Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
514/20.6PAPTM.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: ARTIGO 340º DO CPP
PRINCÍPIO DA AQUISIÇÃO DA PROVA
PRINCÍPIO DA INVESTIGAÇÃO
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
À luz do artigo 340º do CPP, o juiz só pode indeferir um requerimento de prova apresentado por qualquer sujeito processual se a prova a produzir for irrelevante ou supérflua, inadequada, de obtenção impossível ou muito duvidosa, ou, ainda, se o requerimento em causa tiver finalidade meramente dilatória.

Por conseguinte, o facto de, na acusação, uma determinada pessoa não ter sido indicada como testemunha não obsta a que, feito pedido nesse sentido, essa pessoa venha a ser ouvida como testemunha na audiência de discussão e julgamento.

Foi o que sucedeu in casu, em que a Exmª Juíza atendeu ao requerimento do Ministério Público, ouvindo, na audiência de discussão e julgamento, testemunhas presenciais dos factos (apesar de as mesmas não terem sido indicadas na acusação).

Mais: impunha-se até ao tribunal recorrido, dentro dos poderes e deveres que lhe são conferidos pelo artigo 340º, nºs 1 e 2, do C. P. Penal, ordenar, oficiosamente, a audição das pessoas em causa, porquanto essas pessoas presenciaram os factos delitivos em discussão nos autos, não obstando a tal imposição, minimamente, a circunstância de se tratar de “meios de prova não constantes da acusação” (cfr., expressamente, o disposto no nº 2 do referido preceito legal).

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - RELATÓRIO

Nos autos de Processo Comum (Tribunal Singular), com o nº 514/20.6PAPTM, do Juízo Local Criminal de Portimão (Juiz 1), e mediante pertinente sentença, o arguido AA foi condenado pela prática, em concurso real, de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº 1, do C. Penal, na pena de 3 meses de prisão, e pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nºs 1 e 2, do D.L. nº 2/98 de 03/01, na pena de 4 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, o arguido foi condenado na pena (principal) única de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 18 meses, e, ainda, na pena acessória de proibição de condução pelo período de 5 meses (nos termos do disposto no artigo 69º, nº 1, al. a), do Código Penal).

*

O arguido vem interpor dois recursos.

1º - Um, visando o despacho proferido pela Exmª Juíza no decurso da audiência de discussão e julgamento que teve lugar em 19-11-2921.

Da motivação desse recurso, o arguido extrai as seguintes conclusões (em transcrição):

“1. AA, arguido nos autos à margem supra identificados, notificado do douto Despacho proferido pela Mma. Juiz de Direito na audiência de discussão e julgamento, no dia 19 de novembro de 2021, que deferiu a promoção do Ministério Público e, não se conformando com o mesmo, vem, mui respeitosamente, interpor Recurso.

2. Ora, no decurso da referida audiência de discussão de julgamento, após a audição da única testemunha arrolada pelo Ministério Público - M, pela Digna Magistrada do Ministério Público, conforme decorre da Ata da Audiência, a fls. ..., foi pedida a palavra, tendo-lhe sido concedida e no seu uso disse: Resultou das declarações da testemunha ora inquirida, que o mesmo que se limitou a efetuar o teste quantitativo e qualitativo ao arguido e que foram os Agentes Principais H e N que observaram o arguido a conduzir no dia e hora dos factos e que o intercetaram na Rua …, nesta urbe. Face ao exposto e porque apenas agora se teve conhecimento disso, requeremos a inquirição dos agentes H e N, por se entender que tal inquirição se revela relevante para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, o que se faz ao abrigo do art.º 340º do CPP.

3. A Defesa do arguido opôs-se, por considerar que tal informação já resultava do auto de notícia e que tal prova testemunhal deveria, por isso, ter sido requerida aquando da prolação do despacho de acusação.

4. Todavia, o Tribunal a quo deferiu o requerido pelo Ministério Publico, sustentando que:

“Pese embora assista razão à defesa, no sentido da indicação das testemunhas, que tem que ser cuidadosamente ponderada, e que as testemunhas referidas pelo Agente, ora inquirido, constavam do auto de notícia, não resulta muito claro, do texto do auto, que o Agente M não tivesse presenciado, ele próprio, os factos. Por isso que, deferindo ao requerido pelo Ministério Público, nos termos e para os efeitos do art.º 340º do CPP, decido ouvir as testemunhas H e N. Para esse efeito designa-se o dia 17 de dezembro de 2021, pelas 11 horas. Oficie e notifique”.

5. Todavia, discorda o Recorrente do Despacho proferido, pois com todo o devido respeito que é muito, considera que o Ministério Público enquanto órgão de administração da justiça no âmbito das suas atribuições, designadamente, no exercício da ação penal orientado pelo princípio da legalidade e ao dirigir a investigação e as ações de prevenção criminal que, no âmbito das suas competências, lhe incumba realizar ou promover, assistido, sempre que necessário, pelos órgãos de polícia criminal, em sede de Inquérito devia ter indicado como testemunhas as testemunhas da ocorrência, designadamente os agentes agora arrolados e realizado as mais diversas diligências de investigação, pois era o momento para tal.

6. Pelo que, na fase de Inquérito o Ministério Público ao dirigir a investigação, devia ter tomado todas as diligências para aferir quem eram as testemunhas que, efetivamente, presenciaram os factos imputados ao ora arguido, o que não fez.

7. O Ministério Público teve acesso aos autos em momento oportuno, ou seja, desde o início dos presentes autos, tendo, inclusivamente, acesso a todas às testemunhas dos factos imputados ao arguido, pelo que podia e devia apresentar o rol de testemunhas que agora arrola.

8. Pois, conforme decorre do auto de notícia de fls. 4 e ssgs, as testemunhas agora suscitadas já constavam do auto como testemunhas, designadamente, no campo descrito como Testemunhas da Ocorrência, pelo que o ora recorrente entende que as mesmas deveriam ter sido indicadas aquando da dedução do libelo acusatório.

9. E, o elemento policial que narrou os factos no campo Informações complementares sustenta também que os factos foram presenciados pelos elementos policiais Associados como testemunhas, conforme decorre do supra referido auto de notícia. Ora, também daqui decorre que já era conhecimento do Ministério Publico da existência destas testemunhas.

10. O Ministério Público nunca teve interesse na sua audição, pois se o tivesse, as testemunhas agora arroladas teriam sido arrolados aquando da dedução da douta acusação.

11. Assim, não poderá vir agora requerer a sua audição como essencial para a descoberta da verdade, pois nunca o foi até então para o Ministério Público.

12. Pelo exposto, o Recorrente, com todo o devido respeito que é muito, entende que inexiste fundamento legal para a pretendida inquirição de duas testemunhas identificadas desde o início dos autos, designadamente, no auto de notícia.

13. Por outro lado, não existe qualquer superveniência, não é a primeira vez que se tem acesso a estas testemunhas, pois como já referido as mesmas já constavam do auto de notícia.

14. Ora, a Mma. Juiz de Direito, com todo o devido respeito que é muito, até inicia o douto despacho ora recorrido que Pese embora assista razão à defesa, ou seja, até confirma que assiste razão ao arguido, ora recorrente.

15. No entanto, sustenta que o texto do auto de notícia não está claro.

16. Entende, o ora recorrente que se o texto não é claro, também invocado pelo Ministério Público, devia este órgão no âmbito dos poderes que detêm para dirigir a investigação ter requerido ao elemento policial autuante que aclaramento do teor do mesmo.

17. O que não sucedeu.

18. Por outro lado, não se vislumbra a existência de quaisquer factos novos, que tenham surgido na sequência da anterior inquirição, que tenham feito surgir tal necessidade de inquirição, pois tais factos são precisamente os mesmos desde o início.

19. No caso em apreço, é manifesto que a prova agora indicada já podia ter sido oferecida com dedução da acusação, termos em que, pelo exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 340º, nºs 1 e 4, alíneas a) e d) do Código de Processo Penal, o requerimento do Ministério Público deveria ter sido indeferido.

20. Aliás, com todo o devido respeito que é muito, a Mma. Juiz referiu até que a defesa do arguido tinha razão, mas que o texto do auto de notícia, não estava claro.

21. Ora, pelo exposto entendemos que o Tribunal a quo, devia indeferir o requerimento.

22. Há um momento processual próprio para requerer a produção de prova, no entanto, a prova pode ser requerida para além desse momento se houver uma circunstância especial - a “superveniência” - que o justifique.

23. Sendo assim, o requerimento da produção de meios de prova na audiência é fundado quando o requerente alegar e provar que os meios de prova ou de obtenção de prova por si conhecidos depois do momento próprio para requerer a respetiva produção.

24. In casu, este meio de prova já era conhecido pelo Ministério Público desde o início dos autos, conforme decorre do auto de notícia, em que os agentes policiais agora arrolados já constavam como testemunhas dos factos imputados ao ora recorrente.

25. O Tribunal a quo deveria ter indeferido o requerimento, invocando a alínea a), do nº 4, do artigo 340º, do CPP, por considerar ser notório que as testemunhas arroladas em causa já poderiam ter sido arroladas quando o Ministério Público deduziu a Acusação.

26. Pelo que, por tudo o exposto se entende que, a admissão da inquirição requerida ao abrigo do disposto no artigo 340º, nºs 1 e 2, do C.P.P., subverte as regras processuais quanto ao momento oportuno da apresentação dos meios de prova.

Nestes termos e nos demais de Direito, e sem prescindir do douto suprimento de V. Exas., deverá o douto Despacho do Tribunal a quo ser revogado e substituído por outro que revogue a decisão proferida pelo Tribunal A quo, substituindo-a por outra que indeferia o requerido pelo Ministério Público”.

2º - Outro, visando a sentença proferida.

Da motivação deste recurso, o arguido extrai as seguintes conclusões (em transcrição):

“1. O arguido AA foi condenado pela prática, em concurso real, de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº 1, do C. Penal, na pena parcelar de 3 (três) meses de prisão, e de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nºs 1 e 2, do DL nº 2/98, de 3 de janeiro., na pena parcelar de 4 (quatro) meses de prisão, fixando, em cúmulo jurídico, a pena principal única, de 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 18 meses.

2. E, ainda condenado na pena acessória de proibição de condução de qualquer categoria de veículos a motor, pelo período de 5 (cinco) meses, nos termos do artigo 69.º n.º 1 alínea a) do Código Penal.

3. E, para assim condenar, o Tribunal a quo, quanto à factualidade apurada, fundou a sua convicção nos depoimentos das Testemunhas M e N.

4. Considerou o Tribunal a quo que a testemunha M - Agente da PSP -, depôs de modo coerente e objetivo, todavia, frisa que o mesmo não presenciou o acidente, tendo somente elaborado a respetiva participação do acidente e sujeitado o arguido ao teste do álcool.

5. E, de facto, a referida testemunha não presenciou os factos, não viu se era ou não o arguido a conduzir naquele dia e hora, pelo que não teve conhecimento direto sobre os factos, imputados ao arguido.

6. O que o mesmo sabe é o que os seus Colegas lhe narraram.

7. Do depoimento do mesmo, não resulta que o arguido tenha praticado qualquer ilícito criminal.

8. Assim, entendemos, com todo o devido respeito que é muito, que não existem quaisquer elementos de prova que permita concluir que o arguido tenha praticado qualquer crime.

9. Relativamente à testemunha N, agente da PSP, o Tribunal a quo considerou que a mesma depôs de modo coerente e objetivo, tendo sido valorado o seu depoimento para o apuramento dos factos.

10. Tendo esta testemunha relatado que se apercebeu da aproximação do veículo em causa, que circulava a uma velocidade excessiva, tendo embatido noutra viatura e prosseguido a sua marcha, pelo que seguiu no seu encalço, até intercetar o respetivo condutor. Nessa ocasião, pedidos os documentos, o arguido admitiu não ser titular de carta de condução, tendo sido submetido ao teste ao álcool pelo Agente M.

11. O ora recorrente entende que o requerimento para que a mesma fosse ouvida em sede de julgamento deveria ter sido indeferido.

12. Pois, conforme decorre dos autos, a mesma somente foi arrolada em sede de julgamento, aquando da primeira sessão de julgamento.

13. Pelo que, entende o Recorrente que o Ministério Público, enquanto órgão de administração da justiça no âmbito das suas atribuições, designadamente, no exercício da ação penal orientado pelo princípio da legalidade e ao dirigir a investigação e as ações de prevenção criminal que, no âmbito das suas competências, lhe incumba realizar ou promover, assistido, sempre que necessário, pelos órgãos de polícia criminal, em sede de Inquérito devia ter indicado como testemunhas as testemunhas da ocorrência, designadamente os agentes agora arrolados e realizado as mais diversas diligências de investigação, pois era o momento para tal.

14. E, na fase de Inquérito, o Ministério Público, ao dirigir a investigação, devia ter tomado todas as diligências para aferir quem eram as testemunhas que, efetivamente, presenciaram os factos imputados ao ora arguido, o que não fez.

15. Desde a fase inicial dos presentes autos, o Ministério Público teve acesso a todos os documentos constantes nos autos, designadamente, o Auto de Notícia, onde constam as testemunhas quem assistiram aos factos imputados ao arguido, pelo que aquando da dedução da acusação podia e devia apresentar o rol de testemunhas que somente arrolou em sede de julgamento.

16. Pois, só o fez (tardiamente) quando se apercebeu que a testemunha arrolada nada tinha presenciado, não teve qualquer conhecimento direto dos factos imputados ao arguido.

17. Pelo exposto, o ora recorrente, com todo o devido respeito que é muito, entende que inexiste fundamento legal para inquirição da testemunha N.

18. E, considera também que, não existe qualquer superveniência, pois não decorre apenas das declarações do Agente M que o Agente N presenciou os factos, o mesmo já decorria do Auto de Notícia, a que o Ministério Público teve acesso desde o momento inicial dos presentes autos.

19. Não se vislumbra a existência de quaisquer factos novos, que tenham surgido na sequência da anterior inquirição, que tenham feito surgir tal necessidade de inquirição, pois tais factos são precisamente os mesmos desde o início.

20. No caso em apreço, é manifesto que a prova indicada podia ter sido oferecida com dedução da acusação, termos em que, pelo exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 340º, nºs 1 e 4, alíneas a) e d) do Código de Processo Penal, o requerimento do Ministério Público deveria ter sido indeferido.

21. Há um momento processual próprio para requerer a produção de prova, no entanto, a prova pode ser requerida para além desse momento se houver uma circunstância especial - a “superveniência” - que o justifique.

22. In casu, considera o ora recorrente que não há justificação para tal.

23. O requerimento da produção de meios de prova na audiência é fundado quando o requerente alegar e provar que os meios de prova ou de obtenção de por si foram conhecidos depois do momento próprio para requerer a respetiva produção.

24. Ora, este meio de prova já era conhecido pelo Ministério Público desde o início dos autos, conforme decorre do auto de notícia, em que o agente policial arrolado já constava como testemunha dos factos imputados ao ora recorrente.

25. O Tribunal a quo deveria ter indeferido o requerimento, invocando a alínea a), do nº 4, do art. 340º, do CPP, por considerar ser notório que as testemunhas arroladas em causa já poderiam ter sido arroladas quando o Ministério Público deduziu a Acusação.

26. A admissão da inquirição requerida ao abrigo do disposto no art. 340º, nºs 1 e 2, do C.P.P., subverte as regras processuais quanto ao momento oportuno da apresentação dos meios de prova.

27. Assim, a sentença proferida pelo Tribunal a quo sustenta-se em prova que não deveria ter sido considerada, atento o supra exposto.

28. Nestes termos, entende o Recorrente que a Sentença em crise agride a disciplina constante no artigo 340º, nºs 1 e 2, do CPP.

Nestes termos e nos demais de Direito, e sem prescindir do douto suprimento de V. Exas., deverá a douta Sentença do Tribunal a quo ser revogada e substituída por outra que, tomando em consideração os factos supra expostos, revogue o deferimento da audição das testemunhas arroladas em sede de julgamento, e, considerando a prova produzida em sede de audiência de julgamento, absolva o Arguido AA dos crimes pelos quais foi condenado, com todas as consequências legais”.

*

A Exmª Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta aos recursos, concluindo pela sua improcedência.

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, entendendo também que os recursos não merecem provimento.

Cumprido o disposto no nº 2 do artigo 417º do C. P. Penal, o arguido apresentou resposta, reafirmando o já alegado nas motivações dos recursos.

Foram colhidos os vistos legais e foi realizada a conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1- Delimitação do objeto dos recursos.

No presente caso a única questão evidenciada em ambos os recursos, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, as quais delimitam o objeto dos recursos e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, é a seguinte (em muito breve síntese): determinar se, na audiência de discussão e julgamento, e ao abrigo do disposto no artigo 340º do C. P. Penal, podiam ser ouvidas duas testemunhas não indicadas na acusação, mas cujos nomes e razão de ciência já constavam do auto de notícia (primeiro recurso interposto), e, em consequência, saber se é de manter a factualidade dada como provada na sentença revidenda, relativamente ao ato de condução praticado pelo arguido, uma vez que a testemunha arrolada pelo Ministério Público na acusação (o agente da PSP M) não presenciou tal condução (limitou-se a elaborar a “participação de acidente” e a efetuar o teste qualitativo e quantitativo de pesquisa de álcool ao arguido) e uma vez que a testemunha N (agente da PSP que observou o arguido a conduzir - e o intercetou -) não podia ter ser sido inquirida, como foi, não existindo, por isso, prova do ato de condução cometido pelo arguido (recurso interposto da sentença condenatória).

2 - As decisões recorridas.

I - O despacho proferido em 19-11-2021 é do seguinte teor:

“Pese embora assista razão à defesa, no sentido da indicação das testemunhas, que tem que ser cuidadosamente ponderada, e que as testemunhas referidas pelo Agente, ora inquirido, constavam do auto de notícia, não resulta muito claro, do texto do auto, que o Agente M não tivesse presenciado, ele próprio, os factos.

Por isso que, deferindo ao requerido pelo Ministério Público, nos termos e para os efeitos do art.º 340º do CPP, decido ouvir as testemunhas H e N.

Para esse efeito designa-se o dia 17 de dezembro de 2021, pelas 11 horas.

Oficie e notifique”.

II - A sentença revidenda é do seguinte teor (quanto aos factos - provados e não provados - e quanto à fundamentação da decisão fáctica - na parte aqui relevante -):

“Factos provados:

1. No dia 22 de maio de 2020, pelas 23h13m, o arguido conduziu o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula …, na Rua …, em …, com uma T.A.S. igual a 1.59 g/l e sem ser titular de carta de condução.

2. Nessas circunstâncias, foi interveniente em acidente de viação (ao cruzar-se com o veículo com a matrícula …, embateu na sua lateral esquerda, partindo-lhe o vidro do lado do condutor).

3. O arguido sabia que não podia conduzir após ter ingerido bebidas alcoólicas, porquanto, ao fazê-lo, punha em perigo todos os demais utentes da via, o que, não obstante, não o impediu de efetuar tal condução.

4. Mais sabia que para conduzir aquele veículo na via pública necessitava de ser titular de carta de condução.

5. O arguido atuou de modo livre, deliberado e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

6. O arguido já foi condenado:

a) Por sentença proferida em 13.11.2009, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de 5 euros (por factos praticados em 17.10.2009), extinta pelo cumprimento;

b) Por acórdão proferido em 22.02.2013, pela prática de um crime de roubo, um crime de furto qualificado e um crime de furto de veículo, na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão (por factos praticados em 24.02.2012), sendo lhe concedida liberdade condicional e, 07.07.2015 e declarada a pena extinta por referência a 16.09.2018;

c) Por acórdão proferido em 06.11.2019, transitada em julgado em 13.04.2021, pela prática de um crime de furto qualificado, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão (factos praticados em 17.12.2017)”.

Factos não provados:

Não existem.

Motivação:

(….)

Foram os seguintes os meios de prova nos quais o Tribunal fundou a sua convicção:

- Depoimento da testemunha M, agente da PSP que acorreu ao local, por haver notícia de um acidente de viação, e elaborou a respetiva “participação”, o qual esclareceu, pese embora não tenha presenciado o acidente, que o condutor interveniente no acidente foi intercetado por outros agentes da PSP, os quais presenciaram o acidente, e sujeitou o arguido ao teste de álcool, acusando o mesmo a TAS indicada no talão junto aos autos.

- Depoimento da testemunha N, agente da PSP, que se encontrava a estacionar a viatura policial na via dos autos, que se apercebeu da aproximação do veículo do arguido, o qual circulava a velocidade excessiva, tendo o mesmo embatido noutra viatura e prosseguido a sua marcha. Seguiu no seu encalço, até intercetar o respetivo condutor (o arguido). Nessa ocasião, pedidos ao arguido os documentos, o arguido admitiu não ser titular de carta de condução, tendo posteriormente sido submetido ao teste ao álcool pelo agente M.

(….)”.

3 - Apreciação do mérito dos recursos.

Alega-se nas motivações dos recursos, em breve síntese, que não tem suporte legal o deferimento da inquirição das testemunhas H e N (agentes da PSP) na audiência de discussão e julgamento, uma vez que tais testemunhas não foram indicadas na acusação (sendo certo que as mesmas estavam referenciadas no “auto de notícia”), pelo que a factualidade dada como provada a partir do depoimento da testemunha N (o ato de condução do veículo por banda do arguido) tem de ser considerada como não provada, com a consequente absolvição do arguido.

Cumpre decidir.

Compulsados os autos, verifica-se o seguinte:

1º - No decurso da audiência de discussão de julgamento realizada em 19 de novembro de 2021, após a inquirição da única testemunha indicada pelo Ministério Público na acusação (M), a Exmª Magistrada do Ministério Público requereu o seguinte: “resultou das declarações da testemunha ora inquirida, que a mesma se limitou a efetuar o teste quantitativo e qualitativo ao arguido, e que foram os Agentes Principais H e N que observaram o arguido a conduzir, no dia e hora dos factos, e que o intercetaram na Rua …, nesta urbe. Face ao exposto, e porque apenas agora se teve conhecimento disso, requeremos a inquirição dos agentes H e N, por se entender que tal inquirição se revela relevante para a descoberta da verdade material e a boa decisão da causa, o que se faz ao abrigo do artigo 340º do C. P. Penal”.

2º - Dada a palavra à Ilustre Mandatária do arguido, a mesma opôs-se ao requerido, uma vez que a informação agora invocada pelo Ministério Público já resultava do “auto de notícia”, e, por isso, a prova testemunhal em causa deveria ter sido indicada no despacho de acusação.

3º - Após, a Exmª Juíza ditou para a ata o despacho recorrido (despacho acima transcrito).

4º - Na fundamentação da decisão fáctica constante da sentença revidenda, a Exmª Juíza considerou que a testemunha M (agente da PSP) depôs de modo coerente e objetivo, mas frisa que o mesmo não presenciou o acidente, tendo somente elaborado a respetiva “participação de acidente” e sujeitado o arguido ao teste de pesquiza de álcool no sangue.

5º - A referida testemunha não presenciou os factos da condução, não viu se era (ou não) o arguido a conduzir naquele dia e hora, pelo que não teve conhecimento direto sobre essa factualidade, ou seja, conhece a mesma apenas a partir daquilo que os seus colegas lhe narraram.

6º - Na fundamentação da decisão fáctica constante da sentença revidenda, a Exmª Juíza considerou que a testemunha N (agente da PSP) depôs de modo coerente e objetivo, tendo esta testemunha relatado que se apercebeu da aproximação do veículo em causa, que circulava a uma velocidade excessiva, tendo embatido noutra viatura e prosseguido a sua marcha, pelo que seguiu no seu encalço, até intercetar o respetivo condutor (o arguido).

7º - Nessa ocasião, a testemunha N pediu ao arguido (condutor do veículo) os respetivos documentos, e logo o arguido admitiu não ser titular de carta de condução.

Face ao que vem de elencar-se, e com o devido respeito pelo esforço argumentativo constante das motivações dos recursos, nenhuma razão assiste ao recorrente.

Com efeito, e a nosso ver, a circunstância de os agentes da PSP N e H não terem sido indicados como testemunhas na acusação oportunamente deduzida pelo Ministério Público, apesar de estarem devidamente referenciados no “auto de notícia”, não obsta a que tais agentes policiais, se isso se mostrar indispensável à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, possam ser ouvidos, como testemunhas, na audiência de discussão e julgamento.

Ora, a inquirição das duas referidas testemunhas na audiência de discussão e julgamento era indispensável à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, porquanto apenas os agentes da PSP N e H visualizaram o arguido a conduzir o veículo, no local e na data em apreço, tendo, por isso, conhecimento direto dos factos.

Assim sendo, os agentes da PSP N e H podiam ser ouvidos como testemunhas na audiência de discussão e julgamento, e os seus depoimentos podiam ser atendidos na decisão fáctica tomada na sentença sub judice (na audiência apenas veio a ser ouvida a testemunha N, cujo depoimento foi considerado, e muito bem, na sentença em questão).

O fundamento legal para este nosso entendimento flui do preceituado no artigo 340º do C. P. Penal.

Senão vejamos.

Estabelece o artigo 340º do C. P. Penal:

“1 - O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.

2 - Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da ata.

3 - Sem prejuízo do disposto no nº 3 do artigo 328º, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respetivo meio forem legalmente inadmissíveis.

4 - Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:

a) (Revogada)

b) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;

c) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou

d) O requerimento tem finalidade meramente dilatória”.

À luz deste preceito legal, o juiz só pode indeferir um requerimento de prova apresentado por qualquer sujeito processual se a prova a produzir for irrelevante ou supérflua, inadequada, de obtenção impossível ou muito duvidosa, ou, ainda, se o requerimento em causa tiver finalidade meramente dilatória.

Por conseguinte, o facto de, na acusação, uma determinada pessoa não ter sido indicada como testemunha não obsta a que, feito pedido nesse sentido, essa pessoa venha a ser ouvida como testemunha na audiência de discussão e julgamento.

Foi o que sucedeu in casu, em que a Exmª Juíza atendeu ao requerimento do Ministério Público, ouvindo, na audiência de discussão e julgamento, testemunhas presenciais dos factos (apesar de as mesmas não terem sido indicadas na acusação).

Mais: impunha-se até ao tribunal recorrido, dentro dos poderes e deveres que lhe são conferidos pelo artigo 340º, nºs 1 e 2, do C. P. Penal, ordenar, oficiosamente, a audição das pessoas em causa, porquanto essas pessoas presenciaram os factos delitivos em discussão nos autos, não obstando a tal imposição, minimamente, a circunstância de se tratar de “meios de prova não constantes da acusação” (cfr., expressamente, o disposto no nº 2 do referido preceito legal).

Dito de outro modo: ao tribunal estava vedada a omissão de audição das testemunhas em causa (agentes da PSP), presenciais dos factos, na medida em que tais testemunhas eram essenciais para a descoberta da verdade (como resulta evidente da leitura das motivações dos recursos interpostos pelo arguido), não constituindo razão para entendimento diferente a circunstância de tais testemunhas, cuja audição foi requerida apenas na audiência de discussão e julgamento (não tendo sido arroladas da acusação), constarem do “auto de notícia” e serem, portanto, já conhecidas na data da dedução da acusação e da indicação dos meios de prova a produzir em julgamento.

Nenhum preceito legal (nomeadamente o disposto no artigo 340º do C. P. Penal) impede, minimamente, que sejam inquiridas testemunhas, na audiência de discussão e julgamento, que já podiam ter sido arroladas na acusação e não o foram.

Basta, para tanto, que a sua inquirição se apresente como necessária e indispensável à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.

É que, e como é sabido, no âmbito do processo penal vigora o princípio da aquisição da prova, ligado ao princípio da investigação, donde resulta que são boas as provas validamente trazidas ao processo, sem importar a sua origem ou quando foram indicadas, devendo o Tribunal, em último caso, investigar e esclarecer os factos, na procura incessante da verdade material, como determina o acima transcrito artigo 340º, nº 1, do C. P. Penal.

É certo que o processo penal português está concebido como tendo uma estrutura acusatória.

Só que, a acusação apenas define e limita o objeto da prova (os factos submetidos a julgamento) e não (e é coisa diferente) os meios de prova (estes não estão limitados aos indicados pela acusação - ou pela defesa -).

Com efeito, e como bem se escreve no Ac. do T.R.L. de 07-05-2002 (citado no “Parecer” do Exmº Procurador-Geral Adjunto), “o artigo 340º do CPP consagra o princípio da unidade material ou da investigação, admitindo, com grande amplitude, a produção em audiência de todos os meios de prova, desde que necessários à descoberta da verdade material, legalmente admissíveis, adequados ao objeto da prova e de obtenção possível”.

Conforme bem salienta o Exmº Procurador-Geral Adjunto, no seu “Parecer”, “sem prejuízo dos mecanismos referentes ao adiamento da audiência, constituem limites à produção de prova ou ao respetivo meio, em sede de audiência (artigo 340º, nºs 3 e 4, do CPP): a sua inadmissibilidade legal (artigos 125º e 126º do CPP); a sua manifesta irrelevância; se for notoriamente supérflua; a sua manifesta inadequação (cfr. artigo 151º do CPP); se for manifesta a impossibilidade da sua obtenção, ou se for de obtenção muito duvidosa; e se tiver finalidade meramente dilatória. Caso não se esteja perante uma das situações enunciadas, como é manifestamente o caso, é clara a obrigatoriedade da diligência de prova, até porque a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade constitui nulidade dependente de arguição, nos termos do artigo 120º, nº 2, al. d), do CPP”.

Em consequência do que ficou exposto, é de concluir

1º - O despacho proferido pela Exmª Juíza no decurso da audiência de discussão e julgamento que teve lugar em 19-11-2921 mostra-se totalmente acertado, ou seja, impunha-se a audição das testemunhas H e N (agentes da PSP que observaram e intercetaram o arguido a conduzir).

Assim sendo, o recurso do arguido, visando tal despacho, não merece provimento.

2º - Sendo válidos e atendíveis os depoimentos das indicadas testemunhas, o recurso interposto da sentença proferida em primeira instância é também de improceder, porquanto em tal recurso se procede, tão só, à impugnação alargada da matéria de facto dada como assente na sentença, e sendo certo que essa impugnação se baseia, toda ela, na alegação segundo a qual o depoimento da testemunha N constitui prova que não pode ser considerada (note-se, repetindo o já acima aludido, que a testemunha H não chegou a ser ouvida na audiência de discussão e julgamento).

Por tudo o que se deixou dito, os recursos interpostos pelo arguido não merecem provimento.

III - DECISÃO

Nos termos expostos, nega-se provimento aos recursos interpostos pelo arguido, mantendo-se, consequentemente, as decisões recorridas.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 21 de junho de 2022

João Manuel Monteiro Amaro

Nuno Maria Rosa da Silva Garcia

Gilberto da Cunha