Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
20/15.0IDFAR-A.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: IRREGULARIDADE PROCESSUAL
DEVOLUÇÃO DO PROCESSO
Data do Acordão: 11/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – No âmbito do despacho de saneamento pode conhecer-se de qualquer irregularidade do processo, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.

II – A remessa dos autos ao Ministério Público “para os fins tidos por convenientes” implicitamente fundado na competência deste para reparação da irregularidade (falta de notificação da acusação), não contende com a estrutura acusatória do processo e a autonomia do Ministério Público.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos autos em referência, distribuídos para julgamento à então Instância Local de Albufeira da Comarca de Faro, por despacho judicial, proferido ao abrigo do art. 311.º do Código de Processo Penal (CPP), decidiu-se conhecer de irregularidade e, em consequência, determinar a remessa dos autos ao Ministério Público para os fins convenientes, nos seguintes termos, como ali se consignou:

«Compulsados os autos, constata-se que foi deduzida acusação pública contra WM, cuja notificação não se logrou concretizar, sendo que o arguido não prestou TIR.

Dispõe o artigo 283.º, n.º 5 do Código de Processo Penal que É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 277.º, prosseguindo o processo quando os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes.

Compulsados os autos, foi tentada a notificação pessoal do arguido, que veio certificada negativamente, para a morada Apartamentos Santa Eulália Mar…, Santa Eulália, Areias de São João, Albufeira, sendo que perscrutados os autos, não se vislumbra qualquer diligência realizada tendente ao apuramento de nova morada do arguido, nem tão pouco tentada a sua notificação numa outra morada.

Constata-se, pois, que apenas foi tentada a notificação do arguido para uma única morada, desconhecendo-se, em absoluto, se existem ou não outras moradas em que possa ser tentada a sua notificação.

Ora, no que diz respeito ao acto de notificação da acusação ao arguido, o mesmo não tem apenas como único objectivo facultar ao mesmo a possibilidade de requerer a abertura da fase facultativa da instrução, visando, igualmente, dar-lhe a conhecer que o Ministério Público considerou existirem indícios suficientes de que praticou um crime e que, por essa razão, será julgado.

Deste modo, os presentes autos não podem prosseguir, pois que somos do entendimento de que não foram encetados todos os procedimentos com vista à concretização da notificação da acusação ao arguido e que se impunham.

A omissão em apreço integra uma irregularidade processual, nos termos do artigo 123.º n.º 1 do Código de Processo Penal, irregularidade essa do conhecimento oficioso, uma vez que tal irregularidade coarcta os direitos de defesa do arguido constitucionalmente consagrados, diminuindo as suas garantias.

Nestes termos e, ao abrigo das normas supra citadas, bem como do disposto no artigo 123.º n.º 2 do Código de Processo Penal, julga-se verificada a apontada irregularidade e, em consequência, determina-se a remessa dos autos ao Ministério Público, para os fins tidos por convenientes, dando-se baixa da distribuição efectuada.
Notifique.».

Inconformado com tal despacho, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as conclusões:

Vem o presente recurso interposto do despacho proferido em 16 de Novembro de 2015, a fls. 75 e 76, relativamente ao qual o Ministério Público se encontra em desacordo, porquanto não se verifica qualquer irregularidade quanto à notificação do arguido, uma vez que no decurso do inquérito foram realizadas diligências no sentido de apurar o paradeiro do arguido, e após a dedução da acusação foi tentada a notificação do arguido através de contacto pessoal por OPC, tendo sido dado cumprimento ao disposto no art. 283.º, n.º do CPP, na impossibilidade de proceder à notificação.

A decisão recorrida viola a estrutura acusatória do processo penal (art. 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa), bem como a independência e autonomia do Ministério Público, pelo que, não devendo o Ministério Público obediência institucional ou hierárquica ao juiz de julgamento este nunca poderia devolver os autos para suprimento de uma tal irregularidade.

Ainda que por mera hipótese se verificasse uma qualquer irregularidade a mesma nunca seria enquadrável no disposto no n.º 2 do art. 123.º do Código de Processo Penal, porquanto o arguido pode exercer o seu direito de defesa ao abrigo do disposto no n.º 3 do art. 336.º do CPP, para além de que apenas poderia ter sido sanada pelo Ministério Público no decurso do inquérito.

Em suma, a decisão recorrida viola o disposto no art. 123.º, n.º 2, art. 277.º, n.º 3 e n.º 4, al. a), art. 283.º, n.º 5 e n.º 1 do art. 311.º do Código de Processo Penal, bem como o disposto no art. 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, motivo pelo qual deverá substituída por decisão que dê cumprimento ao disposto no n.º 1 do art. 312.º do Código de Processo Penal.

Assim, será feita a acostumada JUSTIÇA!

O recurso foi admitido.

Não foi apresentada resposta.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, manifestando concordância com o entendimento constante da motivação de recurso e no sentido que o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro nos termos ali propostos.

Observou-se o disposto no n.º 2 do art. 417.º do CPP.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP.

Delimitando-o, reconduz-se a apreciar:
A)- da ausência de irregularidade;
B)- da legitimidade para conhecer oficiosamente da irregularidade.

Compulsados os autos, resulta que:
Foi deduzida acusação contra o referido WM, sendo que aí se mencionou que Apesar de todas as diligências efectuadas não foi possível localizar o denunciado WM, desconhece-se o seu paradeiro, pelo que, este não foi interrogado e constituído arguido passando a assumir esta qualidade com a presente acusação (atento o disposto no n.º 1 do art. 57.º e n.º 1 do art. 272.º do C.P.P.).

Foi tentada a sua notificação da acusação na morada conhecida, através de órgão de polícia criminal (GNR de Albufeira), certificando-se, para o efeito, que Não se procedeu à notificação em virtude de já não residir na morada indicada e Não foi possível determinar qualquer informação que permita determinar o seu atual paradeiro.

Apreciando:

A)- da ausência de irregularidade:
A notificação da acusação não se basta com a notificação ao defensor, sendo um dos casos em que se impõe a notificação do arguido, seja por contacto pessoal, seja por via postal registada, como retratam os arts. 113.º, n.º 10, e 283.º, n.º 6, do CPP.

Como tal, integra-se no panorama das garantias de defesa do arguido, visando, além do mais, como se consignou no despacho sob censura, dar-lhe a conhecer que o Ministério Público considerou existirem indícios suficientes de que praticou um crime e que, por essa razão, será julgado, inevitavelmente com a relevância de que, só através desse conhecimento, logrará exercer eficazmente essa defesa.

Não obstante, é certo, que o processo prossiga “quando os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes”, nos termos do n.º 5 daquele art. 283.º, consagrando-se, deste modo, forma de contornar o inconveniente de notificação inviável sem que o exercício da acção penal fique prejudicado, sendo que, nessa situação, quando a constituição como arguido não se tenha antes verificado, ocorrerá por via da dedução da acusação (arts. 57.º, n.º 1, e 272.º, n.º 1, do CPP).

Em concreto, o recorrente entende que não há fundamento para que, no despacho recorrido, se tenha defendido que não se efectuaram diligências tendentes ao apuramento de nova morada/localização do arguido.

Invoca que Através da GNR foram realizadas diligências, junto da morada conhecida nos autos, no sentido de proceder à notificação do arguido do despacho de acusação, mas, no entanto, não concretiza que outras diligências tenham sido feitas para esse efeito.

Assim, não apresenta argumento válido para infirmar que, segundo o despacho, perscrutados os autos, não se vislumbra qualquer diligência realizada tendente ao apuramento de nova morada do arguido, nem tão pouco tentada a sua notificação numa outra morada.

Apesar da discordância do recorrente, afigura-se que não se mostra suficientemente comprovada nos autos a ineficácia da notificação, uma vez que, tratando-se de acto bem relevante conforme referido, se descurou a realização de concretas diligências para que a notificação viesse, se possível, a ser conseguida.

Com isso não se pretende dizer que existisse probabilidade de se lograr a notificação, mas sim que, em presença de uma acusação, não se deve preterir o que se revele adequado para conhecer do paradeiro do arguido, sob pena de desvalorização das aludidas garantias de defesa.

Acresce que a invocada circunstância de que, quando localizado e notificado, ao arguido sempre restará usar da faculdade de requerer instrução, ao abrigo do art. 336.º, n.º 3, do CPP, não convence no sentido de que, então, as garantias de defesa fiquem protegidas, uma vez que a situação ali prevista constitui excepção e não regra (neste sentido, como se sublinhou no acórdão desta Relação de Évora de 08.04.2014, no proc. n.º 650/12.2PBFAR-A.E1, rel. ora adjunto, in www.dgsi.pt, «a previsão do n. 3 do artigo 336º do Código de Processo Penal é excepcional, no que implica de um retrocesso à fase anterior do processo, plenamente justificada pelas dificuldades de notificação. O que se não pode é erigir o excepcional em normal, considerando que o processo deve prosseguir para a fase seguinte quando (em termos gerais e abstractos) proceder à notificação – face à profusão de casos de que se dá conta - é um “incómodo”, uma questão estatística, de “personalidade” ou outra.»).

E razões de celeridade e de economia processual não servem, também, para o infirmar.

Conforme Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 1998, pág. 303, para que algum acto processual relativamente ao qual tenha havido violação ou inobservância das disposições legais do processo penal padeça do vício de nulidade é necessário que a lei o diga expressamente; de outro modo o acto viciado sofrerá do vício menor da irregularidade, submetido ao regime do art. 123.º, mas não será nulo.

Existindo, pois, omissão de notificação, considerada a ausência de diligências para o efeito, verifica-se irregularidade, tal como, no despacho, se entendeu.

Aliás, nem mesmo o recorrente, em rigor, afasta a existência de irregularidade.

B)- da ilegitimidade para conhecer oficiosamente da irregularidade:

O recorrente entende, para o caso de se admitir que se verifique irregularidade, que a mesma nunca seria enquadrável no disposto no n.º 2 do art. 123.º do CPP e, por via disso, não poderia ter sido declarada como foi.

Sustenta que, de acordo com o aludido art. 336.º, n.º 3, do CPP, e como refere, o arguido pode exercer o seu direito de defesa e, assim, que essa irregularidade não possa afectar o valor do acto praticado, tendo em conta a previsão daquele n.º 2 do art. 123.º.

Ainda, nesta problemática, traz à colação que a irregularidade apenas poderia ter sido sanada pelo Ministério Público no decurso do inquérito e, a propósito do art. 311.º, n.º 1, do CPP, que o conhecimento de irregularidades não está aí previsto.

Vejamos.
Tal como citado pelo recorrente, segundo Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1993, vol. II, pág. 72, Não obstante, as irregularidades podem ser reparadas oficiosamente, quando puderem afectar o valor do acto praticado. Parece que há que distinguir entre validade do acto e o seu valor; o acto será válido se a irregularidade não for declarada, mas pode não ter valor, designadamente por não poder produzir os efeitos a que se destinava. A irregularidade, quando afecte o valor do acto, poderá ser reparada a todo o tempo em que dela se tome conhecimento. Isto significa que ainda antes da arguição e mesmo que a irregularidade não seja arguida, pode oficiosamente ser reparada ou mandada reparar pela autoridade judiciária competente para aquele acto, enquanto mantiver o domínio dessa fase do processo.

Ora, tendo o despacho enveredado, e bem, pelo entendimento de que a omissão de notificação coarcta os direitos de defesa do arguido, inerente à relevância da notificação da acusação a que já se fez referência, está-se em presença de omissão que afecta as finalidades subjacentes a essa notificação e, neste sentido, não surpreende, e é de acolher, a perspectiva de que a verificada irregularidade é de conhecimento oficioso.

Apesar disso, não consubstancia, em rigor, questão que inviabilize o recebimento ou a rejeição da acusação para os efeitos do saneamento dos autos previsto naquele art. 311.º e, assim, não se considera como prévia ou incidental ao mérito da mesma.

Aliás, no âmbito da prolação desse saneamento, não cabe uma avaliação de mérito, mas sim, e apenas, a verificação dos pressupostos processuais necessários à acusação, na medida em que a tanto impõe o princípio acusatório, de consagração constitucional, nos termos do art. 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

De qualquer modo, afigura-se ser uma questão prévia com influência no prosseguimento dos autos, embora não impeditiva do mérito da acusação, motivo por que não se descortina obstáculo legal à declaração da irregularidade nesse momento.

Tanto quanto resulta do n.º 2 daquele art. 123.º, a reparação de qualquer irregularidade, quando ela puder afectar o valor do acto praticado, como subjaz ao despacho recorrido, pode ser efectuada em “momento em que da mesma se tomar conhecimento”, pelo que esse conhecimento não pode deixar de estar incluído no âmbito do despacho de saneamento.

Acompanhando, mais uma vez, Maia Gonçalves, ob. cit., pág. 312:
Apesar das irregularidades serem consideradas em geral vícios de menor gravidade do que as nulidades, a grande variedade de casos que na vida real se podem deparar impõe que se não exclua a priori a possibilidade de ao julgador se apresentarem irregularidades de muita gravidade, mesmo susceptíveis de afectar direitos fundamentais dos sujeitos processuais.

Daí a grande margem de apreciação que se dá ao julgador, nos n.º 1 e 2, que vai desde o considerar a irregularidade inócua e inoperante até à invalidade do acto inquinado pela irregularidade e dos subsequentes que possa afectar, passando-se pela reparação oficiosa da irregularidade. Trata-se de questões a decidir pontualmente pelo julgador, com muita ponderação pelos interesses em equação, maxime as premências de celeridade e de economia processual e os direitos dos interessados.

Mediante a aludida ponderação de interesses, transparece que a posição do recorrente confere prevalência ao prosseguimento dos autos, desde que a irregularidade não fosse arguida pelo interessado no prazo do n.º 1 daquele art. 123.º, em detrimento de que lhe viesse a ser facultada a amplitude de defesa a que a eventual reparação do vício conduziria, se bem que, é certo, como refere, o exercício dos direitos que lhe assistem não ficassem irremediavelmente afastados.

No entanto, existindo essa irregularidade, se da mesma se deu conta, não se revela aconselhável que deva persistir, atenta a importância que à acusação é processualmente conferida, não só de harmonia com o aludido princípio acusatório, como também pelo que ela representa desde logo para o acusado e, por isso, devendo, tanto quanto possível, conceder-se-lhe o uso dos meios legais de reacção susceptíveis de não o vir a sujeitar a julgamento.

O mesmo é dizer que em situações em que a arguição das irregularidades se apresente de difícil execução ou possa retardar ou perturbar intoleravelmente o desenrolar normal do processo, deverá o julgador ponderar que a melhor solução reside no conhecimento oficioso da irregularidade, para assim possibilitar a sua reparação, de molde a que o incumprimento das disposições legais que acautelem importantes interesses não perdure.

A posição acolhida no despacho recorrido, no sentido do conhecimento oficioso da irregularidade constatada, é consonante com o relevante interesse de protecção das garantias do acusado e, por isso, não o tendo descurado, é plenamente aceite.

No sentido da susceptibilidade do conhecimento oficioso da irregularidade em causa, podem citar-se, entre outros, os acórdãos: da Relação de Coimbra de 24.11.1999, in CJ ano XXIV, tomo V, pág. 51; da Relação de Lisboa de 08.11.2000, in CJ ano XXV, tomo V, pág. 138, e de 21.11.2013, no proc. n.º 304/11.7PTPDL.L1-9, in www.dgsi.pt; e da Relação do Porto de 10.12.2003, no proc. n.º 0343640, in www.dgsi.pt.

Conhecendo, pois, e bem, da irregularidade, o despacho determinou a remessa dos autos ao Ministério Público “para os fins tidos por convenientes”, implicitamente fundado na competência deste para a reparação da mesma.

Desde logo, note-se que a redação do n.º 2 do art. 123.º não obsta a que assim tivesse procedido, já que a expressão “Pode ordenar-se oficiosamente a reparação” tem como pressuposto que essa reparação, resultando inevitavelmente do seu conhecimento, deverá ser regularizada, através da prática do acto regular e, no caso vertente, respeitante a acto de notificação da acusação, que concerne à fase de inquérito presidida pelo Ministério Público (art. 263.º do CPP).

Por seu lado, não se tendo, através do despacho, recebido ou rejeitado a acusação, mas, sim, se limitado ao conhecimento da irregularidade, entender-se-á que ainda não se tinha iniciado fase subsequente ao inquérito, sendo que o pressuposto subjacente à referida remessa dos autos não consente outro sentido relevante que se possa atribuir.

É indiscutível que “O Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei”, de acordo com o art. 219.º, n.º 2, da CRP, sendo que essa autonomia “caracteriza-se pela sua vinculação a critérios de legalidade e objectividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados do Ministério Público às directivas, ordens e instruções previstas na lei”,conforme ao art. 2.º, n.º 2, do Estatuto do Ministério Público (aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15.10, com as sucessivas alterações, republicada em anexo à Lei n.º 60/98, de 27.08).

Quanto ao referido princípio acusatório, implica articulação entre uma dimensão material, através da distinção entre as fases do processo, e uma dimensão orgânica-subjectiva, mediante a separação nítida entre a entidade acusadora e o juiz, seja de julgamento, seja de instrução (Gomes Canotilho/Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 2007, volume I, pág. 522), estabelecendo-se que é ao Ministério Público que é conferido o estatuto de “dominus” do inquérito (arts. 48.º a 53.º do CPP), sendo que a acusação é peça essencial correspondente ao final dessa fase.

Em sintonia, como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, págs. 790/791, pelos motivos (…) atinentes ao princípio da acusação, o juiz de julgamento não pode censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito (…) (acórdão do TRC, de 6.11.1991, in CJ, XVI, 5, 84, acórdão do TRC, de 7.2.1996, in CJ, XXI, 1, 51, acórdão do TRE, de 27.6.2000, in CJ, XXV, 3, 281, e acórdão do TRE, de 21.5.2002, in CJ, XXVII, 3, 271, mas contra acórdão do TRC, de 24.11.1999, in CJ, XXIV, 5, 51).

E também, segundo o acórdão do STJ de 27.04.2006, no proc. n.º 06P1403, in www.dgsi.pt, embora aí se tratando da abordagem de funções do Ministério Público e do Juiz de Instrução, mas adaptável em concreto, se existe autonomia de actuação, não tem fundamento legal qualquer «ordem», nomeadamente do juiz de instrução, para ser cumprida no âmbito do inquérito por quem não deve obediência institucional nem hierárquica a tal injunção. (…) se as duas fases processuais em causa são independentes e autónoma a actuação de quem respectivamente as dirige, cada qual terá de assumir as suas responsabilidades, isto é, se não se quer cair numa situação de inultrapassável impasse processual a que sempre haveria que pôr termo face, nomeadamente, ao regime adjectivo subsidiário – cfr. art.º 265.º, do CPC – socorrer-se dos meios de que dispõe para, por si só, ultrapassar a detectada deficiência processual.

Contudo, ver no despacho recorrido a violação da autonomia do Ministério Público constitui, salvo melhor opinião, um preconceito sem sentido, uma vez que, ao ordenar a remessa dos autos ao Ministério Público, mais não se fez do que acolher essa autonomia, em questão que se prende com a estrita observância das formalidades legais (a notificação da acusação), a que o Ministério Público está sujeito (art. 1.º da Lei n.º 47/86), e não relativa a acto de inquérito que contenda com as finalidades deste previstas no art. 262.º do CPP.

Nem do despacho decorre alguma “ordem”, o que se acautelou através da menção à expressão “para os fins tidos por convenientes”.

Mediante o despacho sob censura, apenas se tratou de facultar a sanação do vício pela autoridade judiciária que no mesmo incorreu, sem que a sua interpretação, que foi fundamentada, contenda com a estrutura acusatória do processo e a autonomia do recorrente.

Sem prejuízo da merecida consideração pelo seu estatuto, não se configura que lhe assista razão válida para ter atribuído ao despacho diferente interpretação.

3. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se:

- negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente,

- manter o despacho recorrido.

Sem custas, dada a isenção de que o recorrente beneficia.

Processado e revisto pelo relator.

22.Novembro.2018
_______________________
(Carlos Jorge Berguete)

_______________________
(João Gomes de Sousa)