Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1445/24.6T8PTM.E2
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: VALOR EXTRAPROCESSUAL DA PROVA
CASO JULGADO MATERIAL
MATÉRIA DE FACTO
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
Data do Acordão: 11/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Os factos considerados provados em decisões proferidas noutros processos não têm, só por si, qualquer valor extraprocessual, não lhes sendo atribuída força probatória em sede da decisão de facto a proferir noutro processo;
II - A factualidade julgada assente no âmbito de sentenças, transitadas em julgado, proferidas noutros processos judiciais, não poderá ser tida em conta como meio de prova da factualidade em apreciação nos presentes autos;
III - A força de caso julgado material das decisões judiciais não se estende à matéria de facto nelas julgada provada, de forma a impor-se em ações subsequentes; tal extensão contrariaria o regime do valor extraprocessual das provas estabelecido no n.º 1 do artigo 421.º do CPC.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1445/24.6T8PTM.E2
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Juízo Central Cível de Portimão


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório

(…), (…) e (…), melhor identificados nos autos, intentaram, a 06-05-2024, a presente ação declarativa, com processo comum, contra o ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo Ministério Público, alegando factualidade com base na qual, mediante invocação do disposto no artigo 15.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005, de 15-11, formularam o pedido seguinte: Reconhecer-se e declarar-se judicialmente que a propriedade do prédio urbano referido e identificado em 1 deste petitório e que se encontra inserido numa área da margem das águas do mar, já era privada antes de 22 de Março de 1868, e que assim se tem mantido, por via de sucessivas transmissões de direito privado, até ser adquirida pelos autores, ficando assim elidida a presunção juris tantum de dominialidade do referido prédio a favor do Estado Português.
O Estado Português, representado pelo Ministério Público, contestou, defendendo a improcedência do pedido formulado.
Por despacho de 16-10-2024, foi dispensada a audiência prévia e fixado o valor da ação, após o que se comunicou às partes o seguinte:
Não obstante a indicação de testemunhas pelas partes, notifique de que é intenção do Tribunal não vir a definir objeto do processo e fixar os temas de prova, assim como não designar audiência, em vista da natureza da ação e de a mesma depender de prova documental, a qual será oportunamente apreciada.
Caso as partes não prescindam da prova testemunhal, será designada audiência para inquirição das testemunhas indicadas. Caso prescindam, o que deve ser consignado expressamente, serão notificadas para alegações e serão depois os autos conclusos para sentença, com digitalização dos articulados nos termos habituais.
As partes vieram aos autos prescindir da inquirição das testemunhas arroladas, após o que apresentaram alegações escritas.
Por sentença de 20-01-2025, decidiu-se o seguinte:
Em face do exposto, julgo improcedente a ação e, em consequência, absolvo o ESTADO PORTUGUÊS do pedido.
Valor: o indicado, € 143.454,18.
Custas a cargo dos autores.
Registe e notifique.
Inconformados, os autores interpuseram recurso da sentença, o qual foi admitido.
Esta Relação, por decisão singular proferida pela ora relatora em 11-04-2025, anulou a decisão recorrida e ordenou a reabertura ou a realização da audiência final, quanto à matéria de facto alegada nos artigos 11º a 16º da petição inicial, podendo incidir sobre outros pontos de facto a fim de evitar contradições, em consequência do que se considerou prejudicada a apreciação da apelação interposta pelos autores.
Regressados os autos à 1ª instância e realizada a audiência final, foi proferida sentença em 29-06-2025, na qual se decidiu o seguinte:
Em face do exposto, julgo improcedente a ação e, em consequência, absolvo o ESTADO PORTUGUÊS do pedido.
Valor: o indicado, € 143.454,18.
Custas a cargo dos autores.
Registe e notifique.
Novamente inconformados, os autores interpuseram recurso desta decisão, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1. A sentença recorrida, tal como as sentenças proferidas e transitadas em julgado anteriormente, no âmbito dos processos n.ºs 2362/22.0T8PTM e 2932/22.6T8PTM, ambos do J1, Juízo Central Cível de Portimão, reconhecem e dão como assentes as confrontações do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o n.º (…), no qual tiveram origem os 3 prédios cujo reconhecimento do domínio privado se discute em cada um dos processos.
2. O prédio dos autos, isto é, o prédio actualmente correspondente ao artigo (…), bem como os correspondentes aos artigos (…) e (…), formavam, anteriormente, o prédio-mãe, como demonstram os docs. 8 e 9, juntos aos autos.
3. Resultando evidente que os 3 prédios (outrora um só) são contíguos, impondo-se, por isso, a alteração do ponto 40. da matéria dada como provada, no sentido de passar a constar que “o prédio inscrito sob o artigo (…) é contíguo ao artigo (…), e este ao artigo (…) – doc. 9”.
4. Face à prova carreada para os autos, deviam ainda ser adicionados os seguintes factos provados, a inserir entre os n.ºs 5 e 6 do elenco dos factos provados da douta sentença recorrida:
a) 6. As verbas 68 e 69 referidas na escritura de partilha por óbito de (…), lavrada em 8/7/1964, correspondem a prédios contíguos entre si, à estrema Norte/Sul, conforme descrição a fls. 35 e 36 da referida escritura de partilha;
b) 7. As referidas verbas correspondem à metade dos prédios adjudicada a (…), metade essa que com a passagem do cadastro passou a constituir o artigo n.º (…),, da secção (…), da freguesia de (…).
c) 8. Sendo a outra metade adjudicada a (…), a qual, com a passagem do cadastro passou a constituir o artigo n.º (…), da secção (…), da freguesia de … (posteriormente dividido dando origem aos artigos … e …).
d) 9. Momento em que deixaram de confrontar entre si no sentido Sul/Norte e passaram a confrontar no sentido Este/Oeste – vide doc. 9
5. As duas sentenças já transitadas em julgado, reconhecem que a documentação junta aos autos foi suficiente para demonstrar o curso total do trato sucessivo do imóvel desde antes de 1868 até à actualidade.
6. Até 1964, o prédio em causa nos presentes autos era o mesmo que se discutiu nas referidas duas acções, pelo que toda a documentação apresentada pelos A.A., ora Recorrentes, para prova da propriedade antes de 1868 até 1964, é a mesma apresentada nos processos cujas sentenças já reconheceram o domínio privado.
7. Assim, viola a douta sentença recorrida a autoridade de caso julgado quando impõe uma decisão diversa daquelas que foram tomadas no âmbito dos anteriores processos.
8. Entende-se que, não obstante não haver identidade de partes (o que não se impõe), há identidade das questões a decidir, porquanto em todas as acções, com os mesmos fundamentos, peticiona-se o reconhecimento da propriedade privada de prédios que tiveram origem no mesmo prédio-mãe, pelo que, até ao momento da divisão do prédio, ocorrida apenas em 1964, existe uma absoluta identidade da causa de pedir e do pedido, porquanto está em causa o domínio privado sobre o mesmo prédio.
9. Termos em que é absolutamente inaceitável, designadamente do ponto de vista da certeza e segurança jurídicas, que sobre os mesmos factos e perante a mesma prova, resultem decisões judiciais opostas.»
O Estado Português, representado pelo Ministério Público, apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
Face às conclusões das alegações dos recorrentes e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
- da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- da reapreciação do mérito da causa.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Decisão de facto

2.2.1. Factos considerados provados em 1ª instância:
1. Os autores são donos e legítimos possuidores do prédio misto, sito em Vale da (…), da freguesia de (…), concelho de Lagoa, composto de uma parte rústica com cultura arvense e mato, e duas partes urbanas, com a área total de 103.680,00 m2, a confrontar do norte com (…), do sul com o mar, do nascente com herdeiros de (…) e do poente com a estrada e (…) – (…) Turísticas, SA, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagoa sob o n.º (…) – (…), o qual se encontra atualmente inscrito na matriz predial rústica sob o artigo …, da Secção … – União das Freguesias de … e … (anterior artigo …, da Secção …, da freguesia de …) e na parte urbana sob os artigos (…) e (…), da União das Freguesias de … e … (os quais provêm, respetivamente, dos artigos … e …, da extinta freguesia de …), figurando no registo como titulares desde 24 de junho de 2011;
2. O Cadastro Geométrico da Propriedade Rústica ocorreu no concelho de Lagoa em 1986, não fazendo qualquer correspondência com a numeração anterior;
3. A aquisição do prédio supra, veio à posse dos A.A. por sucessão por morte de seus pais, (…) e (…), casados que foram no regime da comunhão geral de bens;
4. Por partilha da herança datada de 8 de julho de 1964, lavrada de fls. 13 verso, a fls. 18 do livro n.º 28 do Extinto Cartório Notarial de Monchique, por óbito (…), pai do referido (…) e avô dos aqui A.A., a … e … (pai dos A.A.) foi adjudicado, entre outros, o prédio identificado no documento complementar como n.º (…), prédio rústico no sítio do (…), Vale da (…), que consta de terras de semear e árvores, a confrontar do nascente com herdeiros de (…), do norte com herdeiros de (…), do poente com (…) e outros e do sul com o mar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o n.º (…) e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo (…);
5. 11. Da “Descrição dos Bens”, anexa à referida escritura de Partilha por morte de (…), consta a verba n.º (…), a qual é composta do “Prédio Misto no sítio das (…) ou (…), que consta de terras de semear, árvores de fruto, casas e cisterna, a confrontar do nascente e norte com herdeiros do (…) e outros, do poente com estrada e do sul com herdeiros de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o n.º (…), e inscrito nas respetivas matrizes prediais sob os artigos (…) e (…), rústicos, e (…), urbano (...)”;
6. O prédio descrito sob o n.º (…), a fls. 170 do Livro (…) da Conservatória do Registo Predial de Silves (verba 69), ficou inscrito a favor de (…), por óbito de sua mãe, (…), conforme consta da inscrição n.º (…), Ap. (…), de (…);
7. Em 1951 foi inutilizada a descrição n.º … (correspondente aos artigos … e …) com a menção de que se trata de repetição da descrição n.º (…) e que não tinha qualquer inscrição em vigor;
8. Em 9 de agosto de 1918 foi inscrita a aquisição a favor de (…) dos prédios descritos sob os n.ºs (…), (…), (…), (…), (…) e (…) e depois quanto aos mesmos prédios foram registados ónus (uma penhora e hipoteca, esta em 1932, depois levantada em 1937);
9. O mesmo prédio descrito então sob o n.º (…) foi declarado vender por (…) a (…) por escritura de 20 de outubro de 1937 que declarou ainda tê-lo adquirido por herança de sua mãe (…), em inventário orfanológico;
10. Foi instaurado o Processo de Inventário Orfanológico com o n.º 428/1918 – Maço n.º 27, que correu termos pelo Tribunal da Comarca de Portimão, em que é inventariada, (…) e Inventariado (…), falecidos em 19 de dezembro de 1917 e tendo a partilha sido homologada por sentença de 2 de julho de 1918, já transitada em julgado;
11. O prédio foi descrito nos referidos autos de inventário sob a verba n.º 37 da descrição de bens, onde pode ler-se: “Um prédio rústico no sítio das “…”, “…”, freguesia de …, que consta de terras de semear, figueiras, alfarrobeiras, casas de moradia, alpendrada e alpendre e confronta do nascente com ---, norte com (…), poente com (…) e outros, e sul com o mar”;
12. (…), também usava e era conhecida por (…) ou (…), faleceu no estado de casada com (…);
13. (…) era filha de (…) e de (…);
14. O casal (…) e (…) adquiriu por sucessão hereditária na sequência do óbito de (…), que ocorreu em 20/06/1914, tendo sido instaurado o competente processo de imposto sucessório a que coube o n.º (…), do ano de 1914, do Serviço de Finanças de Portimão;
15. Constando como única herdeira de sua mãe, a (…);
16. Um dos prédios adquiridos ficou descrito sob a verba n.º 7 da descrição de bens, onde pode ler-se “Um prédio rústico, no sítio das “(…)” ou “Vale de (…)” freguesia de (…), com figueiras, alfarrobeiras, terras de semear e casa para quinteiro, confina do nascente com (…), norte com a viúva de (…), poente com (…) e outros e do Sul com o Mar”;
17. (…) adquiriu património, por óbito de seu filho, (…), falecido a 21 de julho de 1903 no estado de solteiro, cfr. assento n.º (…), da Conservatória Registo Civil de Portimão;
18. (…), adquiriu património, por óbito de seu pai, (…), por escritura de Partilha datada de 22 de junho de 1903, lavrada de fls. 19 verso a fls. 37, do livro n.º (…), do Cartório Notarial de Lagoa, a cargo do notário (…);
19. Na qual pode ler-se que, para pagamento da sua legítima, foi-lhe adjudicada, “Uma fazenda no sítio das “(…)”, freguesia de (...), que se compõe de figueiras mais arvores, terras de semear moradia alpendrada armazém e cisterna que confina do Nascente com (…), Norte com herdeiros de (…), Poente com herdeiros de (…) e do Sul com o Mar”;
20. Mais refere a referida escritura que a adjudicada fazenda “compreende os prédios descritos na Conservatória respetiva com os n.os (…), (…) e (…)“;
21. Um prédio veio à posse do casal (…) e mulher (…), por sucessão por óbito de (…), falecida a 3 de Maio de 1877, por escritura de Partilha datada de 03/09/1877, exarada nos livros n.ºs 69 e 70 de fls. 46 verso a fls. 50 verso e de fls. 1 a 12 verso, respetivamente, do Cartório Notarial de Lagoa, a cargo do Notário (…);
22. O prédio adjudicado é descrito como “Uma Fazenda no sítio das (…) – freguesia de (…), que consta de terras de semear, árvores de fruto, casas de habitação e alpendre; que parte do Norte com fazendas de (…); nascente com fazendas deste e (…), do poente com fazenda de (…) e do Sul com o mar”;
23. O prédio n.º (…) da extinta Conservatória de Lagoa, é descrito como “uma fazenda, que se compõe de figueiras, amendoeiras, mais árvores de fruto e terras de semear com um Monte de 4 casas cobertas de telha. É situado no sítio das (…), freguesia de (…). Confina pelo Nascente e Norte com o prédio de (…), Poente com fazenda de (…), e do Sul com o mar”;
24. Segundo o averbamento n.º (…), do prédio (…), de 28 de outubro de 1873, ficou inscrito a favor de (…), viúva de (…), por compra a (…), (…) e (…);
25. Os prédios n.ºs (…) e (…), também da Extinta Conservatória de Lagoa, são descritos como “um quarto de fazenda, no sítio da (…) ou (…), freguesia de (…)”, e ficaram inscritos pela inscrição n.º (…), de 24 de março de 1874, a favor da referida (…), por compra a (…) e sua mulher (…);
26. O prédio n.º (…) foi vendido por (…), (…) e (…), titulada por escritura datada de 23 de julho de 1873, lavrada de folhas 47 a fls. 48 verso do Livro n.º (…), do Cartório Notarial de Lagoa a cargo do Tabelião (…);
27. Os prédios n.º (…) e (…) foram adquiridos a (…) e mulher (…), conforme consta da inscrição n.º (…), de 24 de março de 1874, do doc. 20;
28. O prédio n.º (…) é descrito como “… fazenda no sítio das (…), freguesia de (…), que consta de quatro casas, formando uma morada, figueiras e terras que confronta pelo Nascente e Norte com (…), Poente com (…) e Sul com Mar”;
29. Constando da Contribuição de Registo por título Oneroso n.º (…), anexo à referida escritura, que o prédio se encontra inscrito na matriz predial sob o artigo n.º (…);
30. (…) adquiriu a (…) e mulher (…), por escritura de compra e venda datada de 5 de dezembro de 1871, lavrada de fls. 7 verso a fls. 9 do livro n.º (…) do Cartório Notarial de Lagoa, a cargo do notário (…), uma Fazenda, no sítio das “(…)”, freguesia de (…), com um monte que consta de quatro casas e consta de figueiras e terras de semear que confina do Nascente e Norte com (…), Poente com (…) e Sul com o Mar;
31. Na contribuição por título oneroso n.º (…), anexo à referida escritura, refere “uma fazenda no sítio de Vale de (…), freguesia de (…), inscrita na matriz predial sob o n.º (…)”;
32. (…) e mulher, deram de arrendamento “uma fazenda no Sítio de Vale da (…), freguesia de (…), que consta de figueiras, alfarrobeiras e terras com moradia de quatro casas que confina do Nascente com (…) e (…), Norte com o dito (…), Poente com (…) e Sul com o mar” a (…) por escritura de Arrendamento datada de 10 de novembro de 1870, lavrada de fls. 21 verso a 22 verso do livro n.º (…), do Cartório Notarial de Lagoa a cargo do Tabelião (…);
33. (…) faleceu a 29 de maio de 1901, no estado de viúvo de (…), e era filho de (…) e (…), proprietários naturais das Quintas de (…), freguesia de (…), conforme Assento de óbito n.º (…), do Ano 1901, exarado a fls. 63 verso do livro de óbitos da freguesia de (…), concelho de Lagoa, ano 1901;
34. No Assento de Óbito do Pai, o referido (…), inscrito com o n.º (…), lavrado de fls. 5 a fls. 5 verso do livro de óbitos da freguesia de (…), concelho de Lagoa do ano de 1861, pode ler-se que “Aos 29 dias do mês de Junho do ano de 1861, (…) no Sítio da (…), desta freguesia de (…), (...) faleceu (...), de 93 anos de idade, viúvo de (...). Fez Testamento, sendo testamenteiro seu filho (…) e deixou 5 filhos de maioridade”;
35. Segundo o referido assento de óbito, (…), faleceu no Sítio da (…);
36. (…) adquiriu, por escritura de compra datada de 27 de novembro de 1866, lavrada de fls. 14 verso a fls. 15 verso do livro n.º (…), do Cartório Notarial de Lagoa, a cargo do notário (…), o prédio indicado como “fazenda no Sítio de Vale da (…), freguesia de (…), que consta de figueiras, alfarrobeiras, vinhas e mais árvores de fruto e terra de pão com uma casa e parte do Nascente com herdeiros de (…) da Quinta de (…), Norte com (…), Poente com (…) e Sul com o mar”;
37. À data da morte da esposa de (…), (…), em 1879, e conforme consta do respetivo processo de inventário, consta “um assentamento do monte no Sítio da (…), freguesia de (…), que consta de moradia com sete casas cobertas de telha, terras de semear, figueiras, amendoeiras, alfarrobeiras e mais árvores e vinha, confinando pelo Nascente com (…), pelo Norte com (…), pelo Poente com (…) e pelo Sul com o oceano Atlântico”;
38. (…) adquiriu a (…) e mulher (…) e a (…) e marido (…), por escritura de compra e venda datada de 2 de novembro de 1945, lavrada de fls. 87 verso a fls. 89 verso do livro n.º (…) do Cartório Notarial de Portimão, a cargo do Notário, (…), entre outros, o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o n.º (…), inscrito na matriz predial rústica no artigo (…) e na matriz predial urbana no artigo (…); e o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o n.º (…), inscrito na matriz predial rústica no artigo (…);
39. No âmbito dos processos judiciais que correram termos pelo Juízo Central Cível de Portimão com os n.ºs 2362/22.0T8PTM (J1) e 2932/22.6T8PTM (J1), já transitadas em julgado, foram proferidas as seguintes sentenças: reconhecimento da propriedade privada antes de 22 de março de 1868 sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagoa sob o n.º (…), inscrito na matriz sob o artigo (…), e sobre o prédio descrito na mesma Conservatória sob o n.º (…), inscrito na matriz sob o artigo (…);
40. Os prédios inscritos sob os artigos (…) e (…) são contíguos;
41. O prédio assinalado na imagem de fls. 287 verso está assinalado a roxo a crista do alcantil da arriba e, a amarelo, o limite da respetiva margem, com a largura de 50 metros, e assim ocupa uma parcela da margem das águas do mar;
42. Inexiste informação atinente à publicação de auto de delimitação do domínio público hídrico ou a processo administrativo;
43. Da “Descrição dos Bens”, anexa à referida escritura de Partilha por morte de … (de 8 de julho de 1964), consta a verba n.º 68, a qual é composta do “Prédio Misto no Sítio das (…) ou Vale da (…), que consta de terras de semear, árvores de fruto, casas e cisterna, a confrontar do Nascente e Norte com herdeiros do (…) e outros, do Poente com estrada e do Sul com herdeiros de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o n.º (…), e inscrito nas respetivas matrizes prediais sob os artigos (…) e (…), rústicos, e (…) urbano (...)”;
44. Mais consta da referida “Descrição dos Bens”, anexa à escritura de Partilha, a verba n.º 69, como “Prédio Rústico no Sítio do (…) ou Vale da (…), que consta de terras de semear e árvores, a confrontar do Nascente com herdeiros do (…), do Norte com herdeiros de (…), do Poente com (…) e outros e do Sul com o mar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o n.º (…) e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo (...)”;
45. Na estrema Norte/Sul, os prédios confrontam com outro que era de (…), ao tempo, com os respetivos herdeiros;
46.[1] Pela partilha de 1964, foi adjudicada a (…) e marido, além do mais, os direitos a metade indivisa das verbas n.º 68 e 69.

2.1.2. Factos considerados não provados em 1ª instância:
i) Que os prédios descritos sob os n.ºs (…) e (…) fossem contíguos;
ii) Que os prédios correspondam à metade dos prédios adjudicada a (…), metade essa que com a passagem do cadastro passou a constituir o artigo (…), da secção (…), da freguesia de (…);
iii) Que a metade adjudicada a (…), com a passagem do cadastro passou a constituir o artigo n.º (…), da secção (…), da freguesia de … (posteriormente dividido dando origem aos artigos … e …);
iv) Que estes prédios em particular tenham passado a confrontar no sentido Este / Oeste.

2.2. Apreciação do objeto do recurso

2.2.1. Impugnação da decisão relativa à matéria de facto
No recurso interposto, os autores põem em causa a decisão sobre a matéria de facto incluída na sentença recorrida, defendendo a modificação da redação do facto julgado provado sob o ponto 40 e o aditamento à matéria provada dos factos considerados não provados.
Sob a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto, dispõe o artigo 662.º do Código de Processo Civil, no seu n.º 1, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Está em causa, no caso presente, a reapreciação da decisão proferida pela 1.ª instância, relativa determinados pontos da matéria de facto, com vista a apurar se, face à prova produzida, os concretos factos indicados pelos recorrentes foram incorretamente julgados.
Os apelantes preconizam:
- o aditamento ao ponto 40 – com a redação: Os prédios inscritos sob os artigos (…) e (…) são contíguos – do facto de os prédios inscritos sob os artigos (…) e (…) também serem contíguos, defendendo seja atribuída a este ponto a redação seguinte: «O prédio inscrito sob o artigo (…) é contíguo ao artigo (…), e este ao artigo (…)»;
- se considere provada a factualidade tida por não provada, procedendo-se ao aditamento à matéria assente de quatro factos com a redação seguinte:
«6. As verbas 68 e 69 referidas na escritura de partilha por óbito de (…), lavrada em 08/07/1964, correspondem a prédios contíguos entre si, à estrema Norte/Sul, conforme descrição a fls. 35 e 36 da referida escritura de partilha;
7. As referidas verbas correspondem à metade dos prédios adjudicada a (…), metade essa que com a passagem do cadastro passou a constituir o artigo n.º (…), da secção (…), da freguesia de (…).
8. Sendo a outra metade adjudicada a (…), a qual, com a passagem do cadastro passou a constituir o artigo n.º (…), da secção (…), da freguesia de … (posteriormente dividido dando origem aos artigos 29 e 30).
9. Momento em que deixaram de confrontar entre si no sentido Sul/Norte e passaram a confrontar no sentido Este/Oeste – vide doc. 9».
Sustentam os apelantes que a factualidade julgada provada nas sentenças proferidas nos dois processos judiciais a que alude o ponto 39, conjugada com os factos tidos por assentes na sentença ora recorrida, impõe se modifique a redação do ponto 40 – dele se fazendo constar, não apenas que os prédios inscritos sob os artigos (…) e (…) são contíguos, mas também que o prédio inscrito sob o artigo (…) e o inscrito sob o artigo (…) são contíguos –, bem como se adite à factualidade assente os factos julgados não provados.
Defendem os apelantes que resulta da factualidade julgada provada nas decisões finais proferidas naqueles dois processos, que juntaram aos autos com a petição inicial como docs. 32 e 33, que os prédios a que respeita cada uma dessas ações têm as mesmas confrontações do prédio a que se reportam os presentes autos, tendo os três constituído um único prédio que veio a ser dividido, o que afirmam decorrer igualmente dos documentos que juntaram aos autos como docs. 8 e 9; concluem que tal impõe a modificação que preconizam seja introduzida ao ponto 40, consignando-se que o prédio que a respeitam os presentes autos é contíguo ao prédio inscrito sob o artigo (…), que por sua vez é contíguo ao inscrito sob o artigo (…), e o aditamento à matéria provada dos demais factos julgados não provados.
Os apelantes baseiam a peticionada modificação da decisão de facto na apreciação de factualidade julgada provada no âmbito das sentenças, transitadas em julgado, proferidas nas ações judiciais a que alude o ponto 39, isto é, das decisões finais proferidas nos processos que correram termos no Juízo Central Cível de Portimão sob os n.ºs 2362/22.0T8PTM e 2932/22.6T8PTM.
Porém, os factos considerados provados em decisões proferidas noutros processos não têm, só por si, qualquer valor extraprocessual, não lhes sendo atribuída força probatória em sede da decisão de facto a proferir noutro processo.
Sob a epígrafe Valor extraprocessual das provas, o artigo 421.º do CPC dispõe, no n.º 1, o seguinte: Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 355.º do Código Civil; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova.
Conforme decorre da respetiva redação, este preceito regula o valor extraprocessual dos meios de prova que elenca, permitindo a invocação num processo, em determinadas circunstâncias, de depoimentos e perícias produzidos noutro processo com audiência contraditória da parte. O artigo em apreciação não se reporta a factos considerados provados noutro processo, mas sim a determinados meios de prova aí produzidos, não atribuindo qualquer valor extraprocessual à decisão de facto constante da sentença proferida nesses autos.
Em anotação ao preceito, afirmam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 496) o seguinte: «Este preceito rege sobre a eficácia extraprocessual da prova (ou “prova emprestada”) e não sobre a eficácia extraprocessual dos factos tidos como provados».
Assim sendo, verifica-se que a factualidade julgada assente no âmbito das sentenças invocadas pelos apelantes, proferidas nos processos que correram termos no Juízo Central Cível de Portimão sob os n.ºs 2362/22.0T8PTM e 2932/22.6T8PTM, não poderá ser tida em conta como meio de prova da factualidade em apreciação nos presentes autos.
Face à alegação dos apelantes, impõe-se acrescentar que a força de caso julgado material das decisões judiciais não se estende à matéria de facto nelas julgada provada, isoladamente considerada, de forma a impor-se em ações subsequentes; tal extensão contrariaria o regime do valor extraprocessual das provas estabelecido no n.º 1 do supra citado artigo 421.º. Como tal, no âmbito da decisão relativa à matéria de facto, não está o juiz vinculado a juízos anteriormente formulados sobre tais factos em decisões anteriores, pelo que improcede a argumentação nesse sentido apresentada no recurso.
Aqui chegados, cumpre reapreciar os documentos juntos aos autos como docs. 8 e 9, averiguando se tais elementos probatórios impõem a alteração da decisão proferida quanto aos pontos de facto impugnados na apelação.
O documento junto com a petição inicial como doc. 8 consiste em certidão da escritura a que aludem os pontos 4 e 5 (bem como os pontos 43 e 44), outorgada a 08-07-1964, através da qual foi efetuada a partilha da herança aberta por óbito (…), avô dos autores. Consta do ponto 4 (e do ponto 44) que, nessa partilha, foi adjudicado ao pai dos autores e a sua irmã (…), entre outros, o prédio identificado no documento complementar sob o n.º 69.º, descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o n.º (…) e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo (…). Extrai-se, por seu turno, do ponto 5 (e do ponto 43) que consta do documento complementar anexo à mencionada escritura, entre outras, uma verba com o n.º 68, identificada nos termos seguintes: “Prédio Misto no Sítio das (…) ou Vale da (…), que consta de terras de semear, árvores de fruto, casas e cisterna, a confrontar do Nascente e Norte com herdeiros do (…) e outros, do Poente com estrada e do Sul com herdeiros de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o n.º (…), e inscrito nas respetivas matrizes prediais sob os artigos (…) e (…), rústicos, e (…) urbano (...)”.
Quanto ao documento junto aos autos como doc. 9, configura uma representação, plasmada em mapa cadastral, da posição assumida pelos autores nos autos, sem força probatória que permita para considerar demonstrados os factos em apreciação.
Analisados os documentos juntos aos autos como docs. 8 e 9, não se vislumbra que deles se extraiam elementos que permitam, com segurança, considerar assente que o prédio a que respeitam os presentes autos é contíguo ao prédio inscrito sob o artigo (…) ou qualquer dos demais pontos de facto tidos por não provados, sendo certo que os apelantes igualmente o não explicitam, cumprindo concluir que tais meios de prova não impõem a modificação de qualquer dos pontos de facto impugnados no recurso.
Improcede, assim, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

2.2.2. Reapreciação do mérito da causa
Com a presente ação, pretendem os autores obter, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005, de 15-11, o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre um prédio inserido numa área da margem das águas do mar – o prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagoa sob o n.º (…), localizado em Vale da (…), freguesia de (…), concelho de Lagoa, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), da Secção (…) e na matriz predial urbana sob os artigos (…) e (…) –, sustentando que o mesmo teve origem num prédio objeto de propriedade privada desde data anterior a 22 de março de 1868.
A 1ª instância considerou, na decisão recorrida, que a factualidade provada não permite concluir que o prédio em causa tenha sido objeto de transações entre privados em datas anteriores ao ano de 1964, nem que corresponda a prédios que se verificou terem sido transacionados entre privados em datas anteriores, pelo que julgou improcedente a ação.
Discordando da decisão proferida, os apelantes sustentam que a mesma desrespeita a autoridade do caso julgado decorrente das decisões proferidas nos processos que correram termos no Juízo Central Cível de Portimão sob os n.ºs 2362/22.0T8PTM e 2932/22.6T8PTM, defendendo que o decidido nesses processos impõe a procedência da pretensão formulada nos presentes autos.
Nas alegações de recurso, os apelantes afirmam que a sentença recorrida e as sentenças proferidas no âmbito dos processos n.ºs 2362/22.0T8PTM e 2932/22.6T8PTM do Juízo Central Cível de Portimão, transitadas em julgado, se reportam ao reconhecimento do domínio privado de prédios que tiveram origem no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o n.º (…); mais afirmam que as duas sentenças transitadas em julgado reconheceram que a documentação junta aos respetivos autos foi suficiente para demonstrar o curso total do trato sucessivo dos prédios a que se reportam desde antes de 1868 até à atualidade; acrescentam que até 1964, o prédio a que respeitam os presentes autos era o mesmo a que se reportam as duas referidas ações, cujas sentenças reconheceram o domínio privado dos prédios respetivos.
Afirmam os apelantes que, sendo peticionado o reconhecimento da propriedade privada de prédios que tiveram origem no mesmo prédio-mãe, o qual foi dividido em 1964, está em causa nas três ações o domínio privado sobre o mesmo prédio, bem como que tal não foi tido em conta na decisão recorrida, motivo pelo qual invoca o desrespeito da autoridade do caso julgado decorrente das decisões proferidas nos dois mencionados processos.
No entanto, a solução jurídica defendida pelos apelantes baseia-se em factualidade que não se encontra provada, designadamente no facto de o prédio em apreciação nos presentes autos e os prédios a que se reportam as duas invocadas decisões judiciais terem tido origem no mesmo prédio-mãe, o que não decorre da factualidade julgada provada.
Verificando que não se encontra provada a factualidade invocada pelos recorrentes para fundamentar a solução que defendem para o litígio, mostra-se prejudicada a apreciação da questão de direito suscitada com base em tal matéria de facto.
Não defendendo os apelantes qualquer alteração da decisão com fundamento em matéria de facto provada, mostra-se prejudicada a apreciação da questão de direito suscitada, por baseada em factualidade não provada.
Nesta conformidade, improcede totalmente a apelação.

Em conclusão: (…)


3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
Notifique.
Évora, 27-11-2025
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora)
Maria Domingas Simões (1ª Adjunta)
Cristina Dá Mesquita (2.ª Adjunta)



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[1] Procedeu-se à retificação de lapso detetado na numeração deste ponto na sentença recorrida.