Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1267-11.4TATSTR.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
VALORAÇÃO DA PROVA
DEPOIMENTO INDIRECTO
Data do Acordão: 02/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I. O art. 358.º do CPP não exige a comunicação dos meios de prova em que se fundamenta a indiciação da alteração de factos aí prevista, tal como o art. 283.º do CPP não impõe que a acusação confronte o arguido com a conexão expressa, devidamente delimitada, entre cada facto e os respetivos meios de prova.
II. O depoimento indireto de testemunha, não abrangida pelas disposições dos arts. 356.º e 357.º do CPP, que tenha por objecto declarações (extraprocessuais) ouvidas a arguido, é susceptível de valoração probatória.
III. Aquele depoimento encontra-se sujeito ao regime previsto no art. 129.º do CPP, o que significa que o arguido deverá ser chamado a depor, com o significado amplo que esta locução assume naquele preceito, embora só preste declarações se quiser e na medida em que o quiser fazer, sem que o seu silêncio obste à valoração do depoimento.
IV. A presença efectiva do arguido no momento das declarações satisfaz o dever imposto ao tribunal pelo art. 129.º, n.º 1, do CPP de o chamar a depor, enquanto declarante fonte ou de referência.
Decisão Texto Integral:
1267-11.4TATSTR.E1
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Em conferência, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório

1. – Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que correm termos no Tribunal Judicial de Santarém, o MP deduziu acusação contra A, (…), imputando-lhe a prática de um crime de ofensa à integridade física pornegligência, previsto e punido pelos artigos 15.°, nº l, al. a) e 148.°, n° 1 do Código Penal.


2. – O Hospital Distrital de Santarém, E.P.E., Pessoa Colectiva n.° 506361462, com sede e estabe1ecimento na Av. Bernardo Santareno, 2005-177 Santarém, deduziu pedido de indemnização civil (reembolso, ao abrigo do disposto no artº 6º, nº 1, do Decreto-Lei nº 218/99, de 15/06) contra a arguida, acima melhor identificada, pedindo a condenação desta ao pagamento da quantia de €1.873,87, acrescida de juros calculados à taxa legal de 4% ao ano desde a notificação do pedido de indemnização civil até efetivo e integral pagamento.

3. A ofendida, B, veio deduzir Pedido de Indemnização civil contra a arguida pedindo a condenação desta ao pagamento da quantia de
€6.622,51 de indemnização pelos danos emergentes do crime, sendo €1.622,51 de danos patrimoniais e €5.000,00 de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora calculados à taxa anual legal de 4%, até efetivo e integral pagamento.

4. - Realizada a Audiência de discussão e julgamento, o tribunal singular decidiu.
- a) Julgar a acusação procedente, por provada, condenando a arguida pela prática do crime de ofensa à integridade física por negligência previsto e punido pelos artigos 15°, nº l, al. a) e 148.°, n° 1, do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), o que perfaz o montante global de €480,00 (quatrocentos e oitenta euros);
b) Julgar o pedido de indemnização civil formulado pela demandante
B parcialmente procedente, condenando a demandada e arguida a pagar à demandante:
- a indemnização no valor de €1.622,51 (mil seiscentos e vinte e dois euros e cinquenta e um cêntimos), relativa a danos patrimoniais, valor ao qual acrescem juros moratórios, vencidos e vincendos, contabilizados sobre o valor de €1.622,51, à taxa anual legal de 4%, desde a data da notificação do pedido de indemnização civil até efetivo e integral pagamento;
- a compensação pelos danos não patrimoniais, no valor de €5.000,00 (cinco mil euros), valor ao qual acrescem juros moratórios, vencidos e vincendos, contabilizados sobre o valor de €5.000,00, desde a data da presente sentença até efetivo e integral pagamento, absolvendo-se a demandada do pedido de indemnização civil na parte dos juros moratórios, respeitantes aos danos não patrimoniais, contabilizados antes da data da presente sentença;
c) Julgar o respetivo pedido procedente, por provado, condenando a arguida a pagar ao demandante Hospital Distrital de Santarém, E.P.E. a quantia de €1.873,87 (mil oitocentos e setenta e três euros e oitenta e sete cêntimos), acrescida de juros calculados à taxa legal de 4% ao ano desde a notificação do pedido de indemnização civil até efetivo e integral pagamento.

5. – Inconformada, recorreu a arguida, extraindo da sua motivação de recurso as seguintes conclusões:
« CONCLUSÕES:
À vista dos elementos de prova existentes nos autos, não é juridicamente admissível a condenação da arguida, A, na prática, Pratica de crime de ofensa à integridade física por negligência previsto e punido pelos artigos 150° n.º 1, alínea a) e 148° n.º 1 do Código penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante global de € 480,00 (quatrocentos e oitenta euros);
A pagar a título de indemnização a B, a quantia de € 1.622,51 (mil seiscentos e vinte e dois euros e cinquenta e um cêntimos) relativos a danos patrimoniais, valor ao qual acrescem juros moratórios, vencidos e vincendos, à taxa legal de 4% desde a data da notificação do pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento;
_ A compensação pelos danos não patrimoniais, no valor de € 5.000,00 (cinco mil euros), valor ao qual acrescem juros moratórios, vencidos e vincendos, contabilizados desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento;
E ainda pagar ao Hospital Distrital de Santarém, E.P.E a quantia de € 1.873,87 (mil oitocentos e setenta e três euros e oitenta e sete cêntimos), acrescida de juros calculados à taxa legal de 4% ao ano desde a notificação do pedido de indemnização civil até efetivo e integral pagamento.
E no pagamento de custas e demais encargos com processo.
Isto porque, Ora a arguida apenas teve conhecimento da prova que orientava a sustentabilidade da alteração não substancial, após a leitura da sentença.
- Ora, o nosso sistema processual penal, a acusação tem por função a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objecto do processo e ele que define o conjunto de factos que se entende constituírem crime, estabelecendo assim os limites dos poderes cognitivos do tribunal.
_ Segundo Figueiredo Dias, nisto se traduz o princípio da vinculação temática ao tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade (segundo o qual o objecto do processo deve manter-se o mesmo, da acusação ao trânsito em julgado da sentença) da unidade e indivisibilidade (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade unitária e indivisivelmente) e da consunção do objceto do processo penal (mesmo quando o objecto do processo não tenha sido conhecido na sua totalidade, deve considerar-se impreterivelmente decidido, e, portanto, não pode renascer noutro processo).
- Na verdade o processo penal de estrutura acusatória exige, para assegurar a plenitude das garantias de defesa do arguido, uma correlação entre acusação e sentença que e, principio, influenciaria a desconsideração no processo de quaisquer outros factos ou circunstâncias que a comunicação da alteração não substancial dos factos não foi fundamentada embora tenham sido indicados novos factos, não foram indicadas os respectivos meios de prova onde resulta a alteração.
- Pois só assim estariam salvaguardados efectivamente os direitos da arguida.
- E é assim porque do mesmo modo que o julgador na sentença deve indicar os meios de prova com respectivo exame crítico em que se apoiou para dar os factos como provados ou não, assim esclarecendo e convencendo a bondade do decidido, para os sujeitos processuais ficarem a saber o raciocínio seguido pelo julgador na valoração da prova produzida- CONSTITUINDO NULIDADE ESTA NÃO EXPLICITAÇÃO OU FUNDAMENTAÇÃO, também aquando do cumprimento da comunicação o julgador o dever de indicar ao arguido, que os factos (novos) se mostram indiciados com base em determinados e concretos meios de prova.
- Só essa concretização permitirá ao arguido identificar o objecto da sua defesa, contraditando os meios de prova já deduzidos e oferecendo quiçá outros que em seu entender, possam abalar os indícios até então existentes.
- Não foram comunicados os meios de prova ao arguido que permitisse, tomar de forma clara na posição sobre os factos.
- Ao não fazer a comunicação prévia ao arguido, o Tribunal aquo violou os princípios constitucionais de defesa e do contraditório.
- Por outro lado, pela circunstância decisiva e inultrapassável da insuficiência para a decisão insanável de fundamentação e erro notório na apreciação de prova, não é juridicamente admissível condenar a arguida.
- A sentença recorrida por padecer desses vícios, acabou por decidir de forma injusta, parcial e desproporcionada à realidade dos factos.
- O Tribunal "A quo" fez uma errada apreciação dos factos, decidindo pela condenação da arguida.
- Aliás as declarações das testemunhas C (apud registos informáticos juntos aos autos 3/12/2012, rotação 11.11.08 a 11.28.53); D (apud Registos informáticos junto aos autos 3/12/2012 rotaçãol1.28.57 a 11.40.37 ); E (apud registos informáticos junto aos autos 3/12/2012 rotação 11.43.18 a 11.43.17); F (apud registo informático junto aos autos 3/12/2012 rotação 11.53.24 a 12.11.41); G ( apud registo informático junto aos autos 3/12/2012 rotação 12.23.01 a 12.34.52); H ( apud registo informático junto aos autos 17/12/2012 rotação 10.42.29 a 10.57.39); I (apud registo informático junto aos autos 17/12/2012 17.12.2012, rotação 11.12.57 a 12.00.27); J (apud registo informático junto aos autos 11/01/2013 rotação 11.01.03 a 11.03.09), Quando inquiridas sobre os conteúdos dos pontos supra indicados umas disseram desconhecer e outras informaram que tudo que sabiam era de ouvir dizer.
Conforme afirma Paulo Pinto de Albuquerque, in comentário ao Código de Processo Penal, a Luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 43 edição actualizada, anot. 2 e 3 artigo 127° CPP.
Enquanto os primeiros três limites são endógenos ao exercício de apreciação da prova no sentido de que condicionam o processo de formação da convicção e descoberta da verdade material, o último limite é exógeno, no sentido de que condiciona o resultado da apreciação da prova.
No caso em apreço, o Tribunal aquo na sua apreciação da prova está condicionado pela proibição de meios de prova (depoimentos indirectos vide registos fonográficos e informáticos anexos ao processo) e por outro lado o principio ln dúbio pro reo que decorre do princípio da culpa e em ultima instância do princípio do ESTADO DE DIREITO, (artigo 2° CRP), leva a que existindo dúvida insanável sobre factos deve favorecer ao arguido. Isto é o princípio in dúbio pro reo só deve intervir depois de concluída a tarefa de valoração da prova e quando o resultado da valoração da prova não é conclusivo
- Ao ter valorado como valorou o Tribunal fez uma valorização indevida do meio de prova proibido (cfr artigo 129° e 130° CPP).
- Nesse sentido veja-se Paulo Pinto de Albuquerque, in comentário ao Código de Processo Penal, â Luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 43 edição actualizada, anoto 2 artigo 129° do
CPP, que considera que ( ... ) se uma testemunha não presencial ouviu relatos dos
factos da boca do ofendido ainda que "quase de seguida aos facto", esse depoimento é ainda um depoimento indirecto, submetido ao artigo 129° do CPP( .. ).”
_ Tal depoimento não pode valer como prova, sob pena de o fazendo estar o Tribunal a violar o princípio da imediação.
_ A proibição do n.º 1 resulta do princípio da imediação, que decorre do ESTADO DE DIREITO (artigo 2º CRP), a violação destas proibições de prova tem efeito de nulidade do Acórdão, nos mesmo termos do artigo 379° n.º 1 alínea c) do CPP
_ Estranhamente, a sentença "passou ao lado" da evidência dos factos, assumindo como indiscutível uma posição que é no mínimo controversa.
_ Decisão que incorpora insuficiência para decisão da matéria de facto dada como provada, contradição insanável de fundamentação e erro notório da apreciação de prova.
_ Assim à vista da falta de elementos ou insuficiência da prova e de elementos indispensáveis para sustentar o juízo de censurabilidade, concluir pela censurabilidade da arguida seria ilegítima, violando o mandamento constitucional
"ln Dubio Pro Reo".
_ Pois, se conjugarmos com as regras da experiência comum, podemos concluir que a fundamentação justificava uma decisão oposta, isto é, a absolvição do arguido.
_ Pelo que, a douta sentença recorrida viola o princípio constitucional "ln DubioPro Reo".
_ Foram violadas, entre outras, bem como o seu correcto entendimento, as normas contidas nos artigos 410° n." 2 a) e n." 2 b) do C. P. P.)

- Pelo que, podemos concluir que a douta sentença recorrida enferma de graves imprecisões, contradições e inexactidões.
Pelo exposto, deve-se revogar a sentença recorrida dando provimento ao recurso, absolvendo a arguida do crime que vem acusado. »

6. – Notificados, o MP e a demandante apresentaram as suas respostas concluindo pela total improcedência do recurso.

7.- Nesta Relação, o senhor magistrado do MP emitiu parecer em que, depois de apreciar as questões suscitadas, conclui pela improcedência do recurso.

8. Cumprido o disposto no art. 417º nº2 CPP a arguida nada acrescentou.

9. – A sentença recorrida (transcrição parcial):

« (…)
Por se considerar que poderiam vir a considerar-se como provados factos que constituíam uma alteração não substancial dos factos constantes da acusação, foram estes factos comunicados, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 358º, nº 1, do Cód. Proc. Penal.
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Inexistem questões prévias, nulidades ou exceções que cumpra apreciar e que obstem ao prosseguimento dos autos.
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II. Fundamentação de facto
a) Factos provados
Da acusação (com a alteração não substancial efetuada)
1. A arguida A é dona e legítima possuidora de dois cães de raça indeterminada, de nome – (…) - , que mantém no logradouro da sua residência sita na (…), em Santarém.
2. No dia 14 de Abril de 2011, em hora não concretamente apurada, mas ao entardecer, a B circulava a pé na Rua (…), em Santarém.
3. Quando passava em frente da casa da arguida, B foi surpreendida pelo aparecimento dos referidos dois cães da arguida, que lograram sair pelo portão da residência daquela que se encontrava aberto.
4. Após os referidos cães morderam o corpo desta, na zona da cabeça, pernas e antebraço direito.
5. Como consequência direta e necessária da mordedura dos referidos cães, B sofreu esfacelos múltiplos por mordedura de cão na região occipital, ferida com perda de substância do como cabeludo, lesões que determinaram, na pessoa de B, 30 (trinta) dias de doença com incapacidade para o trabalho, ficando, como sequelas futuras, “área de halopesia na região intra-parietal com cerca de 6x4 cm, cicatriz cliode em ambos os pavilhões circulares”.
6. Os referidos animais eram mantidos sem qualquer trela, corrente ou açaimo e, em virtude do portão se encontrar aberto, tiveram livre acesso à via pública.
7. Os factos constantes do número 3. e 4. dos factos provados ocorreram na sequência da arguida ter deixado aberta a porta do canil, quando foi buscar água para os canídeos.
8. A arguida ao atuar do modo como atuou (deixando a porta do canil e o portão de acesso à via pública abertos e possibilitando assim que os canídeos saíssem para a via pública), demitiu-se dos mais elementares deveres de precaução, prudência e vigilância exigíveis a quem é proprietário de canídeos, inobservando as cautelas de vigilância que se lhe impunham para evitar que os animais fugissem e atacassem quem circulasse na via pública, possibilitando, dessa forma, que pudessem ser provocadas lesões, como efetivamente ocorreram relativamente a B.
9. A arguida poderia e deveria ter previsto e evitado o resultado, mas confiou que tais resultados não aconteceriam.
10. A arguida sabia que a sua conduta (deixando a porta do canil e o portão de acesso à rua abertos, ou não se assegurando de que estavam fechados, possibilitando assim que os canídeos saíssem livremente e sem vigilância para a via pública, sem açaimo nem trela, podendo estes atacar transeuntes, como efetivamente sucedeu) era ilícita, e tinha capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
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Do PIC do Hospital
11. O Hospital Distrital de Santarém prestou assistência hospitalar a B, em 27/04/2011, com internamento até 29/04/2011, em consequência dos factos descritos nos números 2. a 4. dos factos provados, tendo os cuidados hospitalares que B recebeu no Hospital Distrital de Santarém um custo de €1.873,87.
12. Tendo B ficado internada neste hospital desde esse dia
27/04/2011 até ao dia 29/04/2011, data em que teve alta.
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PIC B
13. B necessitou de dois meses para recuperação das lesões
(sem prejuízo das sequelas).
14. A B nasceu em 24/06/1924.
15. B está reformada recebendo uma pensão de cerca de €400,00.
16. Em consequência das lesões B teve bastantes dores e incómodos, necessitando de ajuda de familiares e amigos.
17. Na data referida no número 2. dos factos provados, B era uma pessoa independente na sua vida diária, vivendo em casa própria, cuidando de si individualmente, sendo uma pessoa alegre e sociável.
18. Após os factos indicados nos números 2. a 5. dos factos provados, B alterou a sua forma de estar, tornando-se mais dependente de terceiros, designadamente de familiares, demonstrando modificações ao nível emocional com mudanças de emoção.
19. B teve de ser internada durante o período de um mês, Maio de 2011, no “Centro de Repouso e Lazer Fonte Serrã”, pois não tinha ninguém que a pudesse acompanhar e cuidar todos os dias em sua casa.
20. E em consequência das lesões descritas no número 5., suportou com as seguintes despesas:
- uma consulta externa correspondente ao pagamento da taxa moderadora no Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, EPS, no montante de €2,30;
- Pagamento da permanência no Centro de Repouso durante um mês no montante de €1.240,00
- pagamento de medicamento, designadamente Loperamida, Amoxicilina lope e UL 250, no valor de €5,21;
- pagamento de uma prótese acrílica superior no montante de €375,00.
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Mais se apurou que:
21. Por sentença de 09/03/2007, no âmbito do processo nº 251/05.1TASTR, do
Tribunal Judicial da Golegã, foi a arguida condenada pela prática, em 15/10/2004, de um crime de falsificação de documento, p.p. pelo artº 256º, nº 1, al. b) e nº 3, do Cód. Penal, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de €10,00, o que perfaz o montante global de €2.500,00.
22. A arguida é advogada.
23. No ano passado apresentou prejuízos fiscais e vive de rendimentos agrícolas.
24. Tem casa própria e tem a mãe e um filho a seu cargo.
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b) Factos não provados
Da acusação
1. Os factos indicados no número 2. dos factos provados ocorreram no período da noite.
2. No momento indicado no número 3., os cães saltaram para cima de B e projetaram-na para o chão.
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Do PIC de B
3. B necessitou de três meses para recuperação das lesões.
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Os restantes factos constantes dos pedidos de indemnização civil formulados não foram selecionados por se tratarem de factos já constantes na acusação pública ou por se tratar de matéria conclusiva, insuscetível de seleção.
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c) Motivação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção a partir da análise crítica das declarações da arguida (que prestou depoimento no que respeita à suas condições socioeconómicas); dos depoimentos das testemunhas e dos documentos juntos aos autos.
Em concreto, o Tribunal valorou, para a sua convicção, os documentos:
- de fls. 2 a 16, relativo à cirurgia à qual foi submetida B no
Hospital Egas Moniz (com fotografias);
- relatório de urgência do Hospital de Santarém de fls. 24 a 25;
- CD de fls. 39, com mais imagens de B;
- auto de exame médico de fls. 41 e 42;
- documentação clínica do Hospital Egas Moniz de fls. 50 a 55;
- relatório de urgência de fls. 60 a 62;
- documentos de fls. 135 a 137, relativos a canídeos da arguida;
- documentos de fls. 160 a 163, relativos à admissão à urgência e ao internamento e fatura;
- documentação relativa a despesas de fls. 177 a 183;
- CRC de fls. 236 a 238;
- Informação fiscal de fls. 260 a 275;
- Informação da junta de freguesia do Pombalinho de fls. 282 a 283-A;
- Informação do SICAFE de fls. 287 a 289.
Efetivamente, no que respeita aos factos constantes do número 1. dos factos provados, decorrem das fichas do Sistema de Identificação e Recuperação Animal, indicado a fls. 136 e 137 e da informação de fls. 283 e 283-A (emitida pela junta de freguesia do Pombalinho).
Cumpre, no entanto, dissipar algumas dúvidas que estes documentos possam gerar, por erros (propositados ou não) que contêm. Assim:
- A fls. 135 consta a informação de que a arguida terá procedido ao registo dos cães em 19/01/2012;
- nas fichas de fls. 135 e 136 são indicadas as características dos animais, fichas elaboradas pelo veterinário em 17/01/2012. Nessas fichas são indicadas, como data de nascimento dos cães, a data de 01/11/10 – esta indicação tanto pode ser 01/11/2010, como 2001/11/10.
Foi ouvida a testemunha K, que referiu ser o médico veterinário que procedeu à elaboração dos documentos de fls. 135 e 136. Referiu esta testemunha que os canídeos teriam nascido em 01/11/2010. Terá sido esta testemunha a colocar o chip nos animais.
Mas no chip introduzido nos animais (pelo mesmo médico veterinário que preencheu as fichas de fls. 135 e 136) consta uma data de nascimento dos canídeos 01/11/2000 – cfr. fls. 288 e 289.
De todos estes documentos, e perante o depoimento do médico veterinário, temos que:
- nos chips introduzidos nos animais, os mesmos terão nascido em 01/11/2000 – cfr. fls. 288 e 289;
- nas fichas do SICAFE, já teriam nascido em 01/11/2010 – cfr. fls. 135 e 136;
- e para a Junta de Freguesia do Pombalinho, os animais teriam nascido em
01/11/2011 – cfr. fls. 283 e 283-A.
Ora o Tribunal conclui que a indicação da data de nascimento dos canídeos, em
todos estes documentos, não é rigorosa, e é feita arbitrariamente (desconhecendo-se que critérios são usados para a indicação de uma data). Veja-se que o médico veterinário que preenche as fichas do SICAFE e introduz os chips, nuns põe uma data de nascimento, noutros põe outra.
Assim, destes documentos o Tribunal retira a conclusão que a arguida é a dona destes cães. A data exata do nascimento não é possível obter. Mas também é facto que estes cães já existiam em 14/04/2011, pois todos os documentos emitidos pelo médico veterinário apontam nesse sentido. A informação emitida pela junta de Freguesia do Pombalinho sobre a data de nascimento não tem qualquer valor, já que se mostra em desconformidade com todos os documentos que lhe possam ter sido apresentados.
Relativamente aos factos descritos nos números 2., 3., 6. e 7. dos factos provados, é nestes que reside a principal controvérsia neste processo.
A arguida, sobre os factos que lhe eram imputados na acusação, exerceu o direito ao silêncio.
E B, por manifesta incapacidade de facto, não estava em condições de prestar depoimento – cfr. ata do dia 03/12/2012.
Porque é que o Tribunal considera então como provados os factos constantes dos números 2.e 3. dos factos provados?
Em resultado dos depoimentos das testemunhas D,
C, H, I e J e dos documentos juntos ao processo.
A primeira testemunha (D) depôs no sentido de que em determinado dia ia a passar na estrada em frente à casa da arguida conduzindo o seu carro, tendo visto B cheia de sangue. Viu aberto o portão da casa da arguida e ouviu cães a ladrar.
A arguida veio então ao portão e, mais tarde, B terá sido transportada numa carrinha da “mulher do Sr. Presidente‖ [da Junta de Freguesia] e pela arguida.
E a testemunha C, embora tendo deposto no sentido de que desconhecia as causas, depôs igualmente no sentido de que teria passado na rua em determinado dia, ao entardecer, e teria visto B com a cabeça cheia de sangue, junto ao portão da casa da arguida.
Ora, destes dois depoimentos, que foram isentos porque se limitaram a referir o que realmente viram (e, por isso mesmo, o Tribunal lhes conferiu toda a credibilidade), se retira pelo menos a prova de que em determinado dia, ao entardecer, algo aconteceu a B, à porta da casa da arguida, que a deixou ensanguentada.
A questão que se coloca é: e o que terá acontecido para que B ficasse ensanguentada?
O Tribunal conclui que terão os dois cães da arguida atacado B.
Para chegar a esta conclusão, o Tribunal funda-se nos depoimentos das testemunhas I e J, conjuntamente com o depoimento de H.
A primeira testemunha, I (é neta de B e por ter acompanhado a recuperação física da avó teve conhecimento dos factos sobre os quais depôs - razão de ciência) - depôs no sentido de que, em determinada data, no Hospital Egas Moniz, a arguida ter ido visitar a sua avó e de lhe ter, diretamente, dito que:
- era a dona dos cães que atacaram a avó da testemunha (B);
- estaria a dar de comida aos cães e saiu do canil para lhes ir buscar água, tendo
deixado a porta do canil aberta;
- quando se apercebeu, estaria B já a ser atacada, tendo acorrido para os separar (aos cães).
A testemunha J, pai da testemunha I, depôs no sentido de que, uns três meses após os factos terem ocorrido, se ter dirigido à casa da arguida (para ir buscar uma roupa pertencente a B) e que a arguida, a pedido da testemunha, a ter levado a ir ver o canil e um cão escuro que, segundo a arguida, teria mordido à sua sogra (B).
Por sua vez, a testemunha H depôs no sentido de que em determinada data se encontrava ao serviço da arguida (a trabalhar na agricultura) e que, nesse período, um dia ouviu cães a ladrarem, olhou e quando olhou a arguida ia com os cães para o pátio (os cães referidos no número 1. dos factos provados), estando B agarrada a uma perna.
Por fim, dos relatórios de urgência de fls. 60 a 62 comprovam a admissão à urgência no Centro Hospitalar de Médio Tejo, E.P.E., em 14/04/2011, tendo sido inscrita na folha de amissão “mordedura por dois cães‖ – cfr. fls. 60 e 60, verso.
Então, desta prova, é possível retirar um quadro coerente de prova no sentido de que:
- No dia 14/04/2011 (como decorre de fls. 60), ao entardecer enquanto passava na rua em frente à casa da arguida, B foi atacada pelos dois cães da arguida (cfr. depoimentos das testemunhas I e J);
- Este ataque ocorreu ao entardecer (cfr. depoimento da testemunha C);
- A testemunha H, alertada pelo barulho que os cães efetuavam, olhou e viu a arguida a trazer os cães para o pátio da sua casa; e a testemunha D, que passava de carro na rua, ouviu cães a ladrar e o portão aberto (em resultado, concluímos nós, da arguida estar a levar os cães para o seu pátio).
A unidade e a coerência dos depoimentos, estando em harmonia com os documentos juntos ao processo, confere-lhes total credibilidade, credibilidade esta que resultaria também da forma convicta, isenta e segura como foram prestados.
Por esse motivo o Tribunal considerou como provados os factos constantes dos números 2. e 3. dos factos provados.
Em contraponto, não se fez qualquer prova de que os cães tenham atirado B ao chão (não resulta de nenhum elemento probatório) e mais se comprovou que o ataque ocorreu ao entardecer (depoimento da testemunha C). Consideraram-se, por isso, como não provados os factos constantes dos números 1. e 2. dos factos não provados.
Igualmente se comprova que os cães não tinham açaimo nem trela (do que foi referido à testemunha I, os cães estariam num canil pertencente à arguida e dele terão fugido porque a arguida deixou a porta aberta e que saíram pelo portão de saída da casa da arguida, que se encontrava aberto).
Portanto, foram considerados como provados os factos constantes do número 6. e 7. dos factos provados.
Em termos probatórios, pode ser levantada a questão de nenhuma testemunha ter visto, diretamente, os cães da arguida a morderem a B e da prova ser obtida não a partir do que as testemunhas I e J assistiram, mas antes tendo em consideração as palavras que a arguida lhes dirigiu diretamente.
Poderá esta prova ser valorada? Violará o direito ao silêncio da arguida?
Não temos qualquer dúvida de que as palavras que a arguida dirigiu a I e J poderão ser valoradas, em conjunto com a demais prova. Não se trata de depoimentos indiretos: as testemunhas depõem diretamente sobre o que ouviram da própria arguida.
No sentido desta admissibilidade probatória, vejam-se também os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 25/05/2009, processo nº 359/06GVCRM.G1, Relação do Porto de 04/11/2009, processo nº 91/04.5GBPRD.P1 e Relação de Coimbra de 20/12/2011, processo nº 160/10.2JACBR.C1, todos disponíveis no sítio www.dgsi.pt.
Os factos constantes dos números 4. e 5. dos factos provados decorrem dos documentos de fls. 41 (exame médico, que confirma as lesões e o período de incapacidade para o trabalho), bem como de todos os documentos que espelham fotos de B naquele momento e os tratamentos à qual foi submetida (fls. 2 a 16, relativo à cirurgia à qual foi submetida B no Hospital Egas Moniz, com fotografias; relatório de urgência do Hospital de Santarém de fls. 24 a 25; CD de fls. 39, com mais imagens de B; auto de exame médico de fls. 41 e 42; documentação clínica do Hospital Egas Moniz de fls. 50 a 55; relatório de urgência de fls. 60 a 62).
No que respeita aos números 8. a 10. dos factos provados, centram-se no conhecimento da própria arguida e mostra-se aqui perfeitamente adequado e legítimo o recurso aos critérios de razoabilidade, bom senso e regras de experiência, devidamente articulados com a restante prova, uma vez que se trata de elementos da vida interior de cada um e, por isso mesmo, insusceptíveis de directa apreensão, só sendo possível de captar através do preenchimento dos elementos objectivos da infracção aliados a presunções de normalidade e regras de experiência.
Ora, todas as pessoas sabem que os animais canídeos têm instintos de ataque, que poderão estar mais ou menos desenvolvidos. E bem sabia a arguida que, ao deixar abertos os portões que permitiam o acesso dos cães à via pública, poderiam estes atacar pessoas desconhecidas que por ali passassem naquele momento, como efetivamente sucedeu.
É claro que a arguida, ao deixar o portão aberto, confiou que os animais, no caso concreto, não iriam morder a transeuntes, pois, caso contrário, se a arguida tivesse a convicção de que tal iria suceder, então a sua atuação (atuação por omissão, no sentido de não fechar os portões) seria uma atuação dolosa, o que não foi o caso.
Por outro lado, sabia a arguida (porque qualquer pessoa, na mesma situação, o saberia também) que teria de manter uma conduta zelosa para evitar que os seus canídeos pudessem atacar alguém e que, ao não fazê-lo, estaria a incorrer numa conduta ilícita.
Por esse motivo foram considerados como provados os factos constantes dos números 8. a 10. dos factos provados.
Para prova dos factos constantes dos números 11. e 12. (despesas hospitalares), o Tribunal baseou-se no documento de fls. 160 (print de admissão à urgência, no dia 27/04/2011), 161 (print de admissão ao internamento, no dia 27/04/2011), 162 (print de alta hospitalar, no dia 29/04/2011).
Mais valorou o Tribunal o depoimento da testemunha G, funcionária no Hospital de Santarém e que, por via dessas funções teve conhecimento direto dos factos sobre os quais depôs (razão de ciência), tendo esta testemunha indicado o dia da admissão hospitalar de B (proveniente do Hospital Egas Moniz). Mais referiu que a fatura referindo ainda que a fatura de fls. 163 não tinha ainda sido paga.
Para prova dos factos constantes do números 13. dos factos provados (tempo de recuperação), o Tribunal formou a sua convicção a partir do depoimento da testemunha I, também credível nesta parte, pois descreveu com maior detalhe as situações posteriores à alta hospitalar, demonstrando convicção e segurança no depoimento. Os cuidados que referiu são compatíveis com as lesões que são visíveis nas fotografias juntas aos autos e examinadas em audiência, o que confere total credibilidade à testemunha.
Referiu esta testemunha que o tempo de recuperação terá sido de ―2 ou 3 meses‖.
Ora, uma vez que o ataque ocorreu a 14/04/2011 e B, de acordo com a testemunha I, estado num ―Centro de Lazer‖ durante um mês, e a receber cuidados, entende o Tribunal que se deverá dar como provados dois meses de recuperação, e não três meses.
Por isso, deu-se como provados os factos constantes do número 13. dos factos provados e como não provados os factos constantes do número 3. dos factos não provados.
Os factos constantes do número 14. dos factos provados decorrem dos dados da ficha de enfermagem junta a fls. 7.
O rendimento de B (número 15. dos factos provados) foi referido pela sua neta, a testemunha I, credível pelas razões supra referidas.
No que respeita aos factos descritos nos números 16. a 19. dos factos provados, o Tribunal formou a sua convicção a partir do depoimento da testemunha I, neta de B, que acompanhou a recuperação da sua avó (razão de ciência) e que, de forma detalhada e segura, com credibilidade, soube expor como decorreu essa recuperação, como foi contactada pelos serviços sociais do Hospital de Santarém (o que pode ser comprovado a fls. 25), porque razão teve B de ir para o Centro de Lazer da Serrã pelo período de um mês, e ainda as alterações de humor e queixumes de B
O Tribunal deu total credibilidade a esta testemunha, credibilidade que pode ser aferida pela fatura e recibo de fls. 178 e 180, que comprovam o internamento e o pagamento do preço do internamento ao Centro de lazer.
O número 20. dos factos provados decorre na análise das faturas e recibos juntos a fls. 177 a 183.
Os antecedentes criminais da arguida decorrem do certificado de fls. 236.
As condições socioeconómicas da arguida foram obtidas a partir das declarações da mesma e dos documentos (cópias de declarações fiscais) juntas a fls. 261 a 275.
Do depoimento da testemunha F não trouxe especiais elementos probatórios, uma vez que esta testemunha apenas soube dizer que havia transportado a arguida e B ao Hospital de Torres Novas (Centro Hospitalar de Médio Tejo) - B foi conduzida ao Hospital de Torres Novas
(cfr. fls. 60); daí para o Hospital Egas Moniz (cfr. fls. 10); e mais tarde para o Tribunal de Santarém – cfr. fls. 25. A testemunha não se apercebeu de ferimentos e não mereceu grande credibilidade, pois demonstrou ter um perfil conotado com os interesses da arguida (por exemplo, refere que nunca conheceu cães à arguida, apesar de já ter ido várias vezes a casa desta).
Do depoimento da testemunha E também não resultaram elementos probatórios que viessem acrescentar mais elementos aos depoimentos entretanto prestados, já que esta testemunha, e no essencial, apenas confirma que viu B com a cara com sangue, desconhecendo o motivo de B assim ter ficado.
III. Enquadramento Jurídico-Penal
(…)
IV. Da Natureza e Medida da pena
(…) »

Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso
.
II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso e poderes de cognição do tribunal ad quem.
Conforme é jurisprudência assente, os poderes de cognição do tribunal ad quem são limitados pelas conclusões da motivação de recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a decidir pelo tribunal ad quem.
Nas suas conclusões, a arguida recorrente começa por alegar ser juridicamente inadmissível a sua condenação em matéria criminal e civil por apenas ter tido conhecimento da prova que orientava a sustentabilidade da alteração não substancial, após a leitura da sentença, resultando do texto da motivação de recurso que a arguida considera que aquela omissão constitui nulidade de sentença nos termos do art. 379º b) do CPP, porquanto a condenação não obedeceu aos requisitos estipulados no art. 358º do CPP.
Mais alega que o tribunal fez valorização indevida do testemunho de I que, no seu entender, é meio de prova proibido, por se tratar de testemunho de ouvir dizer. Invoca ainda ser juridicamente inadmissível a sua condenação por se verificar insuficiência para a decisão da matéria dada por provada e erro notório na apreciação da prova.
Conclui dever ser absolvida do crime de que vem acusada, nomeadamente em obediência ao princípio in dubio pro reo, sem prejuízo de se retirarem as devidas consequências também em matéria cível caso o recurso proceda – cfr art. 403º nº3 do CPP.
São estas as questões suscitadas, impondo-se apreciar mais amplamente o testemunho de ouvir dizer, pelas razões sumariamente expostas infra.
2. Vejamos então as questões a decidir.
2.1. A invocada nulidade de sentença – art. 379º b) CPP
O art. 358 acolhe exceção à regra do acusatório segundo a qual o objeto do processo é inalterável depois de findas as fases preliminares.
Com a disciplina do art. 358º pretende-se assegurar que o arguido possa defender-se de uma nova versão dos factos, independentemente da indicação da prova ou provas concretas de onde resulte a respetiva indiciação, o que bem se compreende.
Quer o princípio do acusatório, quer do contraditório, não exigem no nosso processo penal que a acusação fundamente expressamente o juízo indiciário em que assenta a acusação, não impondo que a acusação confronte o arguido com uma conexão expressa, devidamente delimitada, entre cada facto e os respetivos meios de prova, limitando-se o art. 283º do CPP a impor a narração dos factos por um lado e a indicação dos meios de prova, por outro. Uma vez que o art. 358º pressupõe que a alteração de factos decorra da prova produzida ou examinada em audiência, não faria sentido que se exigisse mais ao tribunal que à acusação no momento de apresentar a versão dos factos a sujeitar a julgamento. É na sentença, após a discussão da causa, aquando da valoração das provas e da decisão das diversas questões a que se reportam os artigos 368º er 369º, do CPP, que o tribunal de julgamento deve fundamentar a decisão, nomeadamente em matéria de facto, tal como lho impõe o art. 374º do CPP, sendo amplamente admitido o recurso também sobre esta matéria.
Em segundo lugar, tendo o arguido e/ou o seu defensor podido participar na audiência, assistindo à produção de toda a prova, incluindo a que esteja na base da indiciação em causa, o arguido sempre pode pedir eventual produção de prova relativas aos factos em causa ou limitar-se a pronunciar-se sobre a sua posição quanto à prova dos novos factos, tal como sucede relativamente aos demais, exercendo plenamente os seus direitos de defesa.
Não tem, pois, razão a arguida recorrente ao arguir a nulidade prevista no art. 379º b) do CPP, pois o art. 358º do CPP não exige a comunicação dos meios de prova em que se fundamenta a indiciação comunicada, interpretação esta que sendo consensual, ao que supomos, não é igualmente violadora dos princípios do contraditório e das máximas garantias de defesa acolhidos no art. 32º da CRP, sendo certo resultar da ata de julgamento (última sessão) que o tribunal comunicou os novos factos indiciários, relativamente aos quais a arguida nada requereu.
2.2. – Os vícios previstos no 410º nº2 do CPP - caracterização genérica.
É sabido que o conhecimento pelo tribunal ad quem dos vícios acolhidos no art. 410º nº2 do CPP é característico do modelo de revista ampliada ou revista alargada adoptado pelo CPP de 1987, com que, nas palavras originárias do Prof. F. Dias, se pretendeu instituir um “recurso que …se não restringisse à tradicionalmente chamada «questão-de-direito», mas devesse ser admissível face a contradições insanáveis entre as comprovações constantes da sentença e a prova registada, a erros notórios ocorridos na apreciação da prova ou, em geral, a dúvidas sérias suscitadas contra os factos tidos como provados na sentença recorrida.”[1] .
Em todas as situações a que se reporta o nº2 do art. 410º do CPP, o vício respetivo há de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que significa que tais vícios são apenas os intrínsecos à própria decisão, considerada como peça processual autónoma, sendo inatendível o teor da prova produzida em audiência, maxime a prova pessoal oralmente produzida, para fundar o juízo de insuficiência, contradição ou erro notório, a que se referem as als a), b) e c) do art. nº2 do art. 410º do CPP.
Como escreve Maria João Antunes “ O CPP de 1987 trata os vícios previstos no art. 410º nº 2 como vícios de decisão e não como vícios do julgamento (…) também nesta disposição legal, estamos em face de vícios da decisão recorrida, umbilicalmente ligados aos requisitos da sentença previstos no art. 374º nº 2 do CPP, concretamente à exigência da «fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamental a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal»[2],
Resulta evidente a partir dos considerandos expendidos, que não é admissível o recurso à transcrição da prova pessoal produzida na Audiência de discussão e julgamento para fundamentar a invocação do vício de erro notório na apreciação da prova e o vício de contradição insanável, previstos no art. 410º nº2 alíneas c) e b) do CPP, respetivamente, pelo que, como aludido, não se atenderá à transcrição levada a cabo pela recorrente.
É, pois, a partir do respetivo texto (cfr nº2 do art. 410º do CPP), maxime da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, incluindo o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, que cumpre apreciar e decidir se a sentença sob recurso incorreu nos apontados vícios, não obstante a recorrente apelar constantemente à prova pessoal transcrita.
2.2.1. Os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação.
Pretende a arguida que não obstante a insuficiência de prova e a contradição insanável de fundamentação, o tribunal a quo considerou provada a factualidade típica, com o que terá incorrido nos vícios a que se reportam as alíneas a) e b) do nº2 do art. 410º do CPP.
É, porém, manifesta a falta de razão da arguida quanto à verificação daqueles vícios. Tanto do texto da motivação de recurso como das respetivas conclusões resulta que a arguida reporta-se a insuficiência de prova para julgar provada a factualidade típica (máxime os pontos 1 a 20 dos factos provados) e ao que, no seu dizer, será a contradição entre a decisão sobre a matéria de facto e a prova em que se fundamenta, chegando a referir-se mesmo a erro de julgamento, o que não corresponde ao significado e alcance daqueles mesmos vícios que, como aludido supra, são ainda vícios da própria decisão.
Como refere Germano M. Silva, “a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida»[3], reportando-se antes à falta de apuramento de factos necessários para a boa decisão da causa, como pode ler-se, por todos, no sumário do Ac STJ de 4.10.2006, que é do seguinte teor:
- “ É um dado adquirido em termos dogmáticos que o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, visto a sua importância para a decisão, por exemplo para a escolha ou determinação da pena.»- acessível em www.stj.pt(sumários).
Por sua vez, a contradição da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ocorre quando a fundamentação da decisão recorrida aponta no sentido de decisão oposta à tomada, ou no sentido da colisão entre os fundamentos invocados.
É uma “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a decisão probatória e a decisão. Ou seja, há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os factos provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente” (Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo penal, 6ª ed.-2007 p. 71 e Maria João Antunes, est. citado p. 120.
Trata-se sempre, porém, de contradição essencialmente lógica e/ou formal, não abrangendo o mérito da decisão em matéria de facto ou em matéria de direito, caso em que apenas do ponto de vista semântico poderíamos falar ainda de contradição, nomeadamente entre a fundamentação e a conclusão quando esta não representasse o resultado jurídico daquela, caso em que estaremos perante erros de julgamento e não em face de vício essencialmente lógico-formal da decisão.
2.2.2. Já quanto ao erro notório na apreciação da prova, embora estejamos ainda perante vício da própria decisão, que tal como os demais resulta essencialmente da fundamentação da sentença, este vício reconduz-se sobretudo a situações de erro de julgamento em matéria de facto que se apresentem como grosseiros, evidentes. Não esqueçamos que o modelo de revista alargada, de que era pedra basilar o art. 410º do CPP, visa essencialmente proteger o arguido dos perigos de um erro de julgamento (designadamente de um erro grosseiro na decisão da matéria de facto) resultante de o tribunal de recurso não conhecer em regra de matéria de facto, conforme continua a verificar-se relativamente aos recursos para o STJ.
Erro grosseiro e evidente que apesar da referência comum à perceção da generalidade das pessoas, ou expressão equivalente, como critério aferidor da notoriedade do erro, nos parece não poder deixar de ser referido antes à perceção e entendimento da entidade judicante a quem sempre cabe sindicar a decisão recorrida em sede recurso, ainda que tomando-se por referência o juiz médio de que fala Sousa Brito em voto de vencido expresso no citado Ac TC nº 322/93[4][5], o que se mostra compatível com o recurso às regras da experiência a que se reporta o art. 127º do CPP, bem como às regras e princípios gerais que regem em matéria de direito probatório. [6]
Aliás, quer-nos parecer que a ênfase legal no caráter manifesto, notório, do erro de apreciação da prova tem que ver sobretudo com a necessidade de evitar eventuais erros na própria afirmação do erro notório por parte do tribunal recorrido, resultantes da limitação intrínseca ao texto da decisão e às regras da experiência. Isto é, o erro é notório quando possa afirmar-se de modo seguro e manifesto independentemente do que possa resultar do conteúdo das provas não acessível a partir da própria sentença.
Posto isto, estamos em condições de reafirmar que o vício de erro notório na apreciação da prova verifica-se quando dos próprios termos da decisão recorrida, maxime da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, possa concluir-se que o tribunal a quo manifestamente violou regras e princípios de direito probatório, ou regras da experiência comum, nomeadamente o princípio in dubio pro reo, o princípio da livre apreciação da prova (art. 127º) ou o princípio da legalidade da prova (art. 125º CPP) ao assentar a decisão em prova proibida.
2.2.3. Justifica-se este desenvolvimento prévio, na medida em que a recorrente vem invocar precisamente que o tribunal recorrido assentou a sua decisão em prova proibida ao considerar que o tribunal a quo fez valorização indevida do testemunho de I que, segundo diz, é meio de prova proibido.
A recorrente não concretiza esta sua imputação, pois não indica com precisão que parte do depoimento da testemunha esta terá ouvido dizer a outrem, tal como não indica a quem a mesma terá ouvido dizer o que quer que seja. Limita-se a remeter para o registo ou gravação do depoimento da testemunha, o qual é manifestamente inatendível dado que os vícios a que se reporta o nº2 do art. 410º do CPP apenas podem assentar no texto da decisão, conforme sobejamente referido supra. Cita ainda um trecho de Pinto de Albuquerque a propósito do testemunho de ouvir dizer ao ofendido e nada mais em concreto.
Por outro lado, em passo algum da sentença recorrida se refere que a testemunha I declarou ter ouvido o relato dos factos à ofendida e demandante B, sua avó, pelo que também por esta razão, ou seja, porque o vício invocado não tem correspondência no texto da sentença recorrida, é manifestamente improcedente a invocação do vício de erro notório na apreciação da prova que tenha por referência o depoimento da testemunha I com base no que teria ouvido a sua avó.
Sucede, porém, que a sentença recorrida menciona expressamente que parte dos depoimentos das testemunhas I e J, relativos à factualidade típica provada, máxime a descrita sob os nºs 1, 3, 4 e 6, corresponde ao que lhes foi dito pela própria arguida, acrescentando-se que aqueles depoimentos contribuíram para a convicção do tribunal a quo, sendo certo que o tribunal recorrido fundamenta expressamente a admissibilidade e atendibilidade destes testemunhos de ouvir dizer à arguida.
Por se tratar de eventual prova proibida, não carecida de arguição, apreciar-se-á esta questão apesar de a arguida recorrente não se lhe referir expressamente.
2.3.. A questão aludida respeita ao regime legal do depoimento indireto ou testemunho de ouvir dizer a arguido, máxime a respetiva admissibilidade, a qual apresenta alguma complexidade, sendo objeto de entendimentos e decisões díspares. Analisá-la-emos apenas na medida indispensável para a fundamentação da decisão a proferir.
Para minorar equívocos, procuraremos precisar a respetiva noção legal e enunciar algumas diferenciações relevantes para a compreensão do regime.
2.3.1.Em primeiro lugar, resulta dos artigos 128º e 129º, do CPP, que o depoimento indireto ou testemunho de ouvir dizer, consiste no depoimento de uma testemunha que não invoca conhecimento próprio, direto, dos factos que, integrando o objeto da prova, se pretendem provar com esse mesmo depoimento, limitando-se a narrar o que a respeito desses factos ouviu dizer a outra pessoa ou o que leu em documento da autoria de outrem[7].
À temática do depoimento indireto ou testemunho de ouvir dizer importa, pois, o facto a que se reporta o conteúdo das palavras da pessoa a que se ouviu dizer e não o facto de esta pessoa ter dito essas mesmas palavras. Isto é, tendo presente a destrinça entre prova da emissão da mensagem e a mensagem como prova, o problema específico das declarações de ouvir dizer incide apenas na utilização probatória do que [outrem] disse para a prova dos factos relatados.(…) Consequentemente, quando o facto principal objeto do processo é o que se disse ( por exemplo no julgamento de um crime de difamação ou de ameaças verbais), o depoimento de quem ouviu o que foi dito é direto[8] não importando por isso à temática do depoimento indireto ou de ouvir dizer.
Por outro lado, apesar de os artigos 128º e 129º se reportarem expressamente ao depoimento de testemunha, as declarações emitidas por outros intervenientes processuais, sempre que esteja em causa a relevância probatória do que se ouviu dizer a outra pessoa em contraponto com os factos percecionados fisicamente pelo declarante, integram com o depoimento testemunhal uma temática mais vasta que pode designar-se por declarações indiretas ou declarações de ouvir dizer (igualmente referidas, por antonomásia, como depoimento indireto ou de ouvir dizer). Na delimitação do âmbito de aplicação dos citados artigos 128º e 129º, do CPP, e na definição do respetivo regime legal, importará trazer à colação algumas dessas situações.
Por último, ainda em sede de delimitação da figura, importa ter presente a distinção entre o regime geral sobre o depoimento indireto, estabelecido no artigo 129º do CPP, a que se associa proibições de valoração de prova, e o regime especial relativo a declarações processuais antes do julgamento, ou seja, declarações prestadas pela testemunha de referência no âmbito de um processo penal em curso, nomeadamente perante Órgão de Polícia Criminal, que estão antes na origem de proibições de produção de prova (cfr artogos 356º e 357º, do CPP)[9].
Esta distinção, porém, releva aqui apenas como dado a considerar na interpretação do art. 129º, no que concerne à valoração de declarações extra processuais do arguido (levada ao processo por testemunha de ouvir dizer), uma vez que no caso presente encontramo-nos inequivocamente em face de declarações do arguido perante pessoas estranhas à atividade processual (as dias testemunhas identificadas) e, portanto, declarações extra processuais do arguido.
2.3.2. – Posto isto, encaremos ex professo a questão fulcral suscitada pela decisão recorrida, que é a de saber se é suscetível de valoração o depoimento de testemunha sobre o que ouviu dizer ao arguido e qual o respetivo regime legal. Mais concretamente, sobre declarações autoincriminatórias proferidas fora do ambiente processual, que a testemunha ouvida em audiência atribui ao arguido. Na afirmativa impõe-se ponderar ainda se é aplicável o regime previsto no art. 129º do CPP a tais declarações.
2.3.1. Quanto à primeira e nuclear questão identificamos dois entendimentos antagónicos na doutrina. Damião da Cunha[10] e Pinto de Albuquerque[11] entendem, em síntese, ser proibida a valoração probatória do que o arguido terá dito extra processualmente a testemunha ouvida em audiência, sendo-lhe inaplicável o disposto no art. 129º do CPP.
Carlos Adérito[12] e Dá Mesquita[13], embora considerem igualmente não ser aplicável o disposto no art. 129º do CPP às declarações ouvidas ao arguido por uma testemunha que depõe em audiência, entendem ser admissível a valoração dessas mesmas declarações à luz das regras gerais sobre valoração da prova, nomeadamente o disposto nos artigos 125º e 127º, do CPP, se não existir uma outra causa de inadmissibilidade.
Antecipando conclusões, consideramos admissível e suscetível de valoração o depoimento de testemunha sobre o que ouviu dizer a arguido, mas entendemos que lhe é aplicável o regime previsto no art. 129º do CPP, o que corresponde, quer-nos parecer, ao entendimento subjacente a jurisprudência publicada sobre a questão, nomeadamente jurisprudência constitucional[14].
No essencial, pelas seguintes razões.
2.3.5.1 - Em primeiro lugar, não resulta do art. 129º nº1 serem inatendíveis os depoimentos de ouvir dizer a arguido.
O artigo 129º do CPP, enquanto norma relativa à prova testemunhal, admite e regula o depoimento prestado por testemunha e não o depoimento ouvido a testemunha, pelo que por esta via apenas faria sentido excluir da sua previsão declarações diversas, nomeadamente as declarações prestadas por sujeitos processuais, e não depoimentos testemunhais sobre estas mesmas declarações. Daí que o disposto no art. 129º do CPP seja manifestamente inaplicável às declarações de arguido que invoque o que ouviu dizer a outra pessoa e que aquela disposição apenas seja aplicável a declarações do assistente e partes civis em audiência por via da remissão genérica do art. 145º nº 3 do CPP, mas não exclua as declarações ouvidas aos sujeitos processuais ou outros intervenientes.
Na verdade, o texto, a letra, do art. 129º do CPP não limita a sua previsão ao que se ouviu dizer a certa categoria de intervenientes ou sujeitos processuais, máxime a outras testemunhas, não se vislumbrando razão para menosprezar a menção ampla e genérica do art. 129º ao que se ouvir dizer a pessoa determinada, às pessoas indicadas, às pessoas através das quais tomou conhecimento dos factos.
E será assim, como cremos que é, porque o art. 129º apenas estabelece o regime especial de que depende a valoração dos depoimentos testemunhais respeitantes a factos de que a testemunha não possui conhecimento direto e não o regime dessas declarações em função de particularidades do respetivo conteúdo ou do estatuto do alegado autor originário ou de referência dessas mesmas declarações.
Pensamos assim, não só em atenção a argumentos de ordem sistemática e literal, ora aludidos, mas sobretudo por razões que têm que ver com a teleologia do preceito, ditada em grande parte pelo estatuto que o nosso código de processo penal reconhece ao chamado depoimento indireto ou testemunho de ouvir dizer.
Na verdade, como pode ler-se em Carlos Adérito Teixeira e Paulo Dá Mesquita[15], em vez da sua proibição de princípio, o CPP de 1987 adotou no essencial um sistema de admissão condicionada ex post do depoimento de ouvir dizer, não excluindo, em regra, a utilização do que não foi apreendido em primeira mão pelo depoente, definindo antes as regras de verificação do que foi dito e o sancionamento da violação do procedimento devido.
Daí que, não obstante a doutrina nacional que terá estado na origem do regime acolhido (com foros de novidade) no CPP de 1987[16], ir no sentido da proibição do testemunho de ouvir dizer, que apenas excecionalmente seria admitido no nosso ordenamento, a solução do código vai antes no sentido da admissão geral de produção do depoimento sujeitando a sua valoração ao regime especialmente delineado no art. 129º, pelo que, em nosso ver, é mais consentâneo com o regime positivo falar na natureza especial do art. 129º que no seu caráter excecional, sobretudo quando se pretendem tirar ilações sobre o âmbito dogmaticamente permitido à respetiva interpretação.
Retomando o que dizíamos sobre a teleologia e enquadramento do regime estabelecido no art. 129º , concluímos, pois, com Dá Mesquita, que a lei portuguesa, na linha da italiana, regulou a matéria do depoimento como restrição da prova testemunhal, centrando-se no mediador (o testemunho) e não no ato de comunicação (o que se ouviu dizer).
Compreende-se, assim, que o art. 129º defina com precisão o procedimento a seguir para que possa valorar-se o depoimento de quem ouviu dizer, independentemente do que se ouviu dizer e a quem se ouviu dizer, aspetos do depoimento que ficarão sujeitos às normas gerais ou particulares que regulam o estatuto processual daquele a quem se ouviu dizer ou o regime especialmente aplicável ao que se ouviu dizer.
É, pois, à luz do confronto das particularidades de tais regimes com o regime legal aplicável ao depoimento de ouvir dizer que devem resolver-se questões relacionadas com o segredo de funcionário, o segredo profissional, a recusa legítima a depor de parente ou afim, a recusa ilegítima a depor ou o segredo de Estado[17], a que caberão soluções eventualmente diferentes em função do respetivo regime geral, sendo certo que não será em disposição enxuta do art. 129º que se encontrará resposta única, válida para todas essas situações.
2.3.2.2. É nesta perspetiva que entendemos, como aludido, não existirem razões para excluir a valoração de depoimento testemunhal sobre o que se ouviu dizer a arguido.
Por um lado, parece-nos não poder argumentar-se não ser aceitável testemunhas do que se ouviu dizer a um sujeito processual por serem decisivas, quanto a este, as declarações prestadas em audiência[18]. Na verdade, pode dizer-se o mesmo relativamente a declarações de quem possa ser ouvido como testemunha e isso não impede que tais declarações possam ser levadas ao processo através de depoimento de ouvir dizer, quer a testemunha de referência não chegue a prestar depoimento em audiência, quer venha a fazê-lo.
Por outro lado, não vemos razões para estender o regime especial das declarações processuais do arguido (cfr artigos 356º e 357º, CPP) às declarações por si proferidas à margem do processo no domínio da sua liberdade de se exprimir e relacionar socialmente.
Desde logo, não o impõe a proteção do direito à palavra ou da confidencialidade que lhe possa estar associada, pois trata-se da mera reprodução do que outrem terá ouvido ao arguido, não estando em causa a utilização de meios tecnológicos de difundir, captar e registar a palavra, objeto de regulamentação legal mais exigente, mas que ainda assim não impede a valoração de declarações extra processuais do arguido em casos de intrusão clara naqueles direitos individuais como é o caso das escutas telefónicas.
Em segundo lugar, as declarações extra processuais do arguido não merecem proteção à luz do direito ao silêncio[19] ou à não autoincriminação, em casos como o presente, por não estar em causa a relação do arguido com as instâncias formais de controlo que justificam não ser o arguido obrigado a declarar no processo em caso algum. Uma coisa é o que diz alguém, seja ou não o arguido, numa situação de liberdade, sem a coação psicológica ou de diferente natureza derivada do processo penal, outra é o depoimento condicionado pela existência do processo e pela própria dinâmica dos diversos agentes que nele intervêm.
Por último, a circunstância de estarem em causa palavras do arguido não justifica que as mesmas não possam assumir relevância probatória só porque a sua revelação por outra pessoa, que as terá ouvido, tem o efeito de pressionar o arguido a falar em sua defesa, nomeadamente em audiência.
O direito ao silêncio[20] não tem esta dimensão, pois levada a tais extremos invalidaria qualquer processo penal. Isto é, o direito do arguido a não prestar declarações no processo penal não tem como efeito a inadmissibilidade da apresentação ou valoração de provas relativas à sua participação nos factos, apesar de, numa certa perspetiva das coisas, essas mesmas provas sempre pressionarem o arguido a prestar declarações no processo, máxime em audiência, para evitar que elas possam levar à sua condenação.
São estas, no essencial, as razões que nos levam a acompanhar o entendimento de Dá Mesquita e Adérito Teixeira no que respeita à suscetibilidade de valoração de depoimento testemunhal que tem por objeto declarações (extra processuais) ouvidas a arguido.
2.3.3. Com base nos argumentos de ordem literal e sistemática já expostos, mas também pelas razões que de seguida se expõem, a figura-se-nos, porém, contrariamente a estes autores, que o depoimento de ouvir dizer a arguido está sujeito ao regime previsto no art. 129º do CPP, por se encontrar abrangido pela respetiva previsão legal, o que significa sobretudo que o arguido deverá ser chamado a depor, com o significado amplo que esta locução assume naquele preceito.
Na verdade, ao dizer-se no nº1 do artigo 129º que o juiz pode chamar a depor as pessoas determinadas a quem se ouviu dizer, abrangem-se não só as hipóteses – imediatamente identificáveis - em que o declarante de referência não foi sequer arrolado, como aquelas em que o declarante de referência já depôs ou está para depor, dada a essencialidade do chamamento possível para a suscetibilidade de valoração das declarações em causa.
O condicionalismo de que o art. 129º do CPP faz depender a valoração do depoimento de ouvir dizer tem duas faces: o dever da testemunha indicar a pessoa (no que aqui importa) através das quais tomou conhecimento dos factos (art. 129º nº3) e a obrigação do juiz chamar a pessoa indicada a depor sempre que os factos relatados integrem o objeto da prova e a prova pessoal em causa seja relevante.
Para além da relevância da indicação da razão de ciência e de outras circunstâncias pertinentes para avaliar da credibilidade do depoimento de quaisquer testemunhas (art. 138º nº3), o dever de identificação da pessoa fonte da prova e a consequente obrigação de o juiz chamá-la a depor visam especialmente permitir que o declarante fonte, tendo conhecimento da imputação que lhe é feita pela testemunha de ouvir dizer, possa pronunciar-se sobre ela. Daí decorre o condicionamento legítimo e positivo da testemunha de ouvir dizer pela inevitabilidade da hipótese de ser confrontado com a prova fonte sempre que a mesma seja possível, o que vale indiferentemente para as hipóteses em que a pessoa de referência já se encontra arrolada mas ainda não depôs, para os casos em que já depôs e as hipóteses em que não se encontra sequer arrolada, aplicando-se igualmente mesmo que a pessoa chamada não possa depor ou se recuse legitimamente a fazê-lo.
Na medida em que vale igualmente para todas estas situações, a imposição legal de o declarante originário ser chamado a depor no art. 129º nº1encerra o significado amplo daí resultante, que valerá igualmente para as hipóteses em que é o arguido a pessoa a quem se ouviu dizer, o qual só prestará declarações se quiser e na medida em que o quiser fazer. Não se vê, pois, razão para qualificar de abusiva a chamada do arguido para comparecer quando a audiência se realize na sua ausência ou mesmo eventual interpelação judicial do arguido[21] presente para que este possa pronunciar-se, querendo, sobre o depoimento da testemunha ou outro declarante de ouvir dizer.
Esta explicação sobre a teleologia do regime legal é perfeitamente consentânea com a caraterização que dele se fez (vd supra) como restrição da prova testemunhal, centrada no mediador (o testemunho) e não no ato de comunicação (o que se ouviu dizer) e não é desmentida, em nosso ver, pela admissibilidade legal de valoração do depoimento de ouvir dizer mesmo nos casos em que é impossível chamar a depor o declarante fonte ou de referência.
Nestas casos o legislador optou por admitir ainda a valoração do depoimento de dizer por razões essencialmente pragmáticas, ligadas a um princípio de aproveitamento da prova não inquinada refletido entre nós no princípio da legalidade da prova presente no art. 125º do CPP, tal como sucede noutras constelações do sistema, máxime no art. 356º nº4 relativamente à atendibilidade de declarações prestadas em fase anterior ao julgamento, por impossibilidade de comparência em audiência.
Tendo optado pela admissibilidade do depoimento indireto mesmo nos casos em que seja impossível confrontá-lo com o alegado declarante de referência e confrontado com as dificuldades de regular por via genérica e abstrata as particularidades da respetiva atendibilidade, o legislador deixa unicamente ao juiz a apreciação da força probatória do depoimento indireto o que, não colocando especiais problemas de sistema face à amplitude do princípio da livre apreciação da prova, não deixará de colocá-las em concreto quando eventual ausência de outras provas corroboratórias ou simplesmente de referência, exija particular cuidado e rigor na valoração probatória do depoimento[22], tal como sucede em muitas outras hipóteses de escassez de prova relevante.
Aceite a atendibilidade do que se ouviu dizer extra processualmente ao arguido como regra, não se vê, pois, razão para não sujeitar a valoração do depoimento indireto ao chamamento do arguido a depor, com o sentido imposto pelas suas particularidades de estatuto, ou seja, o de assegurar que o arguido possa ser confrontado com aquelas mesmas declarações, dando-lhe oportunidade de se pronunciar sobre elas na medida que bem entenda, como sucederá, aliás, nos casos de recusa legítima a depor (cfr art. 134º do CPP) e outros semelhantes.
Tendo em conta a lógica subjacente ao regime previsto no art. 129º, parece-nos mesmo encontrar argumento de maioria de razão para que a atendibilidade do depoimento de ouvir dizer a arguido esteja dependente de o tribunal dever assegurar a confrontação deste com o depoimento indireto (pelo menos até onde for possível), nos termos do nº1 do art. 129º do CPP. Por um lado, as declarações do arguido, ainda que extra processuais, tenderem a assumir um especial peso na convicção do tribunal, na generalidade dos casos. Por outro, o atual regime processual permite o julgamento na ausência do arguido em número crescente de casos, o que faria aumentar de modo não despiciendo o número e diversidade de situações em que o arguido poderia ser condenado com base em declarações que lhe são imputadas por terceiros sem que estes se encontrassem condicionados pela hipótese-regra de confrontação com o arguido e sem que, em todo o caso, fosse dada oportunidade ao mesmo arguido de se pronunciar sobre declarações que lhe são atribuídas[23].
2.3.4. Quanto a um último aspeto da questão, entendemos, porém, que nos casos como o que nos ocupa (cfr atas de julgamento), em que o arguido se encontra presente no momento em que as testemunhas de ouvir dizer lhe atribuem as declarações em causa, a presença efetiva do arguido no momento das declarações satisfaz o dever imposto ao tribunal pelo art. 129º nº1 do CPP de chamar a depor o arguido enquanto declarante fonte ou de referência.
Já assim não será, impondo-se que o tribunal diligencie para assegurar a presença do arguido julgado na sua ausência, como meio de cumprir o dever de chamar a depor o declarante de referência (art. 129º nº1 do CPP), do mesmo modo que se impõe que o tribunal informe expressamente o arguido, aquando do cumprimento do disposto no art. 332º nº7 do CPP, de depoimento indireto prestado em casos de ausência pontual, nomeadamente por ter faltado na respetiva sessão de julgamento ou por se verificar alguma das hipóteses a que se reportam os artigos 325º nº4, 332º nºs 5 e 6 e 352º, do CPP.
Concluindo, como referido de início, pela admissibilidade de valoração do depoimento de dizer a arguido e considerando que foi materialmente cumprida a imposição do art. 129º nº1 – aplicável a estas hipóteses - de chamamento da arguida enquanto declarante de referência, porquanto a arguida encontrava-se presente aquando da prestação dos depoimentos das testemunhas indiretas em causa, I e J. Deste modo, a sentença recorrida não incorreu em proibição de prova por valoração daqueles depoimentos na parte em que ambas as testemunhas relataram o que ouviram dizer à arguida, apesar de esta ter optado por manter o silêncio durante toda a audiência de julgamento.
Assim sendo, o presente o recurso improcede totalmente.

III. Dispositivo

Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pela arguida, A, confirmando integralmente a sentença recorrida.
Custas pela arguida, fixando-se em 5 UC a taxa de justiça devida - art.s 513º e 514º, do CPP e 87 nº1 b) do CCJ.

Évora, 25.02.2014
(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

António João Latas
Carlos Jorge Berguete

__________________________________________________
[1] F. Dias, Para Uma Reforma Global do processo Penal Português in Para uma Nova Justiça Penal, Liv Almedina, 1983, p.
[2] Cfr Maria João Antunes, Conhecimento dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal - Anotação ao Ac STJ de 6.05.1992, in RPCC 4(1994) pp. 121-2. Explicitando melhor a afirmação em texto, continua a autora:”… o art. 410º nº 2 concede ao tribunal «ad quem» os poderes de cognição em matéria de facto permitidos pelo texto da decisão recorrida, com o objectivo de assim ser controlado o conteúdo da própria fundamentação. O artigo 410º nº 2 não serve, pois, para verificar a existência ou não da fundamentação da sentença, nos termos previstos no art. 374º nº2 – isso é feito através do mecanismo da arguição de nulidade -, mas para controlar se a matéria de facto provada é suficiente para a decisão de direito tomada, se não há contradição insanável da fundamentação e se não há erro notório na apreciação da prova, podendo assim dizer-se que estes são requisitos da fundamentação e consequentemente da própria decisão.
[3] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., Editorial Verbo 2000, pp. 339-40
[4] Diz Sousa Brito, no voto de vencido referenciado:
- «Desde já se esclarece que não se julga justificável a interpretação de tal erro como aquele «de tal modo evidente que o homem médio o detecta com facilidade». Pode ser «notório» apenas para o julgador com a especial formação e experiência de um Juiz do Supremo Tribunal de Justiça [ou das Relações, acrescentamos, face à identidade de regime] » .
[5] or sua vez, Castanheira Neves , a propósito do princípio da livre apreciação da prova, refere-se a um juiz normal como aquele que tem , “ a cultura e experiência da vida e dos homens que deve pressupor-se num juiz chamado a apreciar a actividade e os resultados probatórios”. – cfr Sumários de processo criminal, Coimbra 1968 p. 54
[6] Cfr Ac do STJ de 15.04.1998, BMJ 476/91 : «Nesta perspectiva a violação, v.g. , do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova, o que significa que a sua existência só pode ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma mais do que evidente, que o colectivo, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.»
[7] “ O depoimento indirecto respeita não imediatamente aos factos probandos, mas a meio de prova desses factos; é o vulgarmente designado por testemunho de ouvir dizer. (…) O testemunho indirecto não respeita apenas ao testemunho de ouvir dizer, embora seja assim vulgarmente conhecido. Pode resultar, v.g. da leitura de documentos elaborados por outros e são aplicáveis as mesmas regras.” – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª ed., Editorial Verbo 1999, p 151
[8] Cfr, Dá Mesquita, A prova do crime e o que se disse antes do julgamento, Coimbra Editora – 2011, pp. 523-4 e p. 533, onde complementa o último trecho transcrito, do seguinte modo: “Isto é, se A disse a B que C retirou dinheiro da caixa registadora não existe qualquer limite à utilização do testemunho de B para prova do que A disse, nomeadamente no julgamento de um crime de difamação, apenas se condiciona a utilização do testemunho de B para a prova de que C retirou dinheiro da caixa registadora.” - (n. 158)
[9] No código português de 1987 preservou-se a separação sistemática entre o regime de reprodução do que se disse fora do processo e o que se disse em declarações nas fases anteriores do processo, o que não impede que, por via interpretativa, se entenda que, nalguns casos a previsão relativa a uma categoria se deva estender à outra, mas tal exige uma análise ponderada da teleologia das normas. No regime geral do depoimento indireto apenas se prevê uma proibição de valoração, enquanto nas declarações processuais sobressai uma proibição de produção de prova conexa com o regime de formação da prova testemunhal em sentido amplo. – cfr Dá Mesquita, ob. citada pp. 538 e 543..
[10] Cfr d José Damião da Cunha, O Regime Processual de Leitura de Declarações in RPCC 7(1997), p. 438 que se pronuncia no sentido da inadmissibilidade (e irrelevância probatória) do testemunho de ouvir dizer a arguido , assistente e parte civil, enquanto sujeito processual , nos seguintes termos: “ … também não parece aceitável testemunhas do que ouviu dizer a um sujeito processual, pois, quanto a este, decisivas são as declarações prestadas na audiência de julgamento – aspecto que, como vimos, deveria ser pacífico estando em causa o arguido…”.
[11] Pinto de Albuquerque entende igualmente, de forma categórica, não valer como prova o depoimento indireto de uma testemunhas sobre o que ouviu dizer ao arguido, ao assistente ou às partes civis, porque as “pessoas” a que a ressalva do nº1 do art. 129º se refere são apenas as testemunhas. E tratando-se o art. 129º de uma norma esxcecional ela não pode, em prejuízo do princípio constitucional da imediação, ser aplicada analogicamente ao depoimento de uma testemunha sobre o que ouviu dizer ao arguido, ao assistente e às partes civis.
[12] Carlos Adérito, est. cit. , pp. 158 e sgs.
[13] Cfr Paulo Dá Mesquita, ob. cit. p. 586.
[14] Independentemente da variedade de questões que suscitam os respetivos enquadramentos normativos, os Acórdãos do TC 213/94 e 440/99 pronunciaram-se sobre casos em que se discutia o que testemunhas ouviram dizer a arguido ou co arguido, sem que se pusesse aí em causa a aplicabilidade do regime do art. 129º nº1, parte final, ao depoimento de ouvir dizer a arguido, sempre que nos acórdãos se entendeu verificar-se impossibilidade de este ser ouvido em audiência.
[15] Cfr Carlos Adérito Teixeira, est. citado p. 132, inter alia, e Dá Mesquita, obra citada pp, 520 e 527.
Também os acórdãos do Tribunal Constitucional supracitados chamavam a atenção, a partir dos antecedentes históricos do art. 129º, para o afastamento de um modelo de proibição absoluta do depoimento de ouvir dizer em termos que, à parte questões terminológicas, permitem concluir em termos idênticos aos que encontramos nos autores ora citados.
[16] Vd, sobretudo, Parecer de Costa Andrade publicado na CJ A.VI – 1981, T. 1/p. 5-11.
[17] Vd sobre estas questões, Carlos Adérito, est. citado pp 139-42, 149, 157 e Dá Mesquita, ob. citada pp548 a 552.
[18] Assim Damião da Cunha, estudo citado p. 438.
[19] Vd a este propósito a argumentação expendida de pp 165 a 170 do estudo citado de Carlos Adérito Teixeira, para a qual se remete.
[20] Apesar de o tribunal constitucional não se pronunciar sobre a legalidade da interpretação das normas feitas pelos tribunais ordinários, no Ac TC 440/99 julgou-se que, “A norma do artigo 129º nº1 (conjugada com a do artigo 128º nº1), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indiretos de testemunhas que relatem conversas tidas com um co arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva o direito de defesa do arguido” – Cfr BMJ 489/5
[21] Embora conclua pela admissibilidade da valoração do depoimento de ouvir dizer a arguido, Dá Mesquita exclui a possibilidade de se aplicar o regime do depoimento indireto aos casos em que o arguido constitui a fonte de ouvir dizer [como vimos] já que não se admite que o tribunal chame a depor o arguido único titular do poder de decisão sobre essa matéria, afigurando-se abusiva qualquer sugestão ou interpelação judicial”. – ob. citada p. 586. Já anteriormente, Carlos Adérito Teixeira entendia não ser aplicável o disposto no art. 129º ao depoimento de ouvir dizer a arguido com os argumentos que expõe de páginas 160 a 163 do texto citado, destacando nós o trecho infra transcrito por considerarmos que as hipóteses aó colocadas não resultam inevitavelmente da aplicação do art. 129º ao que se ouviu dizer ao arguido, Diz o autor na p. 161:
-“ Com efeito, começa por não fazer sentido “chamar” a depor quem já ali se encontra ou sempre esteve; do mesmo modo que, estando presente o arguido (mas remetido ao silêncio) ou estando ausente, será um contrassenso “chamá-lo” para se pronunciar sobre o depoimento indirecto, quando tal não sucede relativamente à prova directa mesmo que julgado na ausência (vg art. 334º do CPP)”.
[22] Referindo-se a hipóteses em que a credibilidade do depoimento indireto pode escapar à via procedimental do art. 129º, diz Carlos Adérito Teixeira : “ Como corolários da posição expressa, faz-se deslocar, por esta via, o epicentro da relevância probatória do depoimento indireto para o plano da ponderação relativa do seu valor, segundo uma análise crítica daquele depoimento no contexto das demais provas e indícios , o qual trará, não raro, compreensão e sentido a estes, além de preencher hiatos dos enunciados de facto em presença” – cfr est. citado p. 146.
[23] Qualquer destas considerações - i.e. condicionamento do depoente de ouvir dizer perante a exigência legal de confrontação – sempre justificam, quer-nos parecer, que se exija a confrontação do arguido com o depoimento (indireto) de quem que lhe atribui determinadas declarações apesar de não ser exigível que lhe seja dada a oportunidade efetiva de se pronunciar sobre outras provas.