Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | JOSÉ MANUEL BARATA | ||
Descritores: | JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL CADUCIDADE DA ACÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 05/16/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I - A justificação notarial destinada a obter um título para servir de base ao registo de um imóvel e a aquisição da propriedade por usucapião, é um negócio jurídico unilateral que tem como efeito a integração na esfera jurídica do justificante de uma facultas exigendi (o poder de exigir a outrem de não interferir nem perturbar o exercício do seu direito de propriedade), uma facultas agendi (a liberdade de agir sobre o bem) e uma facultas dominandi (o poder de considerar e tratar a coisa como sua e sobre ela exercer o seu domínio). II - Em caso de escritura de retificação notarial que se seguiu a anterior escritura de justificação, o dies a quo para a impugnação prevista no artigo 1379º/3 do CC, na redação anterior ao Dec.-Lei 111/15, de 27-8, é a data em que foi celebrada a primeira escritura. III - Se a ação de impugnação foi proposta decorridos mais de três anos sobre a data da primeira escritura é extemporânea, devendo o Réu ser absolvido do pedido. (Sumário do Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Proc.º 981/17.5T8STC.E1 Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora Recorrente: Ministério Público Recorridos: 1. (…), 2. (…), 3. (…), 4. (…), 5. (…) e 6. (…), * No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Competência Genérica de Santiago do Cacém - Juiz 2, o Ministério Público propôs ação contra os RR pedindo que sejam declaradas nulas as escrituras de justificação notarial datadas de 29 de Maio de 2014, retificadas em 29 de Maio de 2014, comunicando-se tal facto ao Cartório Notarial respetivo, nos termos do disposto no artº 131º, nº 1, al. d) e 202º, al. c), do Código do Notariado e à Conservatória do Registo Predial de Santiago do Cacém e ao Serviço de Finanças de Santiago do Cacém.Fundou a sua pretensão no facto de os prédios terem sido destacados de outro prédio rústico com área inferior à unidade de cultura. Os RR defenderam-se por impugnação e exceção, arguindo a caducidade do direito de propor a ação, uma vez que foi proposta em 25-11-2017, mais de 3 anos após o ato de fracionamento, ou seja, a celebração das escrituras em 29-05-2014. * Em sede de despacho saneador o tribunal conheceu da exceção perentória da caducidade e decidiu:Face ao exposto, julgo verificada a excepção de caducidade e, em consequência, absolvo os réus do pedido formulado (cf. art 576.º, n.º 3, do CPC). Registe e notifique. Sem custas pela isenção de que o Ministério Público beneficia. * Não se conformando com o decidido, o A. recorreu da sentença, formulando as seguintes conclusões que delimitam o objeto do seu recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, artigos 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 do CPC: 1. A sentença recorrida julgou procedente a excepção de caducidade do direito de acção invocada pelos Réus, absolvendo os Réus do pedido, por considerar que, antes da propositura da presente acção, decorreu o prazo de caducidade de três anos para arguição da anulabilidade, com base, em síntese, nos seguintes fundamentos: * Os recorridos não contra-alegaram. * Foram colhidos os vistos por via eletrónica. * 1.- Caducou o direito de a A propor a ação; 2.- Se a sentença é nula por omissão de pronúncia. * Os recorridos defenderam-se por exceção em sede de contestação, alegando que o prazo de propositura da ação previsto no artº 1379º/3 do CC se mostra decorrido, pelo que precludiu o direito de propositura da ação. A A entende de modo diverso. Apesar de resultar da prova documental que as escrituras foram celebradas. *** A matéria de facto com interesse para a decisão é a seguinte:1.- No dia 29 de Maio de 2014, por escritura pública celebrada no Cartório Notarial da Licenciada Ana Paula dos Santos Marques, em Santiago do Cacém, os Réus (…), (…), (…) e (…) justificaram a posse: 2.- Do prédio misto sito em (…), Freguesia de Cercal do Alentejo e Concelho de Santiago do Cacém, confrontando a Norte com (…), a Sul com Herdeiros de (…) e Caminho, a Nascente com caminho público e (…) e a Poente com (…), com a área de 1426,90m2, (0,1426 ha), composta a parte rústica de horta e árvores de fruto, a desanexar da parte rústica do prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Santiago do Cacém sob o nº (…) da referida Freguesia, e inscrito sob o artigo (…) da Secção (…) da Freguesia de Cercal do Alentejo, inscrita a parte urbana na matriz predial urbana sob o artigo (…) da referida Freguesia. 3.- No dia 29 de Maio de 2014, por escritura pública celebrada no Cartório Notarial da Licenciada Ana Paula dos Santos Marques, em Santiago do Cacém, os Réus (…) e (…) justificaram a posse: 4.- Do prédio misto sito em (…), Freguesia de Cercal do Alentejo e Concelho de Santiago do Cacém, confrontando a Norte com Herdeiros de (…), a Sul com Herdeiros de (…), a Nascente com caminho público e Herdeiros de (…) e a Poente com (…) e outros, com a área de 1426,90m2, (0,1426 ha), composta a parte rústica de horta e árvores de fruto, a desanexar da parte rústica do prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Santiago do Cacém sob o nº (…) da referida Freguesia, e inscrito sob o artigo (…) da Secção (…) da Freguesia de Cercal do Alentejo, inscrita a parte urbana na matriz predial urbana sob o artigo (…) da referida Freguesia. 5.- No dia 23 de Dezembro de 2014, por escritura pública celebrada no Cartório Notarial da Licenciada Ana Paula dos Santos Marques, em Santiago do Cacém, os Réus (…), (…), (…), (…), (…) e (…) justificaram a posse e rectificaram as áreas constantes da escritura anteriormente outorgada, exarada a fls. 84 ss do livro de notas para escrituras diversas nº (…), e fls. (…) do livro de notas para escrituras diversas nº (…), nos seguintes termos: 6.- Que rectificam a escritura de justificação anterior, no sentido de passar a constar, depois de efectuado o devido levantamento topográfico pelo Instituto Geográfico Português, que as áreas dos prédios rústicos supra descritos são de 1261 m2 e 1278 m2, respectivamente, e não 1426 m2, como por lapso ficou mencionado, e que em tudo o mais a anterior escritura se mantém. 7.- Tais prédios foram assim e naquelas datas desanexados de dois prédios mistos compostos, na parte rústica, de cultura arvense, descritos na Conservatória do Registo Predial de Santiago do Cacém sob o nº (…) e inscritos na matriz cadastral sob o artigo (…) da Secção (…). *** O DireitoOs recorridos defenderam-se por exceção em sede de contestação, alegando que as escrituras de justificação de que o recorrente pretende a anulação foram celebradas em 29-05-2014, pelo que, tendo a ação entrado em juízo a 25-11-2017, com citação dos réus a 20-02-2018, naquela data já se encontrava decorrido o prazo de 3 anos para arguição da anulabilidade das referidas escrituras, nos termos preceituados pelo artº 1379º/3 CC na sua redação anterior ao Dec. Lei 11/15, 27-08. O A pronunciou-se pela não verificação da caducidade, alegando, em suma, que não obstante a primeira escritura pública de justificação da posse ter sido celebrada a 29-05-2014, a mesma foi retificada, também por escritura pública, a 23-12-2014, não se tendo tratado de uma retificação formal ou de mero lapso de escrita, mas sim de retificação material, baseada no levantamento topográfico efetuado pelo Instituto Geográfico Português e com base no qual se alteram as áreas dos prédios rústicos “desanexados” e, como tal, a data a atender para efeito de caducidade é o da segunda escritura onde a situação de facto se estabiliza. Mais alega o A que é a propositura da ação que impede a sua caducidade, conforme dispõe o artigo 259º/1 do C.P.C., e não a citação dos RR. * Equacionada a questão controvertida verificamos que, se considerarmos as escrituras celebradas em 29-05-2014 como o dies a quo para o prazo de caducidade de 3 anos, a ação foi extemporaneamente proposta, tando caducado o direito.Mas se consideramos a data das retificações como o dies a quo, 23-12-2014, a ação foi proposta em tempo. Quid juris? A questão agora a resolver é a de saber qual o real significado para o direito de uma escritura de justificação notarial e de uma escritura posterior que retifica a primeira. Em tese geral, os recorridos, ao celebrarem as escrituras de justificação notarial em 29-05-2014, praticaram atos jurídicos de fracionamento do direito real de propriedade. Um ato jurídico, na lição de Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II pág. 179, AAFDL 1983, é um facto humano voluntário e juridicamente relevante, ou, numa formulação mais perfeita, é a manifestação de vontade a que a norma atribui efeitos de direito (Castro Mendes, Direito Civil, vol. III, pág. 25). No caso dos autos, as normas que atribuem efeitos de direito à vontade dos recorridos são as previstas nos artigos 1316º e 1317º do CC, ou seja, a aquisição do direito de propriedade por usucapião. O artº 116º do CRPredial com a epígrafe, “Justificação relativa ao trato sucessivo”, estipula: 1- O adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo. Por seu turno, o Código do Notariado no seu artº 80º/1, a), exige que sejam celebradas por escritura pública as justificações notariais, bem como as suas retificações (alínea b)). E o artº 89º do CRPredial sob a epígrafe, “Justificação para estabelecimento do trato sucessivo no registo predial”, dispõe: 1- A justificação, para os efeitos do n.º 1 do artigo 116.º do Código do Registo Predial, consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais. 2 - Quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião. Foram estes os atos jurídicos praticados pelos recorridos que tiveram como efeito a integração na ordem jurídica da comunidade e na sua própria esfera jurídica patrimonial, a saber, da facultas exigendi (o poder de exigir a outrem de não interferir nem perturbar o exercício do seu direito de propriedade); da facultas agendi (a liberdade de agir sobre o bem) e da facultas dominandi (o poder de considerar e tratar a coisa como sua e sobre ela exercer o seu domínio) – Carvalho Fernandes, ob. cita pág. 30. Tudo até que algum interessado impugne em juízo a vontade dos recorridos expressa na justificação, nos termos preconizados pelo artº 101º/1 do C. do Notariado. A mesma situação ocorre se considerarmos a justificação notarial como um negócio jurídico unilateral, em que “os efeitos não diferenciam as pessoas que neles intervenham, em que tende a haver apenas uma pessoa, uma única declaração ou um único interesse; a inexistência de tratamentos indiferenciados permite, em termos formais, considerar no seu seio a presença de apenas uma parte: apenas se distingue a situação desta da dos restantes – os terceiros” – Menezes Cordeiro, Teoria Geral do Direito Civil, 1º vol., AAFDL, 1989, pág. 503. Seja como for, conclui-se que os efeitos jurídicos dos atos de justificação praticados pelos ora recorridos, passaram a integrar a sua esfera jurídica patrimonial após a justificação (o registo não é entre nós constitutivo, destinando-se apenas a dar publicidade ao ato da justificação e a conferir uma presunção de titularidade) conferindo-lhes os direitos acima descritos, entre os quais avulta o direito absoluto sobre a coisa, oponível erga omnes, característico dos direitos reais maxime o de propriedade. É o caso dos autos. Os atos jurídicos que o recorrente impugnou foram os acima descritos e legalmente previstos, quer quanto à sua constituição e efetiva integração na ordem jurídica, quer quanto à impugnação a que alude o artº 1379º do CC. Situação fáctica que foi apreciada pelo tribunal a quo, tendo este concluído que a ação declarativa de impugnação e anulação dos atos foi proposta quando já se mostravam decorridos três anos após a prática dos atos de justificação notarial. O recorrente, não se conformando com esta decretada extemporaneidade, vem alegar que a escritura que deve ser tomada em conta é a que foi celebrada em 23-12-2014, ou seja, a que procedeu à retificação da primeira. Com efeito, o artº 80º do C. do Notariado obriga a que as retificações de negócios que, por lei ou por vontade das partes, tenham sido celebrados por escritura pública devem, também elas, ser celebrados por escritura pública, em cumprimento ainda da regra geral do artº 221º/2 do CC. A retificação em causa nos autos procedeu à alteração da área das parcelas objeto da justificação notarial, (as áreas dos prédios rústicos são de 1261 m2 e 1278 m2, respetivamente, e não 1426 m2, como por lapso ficou mencionado) sendo também este argumento que foi pelo recorrente elevado à categoria de alteração material e não meramente formal, pelo que, também por esta razão, segundo o recorrente, é na data da retificação que se deve iniciar o dies a quo para a propositura da ação. Não podemos concordar com esta interpretação, porque equivaleria a admitir ter a retificação de um ato a virtualidade de o faz renascer ex novo, eliminando os efeitos já produzidos pelo ato retificado. Como se disse, o artº 80º/1, b) do C. do Notariado obriga a que as retificações de escrituras de justificação observem também a forma de escritura pública. A palavra rectificar (na grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990) provém do francês rectifier, é um verbo transitivo e significa tornar reto; alinha; tornar exato; corrigir e emendar – Dicionário da Língua Portuguesa, 6ª Ed., Porto Editora. Ora, tornar exato, corrigir e emendar um ato ou negócio jurídico não pode equivaler à criação desse ato ou negócio porque ele já havia sido criado. A esta conclusão chegamos também quando efetuamos a exegese do artº 614º do CPC ao permitir a correção da sentença por simples despacho, equivalendo esta correção à retificação da decisão. Repare-se que a justificação notarial em causa nos autos, se destina à obtenção de documento que prove o direito do justificante para que, com base neste, possa proceder à primeira inscrição de aquisição sobre o prédio e consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais – artº 89º/1 do C. do Notariado. Este desiderato é conseguido com a primeira escritura – a que permitiu obter o documento – e não com a segunda, que se configura como mera correção de erro objetivo verificado na primeira. Sobre a justificação notarial, a força do registo predial do ato quanto à área do prédio justificado e o seu significado jurídico, se pronunciou o nosso mais alto tribunal no Ac. STJ de 19-02-2013, Moreira Alves, Procº 367/2002.P1.S: I- A justificação notarial não passa de um expediente técnico simplificado destinado a obter uma titulação excepcional que sirva de base ao registo predial de um imóvel, não garantindo, com a necessária segurança, a realidade efectiva do direito afirmado, não obstante a intervenção de três declarantes, sabida como é a pouca fiabilidade da prova testemunhal, sobretudo quando não submetida a qualquer contraditório (cf. arts. 116.º, n.º 1, do CRgP, 89.º e 96.º, n.º 1, do CN). II - Sem prejuízo de se admitir que alguns elementos essenciais da descrição predial poderão ser abrangidos pela presunção registral é ponto assente, na jurisprudência, que a dita presunção não se estende à área do prédio registado (cfr. art. 7.º do CRgP), pelo que não será pelo facto de o registo se ter fundado em escritura de justificação notarial, que a presunção legal ficará alargada à área do prédio constante da descrição. III - Uma vez efectuado o registo definitivo, com base na escritura de justificação notarial, surge então a presunção legal estabelecida no art. 7.º do CRgP, nos termos gerais. A presunção emerge daquele registo e não da escritura de justificação que tenha estado na sua base; assim, uma vez efectuado o registo, este ganha autonomia em relação ao título a partir do qual foi efectuado. Também aqui se decidiu que corrigir a área do prédio registado não se revela um ato jurídico de tal forma essencial que configure a emissão de novo documento para efeitos de registo predial. Assim sendo, forçoso é concluir que bem andou o Mº Juiz ao ter declarado a extemporaneidade da propositura da ação, por se mostrar ultrapassado o prazo de três anos a que alude o artº 1379º do CC, o que equivale a dizer que se confirma a decisão e se julga improcedente a apelação. Quanto à alegada omissão de pronúncia encontra-se prejudicada em face do decidido. *** Sumário: (…) *** DECISÃO. Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga improcedente a apelação e confirma a sentença recorrida. Sem custas por delas estar isento o recorrente. *** Évora, 16-05-2019 José Manuel Barata (relator) Conceição Ferreira Rui Machado e Moura |