Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
98/13.1GBMMN
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: RECUSA A EXAME
FUNDAMENTOS
ORGÃO DE POLÍCIA CRIMINAL
Data do Acordão: 02/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - Sobre os órgãos de polícia criminal, porque praticam actos num processo que se assume como justo e equitativo, recai um especial dever de lealdade e de tornar transparentes todos os actos praticados no processo e que sejam normativamente relevantes.
II - Se a patrulha policial olvidou tornar claro e transparente que o arguido, feito o teste qualitativo para detecção de álcool no sangue, se dispôs a deslocar ao posto para realizar exame quantitativo e, após, foi informado de que não havia esse aparelho disponível e se recusava a ir realizá-lo a outra localidade, é o próprio cerne do crime de desobediência que está em crise.
III - O Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência de Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas supõe o dever de a Administração estadual assegurar os meios de cumprimento da lei com o mínimo de sacrifício do cidadão.
IV - Não é a justificação do arguido - o não querer deslocar-se a outro posto - que sofre de “falta de fundamento legal”, mas sim a sua manutenção em detenção para além do razoável, contrariando os seus direitos constitucional e convencionalmente garantidos, designadamente, a sua liberdade.
Decisão Texto Integral:
Recurso 98/13.1GBMMN

Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:
No Tribunal Judicial da Comarca de Montemor-o-Novo correu termos o processo sumário supra numerado, no qual A [1] foi condenado, por sentença de 24 de Junho de 2013, pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de desobediência, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 348º, n.º 1, alínea a) do Código Penal e 152.º do Código da Estrada, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa à taxa diária de 7,00 € (sete euros), num total de 350,00 € (trezentos e cinquenta euros) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 (três) meses e 15 (quinze) dias, nos termos do art. 69º, nº 1, al. c), do Código Penal.
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Inconformado com esta decisão, recorreu o arguido da sentença proferida, com as seguintes conclusões:

a. Não se conforma o recorrente com a condenação pela prática do crime de desobediência de que vinha acusado, aqui clamando pela sua absolvição, sem a qual não será feita verdadeira Justiça.
b. Desde logo e sempre salvo o devido respeito por melhor opinião, a decisão sob recurso contém dificuldades de compreensão, susceptíveis de redundar em conclusão ilógica e irracional.
c. Entende o recorrente que dos factos dados por provados resulta clara contradição e por isso inconciliabilidade com a decisão final proferida de condenação do arguido, reportando-nos, concretamente, à factualidade dada por provada nos pontos 2 e 8 da decisão da matéria de facto.
d. Diz o primeiro que: Após ter efectuado o teste qualitativo de pesquisa der álcool no sangue, o qual deu resultado positivo, o arguido recusou ser submetido ao teste quantitativo, apesar de advertido de que tal conduta o fazia incorrer na prática de um crime de desobediência”, com realce e sublinhado nossos e o segundo, que o segundo que “O arguido, após ter realizado o teste qualitativo de pesquisa de álcool no sangue assentiu em deslocar-se até ao posto territorial de Montemor-o-Novo, a fim de efectuar teste quantitativo, com realce e sublinhado nossos.
e. Ora O tribunal “a quo” não pode assentar dois factos tão díspares e inconciliáveis entre si como o são dar por provado que o arguido recusou ser submetido ao teste quantitativo, (cfr. ponto 2) e mais à frente fazer consignar que a mesma pessoa assentiu em deslocar-se até ao posto territorial de Montemor-o-Novo, a fim de efectuar teste quantitativo, (cfr. ponto 8).
f. Salvo melhor entendimento, não existe lógica natural, nem o inculca a experiência comum, que se prontifique o arguido a acompanhar os militares da Guarda ao respectivo posto territorial no fito exclusivo de efectuar o teste quantitativo, e, tal se assentando, quando assente já estava que aquele cidadão recusou ser submetido ao mesmo teste. Em bom rigor, o recorrente não se recusou a realizar o teste quantitativo e em boa verdade, deslocou-se ao posto da GNR precisamente para esse desiderato.
g. A sentença, para constituir uma peça coerente, deve conter o elenco dos factos provados, que encerram uma dinâmica precisa, dispersa por vários acontecimentos que não colidam entre si, antes se compatibilizem, obedecendo a uma inescapável lógica, exposta na fundamentação, esta englobante de factos relevantes à decisão da causa, atento o disposto no art.º 374.º n.º 2, do CPP., de forma a permitir alcançar que a decisão não é fruto do arbítrio do julgador, mas de um processo sério assente em razões lógicas e nas regras da experiência, o que sempre salvo o devido respeito por melhor opinião, não ocorre nos presentes, fazendo padecer a decisão sob recurso do vício de contradição entre a fundamentação e a decisão, e, com isso acarretando a correspondente nulidade da decisão - Sem conceder;
h. Questão diversa a submeter à consideração deste Venerando Tribunal tange ao dolo - neste caso, à falta dele - exigível para a condenação na espécie criminal em causa.
i. O dolo neste tipo legal consiste no conhecimento e vontade do arguido recorrente em recusar a ordem legítima de submissão ao teste quantitativo, tendo em vista a fiscalização da condução sob a influência de álcool, com consciência que a sua conduta é ilícita.
j. No caso dos autos, entende e sempre entendeu o arguido que não existiu recusa e muito menos, consciência da ilicitude da conduta assumida - Não se vê, muito sinceramente, de onde o tribunal recorrido retira a intenção e vontade do arguido em desobedecer, em obstaculizar a actividade da autoridade ou mesmo furtar-se à realização dos testes de álcool, quando resulta escorreito: Que o arguido realizou o teste qualitativo, como lhe foi indicado; que, após, se deslocou ao posto territorial da GNR de Montemor-o-Novo, como lhe foi indicado; e, que ali se deslocou, a fim de efectuar o teste quantitativo.
k. O recorrente obedeceu a tudo quanto lhe foi comunicado pelos militares da Guarda, inclusive, à ordem de realizar o teste quantitativo, só não o fez, quanto à deslocação ao posto territorial de Vendas Novas, sendo tão só a isto que não assentiu e aqui, firmemente convicto que não o teria de fazer.
l. Não existiu recusa do recorrente em subtrair-se aos exames de detecção e quantificação da taxa de álcool, antes a uma deslocação a outra localidade, situada a mais de 20 kms de distância, crendo, convictamente, que a tal não estaria obrigado.
m. Diga-se, aliás, que atentas as regras da experiência comum e da normalidade da vida - que são mencionadas na decisão recorrida - o que é expectável pela pessoa comum é que o Estado e as autoridades policiais tenham ao seu dispor os meios e equipamentos necessários para a quantificação da taxa de álcool, não expectando, seguramente, o cidadão comum ver-se confrontado com a necessidade/obrigatoriedade de “viajar” quase 50 kms (Montemor/Vendas Novas e Vendas Novas/Montemor), pela madrugada a dentro, para esse fim.
n. Seja como for, o recorrente defende que não actuou com dolo, pois que a sua recusa não foi ao teste quantitativo mas à deslocação a Vendas Novas, agindo legitimamente convencido de que não cometia nenhum ilícito penal, e, actuando sem consciência da ilicitude do facto.
o. O erro sobre a ilicitude tem lugar quando o agente actuou sem consciência da ilicitude do facto, o que aqui sucedeu e por isso se mostra violado, por erro de aplicação o disposto no artigo 17º, nº 1 do CP - Caso assim não se entenda, o que só por cautela e dever de patrocínio se invoca:
p. O recorrente foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 meses e 15 dias, sendo que a moldura penal abstracta da sanção acessória configurada no art. 69.º, n.º 1, al. a) do CP, tem como limite mínimo e máximo de proibição de condução de veículos com motor três meses e três anos, respectivamente.
q. No caso concreto, e, atendendo a que foi referido pelos militares da GNR que a taxa indiciada no analisador qualitativo indicava uma TAS de 0,80 ou 0,90 g/l, logo, inferior à taxa criminal de 1,20 g/l; que o arguido é um jovem de 24 anos; que está social e familiarmente inserido; que se mostra profissionalmente integrado; que tem o 12º ano de escolaridade e não possui antecedentes criminais;
r. Crê-se como justa e adequada a concreta pena acessória, no mínimo legal estabelecido, que é de 3 meses, violando a sentença recorrida o disposto no art. 71º do CP, por erro de interpretação, e por sendo merecedora do competente reparo.
s. Termos em que nos melhores de direito aplicável e sempre com o mui douto suprimento de V.Exas., se deverá dar provimento ao presente recurso e em consequência, revogada a douta sentença recorrida.
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O Digno magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta, pugnando para que seja negado provimento ao recurso e mantida nos seus precisos termos a decisão recorrida, com as seguintes conclusões:

1º - A decisão recorrida não padece do vício de contradição entre a fundamentação e a decisão.
2º - O Tribunal “a quo” nos pontos 1 a 3 da matéria de fato dada como provada, considerou provados os fatos que integram os elementos objectivo e subjectivo do tipo legal de crime e nos pontos 8 a 10, considerou provados os fatos em que se concretizou a recusa do recorrente em se submeter ao teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue.
3º - Não se vislumbra em que é que dar-se como provado que “Após ter efectuado o teste qualitativo de pesquisa de álcool no sangue, o qual deu resultado positivo, o arguido recusou ser submetido ao teste quantitativo” e que o “O arguido, após ter realizado o teste qualitativo de pesquisa de álcool no sangue assentiu em deslocar-se até ao poste territorial de Montemor-o-Novo, a fim de efectuar teste quantitativo”, é contraditório.
4º - Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque, in CCPP, a contradição entre a fundamentação e a decisão, traduz-se, no que tange aos fatos provados, no considerar-se provado ou não provado um fato objectivo ou subjectivo e como provado ou não provado um fato de sinal contrário, o que não é manifestamente o caso dos autos, pois os referidos fatos, não são de forma alguma incompatíveis entre si.
5º - Pese embora o arguido tenha anuído deslocar-se ao posto da GNR de Montemor-o-Novo para realizar o teste quantitativo, ali chegado e perante o fato do aparelho “Drager” ali não se encontrar por estar a calibrar, informado de que se teria de deslocar ao posto de Vendas Novas para efectuar o teste, aquele recusou-se.
6º - A recusa para se efectivar não tem de se materializar necessariamente em palavras, resultando igualmente do comportamento do agente, caso contrário estava aberta a porta para a fraude à lei.
7º - Acresce que, nos termos do art.º 152º do CE., todo o condutor está obrigado a submeter-se ao teste de pesquisa de álcool no sangue, facto que o recorrente, enquanto automobilista, não podia ignorar, tal como não podia ignorar que a sua conduta de recusa em se deslocar ao posto de Vendas Novas, se traduzia numa recusa efectiva em se submeter ao teste.
8º - Tanto assim é, que, nos termos do art.º 2 do Regulamento anexo à Lei 18/2007 de 17 de Maio, o condutor que sujeito a teste qualitativo cujo resultado indicie a presença de álcool é submetido a novo teste em analisador quantitativo, sendo acompanhado pelos agentes de autoridade, que asseguram o seu transporte, ao local em que possa ser feito o teste (sublinhado nosso).
9º - Vem o recorrente alegar que não actuou com dolo e que estava em erro, donde parece resultar ser seu entendimento que não se devia ter dado como provado que agiu com dolo e consequentemente deveria ser alterada a matéria de fato dada como provada.
10º - Contudo não recorreu da matéria de fato dada como provada, ou pelo menos não o fez nos termos legais.
11º - Compulsadas as conclusões do recorrente resulta manifesto que o mesmo não cumpriu qualquer das exigências legais plasmadas no art.º 412º, n.º 3 e 4 do CPP., e consequentemente, sendo estas que delimitam o recurso, não pode esta questão ser apreciada.
12º - Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque, in CCPP., “As conclusões delimitam o âmbito do recurso e, havendo questões discutidas na motivação, mas não resumidas nas conclusões, elas não integram o objecto do recurso e, por isso, não podem ser conhecidas pelo tribunal de recurso”.
13º - A pena acessória aplicada ao recorrente é adequada às exigências de prevenção e teve em conta os critérios plasmados no art.º 71º do CP.
14º - A TAS que os agentes de autoridade referiram que resultou do teste qualitativo em sede de audiência, não pode ser valorada, porquanto apenas pode ser provada com recurso ao talão do aparelho quantitativo de pesquisa de álcool no sangue.
15º - Todos os factores relevantes à determinação concreta da pena que o recorrente alega foram considerados pelo Tribunal, sucede porém que foi também considerado, e bem, o fato do recorrente não ter reconhecido o desvalor da sua conduta nem mostrar capacidade de auto censura.
16º - Considerando as finalidades das penas, designadamente na vertente da prevenção especial, é óbvio que não reconhecendo o agente o erro da sua conduta, a necessidade de prevenção aumenta, porquanto é natural que estando convencido de que agiu correctamente volte a delinquir.
17º - Razão pela qual a pena acessória aplicada não se cifrou no limite mínimo.
18º - Pelo que, considerando os critérios de determinação da medida concreta da pena plasmados no art.º 71º do CP., mais propriamente a conduta do agente posterior ao facto, bem andou o Tribunal recorrido ao fixar em 3 meses e 15 dias a pena acessória em que o recorrente foi condenado.
Razões pelas quais, nestes termos e nos demais de direito deve o recurso sobre o qual incide a presente resposta ser julgado improcedente, mantendo-se integralmente a sentença recorrida, assim se fazendo JUSTIÇA!
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O Exmº Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso.
Foi cumprido o disposto no artigo 417 n.º 2 do Código de Processo Penal e colhidos os vistos legais.
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B.1 - Fundamentação:
B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
1. No dia 1 de Maio de 2013, pela 1h45m, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula (…), pela Rua Dr. Vicente Augusto Pires da Silva, Montemor-o-Novo, altura em que foi fiscalizado pelas autoridades policiais;
2. Após ter efectuado o teste qualitativo de pesquisa de álcool no sangue, o qual deu resultado positivo, o arguido recusou ser submetido ao teste quantitativo, apesar de advertido de que tal conduta o fazia incorrer na prática de um crime de desobediência;
3. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta é proibida por lei;
4. O arguido aufere quantia mensal de 600,00 €;
5. Vive, em Santarém, em casa dos pais;
6. Tem o 12.º ano completo;
7. O arguido não tem antecedentes criminais.
8. O arguido, após ter realizado o teste qualitativo de pesquisa de álcool no sangue assentiu em deslocar-se até ao posto territorial de Montemor-o-Novo, a fim de efectuar teste quantitativo;
9. O aparelho DRAGER do posto de Montemor-o-Novo encontrava-se, na data referida em 1. a calibrar, não estando disponível no posto;
10. O arguido foi informado que teriam de se deslocar ao posto territorial de Vendas Novas para efectuar o teste, o que o arguido recusou.
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B.1.2 - De relevante para a decisão da causa não se provaram quaisquer outros factos.
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B.1.3 - E adiantou, o tribunal recorrido, os seguintes considerandos como motivação factual:
O Tribunal formou a sua convicção relativamente aos factos considerados provados tendo por base o depoimento claro e escorreito das testemunhas B e C, que atestaram os factos tal como os mesmos se encontram vertidos na acusação e nos moldes que infra se descreverão, depoimentos esses balizados pelas regras da experiência comum e da normalidade da vida.
Refira-se, contudo, que o arguido admitiu a generalidade dos factos constantes da acusação, mormente que depois de efectuado o teste de despiste assentiu em se deslocar ao posto da GNR para efectuar o teste quantitativo mas que, depois, e tendo sido informado que teriam de se deslocar ao posto territorial de Vendas Novas por o aparelho de fiscalização do posto de Montemor-o-Novo se encontrar em Évora a calibrar, se recusou a fazê-lo, por entender que não tinha de se deslocar a outro posto da GNR e que, em Montemor-o-Novo, teria de ser disponibilizado um aparelho para que pudesse efectuar o exame.
Quer isto dizer que, confessando ter recusado deslocar-se ao posto de Vendas Novas e, por isso, ter-se recusado a efectuar o exame, avançou que tal recusa apenas se deveu ao facto de não poder ser obrigado a fazer nova deslocação e, assim, não sendo possível efectuar o exame, por não haver equipamento em Montemor, era impossível a realização do mesmo, sendo desconforme com a lei ter de se deslocar 20 quilómetros para efectuar o aludido teste.
Assim, e para além da matéria de facto que constava da acusação e que o Tribunal deu como provado, o Tribunal deu também como provados os factos 8. a 10. que resultaram das próprias declarações do arguido.
Mais, este admitiu saber que teria de se submeter ao teste de pesquisa de álcool no sangue, como qualquer condutor, apenas justificando a sua conduta com o facto de crer que não teria de se deslocar a qualquer outro posto policial para o fazer. Ora, esta justificação do arguido, para além da falta de fundamento legal, não mereceu credibilidade, atentas as regras da experiência comum e da normalidade da vida, sendo desrazoável, em nosso entender, admitir-se que o arguido acreditava efectivamente que apenas teria de se deslocar ao posto policial da área onde foi cometido o ilícito e que, depois de tal deslocação e não sendo possível aí efectuar o exame, ficaria desonerado da realização do mesmo. Na verdade, e mesmo quando directamente questionado, o arguido não apresentou qualquer justificação plausível para esse comportamento atestando, até, que não “estava com pressa” e que não tinha nenhum compromisso ou obrigação que o levassem a não querer ir ao posto de Vendas Novas.
Ora, como referimos, as testemunhas B e C atestaram que o arguido, inicialmente, acordou em acompanhá-los até ao posto de Montemor-o-Novo a fim de realizar o teste quantitativo mas que quando teve conhecimento que o teste teria de ser realizado em Vendas Novas se recusou a realizar nova deslocação, ainda que devidamente advertido de que tal recusa implicaria a recusa de realização do teste e esta, por sua vez, a prática de um crime de desobediência. Ainda assim, consciente de que tal recusa o faria incorrer na prática de um crime, o arguido persistiu na sua intenção de não se deslocar a Vendas Novas, insistindo que não tinha de o fazer um vez que já se tinha deslocado até ao posto de Montemor mas, também, sem apresentar qualquer justificação plausível para o efeito que não fosse apenas a de recusa em se deslocar a outro posto.
Atente-se que pelas testemunhas foi confirmado que o aparelho DRAGER do posto de Montemor-o-Novo se encontrava a calibrar, o que apenas souberam quando já se encontravam em deslocação para o posto e que, por isso, iriam deslocar-se com o arguido até Vendas Novas, que era o posto territorialmente mais próximo e onde existia um aparelho DRAGER devidamente calibrado. A testemunha C atestou ainda que entre Montemor-o-Novo e Vendas Novas distam 22 quilómetros, percurso que, atendendo à hora, se faria em viatura policial em não mais de 10 minutos e que não foi sugerida ao arguido a realização de exame ao sangue por o mesmo não se queixar de qualquer problema de saúde que o impedisse de efectuar o teste de sopro.
Por sua vez, a testemunha D, que acompanhava o arguido, confirmou as declarações deste, atestando que o mesmo apenas se recusou a efectuar o exame quantitativo depois de ter sido informado que, para o fazer, teria de se deslocar ao posto territorial de Vendas Novas e, ainda, que o arguido não tem qualquer problema de saúde que o impedisse de efectuar o teste de pesquisa de álcool através do ar expirado.
Tudo ponderado o Tribunal deu como provados os factos 1 a 10.
A situação pessoal e económica do arguido resultou das suas próprias declarações.
A ausência de antecedentes criminais resulta do CRC que está junto aos autos a fls. 18”.
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Cumpre decidir.
B.2 - A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412º do Código de Processo Penal), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.
Em função das conclusões do recurso são questões a abordar na presente decisão a contradição entre os factos 2 e 8, a existência de dolo e de consciência da ilicitude e a medida da pena acessória.
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B.3 – Alega o recorrente que ocorre contradição entre os factos provados 2 e 8, o que consubstancia um vício da decisão recorrida, que não qualifica mas faz apelo ao artigo 374º, n. 2 do Código de Processo Penal.
E o arguido tem alguma razão. Da simples leitura da decisão recorrida resulta evidente que existe uma contradição entre os factos 2 e 8 dos dados como provados. O que consubstancia vício, em princípio, constante do artigo 410º, n. 2, al. b) do Código de Processo Penal.
E dizemos em princípio pois que o tribunal recorrido fundamenta o ter dado como provados os dois factos em termos que exigem uma mais cuidada apreciação que a simples afirmação da existência de uma contradição que, após essa análise, surge como apenas aparente.
De facto, aquilo que o tribunal recorrido afirma – e, bem, em sede de fundamentação de facto - é que “ … o arguido admitiu a generalidade dos factos constantes da acusação, mormente que depois de efectuado o teste de despiste assentiu em se deslocar ao posto da GNR para efectuar o teste quantitativo mas que, depois, e tendo sido informado que teriam de se deslocar ao posto territorial de Vendas Novas por o aparelho de fiscalização do posto de Montemor-o-Novo se encontrar em Évora a calibrar, se recusou a fazê-lo, por entender que não tinha de se deslocar a outro posto da GNR e que, em Montemor-o-Novo, teria de ser disponibilizado um aparelho para que pudesse efectuar o exame”.
Mas, já de forma discutível, centra na mesma análise de facto a apreciação da conduta do arguido quando se recusa a deslocar ao posto da GNR de Vendas Novas, imputando-lhe um dever de deslocação, que corresponderá se não cumprido, à prática do crime de desobediência.
Assim, deve concluir-se que os factos apurados pelo tribunal recorrido – bem apurados – não devem ter, no entanto, a redacção que vieram a ter.
Aquilo que se conclui é que o arguido aceitou realizar o exame quantitativo no posto da GNR de Montemor-o-Novo, mas se recusou a deslocar-se a Vendas Novas para a realização desse mesmo exame quando lhe disseram que não existia aparelho adequando naquele primeiro posto (o que apenas souberam quando já se encontravam em deslocação para o posto de Montemor-o-Novo).
Ou seja, a contradição, que existe, entre os factos provados 2 e 8 pode ser corrigida por este tribunal da Relação por ser evidente a razão da sua existência e constarem da decisão recorrida os elementos suficientes para a sua correcção.
Na prática trata-se de simples adequação da redacção dos dois factos, o que afecta a simples ordenação de outros, pelo que a matéria de facto passará a ser a seguinte:

No dia 1 de Maio de 2013, pela 1h45m, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula (…) pela Rua Dr. Vicente Augusto Pires da Silva, Montemor-o-Novo, altura em que foi fiscalizado pelas autoridades policiais;
Após ter efectuado o teste qualitativo de pesquisa de álcool no sangue, o qual deu resultado positivo, o arguido assentiu em deslocar-se até ao posto territorial de Montemor-o-Novo, a fim de efectuar teste quantitativo;
O aparelho DRAGER do posto de Montemor-o-Novo encontrava-se, na data referida em 1. a calibrar, não estando disponível no posto;
O arguido foi informado que se iriam deslocar ao posto territorial de Vendas Novas para efectuar o teste, o que o arguido recusou.
O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente.
O arguido aufere a quantia mensal de 600,00 €;
Vive, em Santarém, em casa dos pais;
Tem o 12.º ano completo;
O arguido não tem antecedentes criminais.

Naturalmente que se nota a não inclusão nos factos provados de matéria factual que de lá constava e se adiantou já a posição deste tribunal quanto aos deveres que recaem sobre o arguido: sujeitar-se ao exame qualitativo e, se for caso disso, ao exame quantitativo.
Mas não é só o arguido a ter deveres.
Os primeiros a terem deveres são as entidades que dirigem e executam os actos processuais, a começar pelas forças de segurança interna que, no nosso ordenamento processual penal, assumem a designação de “órgãos de polícia criminal” – al. c) do artigo 1º do Código de Processo Penal.
E porque praticam actos num processo que se assume como justo e equitativo, sobre elas – sobre os “órgãos de polícia criminal” - recai um especial dever de lealdade e de tornar transparentes todos os actos praticados no processo e que sejam normativamente relevantes.
Já o afirmámos em acórdão por nós relatado (de 16/04/2013 no proc. 345/99.0GTSTR.E1): «O “fair trial”, o processo justo, não é só um processo justo para com o acusado, sua origem histórica, é também um processo que deve ser justo para todos e entre todos os intervenientes e, de importância fundamental, um processo justo e que se mostra justo numa sociedade democrática, num “Estado de Direito”». [2]
E esta obrigação de lealdade e de transparência de factos ocorridos e praticados por causa e no processo onera, sobremaneira, os “órgãos de polícia criminal”, sob pena de se inviabilizar o dito processo justo, a realização da justiça e a própria credibilidade daquelas entidades.
E aquilo que se passou no processo é que a patrulha da GNR olvidou tornar claro e transparente que o arguido se dispôs a deslocar ao posto de Montemor-o-Novo – aliás, para lá se deslocava quando foi informado de que não havia aparelho quantitativo para a realização do exame – o que só veio a ser conhecido em audiência de julgamento e por declarações do arguido (confirmadas pelas testemunhas).
Ou seja, é o próprio cerne do crime de desobediência que está em causa, a verificação ou não dos elementos objectivos e subjectivo do crime que estão em causa.
Tal como constam os factos do auto de notícia de fls. 4 e 5 - que é omisso quanto àqueles factos, a disposição do arguido de realizar em Montemor-o-Novo o exame quantitativo – existe um crime. Se os factos que realmente ocorreram tivessem sido incluídos naquele auto seria manifesta a dúvida séria sobre a existência de tal crime.
Aquilo que resultou provado é que a GNR não dispunha de aparelho para realização de exame quantitativo. E devia dispor.
Se o existente estava para calibração, outro se impunha ali colocar para suprir a falha. Se não, que outro viesse, se necessário, de outro posto.
Sobre o cidadão é que não recai o dever de andar a calcorrear os postos ou esquadras à procura de aparelhos disponíveis e/ou calibrados.
Se o Estado, através dos poderes legislativo e executivo, este na veste de legislador, estabelece normas de limitação de direitos de cidadania por interesse público, o que se pede ao executivo enquanto administração – na qual se incluem os “órgãos de polícia criminal” - é que seja diligente e previdente.
Aqui, ser diligente e previdente é dispor no posto policial da ocorrência do facto de aparelhos de metrologia alcoólica. Ou dispor de reservas.
Assim o que a letra do n. 2 do artigo 2º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência de Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n. 18/2007, de 17-05, impõe não é um dever de um cidadão se deslocar para além da localidade onde um provável ilícito foi praticado.
Antes impõe um dever de a Administração estadual assegurar os meios de cumprimento da sua própria Lei com o mínimo de sacrifício do cidadão.
E, note-se, não estamos a apreciar um acto proveniente da vontade expressa pelo arguido de se submeter, por exemplo, a exame sanguíneo em vez de a um analisador quantitativo, [3] nem ao pedido de contraprova, que sempre poderia impor análise diversa quanto ao dever de deslocação.
Estamos apenas a apreciar a conduta de um cidadão que se sujeitou a analisador qualitativo, se dispôs a ser sujeito a analisador quantitativo, que para o posto se deslocava com esse intuito e que apenas se recusou a ser conduzido para outro lugar por acto imputável à força policial que não dispunha no local do aparelho necessário ao exame.
Um Estado intrometido por hábito e tradição na vida do cidadão deve assumir as consequências das suas intromissões, não sujeitar o cidadão ao ónus das suas incapacidades ou imprevidências. Nem sujeitar o cidadão ao ónus – por isso invertido – de justificar porque razão não quer ser sujeito a um transporte para local diverso.
Por isso não é a justificação do arguido (o não querer deslocar-se) que sofre de “falta de fundamento legal”. É a sua manutenção em detenção para além do razoável – a deslocação ao posto policial onde ocorreu o provável ilícito e não a outro qualquer – que para além de não ter fundamento legal contraria os direitos do cidadão constitucionalmente e convencionalmente garantidos, designadamente a sua liberdade.
Não há, pois, qualquer crime de desobediência por inexistência de elemento subjectivo – não há dolo – ou objectivo – não há recusa normativamente relevante, isto é, recusa que se possa fazer inserir no tipo penal.
Por isso que sejam dados como não provados os seguintes factos:
a) Que o arguido se tenha recusado a ser submetido ao teste quantitativo, apesar de advertido de que tal conduta o fazia incorrer na prática de um crime de desobediência;
b) Que a sua conduta é proibida por lei e que o arguido o soubesse;
c) Que o arguido tinha o dever de se deslocar ao posto territorial de Vendas Novas para efectuar o teste.

Daqui decorre a necessidade de absolvição do arguido e a desnecessidade de conhecimento das restantes questões suscitadas.
É, portanto, de revogar a sentença proferida pelo Tribunal recorrido, sendo procedente o recurso.
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C - Dispositivo
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, decidem:
1 - Alterar a matéria de facto provada que passará a ser a seguinte:
No dia 1 de Maio de 2013, pela 1h45m, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula (…), pela Rua Dr. Vicente Augusto Pires da Silva, Montemor-o-Novo, altura em que foi fiscalizado pelas autoridades policiais;
Após ter efectuado o teste qualitativo de pesquisa de álcool no sangue, o qual deu resultado positivo, o arguido assentiu em deslocar-se até ao posto territorial de Montemor-o-Novo, a fim de efectuar teste quantitativo;
O aparelho DRAGER do posto de Montemor-o-Novo encontrava-se, na data referida em 1. a calibrar, não estando disponível no posto;
O arguido foi informado que se iriam deslocar ao posto territorial de Vendas Novas para efectuar o teste, o que o arguido recusou.
O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente.
O arguido aufere a quantia mensal de 600,00 €;
Vive, em Santarém, em casa dos pais;
Tem o 12.º ano completo;
O arguido não tem antecedentes criminais.
2 - Aditar os seguintes factos dados como não provados:
a) Que o arguido se tenha recusado a ser submetido ao teste quantitativo, apesar de advertido de que tal conduta o fazia incorrer na prática de um crime de desobediência;
b) Que a sua conduta é proibida por lei e que o arguido o soubesse;
c) Que o arguido tinha o dever de se deslocar ao posto territorial de Vendas Novas para efectuar o teste.
3 - Absolver o arguido do crime imputado.
Notifique.
Sem tributação.
(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Évora, 18 de Fevereiro de 2014

João Gomes de Sousa
Ana Bacelar Cruz

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[1] - (…)
[2] - Seguindo o reconhecimento pelo Supremo Tribunal de Justiça da lealdade inerente ao “justo processo” em vista da realização da justiça e da obtenção de uma decisão justa - Acórdão de 24 de Setembro de 2003 (Rel. Henriques Gaspar, proc. 03P243, também publicado na CJ, 2003, T.III, 177).
[3] - Por admitirmos – o que sempre será controverso - que a letra do artigo 153º, n. 1 do CE e 1º e 4º do Regulamento de Fiscalização não obvia à quantificação por exame sanguíneo, se essa for a vontade expressa pelo examinando e cumprida que seja a exigência de custos prevista no artigo 154º, n. 4 do CE.