Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3/20.9GBPTG-B.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: ANOMALIA PSÍQUICA
CAPACIDADE JUDICIÁRIA
INIMPUTABILIDADE EM RAZÃO DE ANOMALIA PSÍQUICA
INTERROGATÓRIO JUDICIAL DE ARGUIDO DETIDO
INTERNAMENTO PREVENTIVO
Data do Acordão: 03/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Sumário: I. A circunstância de um arguido se encontrar afetado de anomalia psíquica não significa, necessariamente, que seja incapaz de estar em juízo (incapacidade judiciária) e/ou de avaliar a ilicitude dos seus atos ou de se determinar de acordo com essa avaliação (inimputabilidade).
II. A capacidade judiciária configura um pressuposto processual (capacidade dirigida ao processo) e relaciona-se com as condições para o arguido exercer pessoalmente a sua defesa.
III. A imputabilidade configura uma questão material relacionada com a culpa (capacidade dirigida ao facto).
IV. Para aferir da (in)capacidade para estar em juízo e da (in)imputabilidade do arguido este deverá ser sujeito a perícia psiquiátrica em fase prévia à acusação
V. A incapacidade judiciária do arguido impede a sua sujeição a 1.º interrogatório de arguido detido ou a julgamento no âmbito penal. Já a inimputabilidade (artigo 20.º, n.º 1 do CP) ou imputabilidade diminuída (artigo 20.º, n.ºs 2 e 3 do CP) em razão da anomalia psíquica do arguido, não obstam à sujeição deste a 1.º interrogatório de arguido detido, com a aplicação da medida coativa de internamento preventivo em hospital psiquiátrico (artigo 202.º, n.º 2 do CPP), ou a sujeição a julgamento e aplicação de medida de segurança (artigo 91.º do CP).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
1. Da decisão
No Inquérito (Atos Jurisdicionais) n.º (…) da Comarca de (…) Juízo de (…), submetido a 1.º interrogatório de arguido detido, foi determinado que Ke… aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito às medidas de coação de termo de identidade e residência e internamento preventivo, artigos 191.º, 192.º, 193.º, 195.º, 196.º, 202.º, n.º 1, alínea a) e 204.º, alíneas a), b) e c) do CPP. Foi ainda determinada a emissão de mandados de condução do arguido à Clínica Psiquiátrica do Hospital Prisional de (…), ordenado o cumprimento do disposto no artigo 194.º, n.º 10, do CPP e comunicada a decisão ao Tribunal de Execução de Penas (artigo 138.º, n.º 3, do Código de Execução de Penas) e à DGRSP.

2. Do recurso
2.1. Das conclusões do arguido
Inconformado com a decisão o arguido interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1. Não há pressupostos de facto e de direito que justifiquem a aplicação da medida de coação de prisão preventiva ao ora recorrente.
2. Existem enormes e flagrantes divergências entre as declarações prestadas por todos os ofendidos, entre si, quando ouvidos pela PJ.
3. O recorrente censura os fortes indícios da prática de 5 crimes de abuso sexual de crianças, p.p. pelo artigo 171º, n.ºs 1 e 2, e de 5 crimes de actos sexuais com adolescentes, p.p. pelo artigo 173º, nº 1, todos do Código Penal e censura os perigos de continuação da actividade criminosa, o perigo de perturbação do inquérito, designadamente perigo para a aquisição e veracidade da prova e o perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas que o tribunal recorrido considerou estarem verificados.
4. Analisando a prova que existe, até ao momento, em fase de inquérito, que não é nenhuma, e que assenta somente em declarações dos menores, declarações essas completamente contraditórias entre si, podemos concluir que, assim, perante a inexistência de prova e de prova contraditória, com o devido respeito, assim será muito fácil qualquer cidadão em Portugal “ir” em prisão preventiva …
5. Existe insanável contradição, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 2 b) do art. 410.º do C.P.P., entre a inimputabilidade do arguido, que o despacho recorrido considera que este sofre de “anomalia psíquica” e a prova de que o mesmo praticou os factos correspondentes aos ilícitos típicos dos crimes de abuso sexual de crianças e de adolescentes sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
6. Termos em que o Tribunal recorrido violou as normas plasmadas nos art.ºs 127.º do C.P.P. e 342.º do C.C..
7. A Mm.ª Juíza não pode, não podia, submeter o arguido Ke… a 1º interrogatório de arguido detido com a dúvida que tinha (“por via da anomalia de que eventualmente sofra”) de que o arguido sofria de anomalia psíquica, sem previamente o ter submetido a perícia psiquiátrica.
8. O Tribunal a quo perante tão importante dúvida, sobre a capacidade ou incapacidade do arguido se poder defender, e poder exercer a sua defesa … avançou … e submeteu o arguido a 1º interrogatório de arguido detido, violando flagrantemente o seu direito constitucional de defesa, sem que ele se tenha apercebido do que quer que seja.
9. Ora, tendo em conta o que supra se reproduziu, das declarações do arguido, relativamente à sua incapacidade para se identificar, a Mm.ª Juíza tinha a obrigação legal de constatar, só por isso, da incapacidade do arguido para se poder defender, para poder compreender e entender os factos que lhe eram imputados, que estava incapaz de se identificar, que estava incapaz de entender, de perceber e de compreender os factos de que estavam indiciariamente apurados contra si, que estava incapaz de entender, de perceber e de compreender que tinha sido detido, que estava incapaz de entender, de perceber e de compreender que estava num tribunal, que estava incapaz de entender, de perceber e de compreender que estava numa sala de audiências, que estava incapaz de entender, de perceber e de compreender os direitos e deveres de arguido, que estava incapaz de entender, de perceber e de compreender o que é ser arguido, que estava incapaz de entender, de perceber e de compreender que tinha uma advogada oficiosa e para que esta “servia” e que estava incapaz de entender, de perceber e de compreender a medida de coação que lhe foi aplicada.
10. O arguido foi submetido a 1º interrogatório de arguido detido sem ter tido qualquer meio de se defender, devido à anomalia psíquica de que padece e que alias, é reconhecida na decisão judicial que lhe aplicou as medidas de coação.
11. Estando o arguido indiciado por crimes com molduras penais elevadas, tudo o supra exposto afectou as respectivas garantias constitucionais ocorrendo vício de que o Tribunal deve conhecer oficiosamente (artigos 207º e 18º, n. 1, CRP).
12. No caso dos autos, não existiu qualquer defesa no 1º interrogatório de arguido detido de xx/xx/xxxx, relativamente ao arguido, devido à sua anomalia psíquica.
13. O facto de o arguido ter tido defensora oficiosa, no 1º interrogatório de arguido detido, para sua defesa, não é suficiente.
14. É preciso que se perceba no processo, que haja actividade efetiva do advogado no sentido de assistir o acusado, que no caso sub judice inexistiu porque o arguido não conseguiu, devido à sua anomalia psíquica, transmitir o que quer que fosse à sua Ilustre Defensora Oficiosa que lhe foi nomeada.
15. Em casos como este, o processo deve ser anulado por total falta de defesa.
16. No 1º interrogatório de arguido detido de xx/xx/xxxx, o arguido estava totalmente indefeso, desorientado, sem perceber onde estava e porque ali estava, no Tribunal; pelo que o processo está eivado de nulidade absoluta.
17. Encontram-se, assim, violados os princípios do contraditório e da ampla defesa do arguido, garantido pela ordem constitucional.
18. O art. 202º nº 2 do CPP pressupõe que se mostre (ou que se demonstre) que o detido sofre de anomalia psíquica, sendo que a Senhora Juíza de Instrução Criminal não mandou averiguar tal dentro dos pressupostos da disposição legal citada.
19. O recorrente entende que dos elementos de prova constantes dos autos não é possível concluir-se pela indiciação dos factos que integram os elementos constitutivos, em autoria material e na forma consumada por parte do arguido, de 5 crimes de abuso sexual de crianças, p.p. pelo artigo 171º, n.ºs 1 e 2, e 5 crimes de actos sexuais com adolescentes, p.p. pelo artigo 173º, nº 1, todos do Código Penal.
20. Nas declarações para memória de xx/xx/xxxx Fi…, To…, Aco…, Fs… e Ma… não confirmaram as suas declarações, quando ouvidos pela Polícia Judiciária.
21. Apenas o ofendido Av… confirmou certos factos, mas com uma versão diferente do depoimento que prestou perante a PJ em xx/xx/xxxx.
22. Existem CONTRADIÇÕES entre os DEPOIMENTOS de TODOS os OFENDIDOS (de Coe…, de Av…, de To…, de Aco…, de Fi…, de Ma… e de Fs…).
23. Os factos constantes do “aditamento ao auto de notícia”, de fls. 171 a 173, não consubstanciam a prática de qualquer crime por parte do arguido.
24. Resulta de toda a prova produzida até ao momento (e é esta que por ora importa, para efeitos de aplicação da medida de coacção que foi aplicada ao arguido), designadamente pelas declarações dos menores, quando foram ouvidos como testemunhas, que estão eivadas de CONTRADIÇÕES, bem como pelas Declarações para Memória Futura de xx/xx/xxxx, que todos os ofendidos negam abusos sexuais por parte do ora recorrente, à excepção de Av…, este com uma versão diferente da que consta no seu auto de inquirição perante a PJ, pode-se CONCLUIR que não há indícios suficientes da prática, pelo arguido, dos factos que lhe são imputados.
25. As nove provas documentais que constam na decisão recorrida, identificadas sob o ponto C), de nada adiantam (são inócuas) para suportarem os factos como indiciariamente apurados contra o arguido.
26. Não há indícios (quanto mais fortes) que o ora recorrente cometeu os crimes em causa, atentas as enormes e flagrantes contradições dos ofendidos, logo não se lhe pode aplicar qual quer medida de coacção (à excepção do termo de identidade e residência), quanto mais a medida mais gravosa: a prisão preventiva.
27. Não se verifica o pressuposto de existência de perigo de continuação da actividade perigosa, no sentido de se aplicar ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva.
28. Não se verifica o pressuposto de perturbação grave da ordem pública e da tranquilidade públicas, no sentido de se aplicar ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva.
29. Não se verifica o pressuposto de perigo de perturbação do inquérito, designadamente perigo para a aquisição e veracidade da prova, no sentido de se aplicar ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva.
30. Decidindo o contrário, o despacho recorrido violou o disposto nas alíneas b) e c) do art. 204º e 191º e 193º, todos do CPP.
31. Assim, ao abrigo das disposições legais p.p. nomeadamente no art. 212º, nº 1, alínea c) e nº 4 do CPP, deve a medida de coacção de prisão preventiva ser revogada, e aplicar-se a medida de coação de apresentação periódica, semanalmente, no posto policial da área da sua residência e de afastamento dos ofendidos.
32. Decidindo o contrário, o despacho recorrido violou o disposto nas alíneas b) e c) do art. 204º e 191º e 193º, todos do CPP.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso (…)”.

2.2. Das contra-alegações do Ministério Público
Motivou o Ministério Público tendo apresentado as seguintes conclusões (transcrição):
Face a todo o exposto não deve o Douto Despacho da Mm.ª Juiz de Instrução Criminal merecer qualquer reparo, devendo o mesmo ser mantido na íntegra, e, em consequência, não deverá ser reconhecido provimento ao recurso interposto pelo arguido Ke…, aguardando o mesmo os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação de internamento preventivo, para além do termo de identidade e residência já prestado.”.

2.3. Do Parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se pela seguinte forma (transcrição):
“Depois de uma busca exaustiva quer da certidão eletrónica extraída do processo de inquérito, quer da cópia física do processo existente que constitui (este) processo de recurso a correr no tribunal da relação em que nos foi aberta a vista para emissão de parecer, dúvidas nos suscitam sobre a existência dos elementos necessários para a apreciação da capacidade jurídica e legitimidade do presente recurso que passamos, resumidamente a expor.
a) Na certidão eletrónica, certifica-se que vem acompanhada da sentença proferida no processo de interdição/inabilitação (…), em que foi nomeada tutora ao requerido D. Po… e protutor Mi…
b) No entanto, na certidão eletrónica não conseguimos localizar tal sentença…
c) Na inquirição durante o Inquérito Po… declara que foi nomeada tutora mas que deixou de o ser por o requerido não cumprir as suas orientações…
d) No processo físico existe uma sentença proferida no processo (…) relativo ao arguido no processo de inquérito e outro em que é referido que houve nomeação provisória e em se declara a inabilitação deste (e não a interdição) e se nomeia como tutor Ct… e protutor o tio Gr…
e) Por outro lado, não existe qualquer Assento de Nascimento do arguido, de onde por consulta dos averbamentos devidos se poderia perceber em que termos está limitado a sua capacidade para o exercício dos seus direitos civis e quem o pode representar e em que atos.
f) Ou seja concretizando, se pode recorrer por si ou só representado pela pessoa nomeada pelo tribunal e quem é essa pessoa e colocando em dúvida, em consequência, o próprio mandato a Advogado.
g) Na verdade, esta questão deve ser apreciada antes do objeto concreto do presente recurso e embora possa ser também tida em ponderação quanto às questões colocadas pelo recurso quer de (1) nulidade do despacho judicial quer quanto à prática do crime (dolo, culpa, eventual punibilidade) quer quanto (2) à aplicação da medida de coação de prisão preventiva.
*
Na verdade, o regime jurídico da interdição afetava toda a capacidade jurídica e judiciária enquanto a inabilitação afetava apenas a área patrimonial da pessoa.
Por outro lado, e em qualquer dos casos, este regime já deveria ser reapreciado nos termos da nova lei (do Maior Acompanhado) sobre a capacidade jurídica, sendo que pela equivalência que manda fazer da mesma se o arguido estava apenas inabilitado, tal afetaria apenas a sua capacidade patrimonial…
*
O tribunal a quo nomeou Defensor oficioso ao arguido.
Mas no presente caso não se trata de recurso apresentado por este em nome do arguido, mas de o arguido vir apresentar recurso representado por outra pessoa que diz que o arguido está inabilitado e que é o seu tutor, mandatando advogado.
Mas não junta nem do processo resulta que seja ele o curador, ou que este não alega esteja sido já legalmente substituído, impedido ou incapacitado de o poder representar.
Com os elementos existentes, não temos dúvidas que o nosso parecer iria no sentido da rejeição do recurso por falta de poderes para a representação legal do arguido.
No entanto, trata-se de uma questão em que há elementos vários para se concluir que existe afetação da capacidade psíquica (a quem o nosso Estado, através da lei interna quer de natureza civil quer depois penal e da legislação europeia e internacional estabelece regras especiais de proteção devido à sua vulnerabilidade) e dum processo em que foi aplicada a prisão preventiva que afeta por um direito essencial inerente ao ser humano pelo que entendemos que nem o Ministério Público nem o tribunal, deverá ter uma atitude meramente formal, encontrando-se pelo contrário obrigado a garantir o cumprimento da lei e a decidir sem dúvidas.
O in dúbio pro reo não tem aqui aplicação, porque é um principio de apreciação das provas da prática do crime…
Em resumo, por mais não julgarmos entender ser necessário para o entendimento do promovido:
a) Promovemos que se solicite ao tribunal a quo que diligencie a junção integral da sentença proferida no processo de inabilitação (…), relativa ao arguido, auto de juramento, devendo juntar ainda os termos posteriores daquele processo como auto de juramento, eventual substituição das pessoas que representam o arguido, falecimento ou outra informação relevante ou existentes em eventual processo apenso.
b) À cautela, se ordene à seção que junte certidão do Assento de nascimento do arguido para comparação do averbado.(…)”

2.4. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.
Nessa sequência o mandatário subscritor do recurso respondeu encontrar-se mandatado para representar o arguido e juntou documentação que comprovaria essa situação, a saber:
- A certidão da sentença proferida no processo (…) onde consta que, no ano de 2008, o arguido foi julgado inabilitado com efeitos desde a sua nascença, por padecer de anomalia psíquica que o impossibilitava de, sem supervisão de terceira pessoa, dispor ou onerar o seu património.
- A certidão de um despacho e de uma ata de reunião do Conselho de Família de onde resulta que no ano de (…) foi agendada diligência e nomeado e ajuramentado como tutor do arguido o Gr….
- A procuração assinada por Lé… a rogo do arguido Ke…, concedendo ao Sr. Advogado Dt… poderes para o representar o arguido em juízo e ratificando todo o processado desenvolvido pelo referido mandatário no processo de inquérito n.º (…) incluindo os autos de recurso penal n.º (…).
*
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Questões a examinar
Analisadas as conclusões de recurso as questões a conhecer são:
2.1. Apurar se o despacho judicial se encontra ferido de contradição insanável;
2.2. Se o arguido em função da sua anomalia psíquica viu violado o seu direito à defesa e ao contraditório;
2.3. Se o Tribunal ao avançar para a aplicação da medida de coação de internamento preventivo sem anteriormente realizar exame pericial ao arguido, atinente a aferir da (in)imputabilidade deste, tomou esta decisão de forma arbitrária;
2.4. Se estão ou não verificados fortes indícios da prática dos crimes por parte do arguido;
2.5. Se estão ou não verificados os perigos constantes das alíneas b) e c) do artigo 204.º do CPP
2.6. Se o arguido deve ser de imediato libertado e aplicada a medida de coação de apresentação periódica, semanalmente, no posto policial da área da residência e de afastamento dos ofendidos.

3. Apreciação
3.1. Da decisão recorrida
Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra decidido pela instância recorrida.
O Tribunal a quo considerou fortemente indiciados os seguintes factos (transcrição):
(…………..)
Da conjugação de todas estas circunstâncias supra descritas conclui, necessariamente, o Tribunal que se verifica a existência de perigo de continuação da actividade perigosa e de perturbação grave da ordem pública e da tranquilidade públicas, perigo de perturbação do inquérito, designadamente perigo para a aquisição e veracidade da prova, nos termos do artigo 204.º, alínea b) e c) do Código de Processo Penal.
Os artigos 191.º e 193.º do Código de Processo Penal, consagram os princípios da legalidade, tipicidade, necessidade, adequação e proporcionalidade, aquando da aplicação de medidas de coacção, prevendo o primeiro que «a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função das exigências de natureza cautelar, pelas medidas de coaccão e de garantia patrimonial previstas na lei», e o segundo que as medidas a aplicar em concreto devem ser «as necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e as sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas». Nessa senda, o n.º 2 do artigo 193.º, prevê, ainda, uma preferência, quando pertinente, por medidas de coaccão não privativas da liberdade.
Assim, dados os elementos constantes dos autos e já enunciados, a personalidade do arguido e a forte indiciação dos factos que lhe são imputados, afigura-se que se mostram reunidos os pressupostos, de necessidade, adequação e proporcionaldade às exigências cautelares do caso concreto, de aplicação ao arguido da medida de prisão preventiva.
Assim, a única medida de coacção que seria susceptível acautelar o perigo verificado seria a de prisão preventiva.
O Tribunal tem dúvidas quanto a extensão da anomalia psíquica de que padece o arguido, que se crê que o arguido constitui um verdadeiro perigo para a integridade física e desenvolvimento são dos ofendidos, sem que seja perceptível que o mesmo possa evitar tais comportamentos.
Dispõe o artigo 202.º, n.º 2 do Código de Processo Penal que: “Mostrando-se que o arguido a sujeitar a prisão preventiva sofre de anomalia psíquica, o juiz pode impor, ouvido o defensor e, sempre que possível, um familiar, que, enquanto a anomalia persistir, em vez da prisão tenha lugar internamento preventivo em hospital psiquiátrico ou outro estabelecimento análogo adequado, adoptando as cautelas necessárias para prevenir os perigos de fuga e de cometimento de novos crimes.”
Ora, temos por demonstrado que o arguido padece de uma anomalia psíquica, indiciariamente grave, não acidental e não auto-provocada que poderá determinar a declaração do arguido como inimputável perigoso e, por isso, que deva ser sujeito a “internamento preventivo”, isto é, a internamento preparatório do internamento compulsivo que lhe possa vir a ser aplicado nos termos dos artigos 91.º, 104.º e 105.º todos do Código Penal.
Constatando-se tal anomalia psíquica do arguido, que a Ilustre Defensora do mesmo manifestou a sua concordância com a sujeição daquele a internamento preventivo, não obstante pugnar por aplicação de medida de coacção distinta, não tendo sido possível ouvir familiares do arguido, desde logo Gr… reside em (…), atenta ainda a aparente vulnerabilidade do arguido, cumprindo com as exigências cautelares que se impõem, entendo ser suficiente, proporcional e adequada a sujeição do arguido, cumulativamente, às medidas de coacção de Termo de Identidade e Residência e de internamento preventivo na Clínica Psiquiátrica (…), tudo ao abrigo do disposto nos artigos 191.º a 196.º, 202.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 e 204.º, alíneas b) e c), todos do Código de Processo Penal.”.


3.2. Da apreciação da questão prévia suscitada pelo MP junto desta 2.ª instância e ainda do recurso interposto pelo arguido
O arguido interpôs recurso do despacho do Juiz de Instrução Criminal, datado de 16.12.2021, que lhe aplicou as medidas de coação de termo de identidade e residência e de internamento preventivo em hospital psiquiátrico.
Nele o recorrente suscita as questões assinaladas em II. ponto 2. deste Acórdão, que cumpre conhecer, não sem antes nos debruçarmos sobre a questão prévia invocada pela Sr.ª Procuradora Geral Adjunta. Faremos, ainda, uma breve referência à (in)capacidade para estar em juízo e à (in)imputabilidade no regime penal português, de molde a melhor compreender o alcance das questões suscitadas pelo arguido.

3.2.1. Questão prévia
A Sr.ª Procuradora Geral Adjunta sinalizou ter dúvidas quanto à regularidade da representação do mandato do Sr. Dr. … (advogado subscritor do recurso interposto da decisão proferida pela 1.ª instância), em função da falta de elementos documentais e por se desconhecer o alcance da sentença de inabilitação, porquanto esta só atribuiria ao curador poderes de representação para efeitos patrimoniais.
Na resposta dada pelo Ilustre advogado Dr. …, ao abrigo do artigo 417.º do CPP, este propugnou pela regularidade do mandato e juntou documentação, que comprovaria essa circunstância, a saber: a certidão da sentença que declarou o arguido inabilitado; a certidão da ata da reunião do Conselho de Família onde foi nomeado como curador do arguido Gr…; a procuração elaborada a rogo do arguido, por este não poder assinar, a favor de Ke…, e onde são conferidos poderes de representação ao Sr. Dr. … para o representar neste recurso bem como onde é ratificado todo o processado desenvolvido pelo referido advogado.
Ora face à junção da documentação referenciada resulta, por um lado, que Gr… foi nomeado curador do arguido. Por outro lado, o arguido a rogo (por não saber assinar) emitiu procuração a favor do Sr. Dr. … a ratificar todo o processado e a conceder-lhe poderes de representação na presente ação.
Daí, ainda que dúvidas existissem quanto ao alcance dos poderes conferidos ao curador pela sentença de inabilitação, tendo sido emitida a apontada procuração quaisquer eventuais questões suscitadas em relação à regularidade do mandato mostram-se necessariamente ultrapassadas, o que se declara.

3.2.2. Arguido afetado de anomalia psíquica
Mostra-se indiciariamente apurado no processo que o arguido se encontra afetado de anomalia psíquica.
A anomalia psíquica poderá afetar a capacidade do arguido para estar em juízo (capacidade judiciária) e/ou a capacidade de o agente avaliar a ilicitude dos seus atos e de se determinar de acordo com essa avaliação[2].
Enquanto a capacidade judiciária configura um pressuposto processual (capacidade dirigida ao processo) a imputabilidade configura uma questão material relacionada com a culpa (capacidade dirigida ao facto).
A capacidade do arguido para estar em juízo relaciona-se com estarem reunidas as condições para este exercer pessoalmente a sua defesa. Esta autodefesa não é colmatável com a simples nomeação de patrono oficioso e a sua presença em diligências como o interrogatório de arguido detido e da audiência de julgamento, pois a defesa do arguido é perspetivada em duas vertentes: a técnica e a pessoal. A primeira é cumprida pela representação do arguido através de defensor ou advogado e a segunda pela vontade do próprio agente e com o seu direito de se autodefender. Este direito abarca designadamente o de o arguido se remeter ao silêncio, o de contraditar as imputações através de declarações ou do oferecimento de provas, o de estar presente pessoalmente nos atos que lhe digam respeito, o assentir nas injunções ou regras de conduta propostas com eventual suspensão provisória do processo e o de consentir em ser realizado o julgamento na sua ausência.
Em síntese: o defensor e a defesa técnica desenvolvida por este não esgota toda a área de defesa do arguido, porquanto existe sempre um núcleo privativo do próprio agente que consiste no seu direito de autodefesa.
Distinta desta capacidade (judiciária) para estar em juízo é a capacidade de o arguido ao praticar um ato ilícito criminal ter discernimento para avaliar essa ilicitude e de se determinar com essa avaliação.
É no n.º 1 do artigo 20.º do CP que a lei rege a situação em que o agente com anomalia psíquica não consegue em absoluto avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação.
Já nos n.ºs 2 e 3 do artigo 20.º do CP o legislador plasmou as situações em que a capacidade de avaliação e autodeterminação do agente se encontra “sensivelmente diminuída”. No caso do n.º 2 em que o agente por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída, pode o julgador integrar essa situação na inimputabilidade do n.º 1. Por outras palavras numa situação de imputabilidade duvidosa (n.º 2) a lei permite que o juiz ficcione a inimputabilidade integrando a situação no regime do n.º 1. No n.º 3 do artigo 20.º do CP permite-se, ainda, a equiparação da “comprovada insensibilidade do agente às sanções penais” às situações previstas no n.º 2.
A propósito dos n.ºs 2 e 3 do artigo 20.º do CP refere o Juiz Conselheiro Maia Costa o seguinte: “Entendeu (…) o legislador que, nos casos mais graves, o tribunal deve poder optar (“pode ser declarado inimputável…”) entre a decisão de imputabilidade ou de inimputabilidade, ou seja, entre a aplicação de uma pena ou antes de uma medida de segurança, conforme faça ou não sentido censurar eticamente a conduta do agente (n.º 2), ou tentar (ainda) influenciar a sua conduta futura mediante a aplicação de uma pena (n.º 3).
Ou seja: os casos de “diminuição sensível da capacidade de avaliação” podem ser tratados como de inimputabilidade ou antes de imputabilidade (diminuída), de acordo com o juízo que o Tribunal faça sobre os pressupostos referidos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 20.º do CP.[3].
Se o arguido à data da prática do facto ilícito apresentar uma capacidade sensivelmente diminuída poderá ser considerado pelo Tribunal como inimputável (artigo 20.º, n.º 2 e 1 do CP), como imputável diminuído (artigo 20.º, n.º 2 do CP) ou como simplesmente imputável.
Sem prejuízo do referido o simples facto de um arguido se encontrar afetado de anomalia psíquica não significa necessariamente que seja incapaz de estar em juízo (incapacidade judiciária) e/ou de avaliar a ilicitude dos seus atos ou de se determinar de acordo com essa avaliação (inimputabilidade).
Assim, se o arguido tiver capacidade para estar em juízo, seja imputável ou inimputável, pode ser sujeito a 1.º interrogatório de arguido detido.
Para aferir da (in)capacidade para estar em juízo e da (in)imputabilidade do agente este deverá ser sujeito a perícia psiquiátrica em fase prévia à acusação.
Expostas estas considerações, analisemos as questões suscitadas pelo recorrente, seguindo de perto as alegações apresentadas pelo MP em 1.ª instância.

3.2.3. Da contradição insanável
O recorrente alega padecer de “anomalia psíquica, indiciariamente grave, não acidental e não auto provocada”. Essa condição poderá determinar a sua declaração como inimputável perigoso. Assim, tendo no Despacho judicial sido conduzido aos factos fortemente indiciados que “(…) o arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, ciente que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei” tal situação configura uma contradição insanável devendo ser determinada a sua imediata libertação.
Em primeiro lugar cumpre assinalar que o vício da contradição insanável, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b) do CPP é privativo da sentença e não tem aplicação ao despacho que aplica medida coativa ao arguido.
Sem prejuízo do referido cumpre assinalar que apesar de o artigo 20.º, n.º 1 do CP estabelecer que “É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação” tal não significa que todo aquele que padece de anomalia psíquica é inimputável.
Na verdade, como em 3.2.1. se deixou assinalado, o agente afetado de anomalia psíquica poderá ser imputável, conquanto no momento da prática do facto seja capaz de avaliar a ilicitude deste e de se determinar de acordo com essa avaliação.
Na fase processual do inquérito, tendo em consideração os elementos indiciários colhidos em articulação com os constantes dos pontos 26.º e 18.º a 20.º, ou seja, que o agente é inábil (não interdito) e que após as denuncias e audição das vítimas pela PJ deslocalizou a abordagem dos menores de sua casa (…) para local distinto e mais isolado (…), é possível considerar ter o arguido indiciariamente atuado de forma voluntária, livre e consciente, ciente de as suas condutas serem proibidas e punidas por lei.
A este propósito escreve MIGUEZ GARCIA “(…) Só nos casos de perturbações profundas da consciência (e só neles) é que o agente deve ser considerado incapaz de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação (…)”[4].
Assim, não é por o arguido padecer de uma anomalia psíquica que automaticamente se conclui que o mesmo não pôde, ou não conseguiu, avaliar a ilicitude da conduta por si assumida, ou determinar a sua vontade, funcionando, ao invés, como o ponto de partida do juízo normativo sobre a sua (in)imputabilidade, a aferir de acordo com os conhecimentos médicos, designadamente através de perícia ao arguido.
No momento processual em apreciação sem elementos que apontem noutro sentido, não pode ser afastada a consciência e a vontade ilícita do arguido na prática criminosa, atentos os factos do tipo objetivo indiciariamente apurados. Sem prejuízo de numa fase mais avançada do processo, em audiência de julgamento, se concluir de forma distinta da indiciariamente apurada.
Nestes termos, a decisão não merece qualquer censura por pretensa contradição insanável.

3.2.4. Da violação do direito à defesa e ao contraditório
O recorrente alega, também e em síntese, que em virtude da anomalia psíquica não entendeu o motivo da detenção, não percebeu os direitos que lhe assistiam, designadamente o direito ao silêncio, e não entendeu os elementos com suporte probatório carreados para os autos, indiciários dos crimes constantes do despacho de apresentação, e por tal ficou esvaziado totalmente o seu direito à defesa e ao contraditório com assento na Constituição da República Portuguesa. Para o efeito referenciou, nas motivações de recurso, inclusive, que o agente nem o próprio nome dos pais e a sua data de nascimento soube indicar.
O recorrente invoca, assim, que a anomalia psíquica que o afeta foi de molde a prejudicar a sua defesa pessoal, a sua capacidade judiciária, e por essa razão não deveria ter sido sujeito sequer a 1.º interrogatório de arguido detido.
Como já se deixou assinalado em 3.2.1. apesar de o arguido padecer de anomalia psíquica, tal circunstância não implica necessariamente a sua incapacidade para estar em juízo (capacidade judiciária).
Como é referido pelo MP o recorrente, aquando do início do interrogatório judicial de arguido detido, o agente sempre afirmou querer falar e prestar declarações, tendo inclusivamente a Mm.ª Juiz de Instrução lhe dito para parar – ainda antes das perguntas sobre a sua identificação pessoal, e de lhe comunicar os direitos, incluindo o direito ao silêncio – e, após lhe ser comunicado o motivo da detenção, os elementos do processo e, bem assim, a consequência legal se o mesmo prestasse declarações nessa diligência – possibilidade de leitura dessas declarações em sede de julgamento – o arguido mudou a sua postura, afirmando, que afinal já não queria prestar declarações. Tal postura oposta àquela inicialmente apresentada aponta para o arguido ter conhecimento e alcançado o sentido do que lhe foi comunicado.
Por outro lado, como também é assinalado pelo MP, o arguido estava representado por defensor, privou com o seu defensor antes da diligência, foi dado integral cumprimento ao n.º 4, do artigo 141.º do CPP, tendo o recorrente nessa sequência optado por se remeter ao silêncio e não prestar declarações sobre os factos.
Acresce que o próprio Tribunal a quo, tendo-lhe sido suscitada a questão da incapacidade judiciária do agente, em sede de 1.ª interrogatório de arguido detido, optou por prosseguir com a realização da diligência e fundamentou a sua decisão nos moldes constantes do despacho de fls. 62 e 63.
É verdade que o recorrente afirma que “a Mm.ª Juíza não podia submeter o arguido a 1.º interrogatório de arguido detido com a dúvida que tinha de que o arguido sofria de anomalia psíquica (…)”.
O Tribunal a quo, todavia, sabia que o arguido padecia de anomalia psíquica, e entendeu que da decisão civil que o julgou inabilitado, e não interdito[5], não resultava que o agente se mostrasse “incapaz de representar racionalmente os seus interesses, exercer os seus direitos e de conduzir a sua defesa nos (…) autos” (cf. despacho de fls. 63).
Acresce que a compreensão manifestada em sede de interrogatório, após o cumprimento do n.º 4, do artigo 141.º, da consequência legal de prestar declarações, como assinala o MP, também aponta indiciariamente para a circunstância de o arguido ter capacidade para estar em juízo.
Assim, os factos indiciários recolhidos e a circunstância de o arguido ter sido inibido não deveriam obstar à realização de primeiro interrogatório judicial de arguido detido. A aplicação de qualquer medida de coação para além do Termo de Identidade e Residência depende da realização desta diligência e da intervenção do Juiz de Instrução Criminal. É o próprio legislador a admitir a aplicação da medida de coação de internamento preventivo em substituição da medida de coação de prisão preventiva quando o arguido padece de anomalia psíquica (artigo 202.º, n.º 2 do CPP).
Ora, na perspetiva do recorrente sempre que o agente padecesse de anomalia psíquica ficaria vedada a aplicação desta medida de coação substitutiva, pois ab initio nunca se poderia dar início à diligência, o que é afastado expressamente pelo artigo 202.º, n.º 2 do CPP.
Encontrando o arguido para além de afetado com anomalia psíquica numa situação de evidente incapacidade para estar em juízo (ex: em estado de coma após a comissão dos factos; hospitalizado nos cuidados intensivos) o 1.º interrogatório de arguido detido não poderia ser realizado. Nessas situações o prosseguimento do inquérito, realizando-se todas as diligências probatórias cuja participação do arguido não fosse necessária, seria o caminho adequado, sendo depois suspenso até o agente deixar de se encontrar na situação de incapacidade judiciária transitória[6], o que não se revelou no caso.


3.2.5. Da tomada de decisão arbitrária por parte do Tribunal a quo
De igual forma alega o recorrente ter o despacho sido proferido de forma arbitrária, por não ter sido precedido de perícia psiquiátrica ao arguido nos termos do artigo 151.º do CPP.
A este propósito cumpre assinalar que a Mm.ª Juiz de Instrução Criminal, para a aplicação da medida de coação de internamento preventivo, teve em consideração o disposto no artigo 202.º, n.º 2 do CPP que estabelece o seguinte:
“Mostrando-se que o arguido a sujeitar a prisão preventiva sofre de anomalia psíquica, o juiz pode impor, ouvido o defensor (…) que, enquanto a anomalia persistir, em vez da prisão tenha lugar internamento preventivo (…)”.
Da leitura do normativo referenciado resulta que para a aplicação da medida coativa apenas tem de estar indiciariamente apurado que o arguido com elevada probabilidade sofre de anomalia psíquica. A norma não exige a prévia interdição ou inabilitação do arguido, a declaração de imputabilidade ou inimputabilidade diminuída ou a existência de exame psiquiátrico anterior ao interrogatório, apenas exige a razoável probabilidade de o arguido sofrer de anomalia psíquica.
Neste sentido escreve FERNANDO GAMA LOBO, “(…) verificado, ainda que indiciariamente pelo Juiz, que o arguido, alegado autor de um crime, sofre de anomalia psíquica, pode este, sem prejuízo de exames psiquiátricos posteriores, substituir a prisão preventiva que em situação normal lhe seria aplicada, por um internamento preventivo em hospital psiquiátrico capaz de garantir a vigilância do arguido[7].
O MP assinalou nas contra-alegações de recurso que anteriormente ao “1.º interrogatório judicial de arguido detido” não foi realizada perícia ao agente, embora esta já tivesse sido determinada, mas não cumprida atempadamente. Por outro lado, é referenciado pelo Magistrado do Ministério Público que, para além de o arguido através do seu discurso aparentar sofrer de anomalia psíquica, consta do processo uma certidão da ação de inabilitação que correu termos em benefício do arguido de onde resulta que este padece de anomalia psíquica não acidental e não auto provocada.
Todas essas circunstâncias aliadas ao preenchimento dos pressupostos da aplicação da medida de coação de prisão preventiva legitimaram o tribunal a aplicar ao arguido a medida de coação de internamento preventivo cautelar.
O tribunal desta forma ao invés de submeter o arguido a prisão preventiva num estabelecimento prisional e prejudicial para a condição que aparenta deter, tendo em consideração a sua condição de anomalia psíquica conhecida e atestada por decisão judicial cível determinou o seu internamento em estabelecimento adequado a poder beneficiar de tratamento e da segurança necessária à sua doença mental.
Como já se salientou, o facto de o agente padecer de debilidade mental não resulta automaticamente que esteja afetado de inimputabilidade ou de estar vedada a aplicação de uma medida coativa ou de segurança. Tal como não é a circunstância de ser inimputável que é impeditiva de ser julgado e de lhe ser aplicada, nessa sede, uma medida de segurança (embora não uma pena de prisão), conforme resulta do artigo 91.º do CP.
Desta forma, não merece censura a decisão determinativa da medida de coação de internamento preventivo em detrimento da medida de coação de prisão preventiva.

3.2.6. Ausência de fortes indícios da prática dos crimes
Diz o recorrente existirem contradições entre o depoimento prestado pelas vítimas aquando da tomada de declarações, designadamente:
(………………………………)
Tais circunstâncias, justificam as pontuais discrepâncias nos depoimentos prestados, embora não se suscitem dúvidas de os factos indiciados terem ocorrido da forma descrita, até pela forma como os jovens descreveram a casa do arguido, local onde os contactos de natureza sexual ocorreram (sexo oral e masturbação) e a forma como o arguido e os jovens se posicionavam quando eram masturbados ou colocavam os seus pénis na boca do agente até ejacularem.
Numa ponderação global, resultam fortes indícios da prática dos crimes pelo arguido e de os factos, dados como fortemente indiciados no despacho recorrido, terem ocorrido da forma descrita. Por resultarem fortes indícios, importa por isso atentar nos perigos elencados no artigo 204.º do CPP e cuja verificação foi colocada em causa pelo recorrente.

3.2.7. Ausência dos perigos descritos nas alíneas a), b) e c) do artigo 204.º do CPP
No referente aos perigos decorrentes do artigo 204.º do CPP o recorrente afirma não se verificarem em concreto os perigos de: a) continuação da atividade criminosa; b) de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas; c) perturbação do inquérito, designadamente perigo para a aquisição e veracidade da prova. Analisemos os argumentos utilizados pelo arguido e a decisão proferida.
a) Perigo de continuação da atividade criminosa
(………………………………)
c) Perigo de perturbação do inquérito, designadamente perigo para a aquisição e veracidade da prova
(………………………………)
Face ao exposto, também este perigo se verifica em concreto, sendo de manter na integra a decisão proferida.

III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Nega-se provimento ao recurso interposto e em consequência, mantém-se na íntegra, a decisão recorrida devendo o arguido aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação de internamento preventivo, para além do termo de identidade e residência.
2. Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (artigos 513.º, n.ºs 1 e 3 e 514.º, n.ºs 1 do CPP e artigo 8.º, n.º 9 e tabela III anexa, do Código das Custas Processuais).
Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelas signatárias.
Évora, 22 de março de 2022.
Beatriz Marques Borges - Relatora
Maria Clara Figueiredo
Gilberto da Cunha

__________________________________________________
[1] Certidão de nascimento
[2] Sobre o tema cf. ALBERGARIA, Pedro Soares – “Anomalia Psíquica e Capacidade do Arguido Para Estar em Juízo”. Revista Julgar, n.º 1 (2007). P. 173-182. Disponível para consulta em http://julgar.pt/anomalia-psiquica-e-capacidade-do-arguido-para-estar-em-juizo/.
[3] Acórdão do STJ de 3.7.2014, proferido no P. 354/12.6GASXL.L1.S1 disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jstj.
[4] GARCIA, Miguez -“O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal”. 2.º edição, Almedina, 2012, pág. 444.
[5] Como é assinalado pelo despacho judicial proferido pelo Juiz de instrução antes de determinar a audição do arguido, e como assinalado pelo MP, no antigo regime a inabilitação e a interdição, não se confundiam entre si. A inabilitação era decretada quando a interdição não se justificasse, por esta ser mais intrusiva na esfera de autonomia da pessoa, assemelhando-se, a interdição, ao que hoje o regime do maior acompanhado prevê como a representação geral. A inabilitação era, por isso, aplicada aos portadores de anomalia psíquica, mas que ainda assim conservariam um núcleo imprescindível de autonomia, ou seja, aos casos menos severos de anomalia psíquica em que a pessoa, apesar da sua condição, revelava nalgumas tarefas ser autónoma e lúcida – pelo menos quanto às tarefas básicas do dia-a-dia.
[6] Cf. ALBERGARIA, Pedro Soares ob. cit. p. 180.
[7] GAMA LOBO, FERNANDO, in “Código de Processo Penal anotado”, 3.ª edição, Almedina, 2019, páginas 417 e 418.