Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
117/08.3GBRMZ.E1
Relator: ANA BARATA DE BRITO
Descritores: DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 03/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. A leitura, em julgamento, de declarações prestadas em fase anterior do processo contraria os princípios da imediação, da oralidade e do contraditório, princípios de derrogação excepcional e sempre justificada por valor conflituante segundo um critério de concordância prática.
2. O direito, reconhecido ao acusado, de interrogar ou fazer interrogar as testemunhas integra também o processo equitativo assegurado pelo art. 6º (nº 3/d)) da CEDH.
3. O art. 356º, nºs 4 e 5 do CPP permite a leitura, em audiência de julgamento, de declarações prestadas em inquérito perante órgão de polícia criminal por pessoa entretanto falecida, existindo o acordo de todos os sujeitos processuais.
4. Esta admissibilidade de leitura assenta num princípio de consenso, mas o âmbito do acordo restringe-se à permissão de leitura e não abrange princípios indisponíveis e proibições de prova.
5. O art. 356º do CPP prevê a “leitura permitida de autos e declarações” em julgamento, tratando das declarações de assistente, de partes civis e de testemunhas, e o art. 357º do CPP regula a “leitura permitida de declarações do arguido” em audiência.
6. O co-arguido é um sujeito processual diverso do assistente, parte civil ou testemunha, mas ocupa a posição de “terceiro” relativamente ao arguido.
7. Para as declarações incriminatórias do co-arguido poderem valer, contra o arguido, em julgamento, tem este de ter a efectiva possibilidade de o poder contraditar em audiência, de exercer um contraditório pela prova, e não apenas um contraditório sobre a prova.
8. A ausência de respostas às perguntas do tribunal e/ou a solicitação do MP e da defesa, neutraliza em absoluto quaisquer efeitos da declaração incriminatória do co-arguido.
9. À situação de recusa em responder prevista no nº 4 do art. 345º do CPP deve equiparar-se a de impedimento de questionar (em julgamento), o que sucederá nos casos de ausência física do co-arguido, por morte ou outro motivo.
10. E se é certo que o art. 356º, nºs 4 e 5 do CPP, existindo acordo de todos os sujeitos processuais, permite a leitura em audiência de julgamento, de declarações prestadas em inquérito, perante órgão de polícia criminal, por pessoa entretanto falecida, essa permissão não pode abranger a leitura de declarações incriminatórias de co-arguido falecido.
11. Mesmo que lidas em audiência, tais declarações nunca poderiam contribuir para a condenação,por força do nº 4 do art. 345º do CPP, norma que consagra uma proibição de prova.
Decisão Texto Integral:

1

Acordam na Secção Criminal:
1. No Processo nº 117/08.3GBRMZ da Secção de Competência Genérica da Instância Local de RM foi proferida sentença em que se condenou o arguido FMVS como autor de um crime de especulação do art.35.º do DL 28/84 (na versão dada pela Lei 20/2008), na pena de 6 meses de prisão e 100 dias de multa, substituindo-se a prisão por 120 dias de multa, e, em cúmulo, fixando-se a pena única em 160 dias de multa à taxa de 6,00 €, o que perfaz a quantia de 960,00 €.
Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:
“I. O Recorrente foi condenado pela prática de um crime de especulação, p. e p. pelo art. 35º do DL 25/84 (na versão dada pela Lei 20/2008).
II. O Tribunal deu como provado, no ponto 2-1 1. que o Recorrente se encontrava num posto de venda de bilhetes improvisado, no dia 6 de Setembro de 2008, pelas 21 horas, junto à praça de touros de RM.
III. No ponto 2-1 3. deu como provado que o Recorrente vendeu bilhetes às senhoras SP e AF pelo valor de vinte e cinco euros.
IV. No ponto 2-1 4. deu como provado que o Recorrente cobrou, por cada bilhete que vendeu, mais 5,00 € do que o preço afixado.
V. Formou o Tribunal a sua convicção, na análise crítica das declarações do Recorrente, dos depoimentos das testemunhas prestados em audiência de julgamento e do teor das declarações do co-arguido, entretanto falecido.
VI. Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo julgou incorrectamente os referidos factos, porquanto em relação aos mesmos não foi produzida prova.
VII. Com efeito, com o depoimento das testemunhas SP e AF não ficou provado que o Recorrente tivesse procedido à venda de bilhetes àquelas pessoas, naquele diz.
VIII. Nem sequer ficou provado que o Recorrente estivesse no posto de venda quando os bilhetes foram vendidos.
IX. Com o depoimento da testemunha AC também não se provou que o Recorrente tivesse sido a pessoa que foi identificada ao agente como sendo quem vendeu os bilhetes.
X. Nada do que o Tribunal deu como provado, se encontra efectivamente provado em audiência de julgamento.
XI. De facto, do depoimento das testemunhas resulta apenas que não foi produzida prova que demonstrasse que o Recorrente tenha praticado a actividade criminosa.
XII. Dos testemunhos ouvidos resultaram sérias dúvidas sobre a prática do crime, e por isso deveria ter sido respeitado o princípio “in dubio pro reo” e o ora Recorrente deveria ter sido absolvido.
XIII. Por outro lado, o Tribunal fundamentou a sua decisão nas declarações prestadas pelo co-arguido EC, prestadas em sede de inquérito e que não foram alvo de discussão e contraditório em julgamento.
XIV. Pelo que, a prova produzida nos presentes autos impunha ao Tribunal a quo uma decisão oposta à que resulta do acórdão recorrido, considerando que o Recorrente não vendeu os bilhetes apreendidos nos autos e nem ficou provado o contrário.
XV. Desta forma, o Tribunal a quo violou, entre outros: - o art. 32.º nº 2 da CRP -os arts. 97.º nº 5, 340.º, 355.º, 374.º nº 2, todos do CPP
XVI – Por outro lado, do texto do acórdão recorrido resulta a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a al. a), do nº 2, do art. 410 do CPP.

Em suma, nos presentes autos não só não ficou cabalmente provado que o Recorrente não praticou o crime em que foi condenado, como foi criada uma claríssima dúvida razoável quanto aos factos pelos quais vem acusado e quanto à sua culpa, pelo que deve ser absolvido do crime em que foi condenado.”
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência e concluindo por seu turno:
“1. O Ministério Público concorda integralmente com a douta sentença condenatória proferida pela Meritíssima Juiz a quo.
2. Nos termos do disposto no artº 356º do Código de Processo Penal, o legislador admite a leitura, em sede de audiência de discussão e julgamento, de determinados actos processuais.
3. Em sede de audiência de discussão e julgamento, fundamentando-se exclusivamente no óbito de EC, o Ministério Público requereu a leitura das declarações pelo mesmo prestadas em sede de inquérito e o Defensor do arguido não se opôs a tal leitura.
4. Seguidamente, a Mmª Juiz a quo procedeu à leitura integral das declarações prestadas por EC.
5. E, seguidamente, a Mmª Juiz a quo concedeu a palavra, sucessivamente, ao Ministério Público, ao Ilustre Defensor, e ainda ao arguido, sendo, pois, manifestamente inverídico que nunca o Recorrente foi confrontado com tais declarações e que foi postergado o exercício do contraditório.
6. A leitura e reprodução de tais declarações, porque realizadas anteriormente à audiência de discussão e julgamento, não integra a prova testemunhal nem por declarações, não sendo exigível, pois, a respectiva gravação, razão pela qual improcede a argumentação expendida pelo Recorrente.
7. O princípio da livre apreciação/valoração da prova, consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, assume importância crucial na fase de julgamento e admite uma dimensão subjectiva e emocional do julgador, embora não arbitrária.
8. A imediação é primordial para a formação da convicção do tribunal, pelo que a censura quanto a esta não pode assentar simplesmente na discordância quanto aos factos provados e não provados, por ter sido, também, produzida prova que apontava no sentido inverso, tendo de assentar na violação da formação de tal convicção, designadamente na violação dos princípios para a aquisição desses dados objectivos ou na falta de liberdade da formação da convicção.
9. Atenta a motivação da decisão de facto constante da douta sentença recorrida, entendemos que Tribunal a quo procedeu ao exame crítico das provas tal como este é exigido pelo artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, encontrando-se enunciados os meios de prova que serviram à convicção do Tribunal e compreendendo-se perfeitamente a ratio decidendi do decisor e do processo lógico, racional e intelectual subjacente ao respectivo conteúdo decisório.
10. Ao impugnar a matéria de facto considerada provada, mais concretamente dos pontos 1 a 7 da mesma, o recorrente baseia-se em provas que não impõem decisão diversa da recorrida, antes interpretando a prova testemunhal de forma isolada, descontextualizada, incompleta e lacunar, relevando apenas algumas partes dos depoimentos de algumas testemunhas, desatendendo à globalidade da prova produzida.
11. Ora, o Tribunal a quo ouviu as testemunhas arroladas e atendeu a toda a prova produzida e examinada em sede de audiência de discussão e julgamento e, analisando a globalidade da prova, formulou um juízo de aceitabilidade dos factos à luz dos resultados probatórios e chegou às conclusões constantes da decisão sobre a matéria de facto, as quais não merecem censura, com excepção da data supra referenciada.
12. Tal convicção mostra-se devidamente fundamentada e não contraria as regras da experiência comum.
13. Inexistiu qualquer violação do princípio processual penal In Dubio Pro Reo, porquanto a Mmª Juiz a quo, após a produção de prova, não teve quaisquer dúvidas de que os factos aconteceram exactamente como vinham descritos na acusação, e explicitou como adquiriu essa convicção.
14. Em face do exposto, a prova produzida não impõe decisão diversa da recorrida, razão pela qual improcedem todas as conclusões do recurso interposto pelo arguido, não merecendo censura a decisão recorrida, e não existindo, portanto, fundamento para a sua modificação.”
Neste Tribunal, o Sra. Procurador-geral Adjunto aderiu à argumentação do MP desenvolvida em 1ª instância.
Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença consideraram-se os seguintes factos provados:
“1. No dia 6 de Setembro de 2008, pelas 21 h, junto da Praça de Touros de RM, antes do início da 1.ª Grande Corrida de touros, o arguido FM encontrava-se, acompanhado de EC, num posto de venda de bilhetes improvisado, que consistia numa bancada amovível, e detinha consigo, para venda ao público, uma quantidade não concretamente apurada de bilhetes de ingresso para o respectivo espectáculo tauromáquico.
2. Nestas exactas circunstâncias, os bilhetes de ingresso supra descritos encontravam-se numerados e rotulados e marcados com o preço de venda ao público, concretamente, “Bancada Sector 2 e 3” e “20,00 €” (vinte euros).
3. Contudo, nestas exactas circunstâncias, o arguido FM vendeu os bilhetes n.ºs 35 e 36 a SPe AF pelo valor de vinte e cinco euros cada, quantia esta efectivamente cobrada pelos mesmos.
4. Com tal procedimento, o arguido FM cobrou, por cada um dos bilhetes supra descritos, mais 5,00 € (cinco euros) do que o preço afixado e que o consumidor tinha efectivamente de despender com a aquisição do mesmo.
5. O arguido sabia que se encontrava obrigado a observar a legislação relativa à venda de bilhetes de ingresso para espectáculos e, não obstante, previu e quis expor à venda os bilhetes de ingresso supra descritos, e cobrar por cada unidade o valor de 25,00 €, vendendo-os por um preço superior ao que se encontrava afixado nos mesmos, com o intuito concretizado de obter para si quantias que não lhe eram devidas, por corresponderem a uma vantagem patrimonial injustificada.
6. O arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era prevista e punida por lei.
7. Nos bilhetes supra referidos encontra-se aposto carimbo dizendo “Agência Festival”.
8. Os presentes autos foram objecto de suspensão provisória do processo, por um período de 4 meses, condicionada ao cumprimento pelo arguido FM, da injunção de 250,00 € a uma IPSS à sua escolha.
9. O arguido não fez prova do cumprimento de tal injunção, tendo sido revogada a suspensão provisória do processo.
10. O arguido é comerciante e aufere, em média, 1.000,00 € mensais.
11. Reside com os pais.
12. O arguido paga algumas das despesas dos pais, nomeadamente renda de casa.
13. O arguido tem como habilitações literárias o 9.º ano de escolaridade.
14. O arguido foi condenado por sentença de 15.10.2010, na pena de 3 anos de prisão suspensa por igual período, pela prática, em 25.05.2009, de 1 crime de furto qualificado (Processo n.º534/09.1PBSTR – Tribunal Judicial de Santarém, a qual foi declarada extinta em 04.11.2013).
E o exame crítico da prova foi o seguinte:
“No que concerne à factualidade dada como provada, o tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica das declarações do arguido, dos depoimentos das testemunhas prestados em audiência de julgamento e do teor das declarações do co-arguido EC, entretanto falecido, as quais foram lidas em sede de audiência de julgamento, em conjugação com os documentos juntos aos autos,
Todas estas provas foram apreciadas no seu conjunto, à luz das regras da experiência comum e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova.
Assim a factualidade provada, no que concerne especificamente aos factos que são imputados ao arguido, resultou essencialmente da análise conjugada das declarações do mesmo com as declarações da testemunha AC, militar da GNR e com as declarações do co-arguido EC, prestadas a fls.65, lidas em sede de audiência de julgamento (após cumprimentos dos requisitos legais).
O arguido prestou declarações negando ter vendido os bilhetes em causa nos autos.
Com efeito, o arguido declarou que se dedicava à venda de bilhetes em praças de touros, que os bilhetes podiam ser vendidos mais caros por se tratar de uma agência de venda de bilhetes. Mais referiu que a pessoa que vendeu os bilhetes, EC (já falecido) cobrou 2,00 € a mais, por engano, tendo-se ele deslocado à barraca apenas para perceber o que se passava com as autoridades policiais.
Já a testemunha AC, militar da GNR, referiu que nas condições constantes da acusação, se encontravam três senhores a vender os bilhetes, no exterior da praça de touros, os quais foram identificados pelas indicações dadas, na altura, pelas testemunhas SP e AF, sendo um deles o proprietário (ora arguido).
Esclareceu de forma clara e coerente que se encontrava de serviço no exterior da praça de touros e que foram alertados para o facto de na barraca em causa estarem a ser vendidos bilhetes por um valor superior ao preço dos bilhetes, pelo que foram dizer aos senhores que se encontravam na barraca que não podiam vender bilhetes nessas condições.
Mais esclareceu que enquanto se encontrava a observar a barraca viu duas meninas sair da mesma, com bilhetes na mão, pelo que foi questioná-las, tendo as mesmas referido que pagaram 25.00 €, valor que era superior aos 20,00 € que estavam no bilhete, facto que consideraram estranho e por isso acompanharam a testemunha à barraca para identificarem os vendedores dos mesmos.
O depoimento da testemunha AC foi complementado pelas declarações do co-arguido, entretanto falecido, EC (lidas em sede de julgamento após cumprimento dos requisitos para tal, as quais foram objecto de contraditório) o qual declarou que tanto ele próprio, como o arguido FM se encontravam no posto de venda dos bilhetes, tendo ambos vendido os bilhetes em causa nos autos.
Já do depoimento das testemunhas SPe AF apenas resultou, com relevância, que no dia e local em causa compraram dois bilhetes para assistir a um espectáculo na Praça de Touros de RM, e que o valor que despenderam pelos mesmos era superior ao que constava do bilhete e que tendo confrontado o vendedor com tal facto o mesmo lhes disse para verem um papel que estava exposto, o qual se referia ao pagamento de IVA.
Dos restantes factos relatados pelas testemunhas nada de concreto resultou pois, tendo em consideração o tempo já decorrido afirmaram não se recordar bem como de facto a situação ocorreu, tendo a primeira referido “pensar” que identificou indicou à GNR a pessoa que vendeu o bilhete.
Assim, da conjugação das referidas provas com as regras da experiência resultaram provados os factos imputados ao arguido.
No que se refere aos elementos intelectuais e volitivos imputados ao arguido mostra-se que os mesmos, com segurança, por inferência e com apoio em regras de normalidade, das supra aludias condutas daquele.
Os factos relativos às condições pessoais e económicas do arguido resultaram provados das declarações pela mesma prestadas, as quais mereceram credibilidade ao tribunal.
Os antecedentes criminais do arguido resultam do teor do seu CRC junto aos autos.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), o recurso encontra-se circunscrito à impugnação da matéria de facto.
Consigna-se a inexistência de vício da sentença previsto no art. 410º, nº 2 do CPP, designadamente a invocada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (al. a), do nº 2, do art. 410 do CPP) que, no recurso, nem sevconcretiza em que consistiria.
O recorrente pretende impugnar a matéria de facto, fazendo-o ao abrigo do disposto no art. 412º, nº3 do Código de Processo Penal.
Concentra a discordância nos factos relativos à imputação objectiva (e, consequentemente, também à imputação subjectiva que lhe está associada). Alega, para tanto, inexistir prova de que tenha sido ele a pessoa que procedeu à venda dos bilhetes em causa.
Para tanto, indicou as provas em que funda a impugnação (fazendo-o por referência à prova gravada e suscitando ainda uma questão de “validade de prova”) e individualizou os pontos de facto que considera incorrectamente julgados. São, por isso, de considerar cumpridas as exigências formais de impugnação da matéria de facto, ou seja, os ónus estatuídos no art. 412º, nº 3 do CPP.
Em sede de “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida” (al. b) do nº 3), o recorrente começa por invocar a violação ao art. 355º do CPP, fazendo-o em relação a uma das provas que especifica em recurso: a prova por declarações de EC.
Estas declarações foram prestadas na fase de inquérito, ocupando então, EC, a posição processual de arguido, tendo sido ouvido nessa condição.
Trata-se, assim, de prova por declarações de co-arguido.
Alega o recorrente que a prova em causa é insusceptível de valoração por não ter sido examinada em audiência nem o recorrente confrontado com ela.
De acordo com a motivação e conclusões, o arguido teria sido surpreendido com a utilização destas declarações na sentença, já que não fora prova examinada em julgamento. Tratar-se-ia, por essa razão, de prova proibida, no sentido de prova insusceptível de utilização ou aproveitamento por ter sido excluída do debate obrigatório em julgamento.
Diz textualmente o recorrente, na motivação do recurso: “Em momento algum, durante a audiência de julgamento, foi feita referência às declarações de EC. Nem nunca o ora Recorrente foi confrontado com tais declarações. Ora, o Tribunal a quo, ao fundamentar a sua motivação para a condenação nas declarações prestadas durante o inquérito, sem as ler em audiência ou discutir, sujeitando-as ao contraditório, viola o artigo 355º nº 1, que prevê expressamente a impossibilidade de tal acontecer.”
Esta alegação é surpreendente no plano da factualidade processual. E é-o também no plano jurídico, pois esquece o nº 2 do art. 355º do CPP, norma que prevê e disciplina as possibilidades de acesso, em julgamento, a provas adquiridas em fases anteriores do processo
Na verdade, no caso em apreciação, o recorrente esteve presente no julgamento, e esteve-o sempre devidamente assistido pelo defensor-advogado.
No decurso da audiência foi requerida, pelo MP, a leitura das declarações prestadas em inquérito por EC.
Sobre este requerimento pronunciou-se a defesa, fazendo-o no sentido de “nada ter a opor” (cf. acta de fls. 494).
Após audição da defesa, a pretensão do MP, por ele fundamentada no art. 356º, nº 4 do CPP, mereceu um deferimento qua tale (cf. acta de fls. 494).
Só então a Senhora Juíza procedeu à leitura das declarações em causa (cf. acta de fls. 494).
Seguidamente, foi dada ainda a palavra ao MP e à defesa para, em alegações orais, se pronunciarem sobre os factos, as provas e o direito do caso. E foi também dada a oportunidade ao arguido para acrescentar o que entendesse útil à sua defesa, como legalmente sempre se impõe no formalismo do julgamento.
Não sendo este o único procedimento possível no que respeita ao modus de exame, em audiência de julgamento, de provas adquiridas em fase anterior do processo (ou seja, modo de concretização prática de hipótese prevista no nº 2 do art. 355º do CPP), consigna-se que o procedimento adoptado pelo tribunal se situou no patamar de garantia de contraditório que julgamos adequado aos casos de exame em audiência de declarações de pessoa falecida.
Ocorre, pois, uma evidente inexactidão do alegado em sede de motivação e conclusões do recurso. Os factos processuais não foram os que o recorrente ali relatou. A prova em causa (que mereceu, como se diz, valoração na motivação da matéria de facto da sentença) não sofreu exclusão de exame em audiência de julgamento, no sentido da alegação do recorrente.
A argumentação desenvolvida partiu de pressupostos inverídicos, como tal insusceptíveis de surtirem qualquer efeito por si só. Porém, daí não derivará a possibilidade de aproveitamento desta prova impugnada.
Na verdade, as declarações de EC não podiam ter sido utilizadas como prova na sentença, mas não pelas razões que o recorrente nomeou em recurso.
No presente caso, tratava-se da leitura, em audiência, de declarações prestadas em inquérito, perante órgão de polícia criminal, por pessoa que ocupou no processo a posição de arguido (mais precisamente, de co-arguido) e que entretanto faleceu.
Esta leitura ocorreu a requerimento do MP e com a anuência da defesa.
Adianta-se que, independentemente da (i)legalidade do exame desta prova em audiência, as declarações incriminatórias de co-arguido prestadas em fase de inquérito nunca poderão servir como meio de prova contra o arguido encontrando-se aquele declarante (o co-arguido) ausente do julgamento.
A leitura, só por si, não será absolutamente proibida, pois pode haver casos em que das declarações de co-arguido resulte um benefício relevante para a defesa, contribuindo positivamente para a absolvição.
É igualmente certo que, em regra, estando o MP e o defensor de acordo com a leitura de declarações prestadas em inquérito por pessoa entretanto falecida, estas declarações podem também constituir meio de prova lícito.
“Verificando-se o disposto na al. b) do nº 2” (ou seja, o acordo) “a leitura pode ter lugar mesmo que se trate de declarações prestadas perante o Ministério Público ou perante órgão de polícia criminal”.
A norma legitimadora da leitura de declarações de pessoa falecida seria então o art. 356º, nºs 4 e 5 do CPP (e não apenas nº 4, como se consignou na acta de julgamento).
Nestes casos, a admissibilidade de leitura resulta de um princípio de consenso entre os sujeitos processuais, mas o âmbito do acordo restringe-se sempre à permissão de leitura e nunca abrange a preterição de princípios indisponíveis e proibições de prova (Damião da Cunha, O regime processual de leitura de declarações, RPCC, ano 7, 3º, p. 415).
Acompanhamos Damião da Cunha na observação de que “o CPP parte, como não poderia deixar de ser num processo de estrutura acusatória, do princípio de que o lugar natural, electivo, para o debate sobre a produção e a valoração da prova é a audiência de julgamento. As excepções à produção de prova em audiência de julgamento (quando estejam em causa declarações de intervenientes processuais) são, pois, pontuais e limitadas e, além disso, reguladas por uma ideia de concordância prática com os princípios fundamentais da prova (o contraditório e a oralidade são, tanto quanto possíveis, salvaguardados) ” (loc. cit. p. 442).
E acompanhamo-lo também quando afirma que “estando em causa declarações de sujeitos processuais (ou meros participantes processuais) – no fundo a forma de actuação (o tipo de actos processuais) mais importante no processo penal -, tais princípios terão de vigorar na íntegra”.
O que significa que “toda a derrogação a qualquer um destes princípios só poderá vigorar como excepção, justificada por um determinado circunstancialismo (no qual deva intervir um outro valor – princípio conflituante) e regulada segundo um princípio de concordância prática” (loc. cit. p. 406)
O art. 356º do CPP, regula as possibilidades de “leitura permitida de autos e declarações” em julgamento. Esta norma encontra-se pensada (na sua parte referente a “declarações”) para abranger assistentes, partes civis e testemunhas. Assim é dito no seu nº 2: “A leitura de declarações do assistente, das partes civis e de testemunhas, só é permitida…”
Por sua vez, a “leitura permitida de declarações do arguido” encontra-se regulada no art. 357º do CPP, norma que se refere, desde a sua versão originária, a declarações processuais “em cuja produção não exista registo de nenhuma violação dos deveres das instâncias formais de controlo na produção de prova que seja especificamente sancionada como proibição de prova” (Dá Mesquita, A Utilização processual probatória das declarações processuais anteriores de arguido e a revisão de 2013 do CPP, As Alterações ao CPP de 2013, uma reforma cirúrgica, Org. Lamas Leite, p. 138).
O art. 357º, que trata da leitura de declarações do arguido, relaciona-se com a protecção do seu direito ao silêncio (consagrado nos artigos 61º, nº1, al. d), 132º, nº 2, 141º, nº 4, a), e 343º, n. 1, do CPP e considerado como também como direito de tutela constitucional implícita) - que é o direito de não prestar declarações e “não se confunde com um direito de apagar anteriores declarações validamente prestadas” (Dá Mesquita, loc. cit., p. 146).
Relaciona-se também com o privilégio da não auto-incriminação.
Já o co-arguido, que é sujeito diverso do assistente, parte civil ou testemunha, não é também arguido, no sentido que releva aqui, pois ele ocupa a posição de “terceiro” relativamente ao arguido, e de um terceiro especial.
Não cumpre aqui decidir se o art. 356º do CPP (norma pensada para a prova em geral e que não inclui o arguido) poderá abranger, em determinadas circunstâncias, a leitura de declarações prestadas em inquérito por co-arguido falecido, quando haja acordo de todos e essas declarações beneficiem o arguido, pois esta não é a situação sub judice e a hipótese extravasaria sempre o objecto do recurso.
As declarações em observação são declarações de co-arguido, incriminatórias do arguido.
Elas não se enquadram na previsão do art. 357º do CPP, desde logo porque a norma se ocupa das declarações do arguido (e, não, de arguido, não abrangendo claramente o co-arguido) nem tão pouco ocorreria o condicionalismo previsto nas suas duas alíneas: não foram prestadas perante autoridade judiciária e o falecido nunca poderia consentir numa leitura.
Também não se incluiriam facilmente na previsão do art. 356º do CPP, norma pensada para todas as outras declarações e depoimentos que não as declarações do arguido, como se disse, e que não se refere nunca ao co-arguido. No entanto, como se disse também, o problema da possibilidade ou impossibilidade de leitura de declarações de co-arguido só se colocaria verdadeiramente se essas declarações tivessem sido prestadas a favor do arguido. O que não sucedeu no caso presente pois a prova em causa contribuiu para a condenação.
A “substituição” da prova oral, em julgamento, por leitura de declarações prestadas anteriormente no processo contraria princípios como o da imediação, o da oralidade e restringe o contraditório.
O princípio da imediação das provas traduz-se na utilização dos meios de prova originais, pressupõe a oralidade do processo, ou seja, a recepção imediata e directa da prova pelo tribunal. Traduz-se na “relação de proximidade concomitante entre o juiz e as provas”, de que fala Figueiredo Dias.
O princípio do contraditório (art. 327º do CPP) tem tutela constitucional expressa para o julgamento (art. 32º, nº5 CRP). Os meios de prova apresentados no decurso da audiência são submetidos ao contraditório e a contraditoriedade abrange tanto a produção como a valoração de todas as provas. Acusação e defesa podem oferecer as suas provas, controlar as provas contra si oferecidas e discutir o valor e o resultado de todas elas. As provas que hão-de ser objecto de apreciação têm, assim, de ser discutidas no contraditório da audiência de julgamento e só estas valem para a decisão (art. 355º do CPP).
O direito, reconhecido ao acusado, de “interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação” integra também o direito a um processo equitativo, previsto no art. 6º (nº 3/d)) da CEDH.
Na expressão esclarecedora de Damião da Cunha, trata-se da salvaguarda da observância de um contraditório pela (para a) prova e não apenas de um contraditório sobre a prova. “Ponto decisivo num processo de estrutura acusatória é que na audiência de julgamento se concretize um contraditório pela prova” (Damião da Cunha, loc. cit. p. 412)
A leitura de declarações de alguém que não está presente em julgamento é o modo “possível” de viabilização do contraditório nos casos em que um declarante faleceu (entre outros casos previstos na lei).
O contraditório sofre nestes casos, é certo, significativa compressão, pois os sujeitos processuais afectados não podem contraditar directamente. Mas não deixa de ser a via legal possível de compatibilização das finalidades do processo, sempre antinómicas, de salvaguarda dos direitos da pessoa, maxime do arguido, e de averiguação da verdade.
O Tribunal Europeu, chamado a pronunciar-se sobre a aplicabilidade do art. 6º da CEDH em casos de utilização de depoimentos recolhidos anteriormente e lidos em audiência, tem considerado que “a falta de comparência das pessoas pode derivar de razões aceitáveis” e “o seu testemunho poderá ser lido e aceite” desde que “corroborado com outros dados na posse do tribunal” (Irineu Cabral Barreto, CEDH anotada, pp 175/6).
Mas o mesmo Tribunal preconizou já a aplicabilidade do art. 6º, nº3-d) da Convenção à utilização como prova contra o arguido das declarações de co-arguido relativamente ao qual nunca lhe tenha sido facultada a possibilidade de colocar questões (Dá Mesquita, loc. cit., p. 145; Ac TEDH Craxi v. Itália, CPP anot. Paulo Pinto de Albuquerque, 3ªed. P. 370).
No direito interno, este procedimento – leitura em julgamento e utilização contra o arguido de declarações prestadas em inquérito por co-arguido entretanto falecido – contraria também o disposto no nº 4 do art. 345º do CPP.
Esta norma preceitua que “não podem valer como meio de prova as declarações de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando o declarante se recusar a responder às perguntas formuladas nos termos dos nºs 1 e 2”. Os nºs 1 e 2 tratam da formulação de perguntas pelo tribunal e a solicitação do MP e do defensor.
Daqui se extrai que, para as declarações do co-arguido poderem valer contra o arguido, este tem de ter a possibilidade efectiva de o poder contraditar, ou contra instar, em audiência de julgamento. Tem de lhe ser assegurado o exercício de um contraditório pela prova.
Por imperativo legal, a ausência de respostas às perguntas do tribunal e/ou a solicitação do MP e da defesa, neutraliza em absoluto quaisquer efeitos da declaração incriminatória de co-arguido.
A ausência de respostas às perguntas deriva normalmente da recusa do próprio declarante em responder. É o caso literalmente previsto no nº 4 do art. 345º do CPP.
Mas a esta situação de recusa deve equiparar-se a de impedimento de questionar o co-arguido em julgamento, de exercer o contraditório pela prova. O que sucederá necessariamente nos casos de ausência física do declarante.
O Tribunal Constitucional (ATC nº 524/97) julgara já inconstitucional, por violação do art. 32º, nº5 da CRP, a norma extraída com referência aos arts 133º, 343º e 345º do CPP no sentido em que conferia valor de prova às declarações proferidas por um co-arguido, em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias destoutro co-arguido o primeiro se recusara a responder no exercício do direito ao silêncio.
O nº 4 do art. 345º do CPP, aditado na reforma de 2007, clarificou neste mesmo sentido o regime da valoração das declarações de co-arguido como meio de prova.
Também o art. 133º impede que o co-arguido deponha como testemunha, enquanto mantiver essa qualidade (e mesmo quando já condenado por sentença transitada em julgado, só pode depor como testemunha se nisso expressamente consentir).
A prova por declaração de co-arguido, sujeita, é certo, ao princípio da prova livre, pede sempre especial atenção. É conhecido o pensamento de Medina de Seiça (desenvolvido em O Conhecimento Probatório do Co-arguido, 1999, p. 228) a que a jurisprudência, em maior ou menor medida, tem dado atenção.
Referimo-nos ao “princípio da corroboração”.
Nas conclusões da sua tese de mestrado, o autor chamou a atenção para a circunstância das declarações de co-arguido constituírem material probatório que requer uma verificação suplementar traduzida numa exigência de corroboração. “Com a corroboração significa-se a existência de elementos oriundos de fontes probatórias distintas da declaração que, embora não se reportem directamente ao mesmo facto narrado na declaração, permitem concluir pela veracidade desta. A regra da corroboração traduz de modo particular uma exigência acrescida de fundamentação, devendo a sua falta merecer a censura de uma fundamentação insuficiente” (Medina de Seiça, loc. cit., p. 228)
Na ausência de regra de tarifada, trata-se de algo que deve ser deixado ao “cuidado deontológico do aplicador” mas a preocupação com a verificação com provas suplementares pode contribuir para uma “mais correcta realização da sua livre convicção”, como o autor refere (loc. cit., p. 189-190).
Por “corroboração” entendemos o apoio ou suporte em conteúdos probatórios fora das declarações do co-arguido que, juntamente com elas, permitam concluir pela sua correspondência à verdade. Não se trata de uma exigência de prova da prova por co-arguição, mas apenas de algo mais que convença da correcção da declaração do co-arguido.
A jurisprudência do STJ dá nota de diferentes acolhimentos do princípio. Veja-se, por todos e como exemplo, “a prova por declarações de co-arguido, não sendo uma prova proibida, tem um diminuto valor e, por isso, carece de corroboração por outras provas e acarreta para o tribunal um acrescido dever de fundamentação” (STJ 12.06.2008, Rel. Santos Carvalho) e “a consideração de que as declarações do arguido se revestem à partida de uma capitis diminutio só pelo facto de ser arguido ofende o princípio da igualdade dos cidadãos. (…) O depoimento incriminatório de co-arguido está sujeito às mesmas regras de outro e qualquer meio de prova, ou seja, aos princípios da investigação, da livre apreciação e do in dubio pro reo. Assegurado o funcionamento destes e o exercício do contraditório, nos termos preconizados pelo art. 32º da CRP, nenhum argumento subsiste contra a validade de tal meio de prova” (STJ 03.09.2008, Rel Santos Cabral).
A leitura de declaração de co-arguido sempre adensaria, ainda mais, todas objecções já desenvolvidas.
E se é certo que o art. 356º, nºs 4 e 5 do CPP, existindo acordo de todos os sujeitos processuais, permite a leitura em audiência de julgamento, de declarações prestadas em inquérito, perante órgão de polícia criminal, por pessoa entretanto falecida, essa permissão não pode abranger a leitura de declarações incriminatórias de co-arguido.
Não abrange porque a norma - excepcional no que respeita à regra geral da oralidade, imediação e contraditório das provas - não refere o co-arguido.
Mas, mesmo que lidas em audiência, tais declarações nunca poderiam influir na definição da factualidade provada e contribuir para a condenação do arguido, por força do nº 4 do art. 345º do CPP, que consagra uma proibição de prova.
No caso presente, as declarações de EC, prestadas em inquérito, como arguido, perante órgão de polícia criminal, e lidas em julgamento, vieram a ser valoradas na sentença contra o recorrente, em clara violação do disposto no art. 345º, nº 4 do CPP e da garantia do contraditório no sentido que deixámos exposto.
De tudo resulta que se impõe apartar esta prova do conjunto das restantes valoradas na sentença, uma vez que ela, em concreto, não pode valer como meio de prova (nº 4 do art. 345º do CPP).
O que se determina.
Cumpre depois proceder à avaliação da sentença no sentido da sua eventual subsistência na parte referente à decisão da matéria de facto. A resposta é afirmativa, fornecendo a sentença e o recurso, maxime as provas especificadas pelo recorrente, todos os elementos necessários a esta decisão.
No exame crítico das provas começou por se referir, na sentença, que “No que concerne à factualidade dada como provada, o tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica das declarações do arguido, dos depoimentos das testemunhas prestados em audiência de julgamento e do teor das declarações do co-arguido EC, entretanto falecido, as quais foram lidas em sede de audiência de julgamento, em conjugação com os documentos juntos aos autos”.
Há agora que excluir as declarações em crise, lidas em audiência.
Assim, o recorrente defende que inexistiria prova de que foi ele a pessoa que procedeu à venda dos bilhetes, não se tendo sequer demonstrado que se encontrava no posto de venda.
Mais uma vez, esta sua afirmação é inverídica.
Na verdade, o arguido declarou em julgamento que a pessoa que vendeu os bilhetes foi EC, que este cobrou 2,00 € a mais por engano, e que se deslocou à barraca apenas para perceber o que se passava com as autoridades policiais. Esta versão não convenceu, pois foi infirmada por toda a restante prova produzida, de sinal contrário e de consistente peso probatório (exceptuando agora as declarações lidas em julgamento, repete-se).
Assim, como se refere no exame crítico e está de acordo com as transcrições da prova feitas em recurso, “a testemunha AC, militar da GNR, referiu que nas condições constantes da acusação, se encontravam três senhores a vender os bilhetes, no exterior da praça de touros, os quais foram identificados pelas indicações dadas, na altura, pelas testemunhas SP e AF, sendo um deles o proprietário (ora arguido). Esclareceu de forma clara e coerente que se encontrava de serviço no exterior da praça de touros e que foram alertados para o facto de na barraca em causa estarem a ser vendidos bilhetes por um valor superior ao preço dos bilhetes, pelo que foram dizer aos senhores que se encontravam na barraca que não podiam vender bilhetes nessas condições.
Mais esclareceu que enquanto se encontrava a observar a barraca viu duas meninas sair da mesma, com bilhetes na mão, pelo que foi questioná-las, tendo as mesmas referido que pagaram 25.00 €, valor que era superior aos 20,00 € que estavam no bilhete, facto que consideraram estranho e por isso acompanharam a testemunha à barraca para identificarem os vendedores dos mesmos.”
Mas se se atentar directamente no depoimento em causa, a que a Relação tem acesso dado ter sido essa a opção do recorrente (que interpôs recurso com acesso à prova gravada), a força da prova no sentido da condenação impõe-se ainda com mais evidência.
Veja-se a transcrição do depoimento da testemunha militar da GNR, efectuada pelo recorrente e também pelo MP na sua resposta ao recurso:
“Setembro de 2008, por altura de uma corrida aqui em RM, em que eu estava de serviço com o Comandante de Posto. Estávamos no exterior da praça de touros, ainda não tinha começado a corrida, estávamos no serviço de segurança, íamos fazer depois posteriormente dentro da praça, e a determinado momento houve uns senhores que vieram ter connosco, dizendo que havia um balcão no exterior da praça, próximo da bilheteira, que estariam a vender a pedir um valor superior ao dos bilhetes da tourada, dizendo estão ali uns indivíduos, os bilhetes já não são baratos e ainda querem mais dinheiro. Fomos ter com eles, estavam três senhores. O Comandante de Posto foi ter com eles e disse vejam lá, passaram uns senhores a dizer que vocês estão aqui a vender bilhetes mais caros do que o que está no bilhete, tenham cuidado com isso que isso é ilegal e não se pode fazer. Um senhor disse isso deve ter sido engano. Pronto, vejam se isso não se passa. Fomos, prosseguimos, ficámos por ali até as pessoas entrarem todas. Entretanto, um dos senhores saíu, afastou-se do balcão e veio na nossa direcção para ver para onde é que nós íamos. Depois, pensei, agora também vou ver se vendem ou não vendem bilhetes. Estávamos ali, e às tantas apareceram duas meninas, dirigiram-se ao balcão, compraram os bilhetes e vinham as duas a passar perto de nós e vinham as duas com os bilhetes na mão falando uma com a outra. Eu dirigi-me às meninas e perguntei-lhes vocês compraram bilhetes ali naquele? Ah, comprámos sim. Então e quanto é que pagaram por esse bilhete que levam aí? E diz-me uma delas, olhe, nós vínhamos a comentar isso, então o bilhete tem aqui vinte euros e nós pagámos vinte e cinco cada uma. Mas tem a certeza que pagaram vinte e cinco? Sim, pagámos vinte e cinco euros e aqui está vinte euros. Então vamos lá ali ver quem é que foi o senhor que lhe vendeu os bilhetes por vinte e cinco euros” (Declarações da testemunha AC, constantes do Cd de audiogravação, 20140924153427_21822_65070, 01h27m a 04h36m).
De acrescentar que o arguido admitiu em julgamento que se dedicava à venda de bilhetes em praças de touros e que se encontrava no local dos factos. É certo que negou ter procedido à concreta venda descrita nos factos provados, mas a sua justificação, de que se teria deslocado à barraca de vendas apenas para perceber o que se passava com as autoridades policiais e que teria sido EC “a cobrar 2,00 € a mais, por engano”, é versão absolutamente incompatível com a descrição dos factos efectuada pelo militar da GNR. E não se vislumbra razão para duvidar da verdade deste depoimento.
Decorre do depoimento deste militar que o arguido se encontrava no local de venda dos bilhetes, e que procedia a essa venda acima do preço devido. Decorre também que as vendas constantes dos factos provados ocorreram já depois da prévia advertência que lhe fizera sobre a ilegalidade do procedimento.
No conjunto dos factos e da prova, no concreto episódio de vida em apreciação, acaba por se revelar concretamente irrelevante o saber se o arguido estaria ou não acompanhado no momento da ocorrência dos factos (demonstrou-se que estava e assim consta dos factos provados), já que ficou suficientemente demonstrado que ele procedia às vendas dos bilhetes.
A verosimilhança e a credibilidade do depoimento da testemunha de acusação, acompanhado dos depoimentos parcialmente corroborantes das restantes testemunham ouvidas, valorados ainda em conjunto com o que se retira das declarações do próprio arguido, continuam assim a suportar o juízo de “provado”, formulado pelo tribunal de julgamento e patente da sentença, independentemente da valoração (proibida) das declarações ilegalmente lidas em audiência.
Uma nota final para consignar que recai sobre o acusador o encargo de destruir a presunção de inocência (art. 32º, nº2 da CRP) e que o in dubio pro reo imporia sempre a valoração do non liquet, em questão de prova, no sentido favorável ao arguido. Só que, no caso, não estamos claramente em presença de um non liquet, pois as provas do facto impugnado continuam a convencer, nitidamente, no sentido da condenação.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
Julgar improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida (expurgada agora da prova ilegalmente valorada), confirmando-se a condenação.
Custas pelo recorrente que se fixam em 4UC.
Évora, 17.03.2015
(Ana Maria Barata de Brito)
(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)