Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1684/12.2TBABF-E.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: DIFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - O diferimento de desocupação previsto nos artigos 864º e 865º do CPC constitui um meio de tutela excecional, estando assim reservado aos casos nele previstos, ou seja, de execução para entrega de casa de habitação arrendada
II - A restrição ao direito de propriedade em que se traduz o diferimento da ocupação só poderá ocorrer nos casos previstos na lei e se verificados os pressupostos nela exigidos, estando vedada a sua aplicação, quer por via da analogia, quer do recurso a interpretação extensiva, a outras situações que não as especificamente previstas.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral:
Proc. nº 1684/12.2TBABF-E.E1

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
Por requerimento de 06.07.2023, veio a exequente Hefesto, STC, S.A., requerer autorização para a entrega efetiva do imóvel que adquiriu na execução, por ter entrado em vigor a Lei nº 31/2023, de 4 julho, a qual revogou as leis que impediam as entregas de imoveis, provenientes de execuções.
Nesta sequência, em 01.09.2023, veio AA, deduzir o incidente de Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação ao abrigo do disposto no artigo 864º Código de Processo Civil, alegando, em síntese, que pretende obter uma casa junto dos serviços sociais de Camara Municipal ..., não dispondo de outra habitação para viver, tem uma incapacidade de 60%, necessitando de um prazo de 6 meses para sair do imóvel e angariar um imóvel de substituição, por razões socias imperiosas.
A exequente respondeu, pugnando pelo indeferimento do pedido de prorrogação do prazo para entrega do imóvel.
Por entender que os autos continham todos os elementos necessários ao conhecimento de mérito, em 11.11.2023, a Sr.ª Juíza a quo proferiu decisão de indeferimento do requerido Incidente de diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação.
Inconformada, a requerente apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva a legação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1º-No caso em apreço, invoca a Requerente a qualidade de Arrendatária e por inerência ocupante do bem objeto de venda judicial, por contrato de arrendamento datado de 2018, após o registo da penhora efetuada nos autos de execução, assim deve beneficiar a interpretação extensiva da disposiço legal.
2º-O presente incidente não é extemporâneo por não ter sido deduzido no prazo da oposição à execução, dado que em 22.11.2021, a requerente AA veio deduzir incidente de suspensão da entrega da casa de morada de família da requerente-ocupante do imóvel- até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-COV-2 e da doença COVID-19, como se prevê no nº 1, do artigo 6-E da Lei nº 1-A/2020, introduzido pela Lei nº 13-B/2021 de 05 de abril.
3.Por decisão da Sra. AE de 21.10.2021, o referido bem foi adjudicado ao Credor Hipotecário HEFESTO STC SA.
4. Realmente por carta datada de 15.11.2021 e face à venda judicial ocorrida, no âmbito dos presentes autos, foram os Executados notificados para, no prazo de 10 (dez) dias desocupar o identificado imóvel de pessoas e bens e proceder à entrega das respetivas chaves.
5º- Na interpretação e aplicação dos artigos 863º e 864º em questão, nomeadamente do entendimento aplicam-se apenas à “Execução Para Entrega de Coisa Imóvel Arrendada” (cfr. artigo 862º), significando que apenas têm aplicabilidade quando se trata da entrega do imóvel objecto de contrato de arrendamento para habitação, em que a pessoa a entregar é o próprio executado arrendatário e não qualquer terceiro;
6º- Deve se ter atenão que a ora Requerente era arrendatária do imóvel, no caso concreto aplica-se o art. 864.º do CPC, atinente ao diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação, visa a proteção do inquilino, por razões sociais imperiosas, por interpretação extensiva.
8º-É aplicado nas hipóteses em que, por omissão do legislador, a lei não diz tudo o que deveria dizer, cabendo ao juiz (intérprete) ampliar o seu alcance para além do que está expresso no texto legal, nomeadamente no caso concreto o arrendatário do imóvel cuja a sua propriedade pertencia ao executado, Artº 9 do Cod. Civil
7º- A interpretação extensiva, salvo erro de entendimento, baseia-se no plano estritamente teórico, na possibilidade de referir um certo caso não expressamente considerado pela letra da lei.
8º- Assim a douta sentença violou, com todo o respeito e salvo erro de entendimento, na interpretação e aplicação dos artigos 863º e 864ºdo CPC, por não atender no caso concreto -aplica-se o art. 864.º do CPC, atinente ao diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação, visa a proteção do inquilino, por razões sociais imperiosas, por interpretação extensiva nomeadamente no caso concreto da arrendatária do imóvel cuja a sua propriedade pertencia ao executado, Artº 9 do Cod Civil.
Nestes termos e nos demais de direito, requer-se a V.Ex.ª que julguem o presente recurso procedente e por provado em conformidade com as suas conclusões, ordenando a revogação da Douta sentença recorrida e, devendo ser julgado procedente e por provado o incidente de Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação ao abrigo do disposto no Artigo 864.º Código de Processo Civil».

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão a decidir é a de saber se a decisão recorrida deve ser revogada, por errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 863º e 864º do CPC.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na decisão recorrida foi considerada a seguinte factualidade e dinâmica processual:
1. A presente Execução Para Pagamento de Quantia Certa foi proposta contra os Executados BB e CC, com base numa letra de câmbio.
2. Por Auto de Penhora elaborado em 11.11.2013 foi penhorado o prédio de natureza urbana, Edifício de 3 pisos e logradouro, destinado a habitação, Cave, rés do chão e 1º andar, da freguesia e concelho de ..., sito em ..., Lote ...4, ... ..., Inscrito na matriz sob o artigo ...55 no Serviço de Finanças ..., ... e descrito sob º nº ...98 na Conservatória do Registo Predial ....
3. Por decisão da Sra. AE de 21.10.2021, o referido bem foi adjudicado ao Credor Hipotecário HEFESTO STC SA.
4. Por carta datada de 15.11.2021 e face à venda judicial ocorrida, no âmbito dos presentes autos, foram os Executados notificados para, no prazo de 10(dez) dias desocupar o identificado imóvel de pessoas e bens e proceder à entrega das respetivas chaves.
5. Em 22.11.2021, AA veio deduzir incidente de suspensão da entrega da casa de morada de família da requerente-ocupante do imóvel- até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-COV-2 e da doença COVID-19, como se prevê no nº 1, do artigo 6-E da Lei nº 1-A/2020, introduzido pela Lei nº 13-B/2021 de 05 de abril.
6. Notificada para o efeito, vem a Requerente esclarecer por requerimento de 27.12.2021 que “Quanto à questão do contrato de arrendamento ser datado de 2018, após o registo da penhora efetuada nos autos de execução; a requerente vem apresentar a sua versão pessoal dos factos que procura explicar a situação:
-A casa foi adquirida no ano de 2006 por BB e DD , respetivamente Mãe e Padrasto da Requerente.
-A Requerente foi viver para a casa precisamente em 2006.
-O casal separou-se em 2010.
-A mãe da requerente teve necessidade por motivos de saúde de se ausentar para Lisboa, e a Requerente continuou a viver na mesma casa.
-BB voltou a casar em 2017 com EE verificando-se a separação de facto em 2018, com divórcio muito conflituoso (com alegações de «ameaças, publicações não autorizadas, perseguições») – que envolveu em termos psicológicos a ora Requerente – com internamento da mesma em psiquiatria com depressão.
-Em consequência desta situação ora descrita houve a necessidade de celebrar um contrato de arrendamento entre BB e DD com a Requerente para salvaguardar a posição- da Requerente - face ao alegado comportamento conflituoso de EE.”
7. Por despacho de 29.07.2022, foi proferida decisão no sentido de “não existir ainda, neste momento, fundamento legal para impor a entrega do imóvel” “porque ainda vigora, a esta data, legislação excecional devido à pandemia por Covid 19, designadamente a Lei n.º1- A/2020, de 19-3”.
8. Tal decisão foi mantida por despacho de 28.12.2022.

O DIREITO
Além das normas comuns constantes dos vários números do artigo 861º do Código de Processo Civil[1], a apreensão da coisa na execução de obrigação de entrega de coisa móvel arrendada rege-se ainda pelas especialidades constantes dos artigos 863º a 866º do mesmo Código.
Nelas se preveem meios de defesa adicionais do executado ou de terceiro perante a apreensão do locado, sendo que ao caso importa o diferimento da desocupação do local arrendado para habitação previsto no artigo 864º do CPC, que dispõe do seguinte modo:
«1 - No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
2 - O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
3 - No caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste.»
Decorre deste artigo que estes preceitos apenas se aplicam aos casos de imóveis arrendados para habitação e que o pedido de diferimento tem que ser efetuado dentro do prazo de oposição à execução.
In casu, sendo certo que a recorrente ocupa o imóvel com base em contrato de arrendamento inoponível à execução[2], o eventual diferimento da desocupação, iria perpetuar os prejuízos da proprietária, ora recorrida, sem possibilidade de se ressarcir dos mesmos.
Deve acrescentar-se que, neste caso, em que já passaram mais de sete anos sobre a decisão que julgou improcedentes os embargos de executado deduzidos pela executada BB, mãe da recorrente, dificilmente se poderia concluir que esta não teve tempo para diligenciar no sentido de obter uma nova habitação, pois o prazo que poderia ser concedido à executada – que não à requerente - sempre teria que ser um prazo razoável para encontrar um alojamento alternativo.
Como referem Virgínio Ribeiro e Sérgio Rebelo[3], «(…), o juiz deve atender ao tempo decorrido desde a data do trânsito em julgado da sentença que constitui o título executivo, na medida em que, perante tal decisão, cabia ao executado reorganizar a sua vida, diligenciando pela obtenção de um novo alojamento».[4]
Entrando no cerne do recurso, diremos que concordamos em absoluto com o entendimento da decisão recorrida de que «o referido artigo 864º consubstancia uma possibilidade manifestamente excepcional, que não se coaduna com a disciplina que vigora para o comum das situações de entrega de coisa imóvel em sede executiva e funda-se em razões especiais, privativas das relações arrendatícias, prevendo (no nº 3) que, durante a moratória imposta ao senhorio/exequente para que o executado possa encontrar alojamento alternativo, seja o Fundo de Socorro Social do IGFSS a pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando sub-rogado nos direitos deste».
Contrapõe a recorrente que o art. 864º do CPC deve aplicar-se, por interpretação extensiva, àqueles casos, como o dos autos, em que a propriedade do imóvel pertencia aos executados, com quem a recorrente celebrou um contrato de arrendamento.
Não tem, porém, razão[5], uma vez que o legislador distinguiu deliberadamente as duas situações, confinando o incidente de diferimento às execuções para entrega de coisa imóvel arrendada, regime excecional que não permite – nem a nosso ver existe identidade de situações que o justificasse – aplicação analógica, inexistindo do mesmo passo lacuna que importe o recurso à interpretação extensiva. Isso mesmo vem sendo decidido de forma unânime[6].
E compreende-se que assim seja, considerando as substanciais diferenças de uma e outra situação.
Escreveu-se, a propósito, na Decisão Sumária deste Tribunal de 11.07.2019[7]:
«No que respeita à casa arrendada, o legislador impôs ao senhorio uma ultra vigência do contrato no pressuposto de que é esse o destino que pretende ainda dar ao imóvel e garantindo, pelo mecanismo de recurso ao Fundo de Socorro Social, o pagamento das rendas durante o período de deferimento. Trata-se, portanto, de uma compressão do direito de propriedade plenamente justificada pela necessidade de garantir o direito à habitação do inquilino que se encontra numa situação particularmente frágil, quer por razões económicas, quer de saúde (cfr. as als. a) e b) do n.º 2 do art.º 864.º).»
Improcedendo todos os argumentos do recurso, impõe-se manter a decisão recorrida.
Vencida no recurso, caberia à recorrente o pagamento das custas respetivas (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC), beneficiando a mesma, porém, de apoio judiciário.

IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
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Évora, 20 de fevereiro de 2024
Manuel Bargado (relator)
Maria João Sousa e Faro (1ª adjunta)
Maria José Cortes (2ª adjunta)
(documento com assinaturas eletrónicas)
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[1] Doravante abreviadamente designado CPC.
[2] Assim é, considerando que o contrato de arrendamento junto com o requerimento do presente incidente, foi celebrado entre a recorrente e os executados em 01.09.2018, muito depois da penhora efetuada nos autos, em 11.11.2013 - art. 819º do CC.
[3] A Ação Executiva, 2017 - 2.ª edição, Almedina, p. 584. No mesmo sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, pp. 298-300.
[4] In casu, sendo o título dado à execução uma letra, deve ter-se como referência temporal o trânsito da sentença que julgou improcedentes os embargos de executado e determinou o prosseguimento da execução.
[5] Para além do facto de o requerimento ser intempestivo à luz do que dispõe o nº 1 do art. 864º, como bem se aduz na decisão recorrida, o que é fundamento de indeferimento liminar nos termos da al. c) do nº 1 do art. 865º, ambos os preceitos do CPC.
[6] Cfr., inter alia, acórdãos do STJ de 17.03.2016, proc. 217/09.2TBMBR-B.P1.S1, e do TRC de 15.11.2011, proc. 5316/03.1TJCBR-B.C1, os quais, prolatados embora ao abrigo do CPC pré-vigente, mantêm plena atualidade, uma vez que as soluções consagradas são idênticas no velho e no novo código; e já ao abrigo do novo CPC, os acórdãos do TRL de 12.07.2018, proc. 719/17.7 T8OER-A.L1-7; do TRP de 18.12.2018, proc. 2384/08.3TBMAI-B.P1; do TRG de 21.03.2019, proc. 153/15.3T8CHV-C.G1, e de 04.05.2023, proc. 799/21.0T8VNF-C.G1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[7] Proc. 25/16.4 T8PTG-A.E1, in www.dgsi.pt.