Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2602/24.0T8PTM.E1
Relator: RICARDO MIRANDA PEIXOTO
Descritores: DOMÍNIO PÚBLICO MARÍTIMO
PROPRIEDADE
PROVA
Data do Acordão: 09/18/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário (cfr. art.º 663º, n.º 7, do CPC):

I. O facto de um terreno estar integrado no domínio público marítimo não constitui obstáculo a que possam subsistir direitos de natureza privada mas, atenta a natureza de direitos indisponíveis conferida aos bens do domínio público, impende sobre o particular / interessado o ónus de alegação e prova de que o terreno já se encontrava no domínio privado antes de 1864 / 1868, bem como de que essa condição, no decurso do seu historial de transmissão, se manteve até à data actual e, ainda, que reúne as condições actuais para ser reconhecido seu legítimo titular.


II. Não assiste direito a ser reconhecido proprietário de bem imóvel situado em área de protecção do domínio público marítimo, ao actual titular do registo de aquisição do direito de propriedade que, tendo logrado demonstrar documentalmente que o terreno do prédio foi, pelo menos desde 1920, objecto de domínio privado, não faz prova de que tal domínio existisse em data anterior a 1868 e se tenha mantido até 1920.

Decisão Texto Integral: Apelação 2602/24.0T8PTM.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central Cível de Portimão – Juiz 3


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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo


Relator: Ricardo Miranda Peixoto;


1ª Adjunta: Maria João Sousa e Faro; e


2ª Adjunta: Ana Pessoa.


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I. RELATÓRIO


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A.


Na acção declarativa que sob a forma de processo comum foi proposta contra o Estado Português, AA pediu que se reconheça e declare …judicialmente que a propriedade do prédio urbano referido e identificado em 1. deste petitório [o prédio urbano, sito na Local 1, da união de freguesia de Vila 1, concelho de Cidade 1), descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o número 3456, da freguesia de Vila 1 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 295.º, da União de Freguesias de Vila 1] e que se encontra inserido numa área da margem das águas do mar, já era privada antes de 22/03/1868, e que assim se tem mantido, por via de sucessivas transmissões de direito privado, até ser adquirida pelo autor.


B.


O Ministério Público, em representação do Estado Português, contestou, impugnando o trato sucessivo alegado e concluindo no sentido da improcedência da acção.


C.


Dispensada a identificação do objecto do processo e a enunciação dos temas de prova, bem como a audiência de julgamento considerado carácter documental da prova do processo, as partes alegaram por escrito.


D.


Foi proferida sentença que julgou improcedente a acção e, em consequência, absolveu o Estado Português do pedido.


E.


Inconformado, o Autor interpôs o presente recurso de apelação.


Concluiu as suas alegações nos seguintes termos (transcrição parcial sem sublinhado e negrito da origem):


“(…)


2. Contudo, resulta da matéria de facto dada como provada que o imóvel dos autos se insere em área que esteve na esfera da propriedade privada desde, pelo menos, 1862, tendo sido sucessivamente transmitido entre particulares, com base em títulos legítimos.


3. O prédio em causa encontra-se actualmente inscrito na matriz e descrito no registo predial, gozando da presunção de titularidade privada nos termos do artigo 7.º do Código do Registo Predial.


4. O Recorrente logrou fazer prova documental suficiente do trato sucessivo do prédio, desde 1862, nomeadamente através de diversas escrituras públicas, certidões notariais, registos prediais e elementos históricos constantes nos autos, provando que o mesmo nunca saiu da esfera privada.


5. A sentença a quo dá como facto provado que existia uma planta onde demonstra que havia uma extensa área, toda ela assinalada no mapa como “Terrenos de BB”.


6. Bem como dá como provado que BB, em 1901 comprou os terrenos à Parceria Mercantil, a qual os havia comprado a diversos proprietários, por escrituras de 19 e 25 de Novembro de 1883.


7. Mais dá como provado que nesses proprietários, contam-se os Herdeiros de CC, a qual, por escritura de 1867, havia já, na qualidade de proprietária, hipotecado o imóvel.


8. Sendo que são ainda dados como provados os factos de 17. a 20. da douta sentença recorrida, dos quais, conjugados com as escrituras juntas à P.I., como docs. 13 a 15 e os esclarecimentos referidos entre 25. a 30 do referido articulado, resulta que o prédio do Recorrente foi, pelo menos desde 1862, objecto de transacção entre privados.


9. Da análise da documentação junta, é possível aferir que não só a área onde se insere o imóvel dos autos, mas toda uma área mais extensa, foi desde 1862 objecto de transacção entre privados.


10. Tal como aconteceu com o processo de delimitação do prédio vizinho, que teve a mesma origem, ou seja que provém dos prédios que foram da Parceria Mercantil e posteriormente de BB, e cuja propriedade privada se encontra reconhecida e delimitada, conforme resulta da publicação do Diário da República de 24/04/1979, e do Parecer n.º 4345, de 06/07/1976, publicado no Boletim da Comissão do Domínio Público Marítimo, n.º 90.


11. Do referido Boletim consta que o prédio de DD (vizinho do Recorrente), em 1911, se encontrava inscrito na Matriz, em nome de BB, sob o artigo 3361, ou seja, o mesmo prédio de onde provém o prédio do Recorrente e ao qual se refere a escritura de 25/11/1883, conforme referido no comprovativo de pagamento de Sisa (Contribuição de Registro Por Título Oneroso - última página do Doc. 12 da PI).


12. Acresce que, pela observação da planta topográfica que instruiu o referido processo de delimitação e publicada no referido Diário da República de 1979, é possível identificar o imóvel do A., ora Recorrente, ao lado do prédio do vizinho, até por comparação com a planta junta à P.I. como doc. 20, sendo evidente que a origem de ambos os prédios (o do Recorrente e o já delimitado) provêm do mesmo prédio mãe, cuja propriedade privada remonta a, pelo menos, 1862.


13. O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao exigir uma prova direta, contínua e ininterrupta da imutabilidade absoluta das confrontações ao longo de mais de 150 anos, o que consubstancia a imposição de uma prova impossível e desproporcionada, vedada pelos princípios gerais do direito probatório.


14. Tal exigência viola o disposto no artigo 342.º, n.º 2 e n.º 3 do Código Civil, segundo o qual, tratando-se de facto de prova especialmente difícil, é admissível o recurso a presunções judiciais fundadas em factos seguros, conforme o artigo 351.º do mesmo Código.


15. A sentença recorrida desconsiderou, sem fundamento legal ou fático bastante, o facto de que as confrontações dos prédios naturalmente se alteram ao longo do tempo, mormente em zonas urbanas ou de acesso difícil, como é o caso das arribas alcantiladas da Praia de Vila 1, o que é confirmado pela cartografia e pela documentação histórica junta aos autos.


16. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente o Acórdão de 30.11.2021, já esclareceu que a prova de titularidade privada anterior a 1864/1868 não exige demonstração contínua até ao presente, bastando a comprovação da existência de propriedade privada anterior à presunção legal de dominialidade pública.


17. A interpretação restritiva do Tribunal a quo viola ainda o disposto no artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, que consagra a presunção de domínio público das margens e leitos das águas do mar, mas admite prova em contrário por títulos legítimos, registos ou posse pacífica e continuada.


18. Acresce que a douta sentença recorrida contraria os princípios constitucionais da proporcionalidade, tutela jurisdicional efetiva (art. 20.º CRP) e proteção da propriedade privada (art. 62.º CRP), ao impor ónus probatórios desmedidos, em manifesta ofensa à segurança jurídica.


19. Pelo exposto, impõe-se a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por decisão que reconheça a titularidade privada do prédio identificado em 1. da petição inicial, reconhecendo que a presunção juris tantum de dominialidade pública foi devidamente ilidida. (…)”.


F.


Notificado das alegações, o Recorrido Estado Português contra-alegou, sustentando, em síntese que:


- incumbindo ao Autor fazer a prova da originária aquisição privada do prédio por algum dos modos legítimos de adquirir, de demonstrar que a natureza privada se manteve até à actualidade e de que é o proprietário actual, não logrou, no caso concreto, a prova de que o prédio prédio descrito com o n.º 3456, adveio da desanexação de outro prédio desafectado do domínio público e, consequentemente, da existência de uma ligação entre o prédio que se encontra inscrito a seu favor e os prédios transacionados antes de 1920;


- a delimitação do prédio vizinho não tem o condão de atribuir a propriedade aos seus actuais titulares, já que depende de uma decisão judicial nesse sentido.


- subsistem dúvidas quanto à exacta localização, correspondência e área geográfica das transacções anteriores a 1920 com o prédio do Autor, na medida em que as confrontações deixam de ser coincidentes.


Pugnou pela manutenção da decisão recorrida.


G.


Colheram-se os vistos dos Ex.mos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.


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I.


Questões a decidir


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, sem prejuízo da possibilidade da sua ampliação a requerimento dos Recorridos (art.ºs 635º, n.º 4, 636º e 639º, n.ºs 1 e 2 do CPC).


Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art.º 608º, n.º 2, parte final, ex vi do art.º 663º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).


Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.


Assim, são as seguintes as questões em apreciação no presente recurso:


1. Se assiste fundamento para reconhecer ao Autor o direito de propriedade privada sobre prédio cujos limites físicos se encontram em zona de protecção do domínio público marítimo;


2. Se a decisão recorrida contraria os princípios constitucionais da proporcionalidade, tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º CRP) e protecção da propriedade privada (art. 62.º CRP).


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II. FUNDAMENTAÇÃO


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A. De facto


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Reprodução integral dos factos provados da decisão a matéria de facto como constam da sentença sob recurso (sem negrito da origem):


“(…) Factualidade provada


1. O A. adquiriu o prédio urbano, sito na Local 1, da união de freguesia de Vila 1, concelho de Cidade 1), desenvolvido ao nível de dois pisos, com a área total de 223 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o número 3456, da freguesia de Vila 1 e inscrito na matriz predial Urbana sob o artigo 295.º, da União de Freguesias de Vila 1, e segundo a descrição a confrontar do Norte com EE, do Sul com FF, do Nascente com (Herdeiros de BB) e do Poente com rua por doação do seu falecido pai, GG, conforme escritura de 23/06/2014, outorgada no Cartório Notarial de Cidade 2, a cargo da Notária HH, lavrada de fls. 58 a fls. 59 do livro nº 247-A, tendo registado tal aquisição a seu favor - docs. 1 a 3 (art. 1.º da petição inicial)


2. A Rua, estreita, de um único sentido de trânsito, é contígua à arriba alcantilada - docs. 20 e 21 (art. 2.º da petição inicial)


3. O prédio ocupa em toda a sua dimensão, a margem das águas do mar (no domínio público marítimo), junto à crista de uma arriba alcantilada (art. 8.º da contestação)


4. O artigo 295.º da União de Freguesias de Vila 1, provém do artigo 93.º, da extinta freguesia de Vila 1, o qual, por sua vez, provem do artigo 930.º da extinta freguesia de Cidade 1, sendo que o prédio já se encontrava inscrito em data anterior a 7 de agosto de 1951 - docs. 1 e 16 (art. 33.º da petição inicial)


5. Também a Câmara Municipal de Cidade 1, por certidão datada de 20 de Junho de 2014, certifica que o prédio dos Autos, sito na ... com o número 19 e 19 – A de polícia, encontra-se atualmente descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o nº3456/20021118 – Vila 1 e inscrito na matriz predial sob o atual artigo 295, da União de Freguesias de Vila 1, foi construído antes de 7 de Agosto de 1951, - doc. 17 (art. 34.º da petição inicial)


6. O Prédio do A., atualmente descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1, com o nº 3456 – Vila 1, teve origem na ficha com o mesmo número, e resultou da Ap. 02/181102, de um prédio não descrito - docs. 1 e 4 (art. 3.º da petição inicial)


7. Por escritura datada de 5 de junho de 2003, outorgada no Cartório Notarial de Cidade 1, a cargo da Notária II, lavrada de fls. 100 a fls. 100 v, do livro n.º 317-E, GG, adquiriu o mesmo prédio por doação, de seu pai, JJ - inscrição predial G-2 - Ap. 02 de 13/06/2003, docs. 1 e 5 (art. 5.º da petição inicial)


8. Por escritura datada de 15 de janeiro de 1940, lavrada de fls. 8 v. a fls. 10, do Livro n.º 378, do Cartório Notarial de Cidade 1), a cargo do notário KK, onde se encontra arquivada a liquidação da Sisa - conhecimento nº 6/176, JJ, ainda no estado de solteiro, comprou o prédio urbano, na Praia de Vila 1 (…) consta de casas térreas com cinco divisões, quintal, cisterna e terraço e confronta do norte com a rampa para a Local 1, do sul com LL, do nascente com MM e do poente com NN e a referida rampa, inscrito na matriz predial sob o art. 930.º, a OO e mulher PP, tendo promovido o respetivo registo, a seu favor, conforme resulta da inscrição predial G-1 - Ap.02 de 18/11/2002: não descrito, , docs. 1, 4 e 6 (arts. 6.º e 7.º da petição inicial)


9. OO e mulher PP adquiriram o prédio urbano que se compõe de quatro compartimentos térreos e quintal, situado na Praia de Vila 1, freguesia de Cidade 1, que confronta do nascente com BB, norte com QQ, poente com a rua e sul com RR por compra a SS e mulher TT, conforme resulta da escritura datada de 30 de janeiro de 1920, lavrada de fls. 44 v. a fls. 46, do livro nº 232, do Cartório Notarial de Cidade 1), a cargo do Notário UU. O prédio não estava descrito na Conservatória nem inscrito na matriz, cfr. doc. 7 (arts. 8.º e 9.º da petição inicial)


10. A Praia de Vila 1, era uma aldeia de pescadores e agricultores. As primeiras habitações construídas na Local 1 começaram a ser edificadas nos finais do século XIX e início do século XX: na monografia do Vila 1 “Ainda, e Sempre, o Mar”, da autoria de João Vasco Reis, edição conjunta da Junta de freguesia de Vila 1 e da Câmara Municipal de Cidade 1, 2013, aparece documentada, a fortaleza e a ermida da Local 1, no Ano de 1905, assim como a primeira casa edificada. A referida monografia, ilustra igualmente Vila 1, no início dos Anos Trinta, onde surge a fotografia da rampa da Local 1, já com algumas habitações edificadas - doc. 8 (arts. 14.º a 17.º da petição inicial)


11. Também a Planta do Forte do Vila 1), disponível no site da Biblioteca da Defesa Nacional, em https://bibliotecas.defesa.pt/ipac20/ipac.jsp?session=172C54X3Y5027.5656&profile=bde&source=%7E%21dglb&view=subscriptionsummary&uri=full%3D3100024%7E%21280189%7E%214&ri=1&aspect=subtab260&menu=search&ipp=20&spp=20&staffonly&term=Vila 1&index=.GW&uindex&limitbox_6=LOC01+%3D+BDE demonstra que havia uma extensa áreas, toda ela assinalada no mapa como “Terrenos de BB”, cfr. doc. 9 (art. 17.º da petição inicial)


12. BB, a 29 de julho de 1901, por escritura pública de compra e venda, lavrada de fls. 32v a fls. 34v, do livro n.º 159, do Cartório Notarial deCidade 1), adquiriu por compra à Parceria Mercantil da Armação, denominada Cabo de Vila 1, “uma propriedade denominada Arraial, na Praia de Vila 1, freguesia de Cidade 1, que se compõe de figueiras, terras, armazéns com altos e baixos, umas casas térreas com doze compartimentos, um cercado denominado “Curral” e um poço, dividido este prédio pela estrada e barranco de Vila 1 e mais uma casa, que foi de VV, em ruínas, que confronta do nascente com WW e outros, do Norte com XX e outros, do Poente com estrada que vai para a vigia e do Sul com a Praia de Vila 1, terrenos da fortaleza e outros.” - doc. 10 (art. 18.º da petição inicial)


13. Na escritura identificada no ponto anterior, foi declarado que “Este prédio não está registado na Conservatória desta Comarca e a mesma parceria houve-o por compras feitas a - YY e mulher, a ZZ e mulher …, a AAA e mulher …, a BBB e mulher … , a CCC e mulher, … a DDD ...” (Herdeiros de CC), “a EEE e mulher … e a VV,...”, cfr. doc. 10 (art. 19.º da petição inicial)


14. A PARCERIA MERCANTIL DE ARMAÇÃO DENOMINADA CABO Vila 1, adquiriu, “um quarto de Fazenda no sítio de “Vila 1”,… que confronta do nascente e norte com FFF, do Poente com estrada ou barranco e do Sul com GGG”, por escritura pública de compra e venda, datada de 19 de Novembro de 1883, lavrada de fls. 6 vº a fls. 8, do livro n.º 92, do Cartório Notarial de Cidade 1), a cargo do Notário UU, aos Herdeiros de CC (conforme consta do cabeçalho da referida escritura e da Contribuição de Registo por título oneroso n.º 70, anexo à mesma), designadamente, a HHH e marido ZZ; III e mulher CC; BBB e mulher JJJ; CCC e mulher KKK e DDD, viúvo - doc. 11 (art. 22.º da petição inicial)


15. Por escritura pública de compra e venda datada de 25 de novembro de 1883, lavrada de fls. 20 v a fls. 22, do livro n.º 92, do Cartório Notarial de Cidade 1) a cargo do Tabelião UU, a PARCEIRA MERCANTIL DE ARMAÇÃO DENOMINADA CABO Vila 1, adquiriu ainda a YY e mulher LLL, uma “fazenda, no sítio de Vila 1, freguesia de Cidade 1, que se compõe de figueiras, terras de matos, que confronta do nascente com MMM e NNN, norte com o mesmo NNN e a Parceria, do Poente com o barranco e praia, e do Sul com a estrada que vai para a Local 1, D. OOO e outros.” - doc. 12 (art. 23.º da petição inicial)


16. Nesta escritura declararam ainda YY e mulher LLL, que são senhores e legítimos possuidores, do prédio em causa, “por o terem recebido dos segundos outorgantes”, PPP e mulher QQQ, “pais e sogros, a título de adiantamento de legítima” (art. 24.º da petição inicial)


17. A 20 de novembro de 1867, por escritura de confissão de dívida com hipoteca, lavrada de fls. 7v a fls. 8v, do livro n.º 34, do Cartório Notarial a cargo de RRR, a supra mencionada CC, para garantia de pagamento de um empréstimo, dá de hipoteca uma “Fazenda no sítio do Vila 1, que consta de figueiras, vinha … com uma moradia dentro” que confronta do Nascente com SSS, do norte com TTT, do Poente com a Estrada e com o MAR, do Sul com UUU 13 (art. 25.º da petição inicial)


18. EEE e mulher, VVV (referidos supra), em 5 de dezembro de 1868, por escritura de confissão de divida com hipoteca, lavrada de fls. 26v a fls. 28, do livro n.º 40, do Cartório Notarial a cargo de WWW, hipotecaram um quarto de fazenda, no sítio do Vila 1, “que confronta pelo nascente com estrada, norte com XXX, poente com YYY e ZZZ com a praia do Vila 1 e estrada” - doc. 14 (art. 28.º da petição inicial)


19. Nesta escritura, foi ainda declarado que “Foi anterior possuidor AAAA, de Vila 1, de quem eles devedores houveram por herança.” (art. 29.º da petição inicial)


20. AAAA faleceu no sítio do Vila 1 a 28 de junho de 1862. Era casado com BBBB, deixando seis filhos - doc. 15 (art. 30.º da petição inicial)


21. Inexiste informação atinente à publicação de auto de delimitação do domínio público hídrico ou a processo administrativo.


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B. De direito


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A questão jurídica que, nos termos delimitados pelas conclusões do recurso, se impõe conhecer, respeita ao preenchimento dos pressupostos previstos por lei para reconhecer a aquisição privada de bem imóvel cuja área se situa em zona de protecção do domínio público marítimo.


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Sendo objecto do pedido formulado pelo Autor da presente acção, o reconhecimento do domínio privado de um prédio urbano que ocupa, em toda a sua dimensão, a margem das águas do mar, junto à crista de uma arriba alcantilada, sito na Local 1, concelho de Cidade 1), desenvolvido ao nível de dois pisos, com a área total de 223 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o número 3456, da freguesia de Vila 1 e inscrito na matriz predial Urbana sob o artigo 295.º, da União de Freguesias de Vila 1, integrado na área de domínio público marítimo do Estado, conforme disposto nos artigos 3.º, al.ª e), 4º e art.º 11.º, n.ºs 1, 2 e 6 da Lei 54/2005 de 15 de Novembro que estabelece a “Titularidade dos Recursos Hídricos”, impende sobre o Autor o ónus de ilidir a presunção “juris tantum” de dominialidade pública estabelecida na parte final da alínea a) do n.º 1 do artigo 12º do mesmo diploma legal.


É entendimento consolidado na jurisprudência dos nossos tribunais superiores que o facto de um terreno estar integrado no domínio público marítimo não constitui obstáculo a que possam subsistir direitos de natureza privada, mas a averiguação e prova da existência desses direitos deve ser feita de acordo com o regime legal e exigências estabelecidas no art.º 15.º do diploma referido que faz impender sobre o particular / interessado o ónus de alegação e prova de que o terreno já se encontrava no domínio privado antes de 1864, bem como do seu historial de transmissão, sendo irrelevante a prova apenas da posse mais recente, atenta a natureza de direitos indisponíveis conferida aos bens do domínio público que obsta a que os mesmos possam ser adquiridos por usucapião.


Neste sentido, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 23.03.2017, relatado pela Juíza Desembargadora Inês Moura no processo n.º 2634/11.9TBVCD.P1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.10.2021, relatado pela Juíza Desembargadora Maria José Mouro no processo n.º 325/18.9T8MFR.L1-2 e do Supremo Tribunal de Justiça de 14.07.2021, 16.02.2023 e 29.10.2024, relatados, respectivamente, pelos Juízes Conselheiros Nuno Pinto de Oliveira, Fernando Baptista e Anabela Luna de Carvalho nos processos n.ºs 569/10.1TBVRS.E2.S1, 457/18.3T8ABF.E1.S1 e 15899/22.1T8PRT.S1. 1


De acordo com o n.º 2 do artigo 15º da Lei n.º 54/2005, na redacção actualmente vigente, “[q]uem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de (…) margens das águas do mar (…) deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868.”.


Como resulta da fundamentação do mencionado acórdão do TRL de 17.10.2021, citando José Miguel Júdice e José Manuel Figueiredo, “…o autor vai ter de demonstrar que o terreno cuja propriedade privada reclama já era propriedade privada antes de 22 de Março de 1868 (…), demonstração que se fará mediante prova de que a propriedade privada em causa foi adquirida por título legítimo, antes daquele marco temporal. Bem como que a apreciação relativa ao dito título legítimo terá de ser feita mediante o exame da documentação disponível sobre a parcela de terreno em causa e a «consequente análise de que o título que permitiu a sua aquisição (e eventual posterior transmissão) era válido à luz do direito aplicável à data». Acrescentando que o autor tem de provar não apenas que o imóvel estava na propriedade particular quando se estabeleceram as presunções de dominialidade, como também que nessa condição se manteve até à data actual - «a presunção de dominialidade terá de ser afastada relativamente a toda a “história” do bem» (…). Depois, o autor demonstrará que é legítimo proprietário actual, só assim lhe podendo ser reconhecida a respectiva propriedade privada – para o que bastará que seja o titular inscrito no registo. Sendo que o registo predial e a presunção que ele normalmente encerra poderá não ser determinante para afastar a presunção de dominialidade – mas deverá ser facto bastante para provar a propriedade actual sobre o imóvel.” (sublinhados nossos).


Assim também, Manuel António do Carmo Bargado, in “A Interação Do Direito Administrativo Com O Direito Civil: O Domínio Público Hídrico”, Lisboa: CEJ, Novembro de 2016, ISBN: 978-989-8815-39-2, pág. 116. 2


Também o Supremo Tribunal de Justiça considerou recentemente que “[p]ara a prova da propriedade de bens do domínio hídrico, a que alude o art. 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, tem o Autor, não apenas fazer a prova de que o imóvel estava na propriedade particular quando se estabeleceram as presunções de dominialidade – isto é, tem de demonstrar que o terreno cuja propriedade privada reclama já era propriedade privada antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, tratando–se de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868, demonstração que se fará mediante prova de que a propriedade privada em causa foi adquirida por título legítimo, antes daquele marco temporal – , como também que nessa condição se manteve até à data actual; ou seja, a presunção de dominialidade terá de ser afastada relativamente a toda a “história” do bem, pois não há garantia de que o bem não tenha ingressado, depois das datas referidas nesse diploma, e por qualquer motivo admissível no domínio público.” (cfr. supracitado acórdão de 16.02.2023) (sublinhados nossos).


Na mesma linha, os arestos do Supremo Tribunal de Justiça de acórdão do STJ de 23.03.2021, relatado pela Juíza Conselheira Graça Amaral no processo n.º 618/17.2T8ETR.P1.S1, Tribunal da Relação de Évora de 08.02.2018, relatado por Maria Domingas Alves Simões no processo n.º 1704/15.9T8PTM.E1 3 e supracitado do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.03.2017.


Não foi, por isso, seguido posteriormente, o único aresto que se conhece dos nossos tribunais superiores – o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.11.2021, identificado nas alegações do Autor / Recorrente, relatado pela Juíza Conselheira Maria Clara Sottomayor no processo n.º 2960/14.5TBSXL.L1.S1 - que considerou não ser necessária a prova, pelo demandante, da demonstração contínua da propriedade privada desde 1864/1868 até ao presente, bastando a comprovação da existência de propriedade privada anterior à presunção legal de dominialidade pública. 4


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A tarefa, necessariamente documental, atento o disposto no n.º 2 do artigo 15º em apreço, de averiguação do preenchimento dos pressupostos legais do reconhecimento da titularidade o direito pelo Autor/Recorrente, terá como suporte probatório a documentação junta aos autos, traduzida nas descrições dos bens objecto das sucessivas transmissões que deram origem ao prédio actual.


Entrando na apreciação desses elementos de prova documental, constata-se:


i.


A partir da certidão do registo predial junta com os documentos 1 e 2 da p.i. que o prédio objecto da presente acção se mostra descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o número 3456/20021118, da freguesia de Vila 1, como edifício de 2 pisos, destinado a habitação, com 5 divisões e quintal, com a área total de 223 m2, dos quais 138 m2 de área coberta e 85 m2 de área descoberta, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 93 da freguesia do Vila 1, em consequência da alteração à descrição realizada pela AP 233 de 2014/05/16.


Antes desta alteração, o prédio em apreço constava no registo (cfr. AP 1648 de 2013/09/18) como tendo área total de 105 m2, dos quais 80 m2 de área coberta e 25 m2 de área descoberta e confrontando do Norte e Poente com rua, Sul com CCCC e Nascente com BB.


Encontra-se também junta aos autos como documento 3 da p.i., escritura pública de doação com reserva de usufruto celebrada 23.06.2014, pela qual GG por conta a quota disponível dos seus bens, reservando para si e para a primeira outorgante mulher o usufruto vitalício, simultâneo e sucessivo, declarou doar, e a sua mulher DDDD prestou consentimento, a nua propriedade do prédio urbano mencionado em i. supra, ao seu filho EEEE (aqui Autor/Recorrente) que, estando casado com FFFF, declarou aceitar.


Dos elementos em apreço resulta que o Autor demonstrou a aquisição derivada, por doação com reserva de usufruto realizada pelo seu pai, JJ, do prédio descrito na CRP de Cidade 1 sob o n.º 3456 da freguesia de Vila 1.


Todavia, não se encontra justificação para o aumento de área do imóvel declarado em 16.05.2014, total de 105m2 para 223m2, coberta de 80m2 para 138m2 e descoberta de 25m2 para 85m5. Note-se que a eventual edificação de mais área coberta não explica como é que a área descoberta de 25m2 para a ser de 85m2, o que é mais de três vezes superior e correspondente a mais de três quartas partes da área total anterior (105 m2) do prédio.


ii.


Pela AP 2 de 2003/06/13, foi inscrita no registo predial, a favor de GG, casado com DDDD (pais do Autor/Recorrente), a aquisição do prédio n.º 3456 da CRP de Cidade 1 em apreço, por doação de JJ (avô do Autor/Recorrente), casado com GGGG no regime de separação de bens.


Esta inscrição decorre da escritura pública de doação reproduzida no documento 5 da p.i., outorgada no dia 05.06.2003 no Cartório Notarial de Cidade 1, pela qual JJ declarou doar ao seu filho GG que declarou aceitar, o prédio aí identificado como “…urbano destinado a habitação, sito na Praia de Vila 1 (…)”, descrito na C.R.Predial de Cidade 1, sob o n.º 3.456-fregueisa de Vila 1 “…inscrito na matriz sob o artigo 93 (…)”.


Assim, o prédio n.º 3456 da CRP de Cidade 1, com área total declarada no registo de 105 m2, foi transmitido, a 05.06.2003, pelo avô ao pai do Autor / Recorrente.


iii.


Está também provado e documentado no documento 6 da p.i. que JJ (avô do Autor), ainda no estado de solteiro, comprou, por escritura de 15.01.1940, lavrada de fls. 8 v. a fls. 10, do Livro n.º 378, do Cartório Notarial de Cidade 1, a OO e mulher PP, “…prédio urbano, na Praia de Vila 1 (…) Consta de casas térreas com cinco divisões, quintal, cisterna e terraço e confronta do norte com a rampa para a (…) Local 1, do sul com HHHH, do nascente com MM e do poente com HHHH e a referida rampa (…)”, inscrito na matriz predial sob o art. 930.º “…e ainda não se encontra descrito (…) na Conservatória do registo Predial”.


JJ (avô do Autor), promoveu o registo da aquisição a seu favor, conforme resulta da inscrição predial G-1 - AP.02/18112002.


Está provado (facto provado número 4) que o artigo matricial urbano 930º extinto da freguesia de Cidade 1 é o antecedente numérico correspondente ao artigo 93º extinto da freguesia de Vila 1 que, por sua vez, deu origem ao actual artigo 295º da União das Freguesias deVila 1.


É, por isso, possível concluir que o prédio 3456 da CRP de Cidade 1, registado em 2002 a favor do avô do Autor, corresponde ao artigo 930º objecto de compra que este fez em 1940 a OO e mulher.


iv.


Por seu turno, OO e mulher celebraram com SS, escritura pública a 30.01.1920, reproduzida no documento 7 da p.i., pela qual estes declararam vender-lhes e aqueles aceitaram, “…um prédio urbano que se compõe de quatro compartimentos térreos e quintal, situado na Praia de Vila 1, freguesia de Cidade 1, que confronta do nascente com BB, norte com QQ, poente com a rua e sul com RR…, omisso no Registo Predial.


Embora não contenha identificação do artigo matricial e estivesse omisso no registo, a localização coincidente na Praia de Vila 1, a composição por “quatro compartimentos térreos e quintal” muito semelhante à que encontramos na escritura de 1940 de “casas térreas com cinco divisões e quintal”, e as confrontações coincidentes a Sul com IIII e Poente com “rua”/“rampa” permitem considerar plausível que se trate do mesmo prédio.


v.


Está também provado que BB celebrou, a 29.07.1901, escritura pública de compra e venda, lavrada de fls. 32 v.º a fls. 34 v.º do livro n.º 159, do Cartório Notarial de Cidade 1), reproduzida no documento 10 da p.i., na qual a Parceria Mercantil da Armação, denominada Cabo de Vila 1, declarou vender-lhe, e aquele declarou aceitar, “…uma propriedade denominada Arraial, na Praia de Vila 1, freguesia de Cidade 1, que se compõe de figueiras, terras, armazéns com altos e baixos, umas casas térreas com doze compartimentos, um cercado denominado “Curral” e um poço, dividido este prédio pela estrada e barranco de Vila 1 e mais uma casa, que foi de VV, em ruínas, que confronta do nascente com WW e outros…”, prédio não registado na Conservatória e que a “Parceria” houve por compras feitas a - YY e mulher, a ZZ e mulher …, a AAA e mulher …, a BBB e mulher … , a CCC e mulher, … a DDD ...” (Herdeiros de CC), “a EEE e mulher … e a VV,...”.


Da escritura pública em apreço resulta que, embora situado na Praia de Vila 1, o prédio objecto de compra por JJJJ à “Parceria Mercantil” tem denominação, composição e confrontações diferentes e se mostra dividido por uma estrada e pelo barranco do Vila 1.


Não há, na escritura pública em apreço, elementos que permitam afirmar, com o grau de certeza e de segurança que temos por necessário, que se trate do mesmo prédio objecto da escritura de venda feita por KKKK a LLLL no ano de 1920 (cfr. iv. supra), nem que, à míngua de qualquer referência aduzida na escritura de 1920 sobre a proveniência do prédio então vendido, tivesse resultado de destaque da área do prédio que havia pertencido à Parceria Mercantil e que esta vendera a BB por escritura de 29.07.1901.


Acresce que não há coincidência de sujeitos entre o comprador BB da escritura de compra de 29.07.1901 à Parceria Mercantil e o vendedor SS da escritura de venda de 30.01.1920 a OO e mulher.


Mais: BB surge identificado na escritura pública de 1920 (iv. supra) como proprietário do prédio que confronta pelo lado Nascente com o prédio comprado por LLLL e mulher a KKKK, o que nos indica que os prédios objecto das escrituras de 1901 (v.) e 1920 (iv.) são distintos, embora possam ser confinantes.


Deste modo, para além das dificuldades criadas pela desconformidade dos elementos identificativos dos prédios que se não mostra documentalmente justificada, antes sugerindo que nos encontramos perante prédios diferentes, sempre estaria também por provar a existência de um, ou mais, actos de transmissão entre os respectivos titulares, na medida em que os autos são omissos quanto ao modo como KKKK adquiriu a titularidade do prédio que transmitiu a OO em 30.01.1920.


vi. e vii.


Resultam ainda provadas transmissões precedentes, traduzidas em escrituras públicas de compra pela Parceria Mercantil, reproduzidas nos documentos 11 e 12 da p.i.:


- aos herdeiros de CC, tendo por objecto “…um quarto de fazenda no sítio de “Vila 1” (…) que se compõe de figueiras, mais árvores e terras, que confronta do nascente e norte com FFF, do Poente com estrada ou barranco e do Sul com GGG, foreira em oitenta reis à Camara Municipal…”, celebrada a 19.11.1883;


- a YY e mulher LLL, a título de adiantamento da legítima e autorizados no acto por PPP e mulher QQQ, tendo por objecto “…fazenda no sítio de Vila 1, freguesia de Cidade 1, que se compõe de figueiras, terras de matos, que confronta do nascente com MMM e NNN, norte com o mesmo Catuna e a Parceria, do Poente com o barranco e praia, e do Sul com a estrada que vai para a Local 1, D. OOO e outros”, celebrada a 25.11.1883.


Na descrição feita do prédio identificado na escritura celebrada a 19.11.1883, não há referência de composição ou confrontações iguais às do prédio objecto da presente acção, ou do objecto da escritura de 30.01.1920 (cfr. iv. supra), sendo a alusão a uma “estrada ou barranco”, sem mais, notoriamente insuficiente para afirmar a ocorrência de uma sobreposição, ainda que parcial, dos seus espaços / áreas. Os herdeiros de CC não são mencionados na escritura de 1920 (iv.), surgindo apenas na escritura de 1901 cujo objecto, como vimos, não tem uma relação evidente com a de 1920.


Quanto à “fazenda” objecto da escritura datada de 25.11.1883, o conteúdo não permite estabelecer a coincidência com o prédio de que o Autor se arroga proprietário na presente demanda ou com os que o precederam até 1920, na medida em que, sem conter menção da respectiva área, ficamos sem saber se a confinância com o “barranco” ou “praia” se reporta ao local onde o actual prédio 3456 de situa ou se a outro ponto ou área, do barranco e do acesso à Local 1.


viii. e xi.


Constata-se também que o imóvel - “Fazenda no sítio do Vila 1, que consta de figueiras, vinha, amendoeiras e mais árvores com uma morada dentro, confronta pelo nascente com SSS, norte com TTT, poente estrada e com o mar e do sul com MMMM Francês, foreira a José Alexandre de Portimão em quatro mil oitocentos reis e dois mil reis a D. Ana Francisca” - dado por hipoteca por CC, na qualidade de proprietária, hipoteca por escritura pública de 30.11.1867 (cfr. documento 13 da p.i.), apresenta, com excepção da referência à confrontação com “estrada”, uma descrição em tudo o mais diferente do imóvel objecto da escritura de 19.11.1883 (cfr. vi. supra).


Do mesmo passo, a escritura declaração de dívida com hipoteca, outorgada a 05.12.1868 (documento 14 da p.i.) entre EEE e mulher por um lado e NNNN por outro, apresenta também uma descrição - “que confronta pelo nascente com estrada, norte com XXX, poente com YYY e ZZZ com a praia do Vila 1 e estrada” – distinta dos demais, sendo de salientar que a praia do Vila 1 lhe fica do lado Sul e não Poente, o que deixa também sérias reservas quento a localizar-se no mesmo sítio.


Isto para além de que, mesmo se houvesse correspondência entre as declarações de dívida em apreço (viii. e ix.) e as vendas realizadas à Parceria Mercantil (vi. e vii.) ou por esta a JJJJ (v.), sempre permaneceriam por transpor os obstáculos, salientados na exposição precedente (v. a vii. supra), ao estabelecimento de uma correspondência entre o prédio de que o Autor se arroga dono (i. a iv.) com tais imóveis (v. a vii.).


*


Quanto à alegada prova contida nas plantas junta como documento 20 da p.i. e constante do auto de delimitação publicado em Diário da República de 24.04.1979, III Série, n.º 95, reproduzido nos documentos 1 e 2 juntos com as alegações de recurso, de que o terreno do prédio do Autor se encontrava em 1864/68 incluído no domínio privado, mostra-se necessário recordar que:


- as plantas em questão são do século XX, muito posteriores à transacção de 1920, pelo que não traduzem uma representação contemporânea do alegado uso privado em datas anteriores;


- a publicação em Diário da República de 24.04.1979, reporta-se, de modo evidente e expresso, quer por referência ao nome do proprietário do prédio, quer pela representação gráfica da planta aí contida com indicação das respectivas coordenadas, a prédio distinto daquele que é objecto da presente acção, com o seu histórico próprio aí considerado, não havendo nos presentes autos, pelas razões explicitadas na análise detalhada realizadas aos actos notariais descritos de iv. a vii. supra, fundamento para afirmar que os prédios objecto das escrituras celebradas em 1901 e em 1883 coincidam, sequer em parte, com o prédio objecto da escritura de 1920, nem que este provenha daqueles e, consequentemente, tenha uma origem comum à do prédio abrangido pelo “auto de delimitação” publicado em Diário de República.


*


Pelas razões apresentadas, concluímos que o Autor não logrou na presente acção demonstrar:


- quer que o terreno correspondente ao actual n.º 3456 da freguesia de Vila 1 da C.R.P. de Cidade 1 foi objecto de dominialidade privada durante toda o período histórico decorrido desde 1864 / 1868 até à data da propositura da acção;


- como também que aquele mesmo terreno fosse, nos referidos momentos da entrada em vigor das presunções daquele domínio público do Estado, objecto desse mesmo domínio privado.


Deste modo, fenecem os argumentos para o Autor / Recorrente ver reconhecida a aquisição privada do prédio objecto da presente acção, mesmo de acordo com o posicionamento do aresto do STJ que invoca em seu benefício nas conclusões de recurso e que, como vimos, é caso isolado no panorama da jurisprudência e da doutrina sobre o tema.


*


Da inconstitucionalidade da decisão recorrida


*


Alega o Recorrente que a “interpretação restritiva” feita na decisão recorrida, no sentido de que compete a Autor a prova de que o bem imóvel em questão esteve continuamente no domínio privado desde data anterior a 1868, “…contraria os princípios constitucionais da proporcionalidade, tutela jurisdicional efetiva (art. 20.º CRP) e proteção da propriedade privada (art. 62.º CRP), ao impor ónus probatórios desmedidos, em manifesta ofensa à segurança jurídica.”


Não estando em causa a constitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 15º da Lei n.º 54/2005, mas apenas da respectiva interpretação feita pela sentença recorrida quanto aos pressupostos da elisão da presunção de dominialidade pública, diremos que se mostra irrelevante o conhecimento desta questão invocada pelo Recorrente, já que, como decorre da precedente exposição, não resultou sequer demonstrado que o terreno em apreço fosse do domínio privado nas datas da entrada em vigor das presunções – 1864 e 1868.


Deste modo, ainda que tivesse seguido a interpretação menos “restritiva” propugnada pelo Recorrente – nos termos da qual o n.º 2 do artigo 15º da lei 54/2005 não exigiria ao Autor demonstração contínua da propriedade privada desde 1864/1868 até ao presente, bastando-se com a comprovação da existência de propriedade privada anterior à presunção legal de dominialidade pública, não se alteraria o sentido da decisão, por se não mostrar preenchido um pressuposto que o próprio Recorrente considera, e bem, defluir da supracitada norma legal.


Termos em que, sem necessidade de mais dispêndio argumentativo, se conclui que também o argumento da inconstitucionalidade da interpretação seguida pela 1ª instância não tem o condão de alterar o desfecho que consiste da improcedência da demanda.


*


***


Custas


*


Não havendo norma que preveja isenção, o presente recurso está sujeito a custas (art.º 607º, n.º 6, ex vi do art.º 663º, n.º 2, ambos do CPC).


No critério definido pelos artigos 527º, n.ºs 1 e 2 e 607º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no vencimento ou decaimento na causa ou, não havendo vencimento, no proveito.


No caso vertente, o Recorrente não obteve vencimento pelo que as custas devem ser por si suportadas.


*


***


III. DECISÃO


*


Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em:


1.


Julgar o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.


2.


Condenar o Autor nas custas do recurso.


*


Notifique.


*


***


Évora, d.c.s.


Os Juízes Desembargadores:


Ricardo Miranda Peixoto;


Maria João Sousa e Faro; e


Ana Pessoa.

______________________________________

1. Disponíveis, respectivamente, nas ligações:

https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/96e5ec74e4984425802580fb004c9ff5?OpenDocument

https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/f519251bb4e5cfa08025878d0042a6ed?OpenDocument

https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ce453e833b02ba93802587140056cdac?OpenDocument

https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c107d6faae17b04d802589590055d600?OpenDocument

https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/859c15f45c75f58280258bc50058609f?OpenDocument↩︎

2. Disponível na ligação:

https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=cXUPFoHiBpc%3d&portalid=30>.↩︎

3. Disponíveis, respectivamente, nas ligações:

https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/944970443ca6abcb802586a1005a6603?OpenDocument

https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/07167540334edb0780258239003caa60?OpenDocument↩︎

4. Disponível na ligação:

https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d829efd147e8a9db802587a000603b95?OpenDocument↩︎