Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
953/17.0T8PTM.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
TITULARIDADE
INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS
MONTANTE DA INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 12/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - Atento o caráter doloso da conduta do réu, a elevada ilicitude dessa mesma conduta, visto tratar-se de um crime de abuso sexual de uma menor, a instabilidade emocional que a situação causou à mesma que se tornou uma criança triste, sensível e introvertida, passando a ter choro fácil, os sentimentos de repulsa, de vergonha e de humilhação que sentiu na sequência da conduta do réu, e o profundo desgosto que sofreu e ainda sofre, afigura-se adequada e equitativa a indemnização de € 16.000,00 fixada na sentença, a título de danos não patrimoniais.
II - A mãe da referida menor não tem direito a ser indemnizada por danos não patrimoniais, considerando que o nº 4 do artigo 496º do Código Civil limita aos casos de morte da vítima a indemnizabilidade de tais danos, e não ter aplicação ao presente caso a jurisprudência fixada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2014, de 09.01.2014. (sumário do relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
M…, por si e na qualidade de legal representante da menor Mi…, instaurou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra J…, pedindo que este seja condenado no pagamento das quantias de € 30.00,00 a favor da menor Mi…, e de € 7.500,00 a favor da autora M…, ambas as quantias a título de danos não patrimoniais, acrescidas dos juros vincendos, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese, que o réu foi condenado por sentença, transitada em julgado em 04.03.2015, em processo criminal, que correu termos no extinto Juízo de Instância Criminal de Grândola, Comarca do Alentejo Litoral, na pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão, pela prática como autor material e na forma consumada de 3 (três) crimes de abuso sexual de criança, p.e p. pelos artigos 171º, nº l, do Código Penal, sendo que em consequência dos factos que determinaram aquela condenação, a autora e a filha sofreram os danos não patrimoniais que enunciam e de que se querem ver ressarcidas.
O réu contestou excecionando, entre outras, a falta dos pressupostos da coligação, e impugnou os factos alegados, nomeadamente no que concerne aos danos e respetivo nexo causal, concluindo pela sua absolvição do pedido.
Notificadas as autoras para se pronunciarem sobre as exceções invocadas pelo réu, vieram as mesmas opor-se à procedência das mesmas.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a exceção da coligação ilegal, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Instruído o processo, seguiram os autos para julgamento[1] e, a final, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Nestes termos, julga-se a presente acção, intentada por Mi… e M… contra J…, parcialmente procedente e, em consequência:
- Condena-se o Réu a pagar à Autora Mi… a quantia de 16 000 € (dezasseis mil euros), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa aplicável aos juros civis, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
- Condena-se o Réu a pagar à Autora M… a quantia de 3 000 € (três mil euros), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa aplicável aos juros civis, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
- Absolve-se o Réu do demais pedido.»
Inconformado, o réu interpôs recurso desta decisão, pugnando pela respetiva revogação, terminando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que se transcrevem:
«A) A douta sentença recorrida errou na apreciação da prova constante dos autos, tendo julgado incorrectamente os factos contidos nos pontos 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 da sentença (no campo “4. Fundamentação de facto”/ seu ponto “4.1.”).
B) Os pontos contidos nos pontos 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 da sentença (no campo “4. Fundamentação de facto”/ seu ponto “4.1.”) deveriam ter sido dados como factos não provados se a prova tivesse sido analisada criteriosamente, o que entendemos que não correu.
C) Com efeito, a impor decisão diversa quanto aos acima referidos pontos da matéria de facto existe toda a prova documental constante dos autos e, ainda, a prova testemunhal constante das gravações das diversas sessões de julgamento, tudo conforme exaustivamente elencado na motivação supra, ali com indicação expressa e exaustiva das concretas passagens dos depoimentos das testemunhas e declarações de parte que impunham decisão diversa (bem como transcrições das mesmas), passagens essas para as quais remetemos por imperiosas razões de economia processual relacionada com a sua extensão, considerando-se cumprido com esta remissão, o ónus imposto pelo art.º 640.º, nºs 1 e 2 do CPC (acórdãos do STJ de 21-03-2019, processo n.º 3683/16.6T8CBR.C1.S2 e 23-05-2018, processo n.º 27/14.5T8CSC.L1.S1).
D) De igual modo, a douta sentença recorrida errou na apreciação da prova quando deu como não provados os factos contidos nos pontos 30 e 31 do campo “4.2 Factos não provados”, página 6 da sentença.
E) Concretamente, os depoimentos das testemunhas acima citados e, em muitos casos transcritos, impunha que ambos os referidos factos (contidos nos pontos 30 e 31) fossem dados como provados.
F) A saber, quanto ao facto contido no ponto 30 testemunha A… sessão de 31-5-2019, minutos 3.15 a 5.30 sensivelmente e minuto 6.14 a 8.5; testemunha Al…, na sessão de 31-5-2019, minutos 23.30 a 24.30 sensivelmente; minutos 40.20 a 42.00; testemunha Ar…, na sessão de 31-5-2019, minutos 50.20 a 51.30, minuto 53.13 a 53.37 e minutos 56.34 em diante; a testemunha L… na sessão de 6-9-2019, minutos 9.00 em diante, e minuto 11.45; a testemunha Lu… sessão de 6-9-2019, minutos 3.14 até sensivelmente minuto 6.30, tudo conforme acima melhor desenvolvido e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
G) Já quanto ao facto contido no ponto 31, impunham uma decisão de prova do referido facto os depoimentos da testemunha Ar…, sessão de 31-5-2019, minutos 53.57 a 55.36 e 1.05.46 a 1.07.52; testemunha Lu…, sessão de 6.9.2019, minutos 3.14 em diante e 6.40 em diante; a testemunha Mar…, sessão de 6-9-2019, minuto 28.40 em diante e 31.20 em diante e testemunha Ar…, sessão de 31-5-2019, minutos 53.57 a 55.36 e 1.05.46 a 1.07.52.
H) Acresce, ainda, que a sentença incorre em nulidade, por falta de fundamentação, quando afirma nos seus pontos 4.1. e 4.2, que “com relevo para a decisão a proferir, provaram-se os seguintes factos” (4.1) e “Com relevo para a boa decisão da causa dão-se os seguintes factos como factos não provados” (4.2).
I) A sentença não fundamenta, como obrigaria sob pena de nulidade o disposto nos artigos 607º, nº4, e 615º, nº 1, als. b) e c) do Código de Processo Civil, o porquê de entender que aqueles concretos factos da contestação são irrelevantes para a decisão da causa, violando além do mais o princípio do contraditório porquanto não permite que o Réu demonstre factos que tem por essenciais para contradizer a acção que lhe é movida pelas Autoras, nos termos que entende que melhor o salvaguardam.
J) Assim, entende-se que pelo menos relativamente aos factos contidas na contestação e ali elencados nos artigos 93, 94, 95, 97, 98, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 134, 153, 154, 155, 156, 167, 168, 199, 200, e 201 a sentença não poderia deixar de, em primeiro lugar, fazer sobre eles um juízo crítico com base na prova produzida, o que não fez.
K) Mais se entende que, a ter sido realizado esse juízo, se imporia a prova de todos eles, tudo com base nos depoimentos das testemunhas e declarações de parte, bem como na prova documental que, acima, em sede de motivação, de forma exaustiva e detalhada se elenca, com indicação das concretas passagens e minutos em que se contêm as mesmas nos suportes em que se contém a produção da prova, como é ónus do recorrente, que igualmente desta forma se entende cumprido, na esteira da jurisprudência do STJ antes citada. Dá-se, assim, por aqui reproduzidas todas as concretas passagens acima transcritas bem como a indicação dos minutos nas gravações onde as mesmas estão registadas.
L) Ademais, a não prova dos danos alegados pelas Autoras logo no momento subsequente aos factos (2008), nos termos que acima entendemos ter demonstrado, apenas poderia levar a que, quando muito, se concluísse que as Autoras poderiam mesmo assim ter sofridos danos como consequência indirecta dos mesmos, por via do processo crime que veio a tramitar e à ordem do qual o Réu cumpriu pena de prisão.
M) Sucede que, a demais prova produzida, designadamente a prova de factos como a manutenção de contactos com o Réu após 2008 e, essencialmente, a mudança de casa das Autoras para uma residência sita a 30 metros do escritório do Réu, desmonta por completo a tese invocada pelas Autoras na Pi e a que o Tribunal a quo deu acolhimento na sentença.
N) A esse propósito há desde logo que apontar um erro crasso na decisão sindicada quando contraditoriamente dá como provados os factos contidos no ponto 25 e simultaneamente os contidos nos pontos 6 e 10 dos mesmos factos provados. Na verdade a prova dos factos contidos no artigo 25 não pode deixar de afastar a prova dos factos contidos em 6 e 10.
O) Não se concebe que seja possível as Autoras sofrerem medo de se cruzarem na rua com o Réu, evitarem os locais que o mesmo frequenta, que saibam que o mesmo abusou da menor e, ainda assim, se decidam a avançar com a referida mudança de domicílio pessoal para uma casa no prédio ao lado do escritório que bem sabiam ser o do Réu, isto na pendência do processo crime, sem proferimento de acórdão final
P) Não há maior descrédito para a versão dos factos alegada pelas Autoras do que este singelo facto dado como provado no ponto 25! Quando a justificação dada pela mãe da menor para a decisão de mudança (perante todos os receios que a própria diz que existiam, seus e da sua filha) é direcionada para a dimensão da casa nova (“a casa era enorme!”), quais dúvidas se dissipam sobre a existência de danos não patrimoniais que as mesmas vêm alegar na acção. É evidente que as Autoras não sofreram qualquer dano moral passível de indemnização, mesmo que os factos de 2008 sejam verdadeiros.
Q) Errou, pois, o Tribunal a quo ao julgar verificados danos na esfera das Autoras, em consequência das condutas dadas como provadas no processo crime, impondo-se a anulação da decisão nesta parte, com a consequente e necessária absolvição do Réu dos pedidos.
R) Finalmente, como argumento subsidiário relativamente aos demais fundamentos do presente recurso, sempre importa notar que a sentença incorre na violação do disposto no art.º 496.º do CC quando extravasa largamente a liberdade que o julgamento por equidade lhe permite, condenando o Réu em valores absurdos para os factos em apreciação nestes autos, em clara dissonância com os critérios que a jurisprudência dominante convida a seguir na determinação do quantum indemnizatório com base na equidade.
S) Com efeito, a ter-se como verificados danos na esfera das autoras que sejam consequência directa – tendo presente um juízo de causalidade adequada – dos factos ilícitos que hajam sido cometidos pelo Réu (o que se admite como mera hipótese académica) sempre se dirá que as concretas indemnizações atribuídas às autoras pecam por manifestamente excessivas.
T) Desde logo porque o art.º 496.º, n.º 1 do CC dita que na fixação da indemnização devem ser atendidos os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, sendo que no caso em apreço, a existirem esses pretensos danos, eles nunca passarão o crive da gravidade que a Lei lhes impõe.
U) Já quanto à densificação do conceito de equidade, a jurisprudência dos nossos Tribunais superiores tem vindo a considerar que a determinação do quantum indemnizatório, quando ele haja de ser determinado com base na equidade, há-de-ser fixado em função do grau de culpa do responsável, da sua situação económica, bem como do lesado, das demais circunstâncias do caso e dos padrões geralmente adoptados na jurisprudência (acórdão do STJ de 22-02-2018, no âmbito do processo n.º 351/16.2JAPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt)
V) Face aos concretos factos ilícitos dados como provados (únicos em apreciação nestes autos), nomeadamente as concretas condutas que a menor Mi… revelou ter sofrido do Réu (constantes das suas declarações no processo crime que se juntaram como Doc.1 da contestação) há que concluir que o grau de culpa do responsável não é significativo.
W) Quanto à situação económica do Réu, nenhuma prova existe nos autos que revele o que quer que seja a este propósito, apenas havendo a informação de que o mesmo está recluído em cumprimento de pena, que portanto não aufere quaisquer rendimentos além de ser beneficiário de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, por força de insuficiência económica para suportar os custos com o processo. O mesmo se diga quanto às condições económicas das Autoras, relativamente às quais a única coisa que se sabe é litigam, igualmente, com o benefício do apoio judiciário, na mesma modalidade citada.
X) Restam, pois, os padrões indemnizatórios adoptados pela jurisprudência em casos similares sendo que aqui, manifestamente a sentença extravasa esses padrões, por excesso, condenando em medida muitíssimo superior ao normal em casos até bem mais graves. A este propósito e a título comparativo, vejam-se as indemnizações validadas pelo STJ nos processos cujos acórdãos acima citámos em sede de motivação, em casos com contornos factuais totalmente dissonantes destes autos, esses com violações sucessivas, durante anos, de menores, alguns levando as menores a engravidar, e em que são atribuídos valores indemnizatórios entre os € 7.000 e os € 20.000 às vítimas.
Y) Ora, num caso com os factos como os destes autos, na ausência de um padrão jurisprudencial que permita uma comparação fidedigna, apenas se pode admitir que, quando muito (perante a improcedência dos demais argumentos deste recurso) pudesse ser conferido à vitima dos pretensos abusos um valor indemnizatório meramente simbólico, e apenas para compensação dos transtornos tidos com o processo crime, nomeadamente a sujeição a um exame médico e a inquirição perante um Tribunal em sede de memória futura
Z) Isto sem prejuízo de uma tal indemnização, a vir a ocorrer, nos merecer as maiores reservas e dúvidas sobre se tais realidades são sequer passíveis de ser indemnizadas/compensadas, pois mais não são do que a forma da nossa Justiça funcionar, com a tramitação normal, nada de fora do habitual se tendo passado que pudesse justificar uma qualquer compensação da vítima.
AA) Já quanto à D. M…, salvo melhor opinião, nenhum valor indemnizatório haveria que lhe ser conferido, porquanto não sofreu nenhuma lesão não patrimonial, não podendo alegar a sua qualidade de mãe, e as obrigações que daí decorrem, para vir pedir indemnizações ao Réu.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir, atenta a sua precedência lógica, consubstanciam-se em saber:
- se a sentença enferma de nulidade:
- se deve ser alterada a matéria de facto nos pontos indicados pelo réu/recorrente.
- se assiste às autoras - ou pelo menos à autora Mi… – o direito a serem indemnizadas pelos danos não patrimoniais reclamados;
- respondendo-se afirmativamente à antecedente questão, qual o montante indemnizatório a atribuir às autoras.

III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. Por Acórdão, que consta de fls. 88 (v.) e ss. e que aqui se dá por reproduzido, proferido no proc. n.º206/12.0T3GDL, que correu termos no extinto Juízo de Instância Criminal de Grândola, confirmado nos termos do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, que consta de fls. 19 e ss., e que aqui se dá por reproduzido, transitado em julgado em 04/03/2015, quanto ao aqui Réu, J…, foram dados como provados, entre outros, os seguintes factos: “19. “Ainda no de 2008, J… conversou com M… perguntando-lhe se não se importava que a sua filha, Mi…, nascida a 16 de Janeiro passasse um fim-de-semana com ele e com os seus filhos no Algarve, ao que aquela respondeu afirmativamente. 20. Nesta sequência, no fim-de-semana de 21 a 23 de Junho de 2008, J… levou Mi… com ele para o Algarve. 21. Chegados ao Algarve, não se encontravam os filhos de J…, tendo este optado por ficar durante o fim-de-semana com a menor Mi…. 22.No sábado, dia 21 de Junho de 2008, J… e Mi… almoçaram no “Mc Donald`s”, após o que foram às “compras”, tendo J… comprado um biquini, uma saia e uma mala de maquilhagem para Mi… e, depois, foram à praia. 23.Na noite de 21 para 22 de Junho o arguido o arguido deixou a Mi… dormir no beliche existente num dos quartos e foi dormir para a cama existente noutro quarto. 24.Porém, durante essa mesma noite, J… dirigiu-se ao beliche onde Mi… se encontrava deitada, e durante algum tempo, acariciou com as mãos as mamas e a vagina da Mi…, num primeiro momento sobre as roupas de cama e, depois, sob as mesmas roupas, obtendo desse modo prazer. 25. Ao actuar da forma descrita, em três ocasiões, com consciência de que S…, Mi… e S… tinham menos de catorze anos de idade, J… agiu com o propósito de obter prazer sexual; 26.J… tinha consciência de que as zonas do corpo das menores em que tocou constituem património íntimo e uma reserva pessoal da sexualidade delas, que punha em causa os seus sãos desenvolvimentos da consciência sexual e de que ofendia os respectivos sentimentos de pudor; 27.J… actuou de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.”
2. Antes dos factos descritos em 1, a Autora Mi… era uma criança alegre, extrovertida, tranquila e calma.
3. Em função dos factos referidos em 1, Mi… tornou-se uma criança triste, sensível e introvertida.
4. Passou a mesma em consequência dos factos referidos em 1 a ter choro fácil.
5. Durante os anos de 2008 a 2012 a Autora Mi… teve períodos de grande falta de concentração.
6. A Autora Mi… passou a temer cruzar-se na Rua com o Réu, evitando passar na zona onde o mesmo residia e nas imediações do seu escritório, sendo que no supra identificado período temporal a mesma encontrava-se a residir no … e, posteriormente, na Rua …, em Grândola.
7. Quando a Autora Mi… passou a ter acompanhamento psicológico é que aquela foi revelando alguns pormenores atinentes às condutas do Réu.
8. Verbalizou, então, sentimentos de repulsa, de vergonha e também de humilhação; que sentiu na sequência das condutas do Réu.
9. Mi… sofreu e ainda sofre profundo desgosto.
10. Após ter tomado conhecimento das condutas do Réu e desde a apresentação da queixa crime que deu origem ao processo nº206/12.0T3GDL, a Autora M… acompanhou a filha, designadamente, ao nível dos estudos, a acompanhamento psicológico, a andar na Rua com a mesma, durante mais de 1 (um) ano de modo a protegê-la de mais abordagens por parte do Réu.
11. A Autora M… caiu num estado depressivo, perdeu a vontade de trabalhar, de falar ou conviver com as outras pessoas.
12. Durante um lapso de tempo não concretamente apurado, a Autora, M…, não conseguia dormir, sentindo uma constante angústia e um profundo desgosto e, mesmo hoje, após a prisão do Réu, ainda vive momentos de angústia pelos factos referidos em 1.
13. O Réu representou a Autora no processo com o n.º 553/07.2TBGDL, que correu termos pelo Juízo de Trabalho e Família e Menores de Sines da Comarca do Alentejo Litoral – cfr. fls. 405 e ss.
14. Processo esse que, além dos autos principais, contou com pelo menos um apenso em que o Réu também teve intervenção enquanto mandatário constituído da Autora M… – cfr. fls. 405 e ss.
15. Os autos principais da aludida acção ficaram resolvidos por Sentença homologatória de acordo firmado entre os progenitores, datada de 07/12/2009 – cfr. fls. 405 e ss.
16. Posteriormente à Sentença referida em 15, a parte contrária no processo desencadeou um novo incidente que fez perdurar a relação profissional entre Autora e Réu – cfr. fls. 408 e ss.
17. Em meados de 2008, o amigo do Réu F… veio a juntar-se com a Autora M…, estabelecendo com ela uma relação amorosa.
18. O que levou a que a proximidade e amizade existente entre Réu e F… se estendesse, também, à aqui Autora e sua filha.
19. M… trabalhava no café do Núcleo do Sporting e estava presente no café mencionado sempre que o Réu ali se deslocava.
20. No aludido café parava diariamente Mi…, com cerca de 8 anos de idade, em meados de 2008.
21. A qual, fora dos horários escolares e porque a mãe trabalhava no dito café, ficava no café com aquela.
22. Particularmente nos períodos de férias escolares, a Autora Mi… estava diariamente no café.
23. O que levou a que o Réu a visse (à Autora Mi…) muito frequentemente no local, com ela conversando e brincando à vista de todos, inclusive da mãe e do companheiro F….
24. Em meados de 2011, a Autora veio a exercer funções de cozinheira no café das Arcadas depois de abandonar o café do Núcleo do Sporting de Grândola.
25. Em 2013/2014 a Autora mudou-se, com a sua filha, para uma habitação sita na …, em Grândola, nas imediações do Tribunal.
26. O prédio onde se situa o andar que a Autora M…, Grândola, fica a não mais de 30 metros em linha recta, de porta a porta, do escritório do Réu, o qual é situado na Rua …, em Grândola – cfr. fls. 136.
27. As Autoras sabiam onde ficava o escritório do Réu e que seria inevitável, pelo menos, cruzarem-se com ele na rua.

E foram considerados não provados estes factos:
28. Mi… tornou-se uma criança que rejeitava qualquer tipo de aproximação, seja de quem fosse.
29. Na sequência dos factos referidos em 1 e 6, a Autora Mi… reprovou no 7.º ano de escolaridade, sendo que reprovou 2 (dois) anos consecutivos.
30. O referido em 23 sucedeu durante os anos de 2008, 2009, 2010 e início de 2011, enquanto a Autora ali exerceu funções.
31. Nos almoços e jantares de grupo realizados no café das Arcadas, a Autora Mi… também esteve presente por várias vezes, sempre sem dar nota de qualquer incómodo pela presença do Réu.
32. Em consequência do comportamento do Réu, a Autora Mi… passou a sofrer forte aversão para com o sexo masculino.
33. A Autora M… publicamente afirmou, já com o Réu preso para cumprimento de pena, que os abusos corporizados na pessoa da sua filha eram falsos, que a filha dizia o que ela lhe dizia que deveria dizer.
34. Gabando-se perante terceiros de que a sua intervenção junto da filha foi determinante para a condenação criminal sofrida pelo Réu.

Da nulidade da sentença
Diz o recorrente na conclusão H) que a sentença é nula «quando afirma nos seus pontos 4.1. e 4.2, que “com relevo para a decisão a proferir, provaram-se os seguintes factos” (4.1) e “Com relevo para a boa decisão da causa dão-se os seguintes factos como factos não provados” (4.2)».
Na elaboração da sentença e na parte respeitante à fundamentação, deve «o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final» - artigo 607º, nº 3, do CPC.
E, nos termos nº 4 do mesmo artigo 607º, «[n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência».
Ora, uma simples leitura da sentença permite concluir, sem margem para qualquer dúvida, que o Sr. Juiz a quo deu integral cumprimento aos aludidos comandos legais, pelo que só um qualquer lapso do recorrente poderá justificar a invocação de uma nulidade da sentença de todo inexistente.
Lendo-se as conclusões seguintes [I) e J)], percebe-se que a “nulidade” que o recorrente aponta à sentença recorrida consiste, afinal, em não fundamentar o porquê de entender que os factos dos artigos 93, 94, 95, 97, 98, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 134, 153, 154, 155, 156, 167, 168, 199, 200 e 201, «são irrelevantes para a decisão da causa», não podendo a sentença «deixar de, em primeiro lugar, fazer sobre eles um juízo crítico com base na prova produzida, o que não fez».
Mas não tem razão o recorrente.
Na verdade, no final da motivação da decisão de facto escreveu-se:
«Mais se consigna que o demais articulado pelas partes nos respectivos articulados e que não se encontra transcrito no conjunto dos factos dados como provados e não provados, o não foi por representar matéria ou irrelevante para a decisão a proferir (v.g., matéria de impugnação) ou conclusiva ou, por último, respeitante ao Direito aplicável ao caso.»
Como é sabido, as nulidades da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito.
Assim, os vícios de omissão ou de excesso de pronúncia incidem sobre as “questões” a resolver, nos termos e para os efeitos dos artigos 608º e 615º, nº 1, alínea d), do CPC, com as quais se não devem confundir os “argumentos” expendidos no seu âmbito.
Como ensina Alberto dos Reis[2]:
«Não enferma da nulidade da 1ª parte do nº 4[3] o acórdão que não se ocupou de todas as considerações feitas pelas partes, por o tribunal as reputar desnecessárias para a decisão do pleito (…). São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.»
No que à decisão de facto diz respeito, «importa ter presente que esta se integra na fundamentação da sentença e que os juízos probatórios parcelares que a consubstanciam podem, quando muito, padecer dos vícios de deficiência, obscuridade ou de contradição nos termos especificamente previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC. Por sua vez, a falta ou insuficiência da fundamentação da decisão sobre algum facto essencial constitui irregularidade suprível, mesmo oficiosamente, nos termos do citado artigo 662.º, nº 2, alínea d), e 3, alínea b). Nessa medida, em sede de decisão de facto, não se afigura, em princípio, aplicável o regime das nulidades da sentença previsto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), do CPC»[4].
Ora, o facto de o Sr. Juiz a quo não ter atribuído aos “factos” constantes dos referidos artigos da contestação qualquer relevância para a decisão da causa, significa apenas, na ótica do recorrente, que os mesmos não foram devidamente apreciados, o que tem a ver com o mérito da decisão de facto proferida e não com uma eventual nulidade da sentença.
Em suma, improcede a suscitada nulidade.

Da impugnação da matéria de facto
Como resulta do artigo 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto: prova documental, declarações de parte e depoimentos testemunhais registados em suporte digital.
Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que a recorrente cumpriu formalmente os ónus impostos pelo artigo 640º, nº 1, do CPC, já que especificou os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, indicou os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por elas propugnados, referiu a decisão que no seu entender deveria sobre eles ter sido proferida e também não deixou de indicar as passagens da gravação em que funda o recurso, transcrevendo mesmo algumas dessas passagens no corpo das alegações, pelo que nada obsta ao conhecimento do recurso na parte atinente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorreta avaliação da prova produzida, cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto.
Foi auditado o suporte áudio e, concomitantemente, ponderada a convicção criada no espírito do Sr. Juiz a quo, o qual tem a seu favor o importante princípio da imediação da prova, que não pode ser descurado, sendo esse contacto direto com a prova testemunhal que melhor possibilita ao julgador a perceção da frontalidade, da lucidez, do rigor da informação transmitida e da firmeza dos depoimentos prestados, levando-o ao convencimento quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recaíram as provas.
Infere-se das conclusões do recorrente que este discorda da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo, relativamente aos pontos 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 dos factos provados, e aos pontos 30 e 31 dos factos não provados, entendendo o recorrente que, no primeiro caso, tais factos deviam ser considerados não provados, e no segundo caso, deviam ser dados como provados.
Nos pontos 3 a 9 dos factos provados estão em causa as consequências que a conduta criminosa do réu provocou a nível comportamental e emocional na autora Mi…, e nos pontos 10 a 12, as consequências que daquela conduta advieram para a autora M….
Para demonstrar que houve erro de julgamento de facto, o recorrente invoca vários depoimentos testemunhais de que transcreve excertos, olvidando, porém, que não basta transcrever partes do que disseram as testemunhas e daí, sem mais, pretender uma alteração da decisão sobre a matéria de facto, pois os depoimentos das testemunhas têm de ser analisados no seu conjunto e pesam-se caso a caso, no contexto em que se inserem, tendo em conta a razão de ciência que invocam e a sua razoabilidade face à lógica, à razão e às máximas da experiência.
É certo que os depoimentos das testemunhas A…, Al…, Ar…, Lu…, Mar…, irmã do réu, L…, Jo…, apontam – aparentemente - em sentido diverso do que foi acolhido na sentença, mas tais depoimentos, só por si, não impõem decisão diversa sobre a matéria de facto em causa, como exige o nº 1 do artigo 662º do CPC, sendo que aquilo que a lei exige é que se indiquem provas que imponham decisão diversa e não que permitam outra decisão.
Em primeiro lugar, não se pode escamotear em circunstância alguma os depoimentos das testemunhas V… - vizinha das autoras e que andou com a autora Mi… na escola - e C… - que também foi vizinha das autoras -, as quais confirmaram, no essencial, o sofrimento das autoras na sequência da conduta do réu, sendo de realçar que se trata de testemunhas que privaram diretamente com as autoras. Os seus depoimentos, aqui e ali com alguma imprecisão que o decorrer do tempo justifica, merecem credibilidade na medida do apurado, em função da forma clara e objetiva como as mesmas depuseram.
No mesmo sentido foram as declarações de parte da autora M…, que não podem ser desvalorizadas apenas pelo facto de a mesma ser parte no processo e, ademais, encontram respaldo nos depoimentos testemunhais acabados de referir.
Quanto à testemunha A…, também a nós, à semelhança do Sr. Juiz a quo, nos pareceu evidente algum azedume que a testemunha nutre pela autora M…, resultado, quiçá, de ter terminado a relação de amizade que existia entre elas “por outros motivos que não vêm ao caso, que me prejudicaram bastante”, como afirmou a testemunha.
Seja como for e independentemente de a testemunha ter dito que nos períodos em que esteve em contacto com a autora Mi… não observou qualquer alteração no seu comportamento, chegando mesmo a afirmar que era bastante extrovertida e de não lhe agradar o tipo de conversas que a mesma tinha, sem que contudo tivesse dito qual o teor dessas conversas, o certo é que a testemunha não estava com a Mi… nos momentos mais recatados desta, em casa, onde não raras vezes se revelam os verdadeiros problemas comportamentais resultantes de atos como os praticados pelo réu.
Também os depoimentos das testemunhas Al… e Ar…, ambos amigos do réu, que procuraram evidenciar a boa disposição que aparentava a autora Mi… e a sua interação com as pessoas, nomeadamente com homens, são apenas relatos circunstancias de situações observadas pelas testemunhas quando as mesmas se deslocavam ao café do núcleo do Sporting em Grândola, que era explorado em comum pela autora e pelo seu companheiro, local no qual se encontrava a Mi… quando não estava na escola, pois como referiu a testemunha Ar…, a mãe não tinha ninguém com quem deixar a Mi…, e sem que daí se possa concluir, contrariamente ao que defende o recorrente, pela existência de uma realidade contrária à que foi dada como provada relativamente à autora Mi… nos pontos 3 a 9 dos factos provados.
Não se vê, por outro lado, que o depoimento da testemunha Lu… possa sustentar uma realidade diferente da que foi dada como provada nos aludidos pontos da matéria de facto, uma vez que a testemunha apenas conhecia as autoras de vista, quando após o jantar ia ao café que havia nas “Arcadas” beber um café, referindo que a Mi… estava lá “sentada a uma mesa, a ver televisão”, falava com “as pessoas que ela conhecia melhor” e que lhe parecia uma “criança normal”.
Dizer, como o recorrente, que esta testemunha “revela um conhecimento direto acerca da realidade da autora Mi… que é contrário aos factos dados como provados acerca da sua personalidade” é no mínimo surpreendente, quando afinal o conhecimento que a testemunha tem, se resume apenas ao que via quando ia beber café ao estabelecimento explorado pela autora Maria Inácia, sem que alguma vez tenha tido uma conversa com a Mi… sobre o assunto.
Também os depoimentos das testemunhas Mar…, irmã do réu, e L…, amigo do réu, se mostram insuscetíveis de abalar a factualidade dada como provada nos aludidos pontos 3 a 9, já que as testemunhas em causa apenas viram algumas vezes a autora Mi… no café das …, parecendo-lhes ter o comportamento de uma criança normal, mas sem que alguma vez tenham convivido com a Mi…, para de forma mais sustentada poderem pronunciar-se sobre o que afetava ou não aquela, contrariamente ao que sucedeu com as testemunhas V… e C…, que privaram durante todo o período em causa com a Mi… e cujos depoimentos, na sua globalidade, sustentam a matéria de facto em causa e são merecedores de credibilidade.
Estas mesmas considerações valem também para a testemunha J…, que se limitou a dizer, após pergunta sugestiva do mandatário do réu/recorrente, ser a Mi… uma criança normal.
O recorrente põe também em causa a matéria de facto constante dos pontos 10 a 12, relativamente aos danos não patrimoniais sofridos pela autora M….
Ora, independentemente do que se dirá infra quanto à atribuição a esta autora de uma indemnização a título de danos não patrimoniais - o que até dispensaria pronúncia sobre a impugnação destes factos -, sempre se dirá que nenhuma razão assiste ao recorrente.
Assim, no que concerne ao ponto 10, começa o recorrente por dizer que o processo 206/12.0T3GDL não teve origem numa queixa-crime, o que se retira do documento 7 junto com a contestação, o que demonstra, segundo o recorrente que tal processo “surge com um despacho do MP a determinar a reabertura de inquérito anteriormente arquivado, na sequência de denúncia da CPCJ”, pelo que “essa parte deste facto nunca podia ser dada como provada”.
É absolutamente irrelevante para o caso que o processo crime acima referido tenha tido origem em queixa-crime ou num despacho do Ministério Público, sendo certo que, como resulta claro do aludido despacho do Ministério Público, na sua base esteve a denúncia da CPCJ.
Quanto ao mais, e como o próprio recorrente reconhece, a matéria fáctica em causa encontra inteiro respaldo nos depoimentos das testemunhas V… e C… e nas declarações da autora M…, o que não pode, evidentemente, ser contrariado pela interpretação que o recorrente faz dos factos, sendo ainda irrelevante que o réu tenha feita ou não alguma abordagem à então menor Mi….
Também os pontos 11 e 12 dos factos provados se mostram corretamente julgados, com fundamento nas declarações da autora M… e nos depoimentos das aludidas testemunhas V… e C…, que pelas razões já aduzidas merecem muito mais credibilidade que os depoimentos das testemunhas invocadas pelo recorrente, que se limitaram a dar sua opinião em função do que lhes era dado observar nos locais de trabalho da autora.
Nem se diga, como o recorrente, que a prova dos factos contidos no ponto 25 não pode deixar de afastar a prova dos factos contidos nos pontos 6 e 10, por não se conceber «que seja possível as Autoras sofrerem medo de se cruzarem na rua com o Réu, evitarem os locais que o mesmo frequenta, que saibam que o mesmo abusou da menor e, ainda assim, se decidam a avançar com a referida mudança de domicílio pessoal para uma casa no prédio ao lado do escritório que bem sabiam ser o do Réu, isto na pendência do processo crime, sem proferimento de acórdão final».
A mudança de residência das autoras, como explicou a autora M…, deveu-se ao facto de a nova residência dispor de melhores condições de habitabilidade, sendo que a circunstância de as autoras terem receio de se cruzarem com o réu não pode, evidentemente, impedir estas de procurarem uma habitação mais condigna e ajustada ao respetivo agregado familiar, ainda que essa residência se situe perto do escritório do réu.
Ademais, quando ocorreu a mudança de habitação, em 2013/2014, o réu estava sujeito à medida de coação de proibição de contactos com a autora Mi… desde 11.06.2013.
Mantêm-se assim intocados os pontos 3 a 12 dos factos provados.

Sustenta outrossim o recorrente que a matéria de facto dos pontos 30 e 31 dos factos não provados devia ser considerada provada, com base nos depoimentos das testemunhas que refere.
Mais uma vez o recorrente limita-se a transcrever partes de frases que disseram as testemunhas, que descontextualiza, interpreta e comenta à sua maneira, atribuindo-lhes a sua valoração, distintas das efetuadas pelo Tribunal a quo, o que não pode evidentemente sustentar a alteração da matéria de facto no sentido que o mesmo pretende.
Ademais, a factualidade dada como provada no ponto 23 não impõe, ao invés do que afirma o recorrente, que se dê como provada a facticidade do ponto 30, pois aquele ponto 23 tem de ser lido em conjugação com o que foi dado como provado nos pontos 20 a 22, estando perfeitamente delimitado o período temporal em causa, ou seja, em meados de 2008, quando o que foi dado como não provado no ponto 30 diz respeito a um período de tempo muito mais alargado, ou seja, 2008 a 2011.
Quanto ao ponto 31, não foi feita prova minimamente consistente do que nele consta, provando-se antes o contrário, como decorre dos pontos 3 a 9 dos factos provados.
Mantêm-se por isso inalterados os pontos 30 e 31 dos factos não provados.

Por último, retomando uma questão já abordada a propósito da invocada nulidade da sentença, cabe dizer que, contrariamente ao que entende o recorrente, bem andou o Tribunal a quo ao não considerar quaisquer outros factos, por serem de todo irrelevantes para a boa decisão da causa, como é o caso dos artigos da contestação a que o mesmo alude na conclusão J).
Assim, o que foi alegado nos artigos 93, 94, 95 é claramente conclusivo e, como tal, nunca poderia fazer parte do acervo da matéria de facto.
Quanto aos artigos 97 e 98 é absolutamente irrelevante para a boa decisão da causa saber se o réu era amigo da pessoa que explorava o café Núcleo do Sporting em Grândola e que este passasse diariamente por esse café no caminho de casa para o escritório ou para o Tribunal e vice-versa, aí privando com essa pessoa.
Não reveste qualquer interesse para a decisão da causa o que foi alegado nos artigos 125, 126, 127, 128 e 129, cujo conteúdo tem a ver com a alegada relação da autora M… com o réu no âmbito do Partido Socialista.
O artigo 130 reveste feição conclusiva e a matéria alegada no artigo 134 foi objeto de apreciação pelo tribunal, que julgou a factualidade em causa não provada (cfr. ponto 31 dos factos não provados), o que foi confirmado por esta Relação supra.
O que o réu alegou nos artigos 153 a 156, relativamente ao conhecimento das autoras do local do escritório do réu e da proximidade deste com a morada da residência que vieram a ocupar, está devidamente contemplado na matéria de facto provada (pontos 25, 26 e 27).
O artigo 167 é manifestamente conclusivo, e o artigo 168 reveste feição conclusiva (aluna com fracas notas), além de nada relevar para a decisão da causa, sendo certo que não se provou que na sequência dos factos referidos em 1 e 6, a autora Miriam reprovou no 7º ano de escolaridade ou que tenha reprovado dois anos consecutivos (cfr. ponto 29).
A matéria dos artigos 199, 200 e 201 é irrelevante para a decisão da causa e, seja como for, foi já objeto de apreciação supra a propósito da matéria do ponto 10 dos factos provados, sendo que aquilo que realmente importa, é que o réu foi condenado pela prática como autor material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de criança, p.e p. pelos artigos 171º, nº l, do Código Penal, na pessoa da autora Mi….
Resulta, assim, do exposto que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida, mas sim uma correta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido. Ou seja, no processo da formação livre da prudente convicção do Tribunal a quo não se evidencia nenhum erro que justifique a alteração da decisão sobre a matéria de facto, designadamente ao abrigo do disposto no artigo 662º do CPC.
Assim, teremos de concluir que, perante a prova produzida, bem andou o Sr. Juiz a quo na decisão sobre a matéria de facto, a qual, por isso, permanece intacta.

Dos danos não patrimoniais
Neste capítulo, peticionaram as autoras a indemnização de € 30.00,00 para a autora Miriam Melissa Pacheco, e de € 7.500,00 para a autora Maria Inácia Pacheco, tendo a sentença proferida arbitrado a indemnização de € 16.000,00 a favor da primeira, e de € 3.000,00 a favor da segunda.
Discorda o recorrente dos montantes arbitrado às autoras, defendendo, no caso da autora Miriam e na ausência de um padrão jurisprudencial que permita uma comparação fidedigna, «apenas se pode admitir que, quando muito (perante a improcedência dos demais argumentos deste recurso) pudesse ser conferido à vitima dos pretensos abusos um valor indemnizatório meramente simbólico, e apenas para compensação dos transtornos tidos com o processo crime, nomeadamente a sujeição a um exame médico e a inquirição perante um Tribunal em sede de memória futura» [conclusão Y)].
Já quanto à autora M…, diz o recorrente que «nenhum valor indemnizatório haveria que lhe ser conferido, porquanto não sofreu nenhuma lesão não patrimonial, não podendo alegar a sua qualidade de mãe, e as obrigações que daí decorrem, para vir pedir indemnizações ao réu».
A obrigação de indemnização neste âmbito decorre do disposto no artigo 496º, nº 1, do CC que estabelece que «na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito».
No caso vertente e no que respeita à autora Mi…, não sofre a menor dúvida – só o recorrente as parece ter - que, pela sua gravidade, os danos que a mesma sofreu, merecem ser indemnizados, pelo que há apenas que determinar se é ou não adequado o quantum indemnizatório fixado na sentença a este título.
Dispõe o artigo 496º, nº 4, do CC que «o montante da indemnização será fixado equitativamente, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º». Isto é, a indemnização por danos não patrimoniais, deve ser fixada de forma equilibrada e ponderada, atendendo em qualquer caso (quer haja dolo ou mera culpa do lesante) ao grau de culpabilidade do ofensor; à situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso, como por exemplo, o valor atual da moeda. Como dizem Pires de Lima e Antunes Varela, «o montante de indemnização deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas de criteriosa ponderação da realidade da vida».[5]
Como tem sido entendido de forma uniforme, o valor de uma indemnização neste âmbito, deve visar compensar realmente o lesado pelo mal causado, donde resulta que o valor da indemnização deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico.[6]
A indemnização por danos não patrimoniais é, mais propriamente, uma verdadeira compensação: segundo a lei, o objetivo que lhe preside é o de proporcionar ao lesado a fruição de vantagens e utilidades que contrabalancem os males sofridos, e não o de o recolocar “matematicamente” na situação em que estaria se o facto danoso não tivesse ocorrido; a reparação dos prejuízos, precisamente porque são de natureza moral (e nessa exata medida, irreparáveis) é uma reparação indireta, comandada por um juízo equitativo que deve atender às circunstâncias referidas no artigo 494º do CC.[7]
Este recurso à equidade não afasta, porém, «a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso».[8]
Ora, no caso em análise, com particular relevo para a decisão, há que ter em consideração, nomeadamente, o caráter doloso da conduta do réu - dolo direto, logo intenso -, a elevada ilicitude dessa mesma conduta, visto tratar-se de um crime de abuso sexual de uma menor, a instabilidade emocional que a situação causou à autora Mi… que se tornou uma criança triste, sensível e introvertida, passando a ter choro fácil, os sentimentos de repulsa, de vergonha e de humilhação que sentiu na sequência da conduta do réu, e o profundo desgosto que sofreu e ainda sofre.
Neste contexto, conferindo o devido relevo ao tipo de bem violado e à natureza, intensidade e extensão dos danos, não vemos razões para divergir do montante de € 16.000,00 fixado na sentença, que se tem por adequado e equitativo.[9]

Na sentença recorrida foi também arbitrada à autora M… uma indemnização de € 3.000,00, a título de danos não patrimoniais, com a seguinte fundamentação:
«É claro, à luz do apurado, que a vítima do abuso sexual pelo qual o Réu foi condenado é a Autora Mi… sendo, então, esta, a lesada directa dos factos imputados ao Réu.
Nessa linha, todo o sofrimento e tristeza que a Autora M… possa ter sentido, constituem-se em danos indirectos ou reflexos da conduta do Réu, uma vez que os mesmos resultaram não de uma acção directa do Réu sobre a Autora em causa mas antes sobre a filha desta.
Assim sendo, somos de convocar o decidido no Ac. do STJ de 17/09/2009 (no proc. n.º 292/1999-S1), onde se explicitou que “I. Em matéria de responsabilidade extracontratual, em princípio, apenas são indemnizáveis os danos sofridos pelo lesado, ou seja, o titular do direito violado ou do interesse protegido pela disposição legal violada. II. Apenas nos casos excepcionais previstos nos arts. 495º e 496º, nº 2 do Cód. Civil, a lei admite o ressarcimento dos danos indirectos provocados a terceiros. III. Não são, assim, indemnizáveis os danos vulgarmente chamados “reflexos” ou indirectos que, fora dos casos previstos nos referidos arts. 495º e 496º, sejam indirectamente causados a terceiros”.
Ora, tendo presente o decidido no aresto referenciado, o facto é que no caso dos autos a Autora Mi… sofreu uma lesão corporal (entendendo-se como tal, quanto a nós, também a afetação da sua saúde psíquica, em face do sofrimento, tristeza e depressão sentidos com toda a situação) e que que a Autora em causa poderia (em abstracto) exigir alimentos da sua filha (cfr. art. 2009.º, n.º1, al. b) do CC), assim se preenchendo a previsão do art. 495.º, n.º3 do CC.
Dessa forma, concluímos que estão reunidos os pressupostos para que se possa ponderar a atribuição de uma indemnização à Autora em causa.
Nesse contexto, tendo presentes os critérios já expostos (supra quando da fixação da indemnização de Mi…) quanto à determinação da indemnização a arbitrar, somos de concluir que a indemnização se deve fixar em 3 000 € (quantia à qual deverão acrescer os juros nos termos já enunciados para Mi…).
Diga-se, neste quadro, que tal valor se fixou tendo presente a gravidade relativa dos factos praticados pelo Réu (sem se olvidar que se encontra em cumprimento de pena de prisão pelos mesmos) e a circunstancia de a Autora em causa (cujo sofrimento com toda a situação se não nega, em face da natural sensação de impotência da mesma em proteger a sua filha face ao sucedido) não ter sido a vítima directa dos factos praticados pelo Réu.»
Não podemos acompanhar a sentença nesta parte.
Com efeito, o artigo 495º, nº 3, do CC refere-se a danos de natureza patrimonial, sendo o mesmo inaplicável in casu.
Quanto aos danos não patrimoniais reclamado pela autora M…, considerando que o nº 4 do artigo 496º do CC limita aos casos de morte da vítima a indemnizabilidade dos danos não patrimoniais sofridos pelas pessoas indicadas nos n.ºs 2 e 3, tem-se levantado a questão da ressarcibilidade desses danos em casos de lesão corporal de que não proveio a morte, considerando que as graves lesões corporais sofridas pela vítima que sobreviveu, e respetivas sequelas, podem afetar profundamente essas pessoas, causando-lhes desgosto e sofrimento tão intensos como aqueles que resultariam da sua morte, bem como alterações relevantes à respetiva rotina e ao projeto de vida que idealizaram.
A controvérsia jurisprudencial que se gerou em torno da compensabilidade dos danos não patrimoniais sofridos por outrem, nos casos em que a vítima sobrevive, conduziu à prolação, pelo Plenário das Secções Cíveis do STJ, do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2014, de 09.01.2014 – publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 98 (2014-05-22) –, a fixar a seguinte jurisprudência:
«Os artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave”.
O acórdão debruça-se sobre um caso em que o cônjuge da autora sofreu, em resultado de acidente de viação, graves lesões, passando a precisar da ajuda permanente de terceira pessoa, tendo a autora, após a alta hospitalar, passado a cuidar dele e a viver exclusivamente em função do mesmo, sentindo-se triste, confrangida e amargurada.
Extrai-se da fundamentação do acórdão que a interpretação assumida tem como pressuposto que os danos do lesado sejam particularmente graves e que tenham determinado no outro sofrimento muito relevante. Esclarece-se, ainda, que, para além do cônjuge, outros podem e devem beneficiar da tutela deste tipo de danos, não podendo a referência ao cônjuge ser interpretada no sentido de excluir outros, considerando que, face ao objeto do processo, não compete determinar quais, dos chegados ao lesado, podem pedir compensação pelo sofrimento próprio.
Ora, como é bom de ver, o caso dos autos nada tem a ver com a situação de que se trata no acórdão uniformizador, inexistindo qualquer fundamento legal que permita reconhecer à autora M… o direito à indemnização peticionada.
Por conseguinte, procede este segmento do recurso, ainda que por razões distintas das invocadas pelo recorrente.

IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência, na parcial revogação da sentença, absolve-se o réu do pedido formulado pela autora M…, mantendo-se, em tudo o mais, a decisão recorrida.
Custas aqui e na 1ª instância a cargo de autoras e réu, na proporção do respetivo decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam.
*
Évora, 17 de dezembro de 2020
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Albertina Pedroso (1º adjunto)
Tomé Ramião (2º adjunto)
_______________________________________________

[1] Na sessão de julgamento do dia 06.09.2019 o Sr. Juiz proferiu despacho a indeferir o requerimento de prova do réu para que se oficiasse à secretaria do extinto Juízo de Instância Criminal de Grândola da Comarca do Alentejo Litoral, a fim de ser facultada aos presentes autos certidão do processo crime n.º 206/12.0T3GDL, com as peças processuais que indicou. Inconformado com esta decisão, o réu interpôs recurso de apelação, mas sem êxito, pois esta Relação, por acórdão proferido em 08.10.2020, já transitado em julgado, negou provimento ao recurso.

[2] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1984, pp. 144-146.

[3] Trata-se do artigo 668º do CPC de 1961.

[4] Cfr. Acórdão do STJ de 23.03.2017, proc. 7095/10.7TBMTS.P1.S1, disponível, como os demais adiante citados sem menção de origem, in www.dgsi.pt.

[5] Código Civil Anotado, Volume I, 3ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, p. 474.

[6] Cfr., inter alia, o acórdão do STJ de 19.04.2012, proc. 3046/09.0TBFIG.S1.

[7] Cfr. acórdão do STJ de 14.09.2010, proc. 267/06.0TBVCD.P1.S1.

[8] Acórdão do STJ de 03.02.2011, proc. 605/05.3TBVVD.G1.S1.

[9] No acórdão desta Relação de 26.06.2018, proc. 30/17.3JAFAR.E1, e no acórdão da Relação de Lisboa de 29.06.2016, proc. 646/14.0PCOER.L1-3, julgou-se equitativo o montante de € 15.000,00, em casos que apresentam algumas semelhanças com o dos autos.