Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
190/18.6GBRMZ.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: REGIME PENAL ESPECIAL PARA JOVENS
PENA DE MULTA
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Quando a pena aplicável seja a de multa, o DL 401/82, de 23/9, não prevê qualquer possibilidade de atenuação especial dessa espécie de pena ou de substituição por outra.
II. No caso, o Tribunal optou por pena de multa, pelo que não tinha de se pronunciar sobre a aplicação do regime especial para jovens, não ocorrendo omissão de pronúncia.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Évora, Juízo de Competência Genérica de Reguengos de Monsaraz, no âmbito do Processo nº190/18.6GBRMZ, foi a arguida AA submetida a julgamento em Processo Comum, com intervenção de Tribunal Singular.
Após realização da audiência de discussão e julgamento, o Tribunal decidiu:
• Condenar a arguida AA, pela prática de um crime, como autora material, em concurso real e na forma consumada, de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa;
• Condenar a arguida AA, pela prática de um crime, como autora material, em concurso real e na forma consumada, de ameaça simples, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa;
• Operar o cúmulo jurídico das penas parcelares e condenar a arguida AA, na pena única de 95 (noventa e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), num total de € 570,00 (quinhentos e setenta euros);
• Condenar a arguida no pagamento de 2 (duas) UC’s a título de custas processuais, nos termos do artigo 513.º, n.º 1, do Código Penal;
• Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente BB, e, consequentemente condenar a demandada AA a pagar à demandante o valor de € 1.231,00 (mil duzentos e trinta e um euros), absolvendo-se a demandante do demais peticionado;
• Condenar demandante e demandada no pagamento das custas do processo, na proporção do respectivo decaimento, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário concedido à arguida.
*
Inconformada com a decisão, a arguida interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
1.ª
A sentença de 13 de janeiro de 2021, além dos erros de facto e de direito que a inquinam, é um ato de incompreensível violência, que excede, em muito, pelos seus injustificados efeitos negativos, a putativa agressão e ameaça debatida nos autos.
2.ª
A Arguida não é, nesta decisão, um ser humano, é uma personagem narrativa da acusação. O seu contexto é apenas o da folha de papel em branco no qual se verteu a acusação, sendo que, a folha de papel em branco da acusação é, como se pode ver pelo pedido de indemnização cível, um papel químico das queixas e modo de ver da Ofendida e Assistente (pese embora o total descrédito factual a que a “sua verdade” foi, bizarramente sem consequências, vetada).
3.ª
Há, assim, o comportamento de uma jovem de 16 anos, numa escola, numa sala de aula, rodeada por colegas, professora, auxiliares, que forneceram amplo contexto para uma sucessão complexa dos acontecimentos (prévios, contemporâneos e posteriores), absolutamente relevante para qualquer juízo (sobretudo de jovens), que é totalmente ignorado.
4.ª
Retirar ao ser humano o contexto das suas, efetivas, ações e, no vácuo existencial, julgá-lo, é algo insuportável, sobretudo quando o juízo não é apenas moral ou social, é antes o mais grave e poderoso juízo num Estado de Direito: o exercício do direito de punir do Estado. Para a Arguida da acusação, privada de qualquer densidade, não havia margem para um juízo não condenatório; a Arguida real, contextualizada pelas suas declarações e pelos depoimentos de todos quantos foram ouvidos, não foi verdadeiramente ponderada. Não se fez, assim, Justiça em nome do Povo, não se fez, de todo, Justiça...
5.ª
Há uma (gravidade e unidade da) narrativa e contexto acusatório, que se demonstrou, em audiência, serem falsos, mas, no entanto, a sentença a quo não retirou as devidas consequências, tendo, em rigor, incorrido em diversos os erros e contradições.
6.ª
O segmento decisório da sentença a quo inicia a conclusão condenatória nos seguintes termos: Pelo exposto, julga-se a acusação totalmente procedente..., esta afirmação, aparentemente banal, ganha um significado e um peso próprio no contexto do caso sub iudicio.
7.ª
A acusação pública e o PIC criaram um cenário de múltiplas e desgarradas (sem qualquer origem, contexto ou aviso prévio) agressões, que foram todas, sem exceção, desmentidas pelos depoimentos de todos quantos estavam presentes na sala. Sendo que, a Arguida, somando ao cenário algo impressivo criado na acusação pública e PIC, veio retratar um cenário de uma agressão selvagem, irresistível e sem contexto prévio que fizesse adivinhar qualquer conflito, a Ofendida / Assistente, no depoimento que prestou, com exigência do afastamento da Arguida / Recorrente da sala de audiência, nos termos artigo 352º, nº 1, al. a) do CPP, narrando, perante o Tribunal, um cenário pretensamente factual mais impressivo, que incluía o ter sido atirada ao chão e pontapeada ou agredida por outra via, quando estava imóvel, deitada no chão, tal como resulta das transcrições acima identificadas (com identificação das passagens das gravações).
8.ª
Ora, nem a acusação, nem a narração contida no PIC, nem, sobretudo, a versão que resulta do depoimento da Ofendida / Assistente, foram das como provadas, na sua unidade intencional de significado. Não se provou porque é evidente que não aconteceu, ninguém viu ou percecionou nada do que foi descrito, sequer remetamente.
9.ª
Todavia, embora não tivessem ocorrido, como todos foram unanimes em declarar e como resulta, aliás, da ausência de quaisquer lesões, marcas ou estados clínicos fisicamente mensuráveis, qualquer destes eventos: murros, pontapés, imobilização no chão, com continuação de agressão, a sentença a quo (que não deu tais factos como provados), afirma, de forma contraditória e incompreensível, na motivação da matéria de facto, que a versão da Assistente merece credibilidade, por oposição à versão da Arguida, que não merece credibilidade, em face dos factos provados.
10.ª
Há, assim, um problema valorativo de base na sentença a quo. O tribunal não dá como provado a complexidade do circunstancialismo fáctico apresentado pela acusação, no PIC e pela própria Ofendida. Tem de ter conhecimento que é impossível que as coisas se tenham passado assim, face aos depoimentos colhidos e, no entanto, entende que as declarações da Ofendida (e dos respetivos familiares), que, não estando presentes, só têm a versão dos factos transmitida pela Ofendida, é credível.
11.ª
A motivação da matéria de facto e dos juízos que, com base nessa motivação, se construíram estão, assim, inquinados por uma contradição entre os factos provados e as ilações, conclusões e apoios que deles se podem extrair. A sentença a quo, apoiada na inquirição das testemunhas promovida em audiência, parece tentar provar factos com base na falta de memória. Em diversas ocasiões, confrontado o Tribunal com a resposta: não aconteceu, em relação a uma determinada agressão ou comportamento, o Tribunal insiste, para esclarecer se não aconteceu ou se a testemunha não se lembra, como se fosse possível da ausência de memória do facto, não retirar a certeza que este não ocorreu e, assim, admitir a possibilidade da sua existência e até dá-lo como provado.
12.ª
Esta contradição valorativa, é, simultaneamente, causa de nulidade da sentença, por violação do disposto no artigo 374.º, n.º 2 do CPP, bem como as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência e o in dubio pro reo, devendo intervir-se através da respetiva eliminação da ordem jurídica, nos termos previstos no artigo 410.º, n.º 2, alínea b) e c) do CPP.
13.ª
É absolutamente essencial ter em conta, expressamente, contexto (absolutamente necessário) dos factos. A sentença a quo, tendo negado essa necessidade, incorreu em erro de julgamento por insuficiência da matéria de facto essencial para a decisão da causa, violando, assim, o disposto no artigo 71.º do Código Penal, artigo 368.º e 374.º, n.º 2 do CPP.
14.ª
Com efeito, o confronto entre a Arguida e a Ofendida / Assistente não nasceu do nada. O Tribunal a quo tem conhecimento e consciência do conjunto de factos, relevantes, que antecederam o confronto e que consubstanciam a relação confrontacional (que deve ser analisada como um todo), bem como a intervenção (ou omissão) dos responsáveis escolares nesse âmbito (e em momento posterior). Todavia, a sentença a quo ignorou esses factos, sendo que eles se apresentam, de acordo com as regras da experiência comum, absolutamente essenciais para apurar a verdade material e, no final, para extrair juízos sobre a existência de comportamentos penalmente relevantes, seu sentido, sua valoração e sobre a sua eventual sanção.
15.ª
É, assim decisivo, ter adquirido, momento decisório, o surgimento do confronto: motivos, escalada, insultos mútuos e inexistência de intervenção escolar (prévia e posterior)
16.ª
A acusação e o PIC puderam afirmar, inconsequentemente e infundadamente, que estando a aula a decorrer, a dada altura, a arguida levantou-se. A sentença, todavia, não pode fazer este juízo de facto, por gravemente errado. O confronto entre Arguida e Ofendida não nasceu no vácuo.
Não foi instantâneo, súbito, sem antecedentes ou contexto (como, aliás, salvo casos raros, qualquer ação humana é).
17.ª
Ora, todos os colegas da Ofendida e Arguida que prestaram depoimento foram unanimes em reconhecer a existência de um motivo, uma questão, de um foco de tensão e atenção na comunicada escolar refletida naquela turma. Todos, sem exceção referiram que esse motivo foi determinante para que se gerasse, durante a aula, uma grave discussão, entre a Arguida e Ofendida, com trocas de insultos (incluindo no dizer de uma testemunha, em depoimento abaixo transcrito, chamando nomes às respetivas mães), ainda sentadas nos respetivos lugares e antes de qualquer contacto físico.
18.ª
Esse confronto mútuo, que a professora responsável não soube prevenir, tendo uma intervenção muito limitada, remetendo, como se verá pelo depoimento abaixo transcrito, as alunas para resolverem o problema fora da aula, perdurou e culminou com a Arguida a tentar recuperar um papel que era seu, que estava na posse da Ofendida, que se recusava a devolvê-lo. É no contexto dessa disputa verbal, intensa e ofensiva, de parte a parte que a Arguida se levanta, se dirige à secretária da Ofendida, e interage com esta, existindo contacto físico entre ambas.
19.ª
Ora, sobre o tipo de contacto, falaremos no capítulo seguinte, todavia, a ação sequente e um juízo punitivo não podem existir sem este contexto determinante ser levado a matéria de facto provada.
20.ª
Deve, ainda, notar-se que o papel que a Ofendida tinha em sua posse era uma justificação de falta, da Arguida, que a primeira suspeitava ser falsa, e que, em conjunto com outros colegas, queria apresentar (e apresentou) a professores e, no dizer de uma testemunha, fazer pouco da Arguida.
21.ª
A Arguida falou sobre o tema no seu depoimento e a Ofendida também.
Todavia, o que é impressionante é que o tema surgiu, em todos os depoimentos dos colegas, espontaneamente. Aliás, há testemunhas que não distinguem o confronto da sua origem, que remonta ao período da manhã, em que o papel, rasgado, foi encontrado e colado pela Testemunha CC, que o entregou, depois, à Ofendida, tendo esta apresentado esse papel, na ausência da Arguida, ao Diretor de Turma, em reunião de turma.
22.ª
É, assim, impossível que a sentença a quo negue relevo a tal factualidade, tal como resulta das passagens que acima de indicaram, discriminadamente.
23.ª
Em face destes factos, para além do erro quanto ao Facto n.º 2, que, adiante, melhor se tratará, há uma gritante omissão da matéria de facto.
24.ª
Assim, deve ser aditado à matéria de facto provado o seguinte:
2. Em momento anterior a essa aula, desde as aulas da manhã, sem que a Arguida estivesse na escola, o colega CC encontrou um papel, pertencente à Arguida, que entregou, em momento não apurado, à Ofendida, que tomou posse dele e não o quis devolver à Arguida.
3. A Ofendida e o colega CC exibiram o papel da Arguida aos outros elementos da turma e em Assembleia de turma, com a presença do Diretor de Turma, na expetativa de que existisse uma atuação da AA que fosse de molde a gerar repreensão da Escola.
4. Não tendo existido reação do Diretor de Turma, a Ofendida tinha na sua posse o papel, que usava para fazer pouco da Arguida, recusando-se, apesar das tentativas e da discussão sobre o tema, a devolvê-lo à Arguida.
25.ª
Adicionalmente, deve ficar provado que o incidente não ter gerado preocupação na escola suficiente para motivar qualquer medida preventiva, nomeadamente, mudar a Ofendida ou a Arguida de turma. Não tendo sequer sido provado que a Arguida tenha tido, por causa destes factos, em contexto escolar, sido alvo de qualquer sanção.
26.ª
Assim, deve ser aditado à matéria de facto provado o seguinte:
A Escola, apesar do pedido da família da BB, não entendeu ser necessário promover qualquer medida de afastamento entre Arguida e Ofendida, mantendo-as na mesma turma.
27.ª
Acresce que, há um grave Erro (de facto) quanto à prova da existência de uma ofensa à integridade física, na medida em que inexistem condições para suportar um juízo probatório tendente à aplicação de uma punição criminal.
28.ª
Ao contrário do que refere a sentença a quo não há, com base nos depoimentos das testemunhas presentes, o mínimo de consenso para dar como provada a existência de uma ofensa à integridade física, realizada através de uma chapada.
29.ª
A versão da Ofendida / Assistente, não tem qualquer adesão à realidade, não podendo, assim, ter credibilidade, e contar para a prova de, sequer, uma chapada.
30.ª
Para além da Ofendida e da Arguida, estiveram na sala de aula, durante as putativas agressões, a professora e seis colegas. São estes os únicos suportes probatórios respeitantes à matéria das ofensas à integridade física (já que não há dados clínicos ou outros suportes documentais, que suportem a existência de uma qualquer agressão).
31.ª
Importa ter em conta que a situação confrontacional, como é descrita pelas testemunhas, que não nasceu do nada o que, naturalmente, importa para a análise, adequada da sequência de eventos.
32.ª
Resulta das regras de experiência comum (embora a matéria tenha sido tratada expressamente pelas testemunhas), que a sala de aula em questão não é um sítio de grandes dimensões e que todos estavam bastante perto uns dos outros, numa situação incomum, que desperta a atenção.
33.ª
É inviável, com base na prova testemunhal, de dar por provada uma ofensa à integridade física, concretizada através de uma chapada, como resultou dos depoimentos transcritos e identificados.
34.ª
Não estão em causa meras discrepâncias. Detalhes de pormenor que escapam com o tempo. É a diferença entre existir e não existir. Entre depor sobre a existência de um facto, confirmando-o, negando-o ou não podendo confirmar a sua existência, por incerteza ou falta de memória, sendo que, nestes últimos caso, não se pode, naturalmente, dar o facto por provado.
35.ª
As testemunhas da acusação foram as únicas testemunhas presentes em Tribunal que estiveram na sala durante o momento de confronto com proximidade física.
36.ª
Nenhum dos depoimentos se aproxima, sequer minimamente, da versão apresentada pela Ofendida, que a sentença a quo, incompreensivelmente e injustificadamente, entende ser credível.
37.ª
Os relatos são de uma discussão, duradoura, ofensiva entre Arguida e Ofendida. O momento do confronto com proximidade física foi o culminar, na disputa pela devolução à Arguida de uma coisa sua, que a Ofendida tinha em sua posse, e que vinha gerando debate na turma desde antes da Arguida estar presente na Escola e que, inclusive, é vista como forma de gozo.
38.ª
A professora não viu a agressão, apesar de estar perto. Quem separou as contendentes diz que não houve qualquer chapada ou agressão, houve um puxão.
Assim, quem esteve diretamente envolvido diz que não houve agressão. As duas testemunhas que referem a chapada, não sabem caraterizar os eventos (em pé, sentada...). O número de testemunhas que não viu qualquer chapada, naquele espaço limitado é superior ao que diz ter visto. O desempate da sentença é feita pela credibilidade do depoimento da Ofendida, que é totalmente desrazoável face à prova produzida.
39.ª
Tudo isto quadra com a total ausência de prova clínica ou fotográfica sobre qualquer efeito de uma putativa agressão.
40.ª
Não é possível, com base nesta prova, nem nos juízos de experiência, alcançar a conclusão do Tribunal, que é, assim, errada e ilegal.
41.ª
Deve, assim, o facto provado n.º 2 ser dado como não provado.
42.ª
Em substituição deve dar-se como provado que:
Na sequência de uma discussão entre a Arguida a e Ofendida, com insultos de parte da parte, a Arguida levantou-se para retomar a posse de um papel que lhe pertencia, tendo existido contacto físico, que não foi possível caraterizar, do qual não. resultou qualquer lesão para a Ofendida.
43.ª
Caso seja diverso o entendimento do Tribunal ad quem, ainda assim há um erro no facto elencado com o n.º 2, já que terá de ficar consignado que não foi pelo menos uma chapada, foi no máximo uma chapada, e que o incidente não surgiu do nada nos seguintes termos:
Estando a aula a decorrer, na sequência de uma discussão entre a Arguida e a Ofendida, com ofensas mútuas, a arguida levantou-se, dirigiu-se a BB, para reaver o papel que esta retinha e, no confronto físico desferiu-lhe, no máximo, uma chapada que fez os óculos que a mesma usava caírem ao chão, tendo a referida professora, sem sucesso, exortado a arguida verbalmente a cessar o seu comportamento e CC, aluno da mesma turma, agarrado e puxado a arguida, desta forma a afastando de BB, tendo, aí, cessado todo o contacto físico entre ambas.
44.ª
A sentença a quo, com base na factualidade incompleta e errada, nos termos acima defendidos, deu como verificada a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.
Todavia, esse juízo não se afigura juridicamente correto, ainda que se mantenha (sem conceder) como provado o facto de ter existido uma chapada (na formulação, acima defendida, de no máximo deu uma chapada, rodeada do contexto significativo da atuação, cujo aditamento acima se defendeu como relevante).
45.ª
Isto porque, o contexto de uma discussão entre duas jovens adolescentes, numa sala de aula, com clara falência dos deveres da responsável da sala, em que há contacto físico, sem consequências, marcas ou qualquer sintoma relevante, nem mesmo a mais leve manifestação física, aparente, do sucedido, não pode relevar enquanto ofensa à integridade física, para efeitos jurídico-penais.
46.ª
Note-se, aliás, que só a absoluta irrelevância (jurídico-penal, para efeitos do estrito tipo em presença) é que pode, de acordo com regras elementares de experiência comum, justificar que, em espaço tão exíguo existam tantos depoimentos, incluindo o da adulta e responsável pela sala, que não identificam a existência de uma agressão.
47.ª
O eventual toque, no contexto de uma discussão e aproximação física, na cara da Ofendida, não é, nesse âmbito, de relevar como um crime, como uma ofensa à integridade física.
48.ª
O princípio da fragmentariedade ou subsidiariedade do direito penal, consagrado no n.º 2 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa, não é um instituto jurídico morto, sem consequências ou injunções diretas para o julgador.
49.ª
É, aliás, o que resulta da doutrina e jurisprudência citadas.
50.ª
Assim, considerando a matéria dos autos, em qualquer cenário de decisão probatória, é possível concluir pela atipicidade da conduta analisada.
51.ª
Não há a mínima indicação de que o contacto físico eventualmente existente tenha posto em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a, não há, sequer, a mínima indicação, credível, sobre o local da suposta chapada (foi no rosto? do lado esquerdo ou direito?).
52.ª
As regras da experiência, considerando o contexto, bem como a ausência de qualquer indício relevante de gravidade deste ato isolado, promovido pela acusação ou adquirido (e expressamente tratado) pelo Tribunal, fazem soçobrar a qualificação cujos termos deve ser devidamente explicitado e assegurado pela sentença que decide a punição.
53.ª
Há chapada, logo à dor! Diz a sentença: não é verdade, sobretudo no contexto. Aliás, não há sobre o tema qualquer prova, visto que a Ofendida se reportou à dor de um conjunto imenso de agressões que não existiu.
54.ª
Ao não evidenciar a relevância jurídico penal, do ato isolado contacto da mão no rosto(?), e sabendo-se o contexto de discussão em que se desenvolveram os factos, torna-se saliente a existência de um erro de julgamento.
55.ª
O comportamento aqui em causa não pode, sob pena de violação do disposto, nomeadamente, no artigo 1.º (dignidade da pessoa humana), 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1 todos da CRP, ser subsumido na norma incriminadora prevista no artigo 142.º, n.º 1 do CP. Estamos, em rigor, perante um caso de atipicidade da conduta.
56.ª
Como tal, deve a sentença ser, nesse segmento, revogada, absolvendo-se, consequentemente, a Arguida.
57.ª
Quanto ao Crime de ameaça, é, face aos dados dos autos, inviável o preenchimento do tipo.
58.ª
As expressões que se deram como provadas, “ponho-te uma placa nova” e “ponho-te numa cama de hospital”, como significando, bato-te, no contexto e com a motivação expressa pela sentença a quo: uma altercação entre duas colegas, com intervenção de outro colega para refrear aquilo que seria o avanço com intenções agressivas da Arguida (embora não seja essa a versão, sequer, de quem segurou), com a intervenção, no mesmo sentido, de duas auxiliares, em que, apenas uma, se lembra (no dizer da sentença) de ter ouvido a Arguida a dizer que batia na assistente (reportando-se, no seu testemunho, ao passado, mas sem qualquer indício de que, nesse momento, que as palavras fossem dirigidas para o futuro), não é nem pode ser um crime de ameaça.
59.ª
No cenário valorado e dado como provado pela sentença não é do de extinção da situação confrontacional. A sentença, aliás, salienta a necessidade de intervenção do colega, das auxiliares e da professora. No dizer da sentença, a expressões foram proferidas no contexto da contenção de um suposto avanço ou intenção de avanço agressivo (e, a nosso ver erradamente, como já ficou demonstrado), no contexto de ter existido o contacto físico descrito como a chapada.
60.ª
Assim, seguindo a lição da jurisprudência citada, no contexto em que foram proferidas as expressões e considerando o seu teor textual, dado como provado, ponho-te, há um esgotamento no presente da intenção agressiva, que, aliás, no entendimento da sentença a quo, se estava a impedir, através da ação de colega e auxiliares.
61.ª
Em suma, a sentença é, por um lado, contraditória, dando como provados factos que, em qualquer caso, não podem ser enquadrados no tipo legal de ameaça, previsto (de forma estrita), no 153.º, n.º 1, do Código Penal, que, desta forma, é a norma violada pela decisão impugnada.
62.ª
A invalidade da sentença a quo não resulta, apenas, dos erros de facto e de direito já assinalados. Há, ainda, a violação de um regime, legal, imperativo, que tinha, impreterivelmente, de ser ponderado para efeitos de aplicação de qualquer punição à jovem de 19 anos, que esteve envolvida na situação sub iudice aos 16 anos.
63.ª
64.ª
A humanidade e singular lição de Justiça que resulta das extensas páginas deste aresto acima citado (disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/fbe21b08fb91d
f6e802573ee005952bd?OpenDocument), impõe, no caso, a certeza de que a sentença a quo falhou no cumprimento de um dever que se lhe impunha. Sendo que, o não cumprimento desse dever, a inexistência de qualquer indagação factual, mesmo que, a final, para proferir um juízo de inadequação, leva à invalidade da sentença, impondo a respetiva revogação, com as legais consequências.
65.ª
A sentença é também inválida, pela ilegalidade e injustiça como foi determinada a medida da pena, independentemente do regime de jovens delinquentes.
66.ª
O erro de julgamento, neste ponto, decorre, desde logo, do teor literal do segmento da sentença dedicado Motivação da medida da pena, resultando dos pressupostos declarados e, necessariamente, das conclusões alcançadas.
67.ª
Foram violadas as disposições contidas nos artigos 40.º, n.os 1, 2 e 3, 70.º e 71.º do Código Penal, e 32.º da CRP, revelando a medida da pena aplicada uma motivação errada e ilegal, que deve determinar a respetiva revogação.
68.ª
Caso seja de aplicar qualquer punição, de considerar-se, para além da viabilidade da aplicação de medidas corretivas ao abrigo do regime tratado no ponto anterior, que tanto a culpa, como a ilicitude são diminutas, atento o contexto, inexistindo quaisquer consequências da “agressão” para o corpo da Ofendida, e sendo também, face ao complexo fáctico que enforma o sucedido, baixas as necessidades de prevenção geral e especial (sobretudo tendo em conta a postura assumida pela Arguida / Recorrente).
69.ª
Nesse sentido, a única pena adequada face ao nosso sistema jurídico seria a admoestação ou a multa pelos mínimos legalmente admissíveis (taxa mínima e número mínimo de dias em cada caso).
70.ª
Há também graves erros de julgamento no que respeita à condenação no pedido de indemnização cível.
71.ª
A inviabilidade da punição penal decidida, seja pelos erros quanto à matéria de facto, seja pelos erros no que respeita ao direito ou, ainda, pelas omissões em ambos os segmentos, determina a falência da condenação no pedido de indemnização cível.
72.ª
Os pressupostos de tal punição, nos exatos termos em que foi decidida, dependem da manutenção dos pressupostos, de facto e de direito, respeitante à matéria ajuizada também sob lunetas criminais.
73.ª
É, aliás, o que resulta do artigo 71.º do CPP, que consagra o princípio da adesão, sendo que, sobre o tema, a jurisprudência não mostra quaisquer hesitações.
74.
Em suma, inexistindo, por erro quanto aos factos (omissão, insuficiência e engano quanto à prova), erro quanto ao direito, por atipicidade ou não integração no tipo, matéria criminal suscetível de sanção, deve, então, cair a condenação cível, sob pena de violação do disposto no artigo 71.º do CPP e considerando que não existe matéria para teorizar sobre a existência de responsabilidade civil extracontratual autónoma.
75.ª
Aliás, a manutenção da condenação redundaria não só numa violação do disposto no artigo 71.º do CPP, como numa violação do disposto no artigo 483.º do Código Civil, bem como do artigo 62.º da CRP, razão pela qual deve ser revogada, absolvendo-se a Arguida / Recorrente do pedido.
76.ª
Mesmo que assim não se entenda, é ilegal a condenação, no que respeita aos danos patrimoniais, face à inexistência de nexo de causalidade (e outros pressupostos da responsabilidade civil).
77.ª
Com base nos factos provados, mas tendo em conta, necessariamente, o respetivo contexto, não se pode admitir a manutenção da condenação, por danos patrimoniais, decidida pela sentença a quo.
Não se cuidou do preenchimento, efetivo, dos pressupostos da responsabilidade civil, concedeu uma indemnização onde não há dano, não há prova, nem há nexo... não há nada.
78.ª
O Tribunal decidiu fixar como compensação, a título de danos patrimoniais, a quantia de € 731,00 (setecentos e trinta e um euros), que é o resultado da soma dos valores indicados nos factos provados 13 e 14 (520 + 211 = 731).
79.ª
Todavia, os óculos não se partiram, não ficaram absolutamente inutilizados.
Não houve, por exemplo, qualquer dano para a sua componente essencial, que são as lentes. Estas, a assistente e família, reconhecem que ficaram intactas, tal como reconhecem que os óculos tinham, tão-só, ficado danificados numa das hastes e que, com remendo, foram utilizados pela Arguida / Assistente, desde o dia dos factos, 15 de novembro de 2018, até, pelo menos à compra dos novos óculos, que foram faturados, cf. resulta das várias fls. do documento 4, junto em requerimento posterior à entrega do PIC e foi declarado pela Ofendida.
80.ª
Então, qual pode ser o dano imputado à Arguida (ponderando, sem conceder)? Bem, certamente não será o pagamento de uns óculos novos, pois que não há matéria nos autos que justifique tal condenação, que excede, em muito, o dano provocado. O dano provocado foi, no máximo, a uma haste de uns óculos que continuaram a ser usados.
81.ª
Esse dano não impõe, nem admite que seja imposto à Arguida suportar a compra de uns óculos novos, que foi aquilo que a Assistente / Ofendida, decidiu fazer, uns meses depois. E talvez tendo consciência de tal facto, a sentença a quo preferiu uma contradição, logicamente inviável e que inquina a matéria de facto.
82.ª
A sentença a quo deu como provado, recorde-se, o seguinte:
14. Na sequência da chapada na face da assistente, os óculos da mesma caíram ao chão e necessitaram de reparação, a qual orçou em € 211,00.
83.ª
A Assistente e a sua família, em depoimento (como se viu), e através dos documentos juntos aos autos deixaram bem claro que compraram os óculos novos. Assim, é falso que tenha existido qualquer reparação e que essa reparação tenha sido orçada em € 211,00, razão pela qual facto 14 (que corresponde ao artigo 26 do PIC) deve ser expurgado da matéria de facto provada, por não corresponder à verdade, passando à matéria de facto não provada.
84.ª
Não houve reparação, houve compra de óculos novos. A fatura e documentos conexos descrevem duas lentes novas, bem como uma armação, inteira e nova.
85.ª
Ora, a Arguida não partiu as lentes, nem partiu a armação, podendo, no máximo ser responsabilizada por um dano a uma haste. Todavia, o pedido de indemnização por esse dano não foi submetido ao tribunal a quo, ao invés, apresentou-se a falsidade de uma reparação, que são óculos novos.
86.ª
Ora, do valor pago por este bem, nada se aproveita para aferir a responsabilidade da Arguida / Recorrente. As lentes, certamente não são responsabilidade desta. A necessidade de uma armação nova, também não vem evidenciada (ou sequer alegada, tal como não foi alegada a inaproveitabilidade de lentes não danificadas).
87.ª
Assim, o pedido de condenação, respeitante aos óculos, por exceder o eventual dano, deve ser revogado, por ilegal, na medida em que viola o disposto no artigo 483.º do CC e preceitos conexos. Sendo que, não existem dados nos autos, nem mesmo no que respeita à armação, que permitam aferir o valor do dano efetivo, o que, em rigor, resulta de uma opção da Assistente / Ofendida, pela forma como entendeu organizar o seu pedido, causa de pedir e prova.
88.ª
Quanto à condenação ao pagamento do montante despendido com as consultas de psicologia, num total de € 520,00, parece evidente, à luz de quanto se alegou até ao momento, que tal valor, sobretudo na sua integralidade, nunca poderá, legalmente, ser imputado à Arguida / Recorrente.
89.ª
Não há forma de justificar que a Arguida / Recorrente, seja, em qualquer cenário, responsabilizada por uma despesa que, na sua utilidade e sentido, nada tem que ver com o seu envolvimento numa altercação com a Ofendida /Assistente.
90.ª
Sendo que, a consciência, da Ofendida / Assistente, em relação a esta questão deveria tê-la levado, em boa-fé e cumprimento do seu ónus de alegação e prova, a, pelo menos, limitar o pedido à sua justa medida. Não o fazendo, sibi imputet, pois não pode o Tribunal aferir ou adivinhar, em substituição, qual a utilidade concreta e para a qual poderia existir um mínimo de nexo de causalidade adequada.
91.ª
Assim, a condenação, a título de danos patrimoniais, da integralidade das quantias pagas com as sessões de psicologia, é ilegal, por violação do disposto no artigo 483.º do Código Civil, e preceitos conexos, bem como do disposto no artigo 62.º da CRP. Note-se, a este propósito, que a propriedade privada, que integra, naturalmente, toda a esfera patrimonial de uma pessoa (no que se inclui a desvantagem desta condenação pecuniária), é um direito análogo a um direito, liberdade e garantia, beneficiando, como tal, do mesmo regime, restritivo, de proteção. Assim, a interpretação do preceito legal que autoriza a imposição de sacrifícios patrimoniais, como é o caso do disposto no artigo 483.º, deve ser rodeada das cautelas restritivas impostas neste âmbito. Quer isto significar que a interpretação dos pressupostos da responsabilidade civil deve ser feita de forma estrita e com base em inequívoca e adequada demonstração do seu preenchimento habilitante.
92.ª
É também ilegal e desrazoável a condenação respeitante aos supostos danos não patrimoniais.
93.ª
Quando está em causa a condenação por danos não patrimoniais, o essencial é a razoabilidade e a proporcionalidade, tal como ensina, unanimemente, a nossa jurisprudência.
94.ª
A sentença a quo, ainda que mal, nos termos já demonstrados, admite não existir gravidade nas lesões (sendo que não existiram, de facto, lesões ou lesão).
O sofrimento psicológico eventualmente sentido, dado como provado apenas com base nas declarações da Ofendida / Assistente e da sua mãe, não pode ter, tal como se viu a propósito da indemnização pelos danos patrimoniais, no que respeita às consultas psicológicas, uma relação causal com qualquer comportamento que, naquele contexto, possa efetivamente ser imputado à Arguida / Recorrente.
95.ª
Assim, com critérios objetivos, descontada uma particular sensibilidade, já acima demonstrada (com o afastamento da Arguida da audiência e com a situação do restaurante que se relatou, com base no depoimento das testemunhas), tendo presente os factos e o seu contexto, que lesões, imputáveis à arguida, merecem uma compensação deste tipo? Que sofrimento, porque dano biológico, com base em que quantum doloris, com o mínimo de nexo de causalidade? Nenhuns!
96.ª
O contacto físico, com alguma parte do rosto, não teve qualquer manifestação clinicamente observável, prejuízo estético ou, sequer, capacidade de ser identificada a sua existência por muitos dos presentes (incluindo a professora). Assim, não há lesão, nem sequelas, nem condicionamento físico da capacidade vivencial.
97.ª
A sensação de angústia, mantida por mais de três anos (mesmo após o total afastamento de vida ou vivência da Arguida e Ofendida, desde o fim do ano letivo em 2019), sem que o caso tivesse antecedentes, tratando-se de um confronto que se esgotou no dia em que sucedeu, não pode, nem deve, ser imputada à Arguida / Recorrente, não lhe cabendo o dever de o compensar a este título.
98.ª
Por fim, que ponderação, face ao quadro económico de uma jovem que teve de deixar de estudar, para ir trabalhar como copeira, recebendo o ordenado mínimo, que não tendo despesas com renda de casa, por agora, tem todas as demais que são necessárias para sobreviver (e que se somam, no quadro da sentença, à multa e à indemnização por danos patrimoniais), subjaz a este valor?
Sobretudo, quando não se alcança, sendo o pedido da Ofendida / Assistente, que ainda estuda e vive, portanto, sem gastos, na dependência financeira dos pais, qual o efeito compensatório que se pretende acautelar, a sua utilidade, necessidade, adequação e proporcionalidade stricto sensu, no confronto de ambos os lados da equação. E não se alcançam os dados de ponderação, acerca “deste lado da equação”, porque a sentença é, quanto a esse ponto, omissa, em violação dos deveres de ponderação impostos pelo artigo 496.º do CC, que, assim, também por esse motivo, fica violado pela sentença a quo.
99.ª
Em suma, deve a arguida ser integralmente absolvida da condenação no pedido de indemnização cível.
Nestes termos, e nos mais de Direito que, V. Exas., Venerandos Desembargadores, doutamente, suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se integralmente, a sanção penal e a condenação cível determinadas na sentença impugnada, e, consequentemente, absolvendo-se, integralmente, a Arguida.
*
O recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.
*
O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela respetiva improcedência e concluindo nos seguintes termos (transcrição):
1. Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a arguida interpor recurso, pugnando pela absolvição.
2. A recorrente fundamenta o seu recurso na existência de erro notório na apreciação da prova, violação do princípio “in dubio pro reo”, omissão de pronuncia e no não preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do crime de ofensa à integridade física simples e do crime de ameaça.
3. Da prova acima exposta e produzida em audiência de discussão e julgamento, o Tribunal recorrido certamente não poderia deixar de dar como provados os factos impugnados.
4. O tribunal a quo formou a sua convicção numa análise conjunta da prova produzida em audiência de julgamento, coadunada com a prova documental constante dos autos e de acordo com o consagrado no artigo 127.º do Código Penal, que dispõe que a prova, salvo disposição diferente da lei é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.
5. Contrariamente ao sustentado pela recorrente, andou bem o Tribunal recorrido ao dar como provados os factos melhor enunciados na sentença condenatória, pois a versão apresentada pela assistente, mostrou-se congruente, e encontra-se sustentada pela prova constante dos autos e designadamente pelas testemunhas inquiridas.
6. Não foi a recorrente capaz de gerar dúvida quanto à verificação dos factos, pelo que concatenados todos os elementos probatórios, andou bem o Tribunal a quo na avaliação crítica da prova, e consequente determinação da factualidade provada e não provada, da qual resulta o preenchimento dos tipos objetivo e subjetivo dos crimes de ofensa à integridade física simples e de ameaça, pelos quais a recorrente foi condenada.
7. A decisão que condenou a ora recorrente não padece de qualquer erro de julgamento, nomeadamente ao nível da prova produzida em sede de audiência de julgamento, conforme se expôs supra, e por esse facto deve considerar-se que a arguida praticou, em concurso real, o crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, nº. 1 do Código Penal e o crime de ameaça simples, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal e, em consequência deve ser mantida a condenação da arguida pela prática dos referidos crimes, mantendo-se igualmente a pena aplicada nos autos.
8. A decisão que condenou a recorrente não padece de qualquer omissão de pronuncia, porquanto, o motivo/razão que desencadeou os factos não é, in casu e salvo melhor opinião, relevante para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade da arguida.
9. Assim não sobejam dúvidas de que andou bem o Tribunal a quo ao proferir decisão condenatória, razão pela qual o presente recurso é manifestamente improcedente.
10. Pelo exposto, não merece qualquer reparo a douta decisão sob recurso, contanto que a mesma não violou qualquer disposição legal.
11. Em face do exposto, o recurso da arguida não deverá merecer provimento, devendo antes ser julgado totalmente improcedente, porquanto não foram violados os preceitos legais invocados pela mesma, ou qualquer outro devendo manter-se a douta sentença nos seus precisos termos.
*
Também a assistente respondeu ao recurso interposto, nos seguintes termos (transcrição)
“I - DA TENTATIVA DE JUSTIFICAR A AGRESSÃO
1. A Recorrente esforça-se, à semelhança do que aconteceu em sede de audiência de discussão e julgamento, para desvirtuar os acontecimentos, por forma a influenciar a análise do julgador.
2. Essa postura levou, bem, o Tribunal a quo a concluir pela notória falta de consciência da gravidade da situação por parte da ora Recorrente.
3. Não só pela sua versão dos factos, que de facto se provou nada ter a ver com a realidade, mas também por esta postura mantida durante toda a audiência.
4. No que concerne ao “motivo” que a Recorrente quer fazer parecer justificar o sucedido, verificou-se que, ao contrário do que a mesma alegou – que sentiu que estava a ser gozada, na aula, por estarem a passar entre alunos um papel que lhe dizia respeito – esse papel passou em algumas mãos de alunos da turma, mas, numa aula durante a manhã, em que a Recorrente não estava presente.
5. Significa que, naquela aula em que a Recorrente teve o acesso de fúria, nada aconteceu para que se tente justificar as suas atitudes.
6. O papel, que a Recorrente rasgou e ela própria atirou para o lixo, foi colado por um colega – que não a Recorrida – durante uma Assembleia de turma que decorreu na manhã daquele dia e em que aquela não estava presente.
7. À tarde, depois de almoço, na aula de ciências, presumem os colegas que alguém terá dito à Recorrente o que havia acontecido e que quem tinha, no momento, o papel que esta havia jogado para o lixo, era a Recorrida.
8. Cai assim - bem analisado pelo Tribunal a quo - a justificação de que o seu comportamento se terá devido a um ambiente de gozo dentro da sala de aula.
9. As declarações da Recorrente são contraditadas não só pelas declaração prestadas pela Recorrida, mas também por toda a prova produzida em julgamento, nomeadamente as declarações das testemunhas presentes na sala de aula naquele dia.
10. Além da inexistência de ambiente de gozo, a Recorrente referiu que existiram empurrões mútuos, mas nenhuma testemunha referiu que a Recorrida sequer se tentasse defender.
11. Negou também ter proferido as expressões ameaçadoras de que vinha acusada, mas todas as testemunhas as referiram, principalmente, todos eram rápidos no reconhecimento das expressões: “meto-te numa cama de hospital” e “ponho-te uma placa nova”.
12. É por isso, ao contrário do que refere a Recorrente, que a versão da ora Recorrente não mereceu valoração pelo Tribunal a quo.
13. E é por isso também e pela sua postura que aquele Tribunal considerou que a Recorrente não havia interiorizado a gravidade da sua ação.
14. A Recorrente quer fazer parecer que o que aconteceu naquela sala de aula foi um simples arrufo de adolescentes, mas tal não corresponde à verdade e a prova produzida em julgamento demonstrou o contrário.
15. A agressividade e exaltação por parte da Recorrente em direção à Requerida tinha de ser atendida pela sentença, por respeito às regras de prevenção em causa.
II – DO TESTEMUNHO DA PROFESSORA
16. Relativamente às declarações da testemunha DD, professora presente na aula, esquece-se a Recorrente de mencionar que a mesma referiu não ter sido capaz, sozinha, de fazer cessar a agressividade desta.
17. Tendo por isso chamado as auxiliares.
18. Esqueceu também a Recorrente de mencionar que, a professora, após a leitura das declarações que prestou na GNR, assumiu que, se referiu, numa data mais próxima dos acontecimentos, que havia assistido a agressões, então é porque de facto assistiu mas de momento já não as tinha presentes.
19. Não obstante refira-se que a testemunha nunca teve dúvidas de que a Recorrida havia sido agredida, só não tinha presente a forma como foi.
20. Refira-se ainda, quanto a esta testemunha, que por sua iniciativa mencionou à mãe da Recorrida que deveria “avançar com a situação”, querendo sugerir que esta apresentasse queixa.
21. Disso mesmo foi questionada em sede de audiência de discussão e julgamento, o que voltou a corroborar.
22. Demonstrando assim a gravidade dos acontecimentos a que assistira.
III – DAS RESTANTES TESTEMUNHAS
23. As testemunhas que a Recorrente, propositadamente, em sede de alegações de recurso, quer fazer parecer que não são importantes, por serem amigas da Recorrida, também são as que estavam mais próximas dos acontecimentos.
24. Por exemplo, a colega que dividia carteira com a Recorrida, mencionou ter visto duas chapadas.
25. Também no geral todas foram concordantes em afirmar que a Recorrente, se não estivesse agarrada, teria agredido ainda mais a Recorrida.
IV – DA FALTA DE IMPORTÂNCIA POR PARTE DA ESCOLA
26. De facto, a escola não mudou a Recorrida de turma, como era sua vontade, tal o medo que tinha de que a Recorrente consumasse as ameaças, mas, a Recorrente mais uma vez esquece-se se mencionar nas suas alegações que fora alvo de processo disciplinar e consequente suspensão.
V – DOS DANOS NÃO PATRIMONIAIS
27. A Recorrente entende uma violência a sua punição, mas entende um exagero a forma como a Recorrida reagiu às suas agressões e ameaças…
28. Recorde-se que a psicóloga ponderou classificar a situação da Recorrida como “stress pós-traumático”.
29. Que, na sequência da agressão da Recorrente, a Recorrida esteve vários dias sem ir à escola.
30. Que quando regressou tinha medo da Recorrente e a sua mãe ia para o portão da escola para que, durante os intervalos, esta se sentisse mais protegida.
31. Tudo isto foi unanimemente referido pelas testemunhas, qua a Recorrente não conseguiu contraditar.
32. Todas as testemunhas corroboraram o medo e o efeito que este episódio teve na vida da Recorrida.
VI – DOS DANOS PATRIMONIAIS
33. Quanto aos óculos da Recorrida:
34. Não se compreende qual a intenção da Recorrente.
35. Assume que os óculos se danificaram na sequência da queda provocada por uma chapada.
36. Mas entende que talvez não fosse necessário comprar uns óculos novos.
37. Ter-se-á esquecido que a Recorrida usou, durante cerca de dois meses, os óculos partidos, colados com fita-cola, até que os seus pais tivessem condições para comprar uns óculos novos.
38. Claro está que a Recorrente acharia que, se estavam colados, assim poderiam ter continuado até que descolassem.
39. Sem se poder esquecer o estigma que será, para uma adolescente de 14 anos, depois de passar pelo que passou, ter de usar uns óculos partidos por cerca 2 meses.
40. Que se não fosse a atuação da Recorrente não necessitaria de novos óculos.
41. E, naturalmente, se os mesmos tivessem conserto, corresponderia a um gasto menor para a Recorrida, bem como, presume-se, escusaria estar tanto tempo com uns óculos colados.
42. Não obstante, dúvidas não restam de que os óculos foram danificados pela Recorrente e que em consequência a mesma teria de ser responsabilizada pela sua substituição.
43. No que diz respeito às consultas, a Recorrida frequentou as consultas durante 8 meses.
44. Estas consultas surgem, exclusivamente, porque existiu a agressão e duraram o tempo que a psicóloga entendeu suficiente para considerar a Recorrida curada.
Termos em que, negando provimento ao recurso interposto pela arguida AA, e mantendo a decisão recorrida, V. Exas, Venerandos Desembargadores, farão JUSTIÇA!
*
No Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP não foi apresentada qualquer resposta ao Parecer.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.
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Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
Nos termos do disposto no art.412º, nº1, do C.P.P., e conforme jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes das motivações apresentadas, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente- cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, págs.74; Ac.STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, págs.96, e Ac. do STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995, publicado no DR I-A Série de 28.12.1995.
São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.
No caso sub judice, as questões suscitadas pela recorrente são:
- nulidade da sentença por violação do disposto no art.374º, nº2, o CPP;
- insuficiência da matéria de facto provada para a decisão;
- contradição entre os factos e a fundamentação;
- erro de julgamento da matéria de facto;
- não preenchimentos dos elementos típicos dos crimes de ofensa à integridade física e ameaça;
- não ponderação pelo tribunal recorrido da aplicação do regime especial para jovenS;
- medida da pena;
- montante do pedido de indemnização civil.
*
É do seguinte teor a sentença recorrida no que concerne a factos e motivação (transcrição):
“Com relevância e interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 15.11.2018, em hora não concretamente apurada, mas entre as 14h30m e as 16h00m, a arguida AA e BB, alunas do 9.º C, encontravam-se na respectiva aula de Ciências, ministrada a essa turma pela professora DD na sala (…) da Escola (…)
2. Estando a aula a decorrer, a dada altura, a arguida levantou-se, dirigiu-se a BB e desferiu-lhe pelo menos uma chapada na face, que fez os óculos que a mesma usava caírem ao chão, tendo a referida professora, sem sucesso, exortado a arguida verbalmente a cessar o seu comportamento e CC, aluno da mesma turma, agarrado e puxado a arguida, desta forma a afastando de BB.
3. Após, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, a arguida disse a BB, em voz alta, usando de tom grave e sério, “ponho-te uma placa nova” e “ponho-te numa cama de hospital”, atitude que somente cessou quando foi abordada pelas auxiliares de acção educativa EE e FF, chamadas à dita sala de aula pela aludida professora para por cobro ao que se estava a passar, e abandonou o local.
4. Como consequência directa e necessária da conduta da arguida descrita em 2.º, BB sofreu dores nas zonas atingidas.
5. Ao actuar dessa forma, a arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde de BB, o que quis e representou.
6. Ao agir do modo forma narrado em 3.º, a arguida fê-lo livre, deliberada e conscientemente, proferindo tais expressões com o propósito concretizado de, por meio delas, e pela forma como as proclamou, fazer com que BB receasse pela sua integridade física, sabendo que tais expressões eram idóneas a causar temor e insegurança na visada, o que quis e representou.
7. Sabia que tais condutas lhe estavam vedadas e eram puníveis por lei penal.
8. A assistente passou a ter medo de ir à escola, tendo mesmo faltado nos primeiros dois dias após a factualidade referida em 2. e 3.
9. A mãe da assistente recorreu a baixa por assistência à família no seguimento do acima descrito.
10. Tendo, por duas vezes distintas, acompanhado a filha durante o dia na escola, junto ao portão da mesma, sendo que a assistente se dirigia àquele local por forma a se sentir mais segura.
11. Durante os primeiros três meses, a assistente dormiu com a mãe.
12. Sofreu medo, ansiedade e chorava com frequência.
13. Em virtude da factualidade descrita em 2. e 3., a assistente frequentou durante cerca de 8 meses consultas de psicologia com a Dra. (…), as quais tiveram um custo total de € 520,00.
14. Na sequência da chapada na face da assistente, os óculos da mesma caíram ao chão e necessitaram de reparação, a qual orçou em € 211,00.
15. Para conseguir dormir a assistente tomou ainda o medicamente de venda livre (…), tendo comprado 2 caixas, de valor não concretamente apurado.
16. A assistente precisou de se deslocar a Évora, ao Departamento de Medicina Legal, por uma vez, a qual teve um custo não concretamente apurado.
17. A arguida encontra-se a trabalhar como copeira, auferindo a retribuição mínima mensal garantida.
18. Vive em casa de amigos, não contribuindo com nenhum valor para as despesas comuns da habitação onde reside.
19. Não tem filhos.
20. Tem o 10.º ano de escolaridade.
21. A arguida não tem condenações averbadas no seu CRC.
Factos não provados:
A. Na circunstância referida em 2., a arguida desferiu um murro na face de BB e vários murros nas costas, em n.º não concretamente apurado.
B. Que na circunstância referida em 3., a arguida tenha dito “dou-te uma facada”.
C. A arguida é praticante de kickboxing há vários anos.
D. Em consequência da factualidade acima descrita, a assistente frequentou consultas de Otorrinolaringologia, no Hospital da Misericórdia de Évora, por ter passado a sentir um apito no ouvido, as quais tiveram um custo unitário de € 18,46.
*
Motivação matéria de facto:
O tribunal formou a sua convicção no apuramento da factualidade provada com base nas declarações da arguida e da assistente e nos depoimentos das testemunhas (…).
Baseou-se ainda o tribunal na prova documental existente nos autos, nomeadamente o auto de notícia de fls. 4 a 5, na documentação clínica de fls. 14, nos documentos juntos com o pedido de indemnização civil de fls. 225 a 233 e no CRC junto aos autos a 25.11.2021 (Ref.ª 31215569).
A arguida, em sede de audiência de julgamento, prestou declarações negando a prática dos factos descritos na acusação, mas confirmando a existência de uma altercação entre si e a assistente, relativa a um papel que lhe dizia respeito e que estava na posse da BB, justificando o seu comportamento com um certo ambiente de gozo que, no seu entender, existiria na sala de aula.
Refere ainda que existiram empurrões mútuos, mas nunca lhe desferiu qualquer chapada ou murro e existiu qualquer intenção da sua parte de magoar a assistente, pedindo desculpa pelo seu comportamento.
Mais declarou que não proferiu as expressões que lhe são imputadas na acusação.
As declarações da arguida não mereceram credibilidade, uma vez que se mostram contrárias às declarações da assistente e da restante prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento como infra se irá explicitar.
Por sua vez, a assistente BB confirmou os factos descritos na acusação, descrevendo os momentos em que ocorreram a chapada e os murros, bem como as ameaças que lhe foram dirigidas pela arguida.
Referiu ainda que, efectivamente tinha o referido papel consigo mas que naquela aula o mesmo não tinha sido assunto de conversa, não percebendo a atitude da arguida para consigo.
As declarações da assistente, não obstante não serem totalmente congruentes com as declarações das restantes testemunhas mereceram credibilidade em face da sua compatibilização parcial com a restante prova testemunhal e ainda à circunstância de a mesma ter sido a vítima dos factos em causa tendo apenas 14 anos à data dos factos, afigurando-se assim natural a existência de algumas contradições com a restante prova testemunhal a qual, na sua maioria, consiste nos seus colegas de turma.
Vejamos, pela testemunha DD, professora que se encontrava a leccionar a aula em causa nos presentes autos, foi referido que a arguida começou a dirigir-se à assistente em voz alta tendo-se dirigido a esta na sala de aula.
Refere que pensa ter existido uma agressão uma vez que os óculos da assistente caíram ao chão. Declarou ainda que a arguida proferiu uma ameaça no sentido de visitar a assistente na cama de hospital e que a mesma ficou receosa com a circunstância.
Mais declarou que a atitude da arguida cessou com a retirada da mesma da sala por parte das auxiliares e que não se recorda de a assistente ter estado no chão.
Aquando da leitura das suas declarações prestadas em inquérito, validamente lidas nos termos do artigo 356.º, n.ºs 2, alínea b) e 5, do Código de Processo Penal, a testemunha admitiu como possível que a arguida tenha desferido uma chapada na face da assistente, uma vez que tais declarações foram prestadas mais perto dos factos.
Ora, não obstante as dificuldades de memória evidenciadas, compreensíveis pelo lapso de tempo decorrido entre os factos e a audiência de julgamento, o tribunal entende que o mesmo revela ser credível pela forma escorreita e sincera como foi prestado.
Analisando agora os depoimentos de (…), colegas de turma da arguida e da assistente e que se encontravam presente no local dos factos, constata-se que os mesmos têm discrepâncias entre si que se consideram como naturais atendendo ao lapso de tempo já decorrido. Pelo exposto, entende o tribunal que os depoimentos ora em apreço se afiguram como credíveis, atendendo à forma sincera como foram prestados.
Vejamos, as testemunhas agora referidas relataram a factualidade da qual se recordavam relativamente ao objecto do processo, sendo que existiram algumas discrepâncias entre os relatos destas testemunhas. Com efeito, houve testemunhas a relatar que apenas houve uma chapada, ao passo que outras mencionaram a existência de duas chapadas.
As testemunhas foram unânimes ao afirmar que não se recordavam de ter existido algum momento em que a assistente se encontrasse no chão bem como também foi referido por todas as testemunhas, com excepção de GG, que os óculos da assistente caíram ao chão.
De salientar ainda que por algumas destas testemunhas foi referido que a altercação entre a arguida e a assistente foi mútua, sem que alguma vez tivesse existido alguma agressão por parte da assistente à arguida.
No que se refere às ameaças constantes da acusação, as testemunhas em causa não se recordavam do teor concreto das mesmas, dizendo apenas que as ameaças eram no sentido de a arguida bater na assistente, sendo referido por (…) que também foi proferida uma ameaça no sentido de lhe partir os dentes.
(…), auxiliares de acção educativa presentes aquando dos factos, relataram que foram chamadas à sala de aula pela professora e que, naquele momento, já não visualizaram nenhuma agressão da arguida à assistente. A testemunha EE declarou que ouviu a arguida a dizer que batia na assistente e a testemunha FF não se recorda de expressões proferidas pela arguida.
Os depoimentos acima referidos mereceram credibilidade em virtude da forma escorreita e sem hesitações como foram prestados.
Passando à análise dos depoimentos das testemunhas relativas ao pedido de indemnização civil, mais concretamente de HH, mãe da assistente, o tribunal considerou este depoimento credível pela forma escorreita e sem hesitações como foi prestado e consentâneo com as regras da experiência comum, tendo a mesma relatado o apoio que deu à assistente na fase posterior à ocorrência da factualidade em apreço e os gastos que teve quer com os óculos da mesma como em acompanhamento psicológico e outro tipo de consultas, mencionando ainda o estado de ansiedade em que a assistente se encontrou nos momentos posteriores aos factos acima descritos.
No que se refere a II, unida de facto com o tio da assistente, a mesma descreveu o estado psicológico em que se encontrava a assistente após os factos em apreço, relatando ainda que deu apoio à família no sentido de esta procurar aconselhamento médico e apresentar queixa pelo sucedido.
Mais referiu o apoio que a mãe da assistente lhe prestou nos dias seguintes à factualidade acima descrita, em depoimento escorreito e sem hesitações, motivo pelo qual revelou ser credível.
Finalmente, no que diz respeito a (…), psicóloga da assistente, a mesma referiu o contexto em que recebeu a assistente em consulta, mencionando que o mesmo teve por base a agressão sofrida em sala de aula e que a assistente apresentava-se muito ansiosa e com choro fácil.
Mais declarou que no âmbito do acompanhamento que teve, foi abordando outros assuntos nas consultas além do assunto que teve por base o início da intervenção.
As declarações desta testemunha mereceram igualmente credibilidade por terem sido prestadas de forma escorreita e sem hesitações.
Concretizando, no que se refere ao facto descrito no ponto 1, o mesmo é considerado como provado por força das declarações da arguida e da assistente que o confirmam, bem como da restante prova testemunhal.
Quanto aos pontos 2 e 3, os mesmos são considerados como provados por força das declarações da assistente e das testemunhas já acima explicitadas, uma vez que tudo conjugado constata-se que a arguida desferiu, pelo menos, uma chapada na face da assistente, tendo em consequência da referida chapada caído os óculos da assistente.
Resultou ainda provado que existiu a intervenção de CC com vista a afastar a arguida da assistente, bem como a exortação de DD.
No que se refere às ameaças, resultou como provado que a arguida proferiu as expressões “ponho-te uma placa nova” e “ponho-te numa cama de hospital” uma vez que as mesmas foram relatadas pela assistente, tendo a mesma declarado que sentiu receio com as mesmas, e o seu sentido foi referido pela restante prova testemunhal na sua globalidade e, em concreto, por (…).
O facto 4 é considerado como provado por força das regras da experiência comum uma vez que quem é vítima de uma chapada sofre dores, além do mesmo ter sido confirmado pela assistente.
A factualidade atinente à imputação subjectiva (factos 5 a 7), foi considerada como provada por força da conjugação da conduta objectiva da arguida e que se deu como provada com as regras da experiência comum e da normalidade da vida já que, face aos primeiros, outra não pode ter sido a vontade da arguida.
Relativamente à factualidade indicada a 8 a 16, a mesma resulta como provada por força das declarações da assistente, da sua mãe HH, de (…), que confirmaram a factualidade descrita no pedido de indemnização civil que se considerou provada, a qual também se mostra consentânea com as regras da experiência comum.
Ademais, o tribunal baseou ainda a sua convicção no certificado de incapacidade temporária para o trabalho de fls. 225, no relatório de avaliação psicológica e respectivos de recibos de fls. 226 a 230 e na factura de fls. 232 e 233.
Os factos relativos às condições económicas e sociais (factos 17 a 20) resultam das declarações da própria arguida.
A ausência de condenações relativamente à arguida AA (facto 21) resulta do CRC junto aos autos.
Por fim, no que se refere aos factos não provados, mais concretamente no ponto A, tal resulta da circunstância de não ser possível ao tribunal afirmar por força das discrepâncias ocorridas na prova testemunhal se foi desferido pela arguida mais do que uma chapada.
No que se refere aos pontos B e C, os mesmos são considerados como não provados por força da ausência de prova nesse sentido, sendo declarado pela assistente não se recordar se a expressão em causa foi proferida pela arguida.
Por fim, no que diz respeito ao ponto D, a convicção do tribunal baseia-se na circunstância de não ser possível estabelecer um nexo de causalidade entre a ocorrência do zumbido e a chapada desferida pela arguida.
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Apreciando
Questão prévia
No caso sub judice, o montante do pedido de indemnização civil deduzido pela demandante é de 2.700,00 € (dois mil e setecentos Euros), tendo tal pedido sido julgado parcialmente procedente e, em consequência, condenada a arguida/demandada a pagar à mesma uma indemnização no montante de € 1.231,00 (mil duzentos e trinta e um euros).
Ora, dispõe o art.º 400.º, n.º 2, do CPP, que, sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
E, nos termos do disposto no artigo 44.º, n.º1, da Lei n.º 62/2013, de 26/8, em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de € 30 000,00 e a dos tribunais de 1.ª instância é de € 5 000, 00 sendo que por alçada entende-se o “limite de valor até ao qual o tribunal julga sem recurso ordinário” – cf. Alberto dos Reis, CPC Anotado, vol. V, pág. 220.
Assim, considerando o disposto no citado art.400º, nº2, do CPP e atentos o valor da alçada e o valor do pedido de indemnização civil deduzido pela demandante, não é legalmente admissível recurso neste particular.
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- Da invocada nulidade da sentença por violação do disposto no art.374º, nº2, do CPP.
No que concerne à invocada nulidade da sentença por omissão de pronúncia cabe assinalar que a sentença só tem que se pronunciar sobre matéria relevante para a decisão da causa. A omissão de pronúncia é um vício que ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre essas questões com relevância para a decisão de mérito e não quanto a todo e qualquer argumento aduzido.
O Tribunal deve resolver todas que as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (a não ser aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras), todavia, como vem sendo dominantemente entendido, o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir (vide, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.” e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”).
O recorrente em várias conclusões do recurso invoca a nulidade da decisão recorrida, dizendo, em síntese que o Tribunal omitiu pronúncia sobre factos que considera relevantes e que não fundamentou a decisão em segmentos que refere, sendo certo, porém, que o alegado visará tão só os meios de prova de que o Tribunal a quo se socorreu para considerar assente o acervo factual, de que discorda, alegando que o tribunal não o justificou devidamente.
Ora, analisando a decisão recorrida constatamos não só a inexistência de omissão de pronúncia como também que a convicção adquirida pelo tribunal a quo se mostra suficientemente fundamentada, suportada pelos meios de prova que como relevantes e credíveis foram considerados na motivação, apresentando-se como plausível e conforme com as regras da experiência comum, não se vislumbrando, pois, no juízo alcançado pelo tribunal qualquer atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque a fundamentação da sentença tem suporte na regra estabelecida no art.127º do CPP.
É, pois, por demais patente que a alusão ao vício da nulidade em questão é destituída de suporte.
Com efeito, analisando a decisão recorrida constatamos que a mesma se pronunciou claramente sobre toda a matéria, seja da acusação seja da contestação, relevante para a decisão, onde estão expostos fundamentos suficientes que explicam o processo lógico e racional que foi seguido na apreciação da prova, a razão pela qual a convicção do tribunal se formou no sentido da culpabilidade da arguida.
Da leitura de tal decisão, designadamente da parte da fundamentação, alcança-se, pois, que, contrariamente ao alegado, o Tribunal a quo enunciou os factos provados e não provados e não só elencou todas as provas em que se baseou, como indicou os motivos de credibilidade, ou não, das mesmas. Tudo isto constando da motivação, da qual resulta percetível o raciocínio lógico que levou o Tribunal a considerar assentes os factos que enuncia.
Seguidamente, consta da sentença recorrida a subsunção dos factos ao direito, após o que foi determinada a sanção.
Assim, conclui-se que o Tribunal “a quo” examinou, pois, toda a prova produzida na audiência, e verifica-se ter a mesma sido valorada e apreciada em obediência aos critérios legais, mostrando-se examinada de forma detalhada e crítica, razão pela qual há que concluir que não se verifica a alegada omissão de pronúncia, nem falta de fundamentação, não padecendo a sentença recorrida da invocada nulidade.
Termos em que, neste particular, improcede o recurso.
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- Da invocada insuficiência da matéria de facto provada para a decisão
Antes do mais, importa ter presente que os vícios a que alude o art. 410º, nº2, alíneas a) a c), do CPP - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e erro notório na apreciação da prova – não se confundem com o controlo do erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa. Estes erros respeitam a situações distintas: - erro na apreciação da prova é o erro sobre a admissibilidade e valoração dos meios de prova.
Com efeito, os vícios previstos nas alíneas a) a c), nº2, do art. 410º, do CPP, têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos externos à decisão, enquanto que no controlo do erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, quando o recorrente impugna a matéria de facto nos termos do art. 412º, nº3, do CPP, o Tribunal de recurso procede ao reexame de facto, nos pontos especificados pelo recorrente que considera incorretamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida, especificadas pelo recorrente, e com base nas quais assenta a sua discordância (art. 412º, nº3, als. a) e b), do CPP).
Trata-se, pois, de situações bem distintas.
Relativamente ao vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, previsto na alínea a), do nº2, do art. 410º, do CPP, para que se verifique, como refere o Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol III, pp. 339, «É necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida».
Assim, um tal vício só pode ter-se como evidente quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida.
Conforme constitui Jurisprudência pacífica do STJ, a insuficiência a que se refere o art. 410º, nº 2, al. a), do CPP, é a que decorre da omissão de pronúncia pelo tribunal, sobre facto (s) alegado (s) ou resultante (s) da discussão da causa que sejam relevante (s) para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão. (…). A insuficiência da matéria de facto provada existe quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o Tribunal recorrido podendo fazê-lo deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência a aplicação do direito ao caso submetido à apreciação do Tribunal, ou seja, no cumprimento do dever da Tribunal podia e devia ter ido mais longe e, não o tendo feito, ficaram por investigar factos essenciais cujo apuramento permitira alcançar a solução legal e justa.
No caso sub judice, a matéria de facto dada como provada, é suficiente para justificar a aplicação do direito ao caso submetido à apreciação do Tribunal. Resulta da matéria de facto provada e não provada, que o Tribunal se pronunciou sobre os factos alegados, resultante da discussão da causa que foram relevantes para a decisão, que deu como provados ou não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, e que foram alegados pela acusação e pela defesa e que resultaram da discussão, sendo que não resulta do texto da decisão recorrida, por si só, e conjugadas com as regras da experiência comum, que ficaram por investigar factos essenciais cujo apuramento permitiria alcançar a solução legal e justa.
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- Da invocada contradição entre os factos e a fundamentação
Relativamente ao vício de contradição insanável, dir-se-á que existe tal vício quando há oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória da matéria de facto. Ocorre ainda quando, segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente a decisão contrária ou quando, segundo o mesmo raciocínio, se conclui que a decisão não fica suficientemente esclarecida, dada a colisão entre os fundamentos invocados.
A contradição de que fala o art.410º, nº2, al.b) do CPP é, pois, uma contradição entre os fundamentos da decisão ou entre estes e a própria decisão, nunca entre os meios probatórios em si mesmo considerados, ou entre a convicção formada pelo tribunal e aquela que, segundo o recorrente, devia prevalecer face às provas produzidas e verifica-se quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões antagónicas entre si e que não possam ser ultrapassadas, ou seja, quando se dá por provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, ou quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição se estabelece entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão.
Consiste, pois, na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão, e, como tem esclarecido o Supremo Tribunal «só se verifica quando, de acordo com um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação, não só não justifica como impõe uma decisão contrária ou, quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se concluir que a decisão não resulta suficientemente esclarecida, dada a colisão entre os fundamentos invocados» (cfr. Ac. do STJ de 17-12-2014 (Processo 937/12.4JAPRT.P1.S1 - Isabel São Marcos).
Ou, como se decidiu no acórdão do mesmo Tribunal de 20/04/2006, (no Processo 06P363 - Rodrigues da Costa) «O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão ocorre quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão».
Este vício, como resulta da letra da alínea b) do nº2 do art. 410º, só se deve e pode ter por verificado quando ocorre uma contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, ou seja, um conflito inultrapassável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, o que significa que nem toda a contradição é suscetível de o integrar, mas apenas a que incida sobre elementos relevantes do caso e se mostre insanável ou irredutível, isto é, que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
Porém, não se deteta na decisão recorrida qualquer contradição.
Com efeito, analisando tal decisão, é manifesto que a mesma está elaborada de forma equilibrada, lógica e fundamentada.
Assim, não obstante a recorrente imputar à decisão recorrida tal vício formal, na respetiva motivação logo denuncia que o seu real inconformismo visa o modo como o Tribunal de 1ª instância apreciou e valorou os meios de prova produzidos em audiência de julgamento.
Realmente, quanto a esses vícios, a que alude o art. 410º, n.º 2, do CPP, seria suposto que a impugnação deduzida incidisse no eventual erro na construção do silogismo judiciário, não no chamado erro de julgamento, a injustiça ou a desadequação da decisão proferida ou a sua não conformidade com o direito substantivo aplicável. Tratar-se-ia, nessa vertente, de saber se na decisão recorrida se reconhece qualquer desses vícios, necessariamente resultantes do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
O que significa que só assumem tal natureza os erros constatáveis pela simples leitura do teor da própria decisão da matéria de facto, não sendo admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para os fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento. Apenas será de admitir a conveniência ou a cautela de, ainda assim, sindicar a fundamentação que haja sido feita sobre os factos provados e não provados, para se fazer uma avaliação correcta e poder concluir se, afinal, para um facto em aparente contradição com a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, não foi fornecida naquela fundamentação um qualquer esclarecimento que torne compreensível o julgamento efetuado: por exemplo, se um facto dado como provado (ou não provado) contraria o senso comum, ou seja, a normal e corrente compreensão e interpretação das situações da vida, só a clara explicitação do percurso trilhado para a formação da respetiva convicção e a razoabilidade desta poderão legitimar a sua aquisição processual.
Nesses e nos demais aspetos versados no recurso, o que verdadeiramente ilustra toda a impugnação da recorrente nesta vertente é apenas o seu inconformismo pela sua condenação, aí fazendo radicar os aludidos vícios que aponta à decisão recorrida.
Como linearmente se extrai, no caso em apreço, não se constata pela simples leitura do teor da decisão recorrida este vício (formal) que a recorrente lhe assaca, pois, para além de os factos considerados assentes não serem contraditórios em si mesmos ou com aqueles que foram dados como não provados ou com a fundamentação que sobre eles incidiu, assim como também não se vislumbra que a apreciação dos meios de prova tivesse afrontado qualquer principio jurídico ou as regras da experiência comum.
Destarte, é forçoso concluir, face à argumentação, que a recorrente invoca a existência também deste vício fora das analisadas condições legais, pois que se limita a extrair as ilações que tem por pertinentes da prova produzida, que contrapõe à do julgador, sem que logre demonstrar, através da análise estribada apenas na leitura do próprio texto da sentença recorrida, a existência de qualquer ilogismo de percurso ou conclusão contrária à lógica das coisas, ao alcance, pela sua evidência, do homem comum.
Por conseguinte, improcede a deduzida invocação de vícios formais.
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- Do erro de julgamento da matéria de facto
A pretensão da recorrente dirige-se à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, sustentando ter sido incorretamente condenada por não terem sido devidamente valorados meios de prova produzidos em audiência de julgamento.
Vejamos, então.
Nos termos do disposto no artigo 428.º do Código de Processo Penal, «as relações conhecem de facto e de direito».
Tal constitui uma concretização da garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto - reapreciação por um Tribunal superior das questões relativas à ilicitude e à culpabilidade.
O recurso em matéria de facto não constitui, contudo, uma reapreciação total pelo Tribunal de recurso do complexo de elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas poderá ter como objeto uma reapreciação autónoma do Tribunal de recurso sobre a razoabilidade da decisão tomada pelo Tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o Recorrente considere incorretamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na indicação do Recorrente, imponham decisão diversa da recorrida ou determinado a renovação das provas nos pontos em que entenda que deve haver renovação da prova ( cfr. Ac. do STJ de 20.01.2010, in www.stj.pt/jurisprudência/sumáriosdeacórdãos).
O recurso da matéria de facto perante a Relação não é, assim, um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se antes de um remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente, de forma genérica, quaisquer eventuais erros.
“O julgamento efetuado pela Relação é de via reduzida, de remédio para deficiências factuais circunscritas, confinadamente a pontos específicos, concretamente indicados, não valendo uma impugnação genérica, repousando em considerações mais ou menos alargadas ou simplesmente abrangentes da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais fazem das provas e do resultado a que devam chegar” (cfr. Ac. STJ, de 27 de Janeiro de 2009, processo n.º 3978/08 -3.ª”.
Por conseguinte, o recurso em matéria de facto, destina-se apenas à reapreciação da decisão proferida em primeira instância em pontos concretos e determinados. Tem como finalidade a reapreciação de “questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida” (cfr. designadamente o art. 410º., nº.1 do CPP).
Daí que o legislador tenha estabelecido um específico dever de motivação e formulação de conclusões do recurso nesta matéria, como decorre do disposto no disposto no art.412º. nº3 do CPP.
No caso em análise a recorrente pretende impugnar matéria de facto, sustentando que o Tribunal não valorou devidamente a prova.
Importa trazer à colação que em processo penal a regra é a de livre apreciação da prova como decorre do estatuído no artigo 127.º do CPP, onde se dispõe que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Tal princípio, porém, não é absoluto e entre as exceções a tal regra, incluem-se o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados, o caso julgado, a confissão integral e sem reservas no julgamento e a prova pericial.
Como já supra dito, a recorrente, como questão central do presente recurso, não põe em causa a prova admitida e valorada pelo tribunal ou a sua fiabilidade, nem invoca, a seu favor, qualquer outro meio de prova que contrarie aqueles que foram considerados na decisão recorrida.
Fundamenta a sua pretensão apenas no facto de a prova produzida não ser suficiente para alicerçar a decisão da condenação proferida.
Tal impugnação é feita, antes de mais, através do isolamento de cada um dos indícios.
Depois de isolados e separados, a recorrente formula um juízo de debilidade quanto a alguns, apontando um ou outro contra-argumento às ilações extraídas pelo tribunal.
Esse procedimento não é, porém, justificado porquanto a força probatória dos meios de provas resulta precisamente da sua independência, concordância e pluralidade.
Por isso, mesmo a debilidade da força probatória de alguns dos elementos de prova não tem a consequência pretendida pela recorrente. Cada um desses elementos não pode ser separado do conjunto em que se insere e ser valorado autonomamente.
Como resulta da motivação da decisão de facto não há dúvida que o Tribunal atendeu quer às declarações da arguida e da assistente, quer ao depoimento das diversas testemunhas, quer a prova documental inserta nos autos, explicitando de uma forma coerente, convincente e lógica, o entendimento e a convicção com que ficou sobre os mesmos.
A divergência da recorrente assenta precisamente nesta circunstância, já que no seu entender a convicção formada sobre a prova, não podem ser suficientes para que o Tribunal conclua pela prova dos factos assentes como provados e não provados na sentença e conclua pela sua condenação.
Mas, como é sabido em processo penal vigora o princípio da livre apreciação da prova inserto no art. 127º, do CPP, segundo o qual “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, que não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova, mas tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
Não há dúvida que a livre apreciação da prova não consiste na afirmação do livre arbítrio, já que também está vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório.
A liberdade que aqui importa é a liberdade para a objetividade, aquela que se concede e que assume em ordem a fazer triunfar a verdade objetiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjetividade e que se comunique e que se imponha aos outros. Isto significa, por um lado que, que a exigência de objetividade é ela própria um princípio de direito, ainda que no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objetiva.
E, entrando na apreciação da prova no caso sub judice, o que se constata é que o tribunal fundamentou esclarecidamente a valoração que fez da prova produzida em audiência, como claramente resulta da motivação da decisão de facto.
Ora, quando a atribuição ou não da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum. Não se trata, na instância de recurso, de encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só de verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos.
“A convicção do tribunal é construída dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, olhares, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos» (cfr. Ac. STJ de 20SET05, in www.dgsi.pt)
Aplicando esta doutrina ao caso dos autos, conclui-se que o Tribunal “a quo”, tal como resulta da motivação da decisão de facto, não atendeu a prova proibida por lei (art. 125º, do CPP), mas, pelo contrário, todas as provas apresentadas foram objeto de apreciação segundo as regras da experiência comum e da sua convicção (art. 127º, do CPP), não resultando qualquer apreciação arbitrária, procedendo à análise crítica da prova (art. 374º, nº2, do CPP). Aí se referem quais de entre as várias provas produzidas aquelas que serviram para a formação da convicção do tribunal, com uma fundamentação convincente, em que é feita a análise crítica das provas atendidas.
Assim, reexaminada a prova em que o Tribunal “a quo” se baseou para dar como assente a matéria de facto, não há qualquer razão para este Tribunal de recurso alterar a matéria de facto dada como provada e não provada na sentença recorrida, nem se mostra violado o princípio da livre apreciação da prova, inserto no art. 127º, do CPP.
Com efeito, a prova produzida consente as ilações retiradas pelo tribunal e as regras da experiência não a contradizem.
Assim, dada a dependência, concordância e pluralidade dos meios de prova e a sua força probatória, que assenta em “máximas de experiência” fundadas e que não foi contrariada pela argumentação da recorrente, não pode deixar de improceder o recurso neste particular.
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- Do alegado não preenchimentos dos elementos típicos dos crimes de ofensa à integridade física e ameaça.
Alega a recorrente que a sua conduta não preenche os elementos do tipo de crime de ofensa à integridade física e do tipo de crime de ameaça.
Vejamos
Decorre do artigo 143.°, nº1 do CP, que «quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa».
Este tipo incriminador visa proteger um dos mais importantes bens da ordem jurídica portuguesa, a integridade física, um bem jurídico eminentemente pessoal.
Refira-se que o bem jurídico protegido neste tipo legal de crime é a integridade física da pessoa, em obediência ao comando constitucional do artigo 25°, nº 1 da C.R.P. do qual decorre que a inviolabilidade da integridade física da pessoa está garantida constitucionalmente.
O preenchimento deste tipo legal de crime exige uma conduta humana que seja causa adequada a provocar uma ofensa no corpo ou na saúde de uma pessoa.
Trata-se de um crime material e de dano que abrange um determinado resultado, consistente na lesão do corpo ou da saúde de outrem, fazendo-se a imputação objetiva deste resultado à ação ou omissão do agente de acordo com as regras gerais.
Trata-se de igual modo de um crime de execução livre, ou seja, pode ser perpetrado por qualquer meio, para além de que é também um crime de resultado, exigindo-se que haja uma ofensa efetiva à integridade física ou psíquica do ofendido.
Como decorre do exposto, o tipo objetivo de ilícito fica preenchido mediante uma de duas modalidades: ofensas no corpo ou ofensas na saúde, o que sucede independentemente da dor ou do sofrimento causados.
Por ofensa no corpo poder-se-á entender todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante, integrando o elemento típico aquelas atuações que envolvem uma diminuição da substância corporal, com a perda de órgãos, membros, ou pele, lesões da substância corporal, como nódoas negras, inchaços, alterações físicas ou a perturbação de funções físicas.
No que concerne à lesão na saúde, como tal deve entender-se toda a intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a, pertencendo a este âmbito toda a produção ou aprofundamento de uma constituição patológica. É de considerar como lesão da saúde, em primeiro lugar, a criação de um estado de doença, integrando também este elemento típico a conduta de quem contribua de forma decisiva para a manutenção ou agravamento de um estado de doença ou sofrimento já existente.
No que toca ao elemento subjetivo, o tipo legal em análise exige a verificação do dolo, traduzido na consciência e vontade de produção da lesão.
Assim, analisado o tipo legal em causa, cumpre, tendo em conta os seus elementos típicos, verificar se se encontra preenchido pela conduta imputada à arguida e pelo qual se mostra condenada.
E, atenta a factualidade apurada, plasmada nos factos provados sob os nºs 2, 4, 5 e 7, resulta que a arguida preencheu com a sua conduta os elementos objetivo e subjetivo do tipo em causa.
Com efeito, resultou provado ter a arguida desferido “pelo menos uma chapada na face” da ofendida, que sofreu dores nas zonas atingidas.
Em sede de tipicidade subjetiva, flui igualmente da matéria de facto provada que a arguida agiu dolosamente, com conhecimento e vontade de realizar o tipo.
A tipicidade indicia a ilicitude, uma vez que não se verifica, in casu, qualquer causa de justificação. Do mesmo modo, a ilicitude indicia o juízo de censura em que se traduz a culpa, sendo certo que a arguida atuou de forma livre e deliberada, motivando-se de acordo com a sua consciência da ilicitude.
Conclui-se, assim, que a arguida praticou um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.°, nº1, do CP, não merecendo censura a decisão recorrida neste particular concernente à qualificação jurídica.
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Dispõe o artº 153º nº 1 do Cód. Penal: «quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias».
Após a revisão de 1995 do CP, o crime de ameaça deixou de ser um crime de resultado e de dano e passou a ser um crime de mera ação e de perigo. Deste modo, já não é exigido que a ameaça cause efetiva perturbação na liberdade do ameaçado ou que lhe cause medo ou inquietação, pois, como resulta do estatuído no art 153º, passou a bastar que a ameaça seja adequada a provocar no ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
Assim, enquanto no artº 155º nº 1 do CP/1982 se exigia que o agente tivesse provocado no sujeito passivo receio, medo, inquietação ou lhe tivesse prejudicado a sua liberdade de determinação, agora basta que o agente se tenha servido de expediente adequado a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar-lhe a sua liberdade de determinação.
Como refere o Prof. Taipa de Carvalho “O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objetivo-individual: objetivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é suscetível de intimidar ou de intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades” do ameaçado). (...) Uma vez que o atual crime de ameaça não exige, por um lado, a intenção do agente de concretizar a ameaça, nem se exige a ocorrência do resultado/dano, e, por outro lado, exige que o mal ameaçado seja constituído pela prática de determinados crimes, a conclusão a tirar é de que a ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado)”.
Assim, para que ocorra o crime de ameaças não se exige que o agente cause ao ofendido receio, medo ou inquietação, exigindo-se apenas que a ameaça seja adequada a provocar medo, mesmo que no caso concreto o não venha a provocar (do mesmo modo que, se os provocar, mas a ameaça não se mostrar idónea para esse efeito, o crime não se mostra cometido). O crime de ameaça passou de crime de resultado a crime de perigo e deixou de ser exigível que a ameaça produza efeito no espírito do ameaçado.
No caso “sub judice”, as expressões proferidas pela arguida em voz alta, usando de tom grave e sério, “ponho-te uma placa nova” e “ponho-te numa cama de hospital”, atenta a forma e as circunstâncias em que foram produzidas, são adequadas a provocar medo ou inquietação e a prejudicar a liberdade de determinação da visada.
Com efeito, com as expressões acima referidas e considerando as circunstâncias em que tudo ocorreu, a arguida pretendia ameaçar a ofendida, sendo que, com aquelas expressões a arguida anunciou à ofendida a possibilidade de lhe poder acontecer qualquer mal que pode indicar ofensas à integridade física.
De facto, quando se diz que o mal ameaçado tem de ser futuro, ou que o mal, objeto da ameaça, não pode ser iminente, tal significa simplesmente que não podem estar praticados quaisquer atos de execução do crime prometido, pois que, neste caso, estar-se-ia já diante de uma tentativa de execução do crime em causa, não suportando seguramente o conceito interpretações como a pretendida pelo recorrente.
“ (…) O mal iminente é o mal que está próximo, que está prestes a acontecer. Por isso, o mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há-de ser, que há-de vir, embora esteja próximo, prestes a acontecer.
É claro que sendo o mal iminente poderemos estar perante uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é, do respetivo mal, já que segundo a alínea c) do artigo 22º do Código Penal, o anúncio daquele mal pode, segundo a experiência comum, ser de natureza a fazer esperar que se lhe sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores, isto é, atos que preencham um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou que sejam idóneos a produzir o resultado típico. Mas daí se não segue, necessariamente, que deixe de existir uma ameaça.
(…)
Tudo depende da intenção do agente.
É que, para haver tentativa não basta a prática de atos de execução é necessário que esses actos sejam de execução de um crime que o agente “decidiu cometer” (art. 22º, n.º1).
O que se exige é tão somente que a ameaça, o anúncio do mal futuro, seja suscetível de afetar a paz individual ou a liberdade de determinação. Se essa suscetibilidade se prolonga mais ou menos no tempo é irrelevante para efeitos de incriminação.
Se o visado não ficou condicionado nas suas decisões e movimentos dali por diante é, igualmente, irrelevante.
O que é decisivo é que, ainda que por momentos breves, o anúncio daquele mal, depois não concretizado, fosse suscetível de afetar aqueles bens jurídicos, fosse capaz de gerar medo, inquietação ou de prejudicar a liberdade de determinação…” (cfr. Ac. Rel. Guimarães de 18-5-2009, disponível em www.dgsi.pt).
Assim, atentando no contexto e nas circunstâncias em que foram proferidas as expressões em causa, tinham as mesmas a aptidão para, em relação a qualquer pessoa, traduzir a possibilidade da execução de uma ação agressiva, e, portanto, estão preenchidos os elementos típicos do crime em causa.
O recurso é, assim, improcedente também neste particular.
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- Da não ponderação pelo tribunal recorrido da aplicação do regime especial para jovens.
Ainda que não de forma expressa e clara, a recorrente alude à não aplicação do regime especial para jovens e à consequente nulidade da sentença por virtude de tal omissão.
O DL 401/82, de 23/9, institui o regime aplicável em matéria penal aos jovens com idades compreendidas entre os 16 e os 21 anos, sendo que, conforme disposto no artº 1º, o regime aí estabelecido aplica-se a jovens que tenham cometido um facto qualificado como crime, considerando-se jovem o agente que à data dos factos tiver completado os 16 anos sem ter ainda atingido os 21 anos de idade.
Dispõe o art.4.º do referido DL 401/82, de 23/9 que «se for aplicável pena de prisão deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 73.º e 74.º do Código Penal [A referência é hoje, após a revisão operada pelo DL 48/95, de 15/3, para os artigos 72.º e 73.º do Código Penal.] quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado», e prevendo o art. 5.º, para os jovens com menos de dezoito anos, a possibilidade de aplicação subsidiária da legislação relativa a menores, sempre que ao caso corresponda pena de prisão inferior a dois anos, na consideração da personalidade do arguido e das circunstâncias do caso.
Por seu turno, o art.6.º dispõe que «quando, das circunstâncias do caso e considerada a personalidade do jovem maior de dezoito anos e menor de vinte e um anos, resulte que a pena de prisão até dois anos não é necessária nem conveniente à sua reinserção social, poderá o juiz impor-lhe medidas de correção» de admoestação, imposição de determinadas obrigações, multa ou internamento em centros de detenção.
Ora, no caso "sub judice", tendo a recorrente 16 anos de idade à data da prática do crime, encontra-se abrangida por tal diploma legal, sendo pois irrecusável que reúne os pressupostos formais de aplicabilidade desse regime – cometeu factos qualificados como crime, tinha, à data da sua prática, idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, e não é penalmente inimputável em virtude de anomalia psíquica (art.1º do citado diploma).
Todavia, só em caso de opção por pena de prisão é que se impõe apreciar da aplicação do regime previsto no DL 401/82, de 23/9.
Com efeito, os preceitos legais supra referidos têm como pressuposto a imposição de uma pena de prisão. Ou seja, apenas se impõe a ponderação do regime especial para jovens, cuja aplicação não é automática, nas situações em que ao jovem é aplicada pena de prisão. «Apesar da expressão “aplicável” constante do art. 4º poder suscitar controvérsia, a pena de prisão a que se refere aquele preceito legal, é a pena concreta a aplicar, como resulta do nº 7 do preâmbulo do diploma legal em questão.
Por outro lado, como também resulta da leitura daquele preâmbulo, o regime especial para jovens procura evitar a aplicação de penas de prisão, com os inerentes malefícios dos efeitos criminógenos da prisão nos jovens adultos.
Como acentua o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.9.06, “relativamente aos jovens adultos (art. 2.º do DL 401/82) essa atenuação especial pode fundar-se não só no princípio da culpa (caso em que essa atenuação especial recorrerá aos arts. 72.º e 73.º do CP) como, também ou simplesmente, em razões de prevenção especial (ou seja, de reintegração do agente na sociedade)”.
Porém, à arguida/recorrente não foi aplicada uma pena de prisão, tendo o tribunal a quo optado por uma pena de multa.
Ora, na pena de multa não ocorrem os riscos inerentes à pena de prisão e não existem especiais razões de reintegração do agente na sociedade que justifiquem um regime especial.» - Ac.R.Porto de 9/6/2010, proc. n.º166/07.9SFPRT.P1, relatado pelo Desembargador Jorge Raposo.
Quando a pena aplicável seja a de multa, o DL 401/82, de 23/9, não prevê qualquer possibilidade de atenuação especial dessa espécie de pena ou de substituição por outra. Com efeito, nos termos do art.9.º do citado DL 401/82, «na fixação da multa serão aplicáveis os princípios da lei geral devendo, todavia, tanto quanto possível, procurar afetar-se unicamente o património do jovem», não havendo qualquer referência à atenuação especial [No sentido do DL 401/82, de 23/9, não ser aplicável em caso de aplicação de pena de multa, v., entre outros e para além do supra citado Ac.R.Porto de 9/6/2010, Ac.R. do Porto, de 4/10/2006, proc. 0643243 e Ac.R.Lisboa de 12/12/2006, proc. n.º9320/2006-5, in www.dgsi.pt.]
No caso, o tribunal optou por pena de multa, pelo que não tinha de se pronunciar sobre a aplicação do regime especial para jovens, não ocorrendo omissão de pronúncia.
Termos em que o recurso improcede também neste particular.
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- Da medida da pena
Dispõe o art.71º do CP que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (nº1); na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente: o grau de licitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente (nº2, al.a)); a intensidade do dolo ou da negligência (nº2, al.b)); os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (nº2, al.c)); as condições pessoais do agente e a sua situação económica (nº2, ald)); a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime (nº2, al.e)); a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena (nº2, al.f)); na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena (nº3).
Esta operação implica, pois, uma apreciação conjunta de todas estas circunstâncias, sendo também relevante a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).
Neste particular, decidiu-se na sentença recorrida:
“As circunstâncias a que o tribunal deve atender para determinar a culpa e as necessidades de prevenção vêm exemplificativamente elencadas no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, consistindo as mesmas em circunstâncias que não fazem parte do tipo de crime. Encontra-se aqui consagrado o princípio da proibição da dupla valoração.
Uma vez que ambos os crimes em apreço admitem pena de prisão ou pena de multa é necessário verificar se a pena de multa satisfaz as finalidades da punição, devendo o tribunal dar preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, de acordo com o artigo 70.º, do Código Penal.
Olhando para o caso concreto é de salientar que, no que diz respeito às exigências de prevenção geral para este tipo de crimes, as mesmas são elevadas pois estamos perante tipos de crimes que ocorrem, muitas vezes por motivos absolutamente fúteis ou até sem qualquer justificação, com muita frequência, impondo-se necessidades de repressão.
Analisando as circunstâncias relativas à arguida que irão determinar se o tribunal irá aplicar pena de multa ou pena de prisão, verifica-se que a mesma não demonstrou qualquer juízo de auto-censura ou de desvalor da sua conduta, apresentando uma versão que não se revelou credível.
Em seu favor, resulta a circunstância de a arguida se encontrar inserida familiar, laboral e socialmente e não ter condenações averbadas no seu CRC.
Pelo exposto, entende o tribunal que a aplicação de penas de multa ainda assegura de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
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Cumpre agora proceder à determinação da medida concreta das penas de multa, tendo em atenção os dispositivos legais acima citados.
Atenderá igualmente o tribunal, na fixação da medida concreta da pena, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nos termos do artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal.
Deverão assim ser considerados e devidamente sopesados os seguintes factores:
O grau de ilicitude é mediano, atendendo à forma de execução da factualidade em apreço.
Por outro lado, as lesões causadas no corpo da ofendida revelam uma baixa gravidade.
O grau de culpa é elevado, uma vez que a arguida agiu com dolo directo.
As necessidades de prevenção geral são elevadas, considerando que o tipo de crime em causa ocorre com muita frequência, impondo-se necessidades de repressão e, finalmente;
As necessidades de prevenção especial são medianas, não obstante a arguida não ter revelado um juízo de auto-censura e interiorização do desvalor da sua conduta, uma vez que apenas tinha 16 anos à data da prática dos factos e não tem condenações averbadas no seu CRC.
Assim sendo, entende-se adequado condenar a arguida AA nas seguintes penas:
- quanto ao crime de ofensa à integridade física simples - 80 dias de multa;
- quanto ao crime de ameaça simples – 50 dias de multa.
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Tendo presentes as penas parcelares quanto à arguida AA e o disposto no artigo 77.º, n.º 2 do Código Penal a pena única de multa tem como limite mínimo 80 dias e limite máximo 130 dias.
Em cúmulo jurídico, ponderando, nos termos do artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal, o conjunto dos factos e apurada a personalidade da arguida reputa-se adequada à sua conduta a pena única de 95 dias de multa.
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No que respeita ao quantitativo diário da pena de multa, deverá atender-se à situação económico-financeira do arguido e dos seus encargos pessoais.
Aqui, importa considerar os ensinamentos do Supremo Tribunal de Justiça constantes no Acórdão deste Tribunal de 02/10/1997, in CJ III, pág. 183, onde se decidiu que “o montante diário da multa deve ser fixado em termos de se constituir um sacrifício real para o condenado sem, no entanto, deixar de lhe serem asseguradas as disponibilidades indispensáveis ao suporte das suas necessidades e do respectivo agregado familiar”.
Ou seja, o montante da pena de multa não pode ser de tal modo baixo que essa sanção não represente qualquer sacrifício para aquele que a é condenado a pagar, pois que isso resultaria num sentimento de descrédito e de insegurança face aos tribunais e à justiça.
Apurou-se através das declarações da arguida que a mesma trabalha como copeira, auferindo a retribuição mínima mensal garantida, não tendo nenhuma despesa a seu cargo.
Considerando tudo o acima exposto, entende-se ser adequado fixar 6,00 € o quantitativo diário da multa, num total de € 570,00.”
Assim, considerando todas as circunstâncias, ponderando em conjunto todos os factos e a personalidade da arguida recorrente e atenta a moldura dos crimes, não podem considerar-se desajustadas, excessivas ou desproporcionadas as penas parcelares e única em que a arguida foi condenada, não merecendo reservas a elencagem de fatores de medida das mesmas a que procedeu a decisão recorrida.
Com efeito, o tribunal recorrido teve em atenção todos os elementos disponíveis no processo que interessavam em sede de graduação das penas, sendo avaliada a conduta da arguida em função dos parâmetros legais, que foram respeitados, nada havendo a acrescentar relativamente aos argumentos já aduzidos na fundamentação utilizada para a determinação da medida das mesmas em relação aos crimes por que foi condenada que justifique a respetiva alteração, pois que se mostram criteriosas, adequadas e proporcionais.
Termos em que o recurso improcede também neste particular.
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Decisão
Face a todo o exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- rejeitar o recurso interposto na parte concernente ao pedido de indemnização civil, por inadmissibilidade legal.
- no mais, julgar improcedente o recurso interposto pela arguida, mantendo a sentença recorrida.
- Condenar a recorrente em 3 UCs de taxa de justiça.
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Elaborado e revisto pela primeira signatária
Évora, 21 de junho de 2022
Laura Goulart Maurício
Maria Filomena Soares
Gilberto da Cunha