da complexidade da questão!
33. O art. 1.º do Decreto-Lei n.º 269/98 de 01.09 estabelece a admissibilidade legal do procedimento especial de injunção para efectivação dos direitos de crédito de natureza pecuniária e emergentes de relações contratuais, estabelecendo um quadro legislativo que tem por escopo viabilizar ao credor a efectivação de obrigações em mora, ou seja, pretende assegurar-lhe a obtenção do cumprimento junto do devedor, ainda que tardio, das prestações acordadas.
34. É nosso entendimento que a referida norma deve ser interpretada de forma ampla, assim como compreendendo todas as prestações de pagar que o credor tenha direito de assacar da sua contraparte no âmbito de um contrato mercantil entre operadores económicos e em função da convenção estatuída entre as partes, desde que tais prestações sejam assacáveis do devedor, em todos os casos, a título de cumprimento do pacto, incluindo a prestação remuneratória principal e todas as demais que, a ela agregadas, desempenhem uma função de contra-prestação,
35. Assim, para além da prestação remuneratória típica à convenção que esteja em causa (v. g., o preço, o prémio, o aluguer, a renda, o juro remuneratório, etc.), o credor pode ainda reclamar outras prestações que com o cumprimento se relacionem, seja exemplo o reembolso de despesas em que haja incorrido (no mandato ou no depósito, por exemplo – cfr. arts. 1167.o, al. c) e 1196.o, ambos do CC) ou a restituição do capital cedido (v. g., no mútuo, para além do valor remuneratório acordado – cfr. art. 1142.º e 1145.º/1, ambos do CC).
36. Nesse pressuposto, podem ser reclamadas nos termos do Decreto-Lei n.º 269/98 de 01.09 todas as prestações pecuniárias pactuadas que constituam, no seu conjunto, o programa contratual definido, ou seja, todas as obrigações que, quando satisfeitas, permitam concluir que o contrato foi inteiramente cumprido (ainda que tardiamente) pelos sujeitos que nele intervieram
37. Para além disto, porém, o diploma confere ainda ao credor a possibilidade de exigir outros direitos por via do procedimento especial de injunção, estes de cunho indemnizatório, obedecendo ao mesmo critério: será necessário que o ressarcimento se relacione e seja cumulável com a exigência de cumprimento daquela tipologia de prestações.
38. De facto, decorre do art. 10.º/2, al. e) do Decreto-Lei n.º 269/98 de 01.09 que é ainda admitido ao credor reclamar pelas prestações associadas ao cumprimento a título ressarcitório, seja exemplo o juro moratório associado ao atraso no cumprimento da obrigação cujo cumprimento se exige.
39. Ora, os recibos de ajuste reclamados resultam do programa contratual definido: a Recorrente aceita a transferência do risco e a Recorrida paga os recetivos prémios, neste caso, e devido à forma de cálculo, denominado de prémio de ajuste,
40. Assim, derivando a obrigação pecuniária reclamada do (não) cumprimento do programa contratual, está enquadrada no espírito do DL 269/98 de 01.09
41. Concluindo, uma vez que os recibos em discussão são uma contrapartida contratual, estabelecida no âmbito do contrato de seguro celebrado entre as partes, por conta da transferência do risco, é forçoso concluir que podiam ter sido peticionados ao abrigo do Decreto-Lei n.º 269/98 de 01.09. pelo que deve ser revogada a decisão do Tribunal a quo, por uma outra que julgue adequada a forma do processo e determine o prosseguimento dos autos (…).»

A Requerida respondeu ao recurso, defendendo a improcedência da apelação e a confirmação da sentença.

II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos e incidências processuais com relevância para a apreciação do recurso constam do antecedente Relatório.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. O objeto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), consubstancia-se na seguinte questão:
Ocorre erro na forma do processo se uma companhia de seguros lança mão do requerimento injuntivo alegando a falta de pagamento dos valores referentes a acertos de prémios de seguros (capital e juros de mora vencidos) por parte da tomadora do contrato de seguro de responsabilidade civil profissional?

2. A sentença recorrida concluiu pela existência de erro na forma do processo, porquanto e, em síntese, considerou que o regime processual previsto no Decreto-Lei n.º 269/98, de 01-09, não é aplicável na situação retratada nestes autos, atenta a complexidade das questões suscitadas.
Assim, lê-se na sentença recorrida, na fundamentação dessa conclusão, o seguinte:
«Ora, no caso dos autos, atenta à causa de pedir e ao pedido formulado – condenação da ré no pagamento de uma soma de valores correspondentes a vários ajustes feitos no âmbito de um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, calculados, em cada ano civil ou com a cessação do contrato, por aplicação de uma determinada taxa a um conjunto de remunerações pagas pela ré e comunicadas mensalmente à autora em folhas de férias, temos que o crédito invocado não se configura como o mero cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente de contrato de valor não superior a € 15.000,00 (art.1º do diploma preambular do DL nº269/98), nem ao cumprimento de obrigações que emergem de transacções comerciais, isto é, aos pagamentos efectuados como remuneração de transações comerciais.
Não se trata, assim de uma mera transacção comercial, não estando em discussão o simples cumprimento de obrigações comerciais. O litígio consiste na discussão de uma matéria bem mais complexa referente a pagamentos (devidos ou não) de prémios variáveis em função de taxas de ajuste, cuja base contratual estipula múltiplas obrigações para ambas as partes, sobre o cumprimento das quais as partes estão em desacordo.
O processo simplificado que o legislador teve em vista com a criação do regime especial da injunção, com vista a facultar ao credor de forma célere a obtenção de um título executivo, em acções que normalmente se revestem de grande simplicidade, não é adequado a decidir litígios decorrentes de contratos que revestem alguma complexidade, como são as obrigações decorrentes de um contrato de seguro de responsabilidade profissional.
Nessa conformidade, a procedência de tal exceção dilatória inominada obsta ao conhecimento do mérito da causa e obsta ao prosseguimento da ação especial em que se transmutou o procedimento de injunção por não se mostrarem reunidos os pressupostos legalmente exigidos para a sua utilização.
Pelo que, pelos fundamentos aduzidos, julgamos que a exceção dilatória detetada, afetando o prosseguimento da ação especial em que se transmutou o procedimento de injunção, por não se mostrarem reunidos os pressupostos legalmente exigidos para a sua utilização, obsta ao conhecimento do mérito da causa e determina a absolvição do réu da instância, em conformidade com o disposto nos artigos 576.º, ns. º 1 e 2, 577.º e 578.º do CPC.»
O entendimento sufragado pelo Tribunal a quo não pode ser corroborado pelas razões que de seguida concretizamos.
Mas antes de entrarmos na análise dessa questão, previamente importa esclarecer que o erro na forma de processo não é tipificado na nossa lei processual civil como uma exceção dilatória.
«A forma de processo é o modo específico como o legislador definiu o modelo e os termos dos actos a praticar e dos trâmites a observar pelas partes e pelo tribunal com vista à aquisição adequada dos elementos de facto e de direito que permitem decidir uma determinada pretensão, podendo assim definir-se como a configuração da estrutura de actos e procedimentos a que deve obedecer a preparação e julgamento de determinado litígio.
Na nossa legislação processual civil o autor não tem liberdade para escolher a forma de processo que julgue melhor servir os seus interesses, pelo contrário, se a sua pretensão couber dentro do âmbito de aplicação de determinada forma de processo é essa e apenas essa a que pode seguir a sua acção.»[5]
O erro na forma do processo, abrangendo desde o CPC de 2013 todo o «meio processual», encontra-se previsto no artigo 193.º do CPC, na Secção VI do Título I, Livro II, dedicada à nulidade dos atos processuais.
O artigo 193.º determina «unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível da forma estabelecida na lei» (n.º 1); não devendo ser aproveitados «os atos já praticados, se do facto resultar uma diminuição das garantias do réu» (n.º 2); sendo que o «erro na qualificação utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados» (n.º 3).
Deste modo, o erro na forma do processo apenas gera a nulidade de todo o processado quando não for possível aproveitar qualquer ato praticado que tenha sido praticado na forma inadequada. Só nesse caso gera a nulidade de todo o processo e esta, sim, constituiu uma exceção dilatória de conhecimento oficioso determinante da absolvição do Réu da instância, por aplicação dos artigos 193.º, n.º 1, 576.º. n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea b), e 578.º do CPC.
Ao invés, se for possível o aproveitamento dos atos processuais praticados, de todos ou de parte deles, ocorre uma convolação do processado para a forma adequada, pelo que se verifica tão só uma mera irregularidade, sanável, como estipula o artigo 193.º, n.ºs 2 e 3, do CPC.
Basicamente, pode dizer-se que a nulidade decorrente do erro na forma de processo, só determina a extinção da instância nos casos em que os autos não possam ser aproveitados, sobretudo quando daí resultar uma diminuição das garantias do Réu, não suscetível de ser colmatada pelo recurso ao princípio da adequação e da gestão processual, nos termos previstos nos artigos 547.º e 6.º do CPC, levando-se sempre em conta um critério de equidade e de proporcionalidade na adoção dos procedimentos, em ordem a garantir o princípio do acesso ao direito à efetividade da tutela jurisdicional, consagrado constitucionalmente (artigo 20.º da CRP).
Porém, no caso, esta questão só ganha relevo se ocorrer efetivamente uma situação de erro no forma do processo, pelo que se passa a analisar a questão de fundo, que se traduz, como acima referido, em saber se ocorre erro na forma do processo se no requerimento injuntivo for apresentada como causa de pedir o incumprimento, por parte do tomador do seguro de responsabilidade civil, dos valores correspondentes aos acertos de prémios variáveis.
O Decreto-Lei n.º 269/98, de 01-09, aprovou o regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos e injunção.
A aplicação do procedimento de injunção aplica-se a duas situações, a saber: (i) quando estão em causa obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000,00; e (ii) obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10-05 (sendo este diploma aplicável a contratos celebrados após 01-07-2013, salvo as exceções previstas no artigo 14.º e 15.º deste diploma legal, e aos contratos anteriores, o Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17-02), como resulta da conjugação dos artigos 1.º do Decreto-Lei n.º 269/98 e artigo 7.º do Anexo a este diploma legal.
No caso em apreço, o procedimento de injunção tem na sua base uma obrigação emergente de transação comercial celebrada em 07-07-2014, ficando, assim, sob a alçada do citado Decreto-Lei n.º 63/2013.
Conforme estatui o artigo 7.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98 «Considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17/02.» (devendo a remissão para este diploma ser substituída pela remissão para o Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10-05- cfr. artigo 13.º, n.º 2, deste último diploma legal).
A «transação comercial» encontra-se definida no artigo 3.º, alínea b) do Decreto-Lei n.º 62/2013, como correspondendo a “uma transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinadas ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração».
Por sua vez, o artigo 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 62/2013, estipula que «O atraso no pagamento de transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito de recorrer à injunção, independentemente do valor em dívida», seguindo após a dedução de oposição ou a tramitação do processo comum ou a ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos conforme se verifiquem os requisitos do n.º 2 ou do n.º 4 do mesmo artigo 10.º
Assim, e no que ora releva, por força do artigo 10.º, n.ºs 1, 2, e 4, conjugado com o artigo 2.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 62/2013, atento o valor do pedido, a natureza comercial da transação em causa, o facto da mesma não envolver consumidores, tendo sido deduzida oposição, o requerimento injuntivo passou a seguir a tramitação da ação comum.
Entende, todavia, a decisão recorrida que existe erro na forma do processo por ter a demanda sido iniciada como procedimento injuntivo considerando dois tipos de argumentos: (i) a complexidade da causa de pedir por não estar apenas invocada uma mera transação comercial, mas também se são devidos os acertos dos prémios variáveis em função dos critérios estabelecidos no contrato de seguro em causa, o que implicará a análise do clausulado do referido contrato; (ii) a desadequação deste tipo de procedimento a litígios que não seja tidos como litígios de massa como é prefigurado pelo legislador em ordem a que o credor de forma célere obtenha um título executivo.
Começando por analisar este último argumento, é certo que o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 269/98 menciona que a preocupação do legislador foi a criação de um regime que desse resposta rápida e célere a litígios de «baixa densidade» para «reconhecimento e cobrança de dívidas por parte dos grandes utilizadores», em relação a obrigações pecuniárias emergentes de contratos que não excedam o valor da alçada dos tribunais de 1.ª instância, que muitas vezes não veem as ações contestadas.
Mas a verdade é que o articulado do diploma não restringiu, para além da limitação do valor, a sua aplicação a esse tipo de litígios, os chamados litígios de massa.
Pelo contrário, o diploma é abrangente na sua previsão, desde que estejam preenchidos os pressupostos da sua aplicação que se encontram plasmados no artigo 1.º do diploma e no artigo 7.º do anexo do diploma, permitindo, assim, que o credor lance mão do procedimento injuntivo independentemente de estarmos perante ditos litígios de massa.
Sendo certo que após a oposição, o procedimento transmuta-se e segue as formas assinaladas nos n.º 2 e 4 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 62/2013, permitindo, inclusivamente, que o juiz convide as partes a aperfeiçoar os articulados, dando aqui espaço ao funcionamento do princípio da adequação previsto no artigo 547.º do CPC, de modo a eliminar algumas restrições que possam decorrer do formulário injuntivo quanto à alegação da causa de pedir.
Razão pela qual, se pode equacionar como vem sendo amplamente acolhido pela jurisprudência, sendo disso exemplo o Acórdão da Relação do Porto de 15-12-2021, que transformada a injunção em processo comum, não se verifica, no âmbito deste o alegado erro na forma do processo.[6]
Por outro lado, não sendo de descurar que estamos perante um procedimento célere e simplificado sobretudo na forma de introdução em juízo e no campo dedicada à identificação das partes e termos do litígio (artigos 9.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 269/98), havendo oposição, já não lhe é aposta a fórmula executória (desvanecendo-se, assim, o argumento da celeridade na obtenção de um título executivo), e a tramitação do processo é regulada pelos artigos 3.º e 4.º do mesmo diploma, preceitos que regulam a tramitação da ação comum, destacando-se a realização de audiência de julgamento onde são apresentadas as provas, e, sendo indispensável para a boa decisão da causa, o juiz pode determinar a realização de diligências, incluindo a pericial, suspendendo o julgamento.
Nestes termos, e em face de tudo o que vem sendo dito, o argumento mencionado em (ii) não é adequado à conclusão alcançada pelo Tribunal a quo para fundamentar a ocorrência de erro na forma do processo.
Quanto ao argumento mencionado em (i), ou seja, a complexidade da causa de pedir e das questões suscitadas pela oposição (que determinam que seja analisado o clausulado no contrato de seguro), a jurisprudência tem analisado a questão e, consistentemente, tem considerado que a complexidade da causa não corresponde a um requisito legal que permita a invocação do mencionado erro na forma do processo, sobretudo quando por via da oposição a injunção se transmuta em processo comum.
E assim tem considerado em situações em que a causa de pedir se consubstancia em variados contratos, mormente, contratos de prestação de serviço, como contrato de empreitada[7], de prestação de serviço de advocacia[8], contrato de conta-corrente onde eram debitados prémios de seguros vencidos e fluxos financeiros[9], compra e venda de veículo automóvel[10], incumprimento de pagamento de prémios de seguros no âmbito do seguro automóvel[11], falta de pagamento de fornecimentos de água[12], cobrança de despesas suportados pelo SNS com assistência a lesado em acidente de viação[13], incumprimento de contrato de mediação imobiliária[14], etc.
De fora do procedimento injuntivo ficam, efetivamente, as situações excluídas pelo artigo 2.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do Decreto-Lei n.º 62/2013, ou seja, contratos celebrados com consumidores, os juros relativos a outros pagamentos que não os efetuados para remunerar transações comerciais e os pagamentos de indemenizações por responsabilidade civil, incluindo os efetuados por companhias de seguros.
Assim, foi o próprio legislador que identificou e antecipou a potencial inadequação do procedimento injuntivo a determinado tipo de litígios excluindo-se da esfera daquele procedimento.
Paralelamente, ao definir o conceito de transação comercial, ao excluir a sua aplicação aos consumidores e a certas fontes geradoras de obrigações, delimitou o âmbito de aplicação do procedimento injuntivo arredando, assim, interpretações mais restritivas ou mais amplas dos requisitos consagrados na lei, com apelo a conceitos indeterminados como seja o da complexidade da causa.
Consequentemente, a complexidade que advenha da causa de pedir ou, na maioria das vezes, da oposição, não é fundamento para se afirmar que existe erro na forma do processo.
Sublinhando-se que a aceitar-se entendimento contrário sempre teria de se colocar a questão do que seria para este efeito complexidade do processo, já que se trata de um conceito indeterminado que carece de preenchimento em face ao caso concreto com as inerentes dificuldades e insegurança jurídica que decorrem de múltiplas situações tendencialmente idênticas.
Ademais, se a complexidade fosse aferida por via da oposição, o demandado poderia provocar o erro na forma do processo alegando matéria impertinente (ou pior), o que evidencia a irrazoabilidade deste tipo de solução.
Nesse sentido, são muito ponderadas as palavras de PAULO DUARTE TEIXEIRA, quando afirma que «(…) o critério de aferição da propriedade ou impropriedade da forma de processo consiste em determinar se o pedido formulado se harmoniza com o fim para o qual foi estabelecida a forma processual empregue pelo autor. Nesta perspetiva, a determinação sobre se a forma de processo adequada à obrigação pecuniária escolhida pelo autor ou requerente se adequa, ou não, à sua pretensão diz respeito apenas com a análise da petição inicial no seu todo, e já não com a controvérsia que se venha a suscitar ao longo da tramitação do procedimento, quer com os factos trazidos pela defesa quer com outros que venham a ser adquiridos ao longo do processo por força da atividade das partes.»[15]
No caso presente, a Autora alegou a celebração com a Ré de um contrato de seguro de responsabilidade civil, no qual foram convencionados acertos do prémio de seguro, indicando a taxa de ajuste, o modo de cálculo dos valores acertados, as quantias liquidadas nos avisos, a sua correspondência a determinado período temporal, o não pagamento pela Ré, apesar das interpelações que lhe foram feitas, do capital em dívida e correspondentes juros vencidos, pedindo também o pagamento de juros vincendos, tudo como resulta do requerimento injuntivo e do requerimento retificativo do mesmo acima referido no Relatório deste acórdão.
Está, pois, em causa a efetivação de direitos de crédito de natureza pecuniária emergentes de relações contratuais comerciais, bem como os correspondentes juros de mora, cujo enquadramento fáctico-jurídico decorre da natureza do contrato celebrado, do respetivo clausulado e da natureza comercial da atividade desenvolvida pelas partes (excluindo-se, assim, a natureza de consumidores), pelo que não vislumbramos, salvo o devido respeito, que causa de pedir e o pedido não se enquadrem juridicamente nos pressupostos do processo de injunção por via do que dispõe o artigo 7.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 01-09, e artigos 2.º, n.º 1, e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 62/2003, de 10-05.
Nestes termos, e em face de tudo o que vem sendo dito, a decisão recorrida não pode vingar, impondo-se a sua revogação e o subsequente prosseguimento da normal tramitação dos autos.

3. Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da Apelada (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

IV- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, ordenando, consequentemente, que os autos prossigam a sua normal tramitação.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 15-12-2022
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
José Lúcio (1.º Adjunto)
Manuel Bargado (2.º Adjunto)

__________________________________________________
[1] Valor retificado através do Requerimento da Autora de 14-02-2022, alegando que peticionou no requerimento injuntivo, por erro, o pagamento do aviso de cobrança 534990, no valor de €327,90.
[2] Número retificado através do Requerimento da Autora de 14-02-2022.
[3] Que se reproduzem a partir da 27.ª à 41.ª, pois as anteriores apenas reproduzem o historial dos autos e tecem considerações irrelevantes sobre a questão a resolver, sendo que, na verdade, a sua prolixidade justificaria um convite ao aperfeiçoamento (cfr. artigo 639.º, n.ºs 1 e 3, do CPC), não se enveredando por essa via apenas por razões de celeridade.
[4] A Apelante não menciona os pontos, mas decorre do contexto da alegação que se reporta às conclusões 5 a 7 onde são mencionados os avisos de cobrança referenciados no Relatório deste Acórdão.
[5] Ac. RP, de 08-03-2019, proc. n.º 7829/17.9T8PRT.P1 (Aristides Rodrigues de Almeida), em www.dgsi.pt
[6] Proc. n.º 137748718.9YIPRT-P1 (Manuel Domingos Fernandes), em www.dgsi.pt
[7] Ac. RL, de 09-09-2021, proc. n.º 86941/19.0YIPRT.L1-2 (Arlindo Crua); Ac. RL, de 13-04-2021, proc. n.º 95316/19.0YIPRT.L1-7 (Diogo Ravara); Ac. RC, de 09-11-2021, proc. n.º 37724/19.0YIPRT.C1 (Falcão de Magalhães), todos disponíveis em www.dgsi.pt
[8] Ac. RE, de 28-04-2022, proc. n.º 16327/21.5YIPRT.E1, relatado pelo ora Relatora e subscrito pelo mesmo Coletivo, disponível em www.dgsi.pt- cfr. ademais a jurisprudência citado no mesmo.
[9] Ac. RG, de 16-11-2017, proc. n.º 68450/16.1YIPRT.G1 (Maria João Matos), disponível em www.dgsi.pt
[10] Ac. RG, de 30-01-2014, proc. n.º 284337/11.9YIPRT.G1 (Maria da Purificação Carvalho), disponível em www.dgsi.pt
[11] Ac. RP, de 06-01-2009, proc. n.º 0825946 (Carlos Moreira), disponível em www.dgsi.pt
[12] Ac. RP, de 15-12-2021, proc. n.º 137748/18.9YIPRT-P1 (Manuel Domingos Fernandes), disponível em www.dgsi.pt
[13] Ac. RE, de 10-03-2022, proc. n.º 29292/21.0YIPRT.E1 (José Lúcio); Ac. RC, de 17-05-2022, proc. n.º 15167/21.6YIPRT.C1(Moreira do Carmo), disponíveis em www.dgsi.pt
[14] Ac. RP, de 12-07-2017, proc. 89602/16.9YIPRT.P1 (Fernando Samões), disponível em www.dgsi.pt
[15] “Os pressupostos objetivos e subjetivos do procedimento de injunção”, in Revista Themis, VII, n.º 13, pp. 169-212.