Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
824/15.4T8BJA-A.E1
Relator: MATA RIBEIRO
Descritores: INCUMPRIMENTO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
IMPULSO PROCESSUAL
MINISTÉRIO PÚBLICO
Data do Acordão: 02/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I – No âmbito dos processos tutelares cíveis, o Ministério Público não é “entidade neutra”, concedendo-lhe a lei iniciativa própria em zelar pelo superior interesse dos menores, em especial no que respeita ao incumprimento das responsabilidades parentais, em qualquer das suas vertentes, designadamente no direito a alimentos, podendo requerer ao tribunal as diligências necessárias e adequadas ao cumprimento coercivo do acordado ou decidido.
II – Assim, mesmo no incidente de incumprimento que não foi por sua iniciativa instaurado, não deixa de assumir a posição de verdadeira parte em defesa dos interesses do menor, atendendo a que a lei expressamente prevê que, para além dos progenitores, a incitativa processual cabe ao Ministério Público (cfr. artº 17 º n.º 1 e 41º n.º do RGPTC).
Decisão Texto Integral:






ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


No âmbito dos autos de incumprimento das responsabilidades parentais em que é requerente bb e requerido cc, progenitores do menor Pedro …, que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Beja (Juízo de Família e Menores de Beja) na sequência de promoção da Exma. Magistrada do Ministério Público, de 26/06/2018, foi proferido o seguinte despacho:
A Segurança Social veio informar os autos de que cessou o subsídio que o progenitor vinha auferindo e que nessa sequência não continuarão a ser feitos os descontos (cfr. ref.ª 1237748).
O Ministério Público teve vista nos autos e promoveu que fossem feitas diligências no sentido de apurar se o progenitor se encontra a trabalhar ou a receber qualquer tipo de apoio ou subsídio para efeitos de continuarem a ser feitos os descontos.
A referida promoção teve acolhimento, embora não tivesse sido possível apurar quaisquer rendimentos suscetíveis de descontos para efeitos do disposto no artigo 48.º do RGPTC. Pelo que vem novamente o Ministério Público requerer que sejam feitas diligências no sentido de apurar se o progenitor se encontra a auferir rendimentos.
Apreciando e decidindo,
Os presentes autos encontram-se findos desde 20/04/2017, tendo sido remetidos ao arquivo.
O RGPTC considerou os processos tutelares cíveis como de jurisdição voluntária cfr. artigo 12.º, e considerou ainda que lhes são aplicáveis subsidiariamente as regras do processo civil que não contrariem os fins da jurisdição de menores, cfr. artigo 33.º, n.º 1, como é o caso das regras do ónus de prova e do impulso processual das partes.
Entendemos assim que não cabe ao tribunal ordenar por sua iniciativa a continuação dos descontos perante a inação do credor de alimentos
Vejamos,
No caso presente estamos perante um processo de jurisdição voluntária, cfr. artigo 12.º do RGPTC.
Quanto às regras aplicáveis aos processos de jurisdição voluntária dispõe o artigo 986.º, n.º 2 do Código de Processo Civil que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias.
A lei confere genericamente poderes oficiosos ao Tribunal quanto à indagação dos factos, e às provas. Contudo, não dispensa o interessado da alegação dos factos que integram o direito que pretende fazer valer. A verdade é que o princípio dispositivo atribui primazia aos ónus de alegação e de impulso processual das partes, nada se impondo ao tribunal, em termos de este se substituir à iniciativa do credor de alimentos em impulsionar os autos.
E nem se diga que bastará a promoção que antecede para efeitos de impulso processual.
Desde logo, porque não foi alegado que o requerido não pagou voluntariamente a prestação devida desde que cessaram os descontos, nem se conclui que se verifica uma situação atual de incumprimento, limitando-se o Ministério Público a partir desse princípio, e a assumir que uma vez que não cumpriu voluntariamente a obrigação, não mais o fará.
Não se desconhece que o cumprimento é um facto extintivo da obrigação, cuja prova compete ao devedor, conforme decorre do artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil, contudo é facto que carece de alegação, que não foi feita.
Nada obsta porém que o interessado ou o Ministério Público aleguem o incumprimento, narrando os factos respetivos, na sede própria e que permitirão sendo caso disso acionar o mecanismo pré-executivo previsto no artigo 48.º do RGPTC, ou acionar o FGADM, não se frustrando a possibilidade de a criança obter a prestação de alimentos devida para assegurar a satisfação das suas necessidades básicas.
Em face do exposto indefere-se o requerido, devendo os autos voltar ao arquivo, até que seja, de facto, alegado o incumprimento das responsabilidades parentais.
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Inconformada com esta decisão, veio a Exma. Magistrada do Ministério Público interpor o presente recurso e apresentar as respetivas alegações, terminando por formular as seguintes conclusões:
1.ª - O despacho recorrido determinou que os autos fossem arquivados com o argumento básico da inexistência de impulso processual e da ausência da alegação dos factos do direito que se pretende fazer valer, em violação do princípio do dispositivo.
2.ª - Para além de incorrer em contradição da fundamentação, ao reconhecer que sobre o tribunal recaem "poderes oficiosos" de atuação, mas que o "ónus de alegação e de impulso processual das partes" teria "primazia", a decisão erra, pois, o Ministério Público impulsionou o processo através de uma intervenção justamente denominada "promoção", de 16.11.2018, ao abrigo dos poderes-deveres que lhe são conferidos pelos arts. 17º e 41 º, n.º 1 do R.G.P.T.C. e dos arts. 3º, n.º 1, al. a) e 5º, n.º 1, al, c) do Estatuto do Ministério Público.
3.ª - O despacho impugnado determina um burocrático arquivamento do processo que frustra, à partida, a possibilidade de um menor obter o mínimo dos mínimos do que lhe é devido para assegurar a satisfação das suas necessidades vitais, numa jurisdição não contenciosa que se deve reger por princípios e critérios inversos dos subjacentes à sua prolação.
4.ª - O incumprimento do regime de exercício das responsabilidades parentais configura uma hipótese legal (tatbestand ou fattispecie) que se preenche com um só facto concreto: a sua não observância, neste caso, o não pagamento dos alimentos por parte do obrigado, que desde sempre constituiu fundamento do requerimento inicial- só ele constitui o facto essencial ou principal da referida hipótese.
5.ª - As circunstâncias do incumprimento são um mero facto complementar, concretizador, de aferição oficiosa, no limite (cfr. art. 5º, n.º 2, al, b) do Cód. Proc. Civil).
6.ª - Nos processos de jurisdição voluntária, o julgador não está vinculado à observância rigorosa do direito aplicável, devendo antes debruçar-se sobre o caso concreto e procurar aquela solução que lhe parecer a mais adequada à justa composição dos interesses em presença.
7.ª - Como o Tribunal assim não procedeu, proferiu uma decisão incorreta e materialmente injusta que, por incorreta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 12º, 17º e 41 º, n.º 1 do R.G.P.T.C. e 986º, n.º 2 e 987º do Cód. Proc. Civil, pode colocar em causa a subsistência do beneficiário de alimentos, pelo que se impõe a sua revogação.
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Apreciando e decidindo

O objeto do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, tendo por base as disposições combinadas dos artºs 635º n.º 4, 639º n.º 1 e 608º n.º 2 ex vi do artº 663º n.º 2, todos do CPC.

Assim, a questão em litígio, cinge-se em saber se o Julgador devia ter acolhido a promoção do Ministério Público e determinar a realização das diligências com vista a possibilitar a prossecução dos descontos, destinados ao pagamento dos alimentos devidos ao menor, por parte do progenitor.
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Emerge dos autos, com interesse, o seguinte circunstancialismo factual:
1 - O processo de incumprimento das responsabilidades parentais foi instaurado a requerimento da progenitora, apresentado em 16/11/2016, tendo sido proferida, em 20/04/2017, decisão que reconheceu a dívida de alimentos a cargo do progenitor CC, relativamente aos meses de outubro a dezembro de 2016 e janeiro a abril de 2017, no valor total de € 910,00 e, simultaneamente, determinou a efetivação de descontos por conta dos alimentos vincendos e vencidos.
2 - Os descontos iniciaram-se no mês de maio de 2017, tendo perdurado até ao mês de fevereiro de 2018, inclusive, uma vez que, em março de 2018, o progenitor deixou de auferir, mensalmente, rendimentos que garantissem a cobrança coerciva dos alimentos vincendos e vencidos em dívida.
3 - Em virtude do requerido ter deixado de auferir subsídio de desemprego, diligenciou-se por saber se o mesmo estaria a trabalhar por conta de outrem para, na afirmativa, ser remetida cópia do seu último recibo de remuneração, visando a eventual prossecução dos descontos que, mensalmente, vinham a ser efetuados.
4 - Por informação datada de 24/05/2018, uma das entidades patronais que lhe eram conhecidas veio confirmar que o requerido fora admitido ao seu serviço em 14 de maio de 2018, com contrato a termo, em regime de part-time, auferindo um salário bruto de € 290,00.
5 - Na sequência desta informação, em 26/06/2018, o Ministério Público promoveu a notificação da entidade patronal do requerido para remeter para o processo cópia do último recibo de remuneração deste, concretamente, o que se referia ao mês de junho de 2018, tendo tal promoção sido indeferida pelo despacho recorrido.
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Conhecendo da questão
Insurge-se o recorrente pelo facto do tribunal não ter permitido proceder à diligência solicitada na sua promoção e, quanto a nós, com razão.
Não obstante, como se considerou no despacho recorrido nos processos de jurisdição voluntária, serem aplicáveis subsidiariamente as regras do processo civil que não contrariem os fins da jurisdição de menores, designadamente no que concerne às regras do ónus de prova e do impulso processual das partes, temos que reconhecer que o Ministério Público, no âmbito destes processos, não é “entidade neutra”, concedendo-lhe a lei iniciativa própria em zelar pelo superior interesse dos menores, em especial no que respeita ao incumprimento das responsabilidades parentais, em qualquer das suas vertentes, designadamente no direito a alimentos, podendo requerer ao tribunal as diligências necessárias e adequadas ao cumprimento coercivo do acordado ou decidido, de modo que, mesmo no incidente de incumprimento, que não foi por sua iniciativa instaurado, não deixa de assumir a posição de verdadeira parte em defesa dos interesses do menor, atendendo a que a lei expressamente prevê que, para além dos progenitores, a incitativa processual cabe ao Ministério Público (cfr. artº 17 º n.º 1 e 41º n.º do RGPTC).
Aliás, diga-se que não cabe, apenas, ao Ministério Público no caso de incumprimento do acordado, em sede do exercício das responsabilidade parentais, o dever de requerer as diligências necessárias com vista ao efetivo e integral cumprimento, já que, a lei atribui ao próprio juiz o dever de oficiosamente diligenciar por esse cumprimento, conforme emerge, sem dúvida, do artº 41º do RGPTC.
No caso em apreço, com a promoção visava certamente o Ministério Público aferir se seria viável prosseguir, de novo, com os descontos que vinham sendo efetuados com vista a que os alimentos vencidos e vincendos não deixassem de ser pagos, continuando a tornar-se efetiva a prestação de alimentos usando os meios aludidos no artº 48º do RGPTC. E não se diga, conforme parece resultar da decisão impugnada que a indagação solicitada só faria sentido se a progenitora tivesse vindo aos autos informar que as prestações não estavam a ser pagas e ainda havia quantias em dívida, uma vez que não é de presumir, atendendo até à postura do progenitor, que ele voluntariamente se disponha a proceder ao pagamento das prestações vencidas e vincendas devidas ao menor.
No âmbito dos autos, o silêncio da progenitora não pode ser assumido como tendo-se por certo que as prestações que deixaram de ser pagas, por impossibilidade, através de descontos no vencimento, passaram a ser pagas, voluntariamente, pelo progenitor devedor, por outra via. Pelo que, faz todo o sentido que em face da momentânea impossibilidade de cobrança coerciva através de descontos em conta, se averigue se esse meio de cobrança pode ser retomado, até porque foi esse o meio implementado pela decisão de 20/04/2017 relativamente aos alimentos vencidos e vincendos, que entretanto deixou de poder ser usado, não pelo facto do progenitor se predispor a pagar voluntariamente, mas, simplesmente, porque deixou de auferir rendimentos que garantissem a cobrança coerciva.
Tendo sido suscitado o incidente de incumprimento que conduziu a que se tivesse determinado a efetivação de descontos em conta, não se afigura curial impor ao Ministério Público, para impulso dos autos, nos termos em que o fez, a necessidade alegar que existe uma situação atual de incumprimento, uma vez que a mesma não pode deixar de presumir-se, atendendo a que nem o progenitor devedor veio aos autos demonstrar que já tinha liquidado as prestações vencidas e se propunha pagar voluntariamente as prestações vincendas, nem a progenitora do menor veio, por qualquer meio, informar que a situação efetivamente era essa.
Mas se o Julgador, entendia como parece resultar do conteúdo do despacho impugnado, que o Ministério Público na promoção que lhe pôs à consideração não tinha cumprido o “ónus” de alegar “que o requerido não pagou voluntariamente a prestação devida desde que cessaram os descontos”, nem demonstrou a existência de “situação atual de incumprimento” impunha-se-lhe antes de, pura e simplesmente, indeferir a pretensão e remeter os autos para o arquivo, que o convidasse a esclarecer tais dúvidas ou, ele próprio, oficiosamente, indagar, designadamente junto da progenitora, qual era a atual situação no que respeita aos alimentos devidos ao menor, porque o que está subjacente a promoção do Ministério Público é o zelar pelo superior interesse do menor.
Nestes termos, entendemos ser de julgar procedente a apelação e de revogar a decisão recorrida.
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DECISÂO
Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que permita concretizar a indagação solicitada na promoção do Ministério Público.
Sem custas.

Évora, 14 de fevereiro de 2019
Mata Ribeiro
Sílvio Teixeira de Sousa
Manuel Bargado