Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
929/11.0TBTNV.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
EXTINÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – A gravidade das consequências para o devedor da revogação ou da recusa da exoneração – com a consequente vinculação à satisfação integral de todos os créditos sobre a insolvência – impõe, por aplicação do princípio de proporcionalidade ou razoabilidade, que aquela extinção só possa fundamentar-se numa conduta dolosa ou com culpa grave do devedor que seja causa de um dano para os seus credores, objectivamente imputável àquela conduta, mesmo quando o fundamento jurídico da decisão esteja indexado à violação do dever de colaboração devido.
2 – Face aos rendimentos percebidos, durante o último período de cessão de rendimento um dos insolvente teria de entregar ao fiduciário a quantia de € 388,52 e o outro a verba de € 264,32, sendo que este montante seria canalizado para despesas da fidúcia e não para o património dos credores e assim o princípio da proporcionalidade impede que se considere que estão preenchidos os requisitos constitutivos da recusa da exoneração do passivo restante.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 929/11.0TBTNV.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Comércio de Santarém – J1
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
(…) e (…) requereram o procedimento de exoneração do passivo restante e, ao ser recusada a respectiva exoneração, vieram interpor recurso.
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Em 19/12/2011 foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo, determinando então o Tribunal que, durante os 5 (cinco) anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, os rendimentos disponíveis que os devedores auferissem fossem cedidos ao Exm.º Sr. Dr. (…), sócio da sociedade “(…), S.A.I., Unipessoal, Lda.”.
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Os insolventes foram notificados do despacho em causa.
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Em 03/07/2013 o Sr. Fiduciário remeteu notificação aos insolventes da qual constava «… conforme despacho inicial respeitante ao incidente de exoneração do passivo restante de 19 de Dezembro de 2011, o rendimento disponível do insolvente deverá ser cedido ao Fiduciário nomeado durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo…».
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Em 01/07/2017 iniciou-se o período da cessão de rendimentos, por força do DL n.º 79/2017.
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Em 10/09/2018 foi proferida decisão de encerramento do processo de insolvência subsequente ao rateio final.
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Na mesma data, foi proferido o seguinte despacho «Requerimento entrado em juízo em 10.08.2018: Considerando que ainda não havia sido proferido despacho de encerramento do processo e considerando também o disposto no artigo 6.º, n.º 6, do Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30.06, o período da cessão iniciou, por efeitos legais, em 01.07.2017.
Notifique, sendo o sr. Fiduciário novamente para que, em 10 dias, venha apresentar o relatório anual da fidúcia, a que alude o artigo 240.º, n.º 2, do CIRE».
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Os insolventes não reagiram contra o despacho em causa. *
Em 21/07/2020 foi junta aos autos a informação anual referente aos 1.º, 2.º e 3.º anos da cessão de rendimentos, da qual resulta ter sempre havido incumprimento do dever de colaboração pelos insolventes.
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Na referida informação o Sr. Fiduciário alegou:
a. «No período de Julho de 2017 a Julho de 2018, presumivelmente por ausência de notificação expressa dos deveres – a decisão de início foi ‘ope legis’ os devedores não informaram ou reportaram uma ou as actividades profissionais desenvolvidas.»
b. «Neste período de controlo, entre Julho de 2018 e Junho de 2019, os devedores não têm ambos idade para terem ocupação profissional, sujeita ou não a contrato de trabalho. (…) Os devedores não cumprem nenhuma das regras estabelecidas, nomeadamente a identificação das fontes de rendimento, a disponibilização de todos os recibos e a cedência dos valores.»
c. «Desconhece-se o que aconteceu aos devedores quanto às condições de sobrevivência e de obtenção de rendimentos por parte dos devedores, durante este período de controlo que dista de Julho de 2019 a Junho de 2020.»
d. «2019. Houve ocultação de rendimentos neste período de controlo. Houve falta de reporte das informações sobre rendimentos. Os devedores depois de notificados, como em anexo se mostra, compreenderam que iriam ganhar a sua alforria financeira, para actuarem como prometeram: pagar o passivo conforme as suas possibilidades.»
e. «2019. Os devedores ou a sua advogada nunca comunicaram formalmente com o Fiduciário. Nenhuma comunicação ou cooperação existiu. Comportaram-se passivamente com o processo.»
f. «2020. A ausência de contacto e da prestação de informação indicia ocultação de rendimentos.»
g. «2020. Os devedores não parecem estar dispostos a cooperar com o processo. Silêncio total, mesmo depois de mudarem de advogado e de serem novamente notificados pelo Tribunal».
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Na mesma data, os insolventes foram notificados da informação anual na pessoa da sua Ilustre Mandatária, nada tendo dito nos autos.
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Em 24/02/2022 o Fiduciário foi substituído.
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Em 21/05/2022, o actual Fiduciário informou que «apesar da notificação remetida à mandatária dos Devedores, que não foram remetidos os comprovativos, encontrando-se em falta a informação relativa aos rendimentos de Julho de 2020 até 11 de Abril de 2022, e assim sendo não dispõe da informação necessária para elaborar o relatório previsto no artigo 240.º, nem emitir parecer final nos termos do artigo 244.º».
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Em 19/07/2022, o actual Fiduciário informou que «apesar da notificação remetida à mandatária dos Devedores, bem como a informação tenha sido solicitada telefonicamente, não foram remetidos os comprovativos, continuando em falta a informação relativa aos rendimentos de Julho de 2020 até 11 de abril de 2022, e assim sendo não dispõe da informação necessária para elaborar o relatório previsto no artigo 240.º.
Relativamente ao parecer nos termos e para os efeitos do artigo 244.º, relativamente ao último ano de cessão (em que foi o ora signatário nomeado em substituição), não se pode considerar que tenham os devedores, cumprido, até à data, as obrigações inerentes ao período de cessão».
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Notificados os insolventes em 26/10/2022 «(…) pessoalmente e na pessoa da Il. Mandatária para, querendo, em 10 dias justificarem o incumprimento das obrigações durante o período da cessão de rendimentos que lhes é imputado pelo Sr. Fiduciário», os mesmos nada disseram ao Tribunal.
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Em 28/12/2022, o “ (…) Banco, SA” veio requerer a cessação antecipada da exoneração por violação dos deveres pelos insolventes.
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Notificados pessoalmente, em 08/02/2023, os insolventes para, querendo, em 10 dias responderem (pois a Il. Mandatária não tinha reagido à notificação do requerimento do credor), veio a mesma, extemporaneamente, responder em 09/03/2023, alegando: «(…) com fundamento quer no facto dos insolventes terem sido notificados para o início da cessão de rendimentos no ano de 2013, quer no facto da alteração entretanto ocorrida no ano de 2022, deveria ter sido dado como terminado o mesmo, o que não sucedeu.
(…)
Caso assim não se entenda, e não tendo, durante todos estes anos, quer pelo Senhor Fiduciário, quer pelos credores dos insolventes, sido requerida a recusa da exoneração, não poderá agora ser aceite tal pedido de recusa, porquanto já decorreu integralmente o período de cessão de rendimentos».
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Notificado para o efeito pelo Tribunal, em 29/08/2023, o Fiduciário veio informar os autos que durante o período da cessão de rendimentos os insolventes retiveram, pelo menos, o valor total de € 652,84 (€ 388,52 + € 264,32).
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Na mesma data foram os insolventes notificados deste valor, na pessoa da sua Ilustre Mandatária, nada tendo dito ou junto aos autos.
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A partir de 2014, por lapso dos serviços de secretaria a insolvente (…) deixou de ser notificada pessoalmente de qualquer decisão, por não ter sido actualizada a respectiva morada.
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A insolvente não se conformou com a referida decisão e as suas alegações contenham as seguintes conclusões, aliás extensas e prolixas e que, na sua essencialidade, transportam praticamente toda a matéria alegada para o resumo conclusivo [1] [2] [3] [4] [5]:
«a. Os ora Recorrentes apresentaram-se à insolvência, requerendo em simultâneo que lhes fosse concedido a Exoneração do Passivo Restante, o que fizeram nos termos do disposto no artigo 236.º, n.º 1, do CIRE.
b. Tendo aqueles vindo a serem declarados insolventes, por douta Sentença de 16/06/2011, e transitada em julgado em 02/08/2011.
c. No âmbito da referida Sentença e como decorre da publicação efectuada no portal citius datada de 24/06/2011, para além do mais, foi nomeado Administrador de Insolvência, o Sr. Dr. (…).
d. No decurso do referido ano e mais concertamento em 19/12/2011, foi pelo Mmo. Juiz a quo proferido o respectivo despacho inicial da admissão de exoneração do passivo restante e bem assim, procedido à nomeação de fiduciário, o Sr. Dr. (…). Contudo e com data de 03/07/2013, foram os insolventes, ora recorrentes, notificados mediante envio de missiva registada, e subscrita pelo Sr. Dr. (…), Administrador de Insolvência, dando-lhes conhecimento dos deveres a que alude o disposto no artigo 239.º do C.I.R.E, e não pelo fiduciário (em funções) à data, uma vez que havia sido nomeado aquando da prolação do despacho inicial de exoneração do passivo restante.
e. Alegação bem diferente da que decorre do despacho de recusa do pedido de exoneração do passivo restante, proferido pelo Mmo. Juiz a quo e que deu origem à apresentação do presente recurso. Porquanto é referido no ponto três do mencionado despacho: “Em 3-7-2013 o Sr. Fiduciário remeteu notificação aos insolventes da qual constava (… conforme despacho inicial respeitante ao incidente de exoneração do passivo restante de 19 de Dezembro de 2011, o rendimento disponível do insolvente deverá ser cedido ao Fiduciário nomeado durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo…”. Afirmação esta, que os recorrentes jamais poderão aceitar, uma vez que a referida notificação, foi por estes junta aos autos principais, com data de 01/05/2023, através da Referência 9647352,e na qual facilmente se constata que a referida notificação não foi remetida pelo Sr. Fiduciário nomeado, mas sim pelo Sr. Administrador de Insolvência.
f. Porquanto, só em 08/04/2019 e para grande espanto dos ora Recorrentes, foram os mesmos interpelados através de envio de carta registada, subscrita pelo Sr. Dr. … (também ela junta em 01/05/2023, através da Referência Citius 9647352), na qual era dado conhecimento àqueles do início do período da exoneração do passivo restantes, com efeitos à data de 01/07/2017. E fazendo-o, na qualidade de Fiduciário dos insolventes.
g. Do ano de 2013 (Julho), até ao ano de 2019, concretamente 08/04/2019, nunca os insolventes foram contactados, ou mesmo notificados, pelo Sr. Dr. (…), sendo certo que o mesmo havia sido nomeado fiduciário aos insolventes em 19/12/2011, conforme decorre do despacho do Mmo. Juiz a quo, que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, deduzido pelos insolventes. Durante cerca de 8 anos, nunca os insolventes tiveram qualquer contacto com o referido fiduciário, Sr. Dr. (…), porquanto nunca aquele os tentou contactar por qualquer via, sendo certo que todos os contactos dos insolventes (telefónicos e morada de residência) constarem dos autos.
Deste modo naturalmente que durante todos esses anos, para os ora insolventes o sr. fiduciário que lhes havia sido nomeado era o Sr. Dr. (…) e não aquele que constava do despacho inicial de exoneração do passivo restante.
Aliás, compulsados os autos, verifica-se que durante todos esses anos, não existiu por parte do Sr. Fiduciário, qualquer intervenção enquanto tal, ou que pudesse fazer crer os insolventes que deveriam prestar as informações constantes do artigo 239.º do CIRE, ao Sr. Dr. (…), ou a pessoa diferente.
h. E tanto assim é que decorre dos próprios autos principais a inconsistência de quem efectivamente exercia as funções de fiduciário.
i. Nesse sentido, veja-se inclusive a notificação efectuada pelo Tribunal a quo, com a referência 78915800, de 08/08/2018, remetida ao Sr. Dr. (…), na qualidade de fiduciário, na qual era solicitado o envio do Relatório a que alude o artigo 240.º, n.º 2, do CIRE, e com referência 79068735, e data de 11/09/2018, uma outra notificação, remetida desta feita ao Sr. Dr. (…), de igual teor, ou seja para proceder ao envio do Relatório a que alude o artigo 240.º, n.º 2, do CIRE.
j. É certo que o desconhecimento da lei não pode aproveitar os aqui Recorrentes, contudo, e perante todas as incongruências, que ao longo de todos estes anos ocorreram nestes autos, e para as quais os insolventes não contribuíram, não poderão ser considerados motivos que originem prejuízo para os Insolventes. É ainda de salientar que, apesar dos insolventes terem dado conhecimento aos autos da sua alteração de residência, o certo é que tal apenas surtiu efeito para o Insolvente (…) e não para a Insolvente (…), isto porque, até aos dias de hoje, nunca foi efectuado a alteração de morada da mesma.
k. Na verdade e apesar dos Insolventes se manterem casados e em tempo terem dado conhecimento da sua alteração de residência, através de entrada de requerimento assinado pelos próprios punhos, o certo é que o douto Tribunal teima em proceder às notificações da insolvente (…), para a Av. (…), Apart. 102, bloco A, em (…), e para o Insolvente (…), para a morada (…), n.º 16, 3º esquerdo, no (…), sendo que desde 2014, foi naquele local que foi fixada a casa de morada de família dos insolventes.
l. Pelo que a insolvente (…), pelo menos, desde o ano de 2014, nunca foi notificada de qualquer despacho proferido naqueles autos. Alias, a insolvente (…) nem sequer até aos dias de hoje, foi notificada do despacho de recusa da exoneração do passivo restante, como se verifica nos autos, através da notificação de 16/10/2023, com a referência 94548455, que mais uma vez, não foi enviada para a morada daquela.
m. Decorre do ordenamento jurídico, que a exoneração do passivo, surge como uma necessidade de conferir aos devedores pessoas singulares de boa-fé, em situação de insolvência uma nova oportunidade de começar de novo (fresh start) e a sua plena reintegração na vida económica.
n. De acordo com o artigo 235.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, trata-se de uma exoneração dos créditos sobre a insolvência que não fiquem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento.
Assim, a concessão da exoneração traduz-se, num benefício para o devedor.
o. A exoneração do passivo supõe que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos (aquando da prolação da douta Sentença), designado período da cessão e durante o qual, o devedor assume perante os credores as várias obrigações como decorre do artigo 239.º do CIRE, nomeadamente o de ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores.
p. E é do cumprimento dessas obrigações que depende a exoneração definitiva, a decretar por despacho do juiz no termo do referido período (artigo 237.º, alínea d), do CIRE).
q. Com efeito, no termo desse período é chegado o momento do juiz proferir a decisão final, devendo assim, ser ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência (artigo 244.º, n.º 1, do CIRE), podendo a exoneração ser recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, como decorre do n.º 2 do referido artigo.
r. Compulsado o teor do despacho ora recorrido, e salvo o devido respeito, verifica-se que a rejeição do pedido de exoneração do passivo, efectuado pelo tribunal a quo, baseou-se única e exclusivamente em elementos erróneos e contraditórios.
s. Na verdade, e com o devido respeito, tal decisão, para além de simplista peca por deficientemente fundamentada e viola claramente as disposições legais em vigor.
Senão vejamos; Nos termos do disposto no artigo 235.º do CIRE, “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste”. Como se infere do Ponto 45 do Preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18 de Março, a figura da exoneração do passivo restante visa equilibrar “o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a possibilidade de os devedores singulares se libertarem de algumas das suas dívidas e assim lhes permitir a sua reabilitação económica, denominado de fresh start, concedendo-lhe a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo ou nos 5 anos posteriores ao encerramento deste, o que obstará no futuro que os credores os reclamem de novo por não prescritos.”
t. A possibilidade da exoneração do passivo restante constitui, assim, uma das medidas especiais de protecção do devedor enquanto pessoa singular instituídas pelo CIRE. A possibilidade de exoneração do devedor pelo passivo restante constitui, assim, um desvio importante ao direito aplicável caso não se estivesse num quadro de processo falimentar, na medida em que, não fora a situação de insolvência, o devedor teria de pagar até ao limite do prazo de prescrição o montante objecto da prestação devida. A exoneração a que se reporta o aludido preceito legal e o capítulo no qual se insere traduz-se, por conseguinte, “na libertação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente” (cfr. Luís Carvalho Fernandes / João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. II, Lisboa, 2006, pág. 184). Daí a denominação «passivo restante», sem prejuízo, contudo, das dívidas abrangidas pelo n.º 2 do artigo 245.º do CIRE, as quais se encontram excluídas. Ou seja, “apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que se tenha conseguido satisfazer integralmente a totalidade dos credores, o devedor pessoa singular fica vinculado ao respectivo pagamento durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente. O objectivo é, portanto, que o devedor pessoa singular não fique amarrado a essas obrigações” – cfr. Assunção Cristas, «Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante», in Themis, FDUNL, 205, pág. 167.” Consequentemente, para se ter acesso a tal benefício e ser deferido o pedido, a lei impõe que se verifiquem certos requisitos e procedimentos, os quais se mostram fixados nos artigos 236.º a 238.º do CIRE. Mas, por se tratar de uma medida de excepção e de benesse para o insolvente (pessoa singular), o regime em apreço não pode reduzir-se a um “instrumento oportunística e habilidosamente empregue unicamente com o objectivo de se libertarem os devedores de avultadas dívidas” (como se decidiu no Ac. da Relação de Coimbra de 17 de Dezembro de 2008, proc. n.º 1975/07.4TBFIG.C1, in www.dgsi.pt/jtrc), e só deve ser concedido ao devedor que preencha determinados requisitos, particularmente que tenha tido “um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos devedores associados ao processo de insolvência”, reveladores de que a pessoa em causa se afigura “merecedora de uma nova oportunidade” (assim, Assunção Cristas, in “novo Direito da Insolvência”, Revista da Faculdades de Direito da UNL, 2005, pág. 264; idem, Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Colectânea de Estudos sobre a Insolvência”, 2009, págs. 276 e 277).
u. O incidente da exoneração do passivo comporta várias fases, conforme se afere do estabelecido nos artigos 236.º e 237.º: a fase do pedido (compreendendo o pedido propriamente dito e as respostas dos credores e Administrador da Insolvência); - a fase do despacho liminar (que pode ser de indeferimento, pondo de imediato termo ao incidente, ou de deferimento, sendo que neste deve proclamar também o prescrito na alínea b) do artigo 237.º); - a fase do período da cessão (de cinco anos, durante o qual o rendimento disponível que o devedor venha a auferir é cedido a um fiduciário que o destinará aos fins indicados no artigo 234.º); - e a fase da decisão final (que pode ter lugar antes de terminado o período da cessão, se for de recusar a exoneração, nos casos previstos no artigo 243.º, mas que se for de decretar a exoneração definitiva, por cumprimento das condições fixadas para o período da cessão, só será proferido no final desse período, de acordo com a alínea d) do artigo 237.º e o artigo 244.º).
v. É certo que os insolventes e ora recorrentes, durante o período em causa tem que cumprir diversas obrigações.
w. Contudo e para além destes, também o fiduciário nomeado, tem um conjunto de funções e deveres a cumprir. Nomeadamente, tem o fiduciário as funções de: Receber os valores do rendimento disponível do insolvente durante 3 anos, Afectar os valores recebidos ao pagamento das custas do processo de insolvência e ao pagamento aos credores Receber informação por parte do insolvente sobre os rendimentos, património e outros aspectos, Fiscalizar o cumprimento das obrigações do insolvente.
x. Mas o fiduciário também tem deveres, nomeadamente: dever de apresentar e prestar contas, dever de prestar informação anual (todos os anos), a cada credor e ao Tribunal; dever de manter em separado do seu património pessoal todas as quantias provenientes de rendimentos cedidos pelo devedor, respondendo com todo o seu património pessoal pelos fundos que indevidamente deixar de afectar ao pagamento das custas do processo de insolvência e aos credores, bem como pelos prejuízos causados por essa falta de distribuição. Deveres esses, que salvo melhor entendimento nunca foram cumpridos.
y. Apesar de constar nos autos “supostos” relatórios apresentados pelo Senhor Fiduciário e nos quais transmitia a inexistência de elementos em face do silencio dos insolventes, o certo é que não consta qualquer elemento de prova que suporte as alegações proferidas por aquele. Ademais e sem razão aparente, o senhor fiduciário, ciente das suas obrigações, faz tábua rasa das mesmas, descorando por completo o trabalho a realizar, como aliás decorre dos diversos despachos existentes nos autos e bem assim das coimas que entretanto lhe foram aplicadas (Refº 88736109, 90347662, …).
z. Saliente-se ainda que é do conhecimento dos insolventes, bem como do Tribunal a quo, que pelo menos desde o dia 19/02/2012, foi efectuada a alienação do património dos insolventes, como decorre do documento particular de venda que se encontra junto aos autos. Contudo, e por motivos alheios aos insolventes só em 30/10/2018, ocorreu o encerramento do processo, conforme publicação efectuada via citius. É certo que à data da decretação da sentença de insolvência e de acordo com a alínea b) do artigo 237.º do CIRE, o prazo para efeitos de decisão de concessão ou não de tal pedido, só poderia ocorrer após 5 anos.
aa. Contudo, com a entrada em vigor da Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro e por força do disposto no n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, nos processos de insolvência de pessoas singulares pendentes à data da sua entrada em vigor e nos quais haja sido liminarmente deferido o pedido de exoneração do passivo restante e cujo o período de cessão de rendimento disponível em curso já tenha decorrido três anos, considera-se findo o referido período.
bb. Nos presentes autos e partindo do pressuposto que o encerramento do processo, para efeitos de início da cessão de rendimentos, remonta a 1.7.2017, tendo já decorrido integralmente os 3 anos sem que credores ou fiduciário com poderes de fiscalização de cumprimento dos deveres pelo insolvente, tenham vindo pedir a recusa da exoneração, deveriam os insolventes serem exonerados do passivo restante e, consequentemente declararem-se extintos todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à presente data, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217.º CC. Em momento algum do despacho ora recorrido, são elencados tais factos, na verdade a decisão tomada, apenas teve em consideração supostas alegações provindas do senhor fiduciário, entretanto substituído pelo despacho datado de 25/02/2022 com a referência 89308952.
dd. Ora, o Tribunal a quo, ao utilizar tal instituto, como fundamento para o indeferimento liminar do pedido de exoneração, em suma, levaria a actos inúteis, incorreu em interpretação errada sendo certo que tais circunstâncias são completamente alheias às normas contidas no CIRE.
ee. Atento ao ora exposto, somos do entendimento que deveria ter sido concedido a exoneração do passivo restante aos insolventes, até porque não podem os mesmos serem prejudicados por factos não foram praticados por aqueles.
Nestes termos e nos melhores de Direito, e sempre com o mui douto suprimento de V. Ex.ªs, deverá o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência, ser revogada a decisão ora recorrida, por outra, onde seja concedido a exoneração do passivo restante aos ora recorrentes, com as legais consequências.
Porém, Vossas Excelências farão a costumada Justiça».
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Não houve lugar a resposta.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as conclusões das alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito ao apuramento se deve ser recusada a cessão do passivo restante.
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III – Factos com interesse para a decisão da causa:
Os factos com interesse para a justa decisão da causa constam do relatório inicial quanto à tramitação processual, a que acrescem os seguintes, os quais foram apurados à data da decisão de exoneração do passivo:
1) … e … casaram entre si no dia 21 de Setembro de 1983, sem convenção antenupcial.
2) … exerceu a profissão de Guarda Nacional Republicano, encontrando-se reformado desde 2006 e auferindo, mensalmente, uma pensão no valor de € 750,99 (setecentos e cinquenta euros e noventa e nove cêntimos).
3) … trabalhava como assistente administrativa, mediante contrato de trabalho que atingiu o seu termo em 30 de Junho de 2011, auferindo, então, mensalmente, rendimento equivalente ao salário mínimo nacional.
4) … assumiu a qualidade de sócia-gerente da “(…) – Distribuição de (…), Lda.” e da “(…), Lda.” até 27 de Julho de 2011, data em que renunciou ao cargo.
5) … e … não entregaram, para além do mais, ao “Banco (…), SA”, ao “Banco (…) Português, SA”, “(…), Banco de Crédito ao Consumo, SA”, ao “(…) Properties, Compra e Venda de Imóveis, Lda.”, à “(…) – Companhia Portuguesa de Locação Financeira e Mobiliária, SA”, e à “(…) – Sociedade Financeira de Locação, SA”, as quantias de € 5.108,93, € 763,13, € 14.716,02, € 62.188,90, € 9.283,40 e € 4.790,19, respectivamente, referentes a empréstimos contraídos para aquisição de diversos bens e para pagamento de dívidas contraídas, designadamente, no exercício da actividade comercial da segunda.
6) … e … não têm meios para pagar as mencionadas quantias.
7) … e … não têm meios para suportar os encargos de habitação própria, pelo que residem com um dos seus filhos.
8) … e … não conseguem vir a obter meios para efectuar esses pagamentos.
9) Em análise contabilística, o passivo de (…) e (…) é superior ao seu activo.
10) Os bens de que (…) e (…) dispõem não são suficientes para pagar as quantias devidas às entidades referidas em 5) e aos demais credores.
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IV – Fundamentação:
4.1 – Considerações gerais sobre a exoneração do passivo:
Como se pode ler no Preâmbulo do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, no que respeita aos insolventes singulares, procura-se conjugar de «forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica».
A exoneração do passivo restante constitui uma novidade do nosso ordenamento jurídico, inspirada no direito alemão (Restschuldbefreiung), determinada pela necessidade de conferir aos devedores pessoas singulares uma oportunidade de começar de novo[6]. Este instituto é igualmente tributário da Discharge da lei norte-americana (Bankruptcy Code).
O procedimento de exoneração do passivo restante encontra assento nos artigos 235.º a 248.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, com particular enfoque no regime substantivo do instituto da cessão do rendimento disponível provisionado no artigo 239.º[7] do diploma em análise.
A exoneração do passivo restante traduz-se na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento das condições fixadas no incidente[8] (à data cinco anos). Daí falar-se de passivo restante. Excepciona-se, contudo, as dívidas abrangidas pela estatuição do n.º 2 do artigo 245.º[9] [10].
Estamos confrontados com dois interesses conflituantes, por um lado, a subsistência dos insolventes e, por outro, a finalidade primária do processo de insolvência que consiste no pagamento dos credores, à custa dos bens e dos rendimentos que deveriam ser canalizados para a massa insolvente.
A exoneração do passivo não se traduz numa faculdade do direito insolvencial para o insolvente se libertar, incondicionalmente, da responsabilidade de satisfazer as obrigações que tem para com os seus credores durante o período de cessão e isso implica que seja encontrado um ponto de equilíbrio entre o ressarcimento desses credores e a garantia do mínimo necessário ao sustento digno do devedor e do seu agregado familiar.
Para além das obras genéricas relacionadas com o direito falimentar, sobre a problemática específica da exoneração do passivo restante podem consultar-se as posições de Luís Carvalho Fernandes[11] [12], Catarina Serra[13] [14], Adelaide Menezes Leitão[15] [16], Ana Filipa Conceição[17] [18], Alexandre Soveral Martins[19], Catarina Frade[20], Cláudia Oliveira Martins[21], Francisco de Siqueira Muniz[22], Gonçalo Gama Lobo[23] [24], José Gonçalves Ferreira[25], Mafalda Bravo Correia[26], Maria Assunção Cristas[27], Maria do Rosário Epifânio[28], Paulo Mota Pinto[29] e Pedro Pidwell[30].
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4.2 – Da decisão recorrida:
A decisão recorrida estriba-se na seguinte premissa: «de acordo com as informações juntas aos autos pelos Srs. fiduciários, os Insolventes incumprem com as obrigações impostas pelo artigo 239.º do CIRE desde o início da cessão de rendimentos, prejudicando a satisfação dos créditos sobre a insolvência, mais precisamente quanto ao dever de cessão do rendimento disponível.
(…)
Resultando dos autos que os insolventes prejudicaram, com a violação do dever de cederem o rendimento anual disponível, a satisfação dos créditos sobre a insolvência em, pelo menos, € 652,84, rendimento esse que seria canalizado para o pagamento dos credores uma vez satisfeitas as despesas do artigo 241.º/1, alíneas a) a c), do CIRE, importa recusar a exoneração».
As causas que fundamentam a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante vêm estatuídas nas alíneas do n.º 1 do artigo 243.º[31] do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
A decisão de cessação tem uma especificidade processual nas situações previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do presente artigo e isso implica que, antes de emitir decisão, o juiz oiça «o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência».
A alínea a) refere-se a comportamentos do devedor, ocorridos no período de cessão, que envolvam violação dolosa ou com negligência grave das obrigações que lhe são impostas pelas alíneas do n.º 4 do artigo 239.º, desde que daí resulte prejuízo para a realização dos créditos sobre a insolvência[32].
Em situação que entronca com a presente hipótese jurisdicional já escrevemos noutro acórdão proferido que «o eventual incumprimento da obrigação de entrega dos montantes que ultrapassem o salário mínimo mensal apenas pode ser imputado na esfera jurídica dos insolventes. Na realidade, os insolventes estão vinculados a um dever de informação, mostravam-se representados por mandatário forense – mesmo que esta relação tivesse sido interrompida ou que existissem dificuldades de comunicação com o advogado ou com o fiduciário – que, em caso de dúvida, deveria accionar os meios processuais adequados em ordem a perfectibilizar a ordem judicial prévia.
Não está demonstrado nos autos que existisse qualquer erro ou omissão do fiduciário e a obrigação é de depósito e não de mera comunicação de rendimentos»[33].
Existe a obrigação de entrega imediata ao fiduciário de qualquer quantia recebida que integre rendimentos objecto de cessão, por impulso do insolvente e sem necessidade de intervenção directora do Tribunal ou do administrador judicial nomeado para fase de exoneração do passivo restantes.
Recentrando na questão submetida à apelação, como elemento inovador e solucionando dissídios jurisprudenciais sobre a interpretação da extensão da obrigação de colaboração contidas no regime precedente, o motivo subjacente à recusa da exoneração consiste no não fornecimento «no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações».
Pergunta-se assim se a violação daquela obrigação funciona de forma automática e dispensa os requisitos de culpa e prejuízo exigidos para os demais institutos relacionados com o indeferimento liminar, cessação antecipada ou recusa de exoneração do passivo?
Na situação vertente, é fácil constatar que os recorrentes incumpriram o dever de informação que sobre eles impedia. Porém, a nosso ver, a recusa da exoneração do passivo restante depende dos mesmos fundamentos e subordina-se aos mesmos requisitos previstos no artigo 243.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas pelos quais poderia ter cessado antecipadamente[34] [35].
Quer o indeferimento liminar, quer a cessação antecipada ou a recusa de exoneração exigem que esteja preenchido o elemento subjectivo do tipo, ou seja que o devedor actue com dolo ou culpa grave[36], pois o incumprimento do devedor tem de resultar de uma concreta actuação dolosa ou gravemente negligente do seu comportamento, prejudicando por esse facto os credores.
A relevância do prejuízo deve aferir-se pelo quantum do valor desse rendimento e do não cumprimento daquele prestação, pelo valor global dos débitos do insolvente, pela natureza dos créditos e pela qualidade dos credores insatisfeitos[37].
Na presente situação, para além de problemas associados à falta de diligência do anterior fiduciário que conduziu à respectiva substituição e da omissão de notificações na pessoa da insolvente, não se retira que haja um quadro de negligência grave ou dolo das obrigações dos insolventes e desse facto resultar prejuízo efectivo para a satisfação dos créditos.
Na realidade, face aos rendimentos percebidos, durante o último período de cessão de rendimento um dos insolvente teria de entregar ao fiduciário a quantia de € 388,52 e o outro a verba de € 264,32, sendo que este montante seria canalizado para despesas da fidúcia e não para o património dos credores e assim o princípio da proporcionalidade impede que se considere que estão preenchidos os requisitos constitutivos da recusa da exoneração do passivo restante. E, assim sendo, da decisão não resulta a existência de qualquer prejuízo para os credores.
Efectivamente, a gravidade das consequências para o devedor da revogação ou da recusa da exoneração – com a consequente vinculação à satisfação integral de todos os créditos sobre a insolvência – impõe, por aplicação do princípio de proporcionalidade ou razoabilidade, que aquela extinção só possa fundamentar-se numa conduta dolosa ou com culpa grave do devedor que seja causa de um dano para os seus credores, objectivamente imputável àquela conduta, mesmo quando o fundamento jurídico da decisão esteja indexado à violação do dever de colaboração devido.
O Tribunal Constitucional sufraga o entendimento que «envolvendo a exoneração do passivo restante uma colisão de direitos ou valores constitucionalmente protegidos – de um lado, a protecção constitucional dos créditos, no quadro da proteção geral do património; do outro lado, a protecção da liberdade económica e do direito ao desenvolvimento da personalidade, e, também, o princípio, próprio do Estado Social de Direito, da proteção social dos mais fracos – apenas os interesses do devedor insolvente não culposo foram considerados pelo legislador como devendo prevalecer sobre os dos credores, tanto mais que para a exoneração não é exigida sequer uma satisfação parcial dos créditos destes»[38]. Isto é, terá de ser sempre formulado um juízo de culpabilidade, positivo ou negativo.
Não existem, pois, elementos de facto que viabilizem a formulação de um juízo confirmativo da decisão recorrida, revogando-se assim a mesma.
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V – Sumário: (…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar procedente o recurso interposto, revogando-se a decisão recorrida, com a consequente concessão da exoneração do passivo restante.
Sem tributação.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 25/01/2024
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Isabel Maria Peixoto Imaginário
Maria Domingas Alves Simões


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[1] Artigo 639.º (Ónus de alegar e formular conclusões):
1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
3 - Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.
4 - O recorrido pode responder ao aditamento ou esclarecimento no prazo de cinco dias.
5 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei.
[2] Na visão de Abrantes Geral, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª edição, Almedina, Coimbra 2016, pág. 130, «as conclusões serão complexas quando não cumpram as exigências de sintetização a que se refere o n.º 1 (prolixidade) ou quando, a par das verdadeiras questões que interferem na decisão do caso, surjam outras sem qualquer interesse (inocuidade) ou que constituem mera repetição de argumentos anteriormente apresentados».
[3] No acórdão do Tribunal Constitucional n.º 137/97, de 11/03/1997, processo n.º 28/95, in www.tribunalconstitucional.pt é dito que «A concisão das conclusões, enquanto valor, não pode deixar de ser compreendida como uma forma de estruturação lógica do procedimento na fase de recurso e não como um entrave burocrático à realização da justiça».
[4] O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/06/2013, in www.dgsi.pt assume que «o recorrente deve terminar as suas alegações de recurso com conclusões sintéticas (onde indicará os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida)».
[5] No caso concreto, não se ordena a correcção das conclusões ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 639.º do Código de Processo Civil por que, na hipótese vertente, tal solução apenas implicaria um prolongamento artificial da lide e, infelizmente, no plano prático, a actuação processual subsequente constitui na generalidade dos processos uma mera operação de estética processual que não se adequa aos objectivos do legislador e do julgador.
[6] Maria do Rosário Epifânio, Manual do Direito da Insolvência, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, pág. 320.
[7] Artigo 239.º (Cessão do rendimento disponível), na redacção introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro:
1 - Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes a esta ou ao decurso dos prazos previstos no n.º 4 do artigo 236.º.
2 - O despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado por período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada por fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.
3 - Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
4 - Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
5 - A cessão prevista no n.º 2 prevalece sobre quaisquer acordos que excluam, condicionem ou por qualquer forma limitem a cessão de bens ou rendimentos do devedor.
6 - Sendo interposto recurso do despacho inicial, a realização do rateio final só determina o encerramento do processo depois de transitada em julgado a decisão.
[8] Artigo 235.º (Princípio geral):
Se o devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos do presente capítulo.
[9] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição (actualizada de acordo com o Decreto-Lei n.º 26/2015, de 6 de Fevereiro, e o Código de Processo Civil de 2013), Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 848.
[10] Artigo 245º (Efeitos da exoneração):
1 - A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217.º.
2 - A exoneração não abrange, porém:
a) Os créditos por alimentos;
b) As indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade;
c) Os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações;
d) Os créditos tributários e da segurança social.
[11] Luís Carvalho Fernandes, La exoneración del passivo restante en la insolvência de personas naturales en el Derecho Português, Revista de Derecho Concursal y Paraconcursal, n.º 3-2005.
[12] Luís Carvalho Fernandes, A exoneração do passivo restante na insolvência das pessoas singulares no Direito Português, in Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Colectânea de estudos sobre a insolvência, Quid Juris, Lisboa, 2009, págs. 275 e seguintes.
[13] Catarina Serra, As funções do Direito da Insolvência no âmbito de life time contracts (breve reflexão), in Nuno Manuel Pinto Oliveira e Benedita McCrorie (coordenação), Pessoa, Direito e direitos, Braga, Direitos Humanos – Centro de Investigação Interdisciplinar, Escola de direito da Universidade do Minho, 2016.
[14] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2018, págs. 556 e seguintes.
[15] Adelaide Menezes Leitão, Pré-condições para a exoneração do passivo restante – Anotação ao Ac. do TRP de 29.9.2010, Proc. 995/09”, Cadernos de Direito Provado, 2011, 35, págs. 65 e seguintes.
[16] Adelaide Menezes Leitão, Insolvência de pessoas singulares: a exoneração do passivo restante e o plano de pagamentos: as alterações da Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, in AA. VV. Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, págs. 509 e seguintes.
[17] Ana Filipa Conceição, Disposições específicas da insolvência de pessoas singulares no Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, in I Congresso de Direito da Insolvência.
[18] Ana Filipa Conceição, A jurisprudência portuguesa dos tribunais superiores sobre exoneração do passivo restante – Breves notas sobre a admissão da exoneração e a cessão de rendimentos em particular”, Julgar on line, Junho de 2016.
[19] Alexandre Soveral Martins, A reforma do CIRE e as PMEs”, Estudos de Direito da Insolvência, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 15 e seguintes.
[20] Catarina Frade, O perdão das dívidas na insolvência das famílias, In Ana Cordeiro Santos (coordenação) Famílias endividadas: uma abordagem de economia política e comportamental. Causas e Consequências, Almedina, Coimbra, 2015.
[21] Cláudia Oliveira Martins, O procedimento de exoneração do passivo restante – controvérsias jurisprudenciais e alguns aspectos práticos, Revista de direito da Insolvência, 2016, ano 0, págs. 213 e seguintes.
[22] Francisco de Siqueira Muniz, O sobreendividamento por créditos ao consumo e os pressupostos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante no processo de insolvência, Estudos do Direito do Consumidor, 2017, n.º 12, págs. 337 e seguintes.
[23] Gonçalo Gama Lobo, Da exoneração do passivo restante, in Pedro Costa Azevedo (coordenação), Insolvência, Volume especial, Nova Causa, 2012.
[24] Gonçalo Gama Lobo, Exoneração do passivo restante e causas de indeferimento liminar do despacho inicial, in Catarina Serra (coordenação), I Colóquio do Direito da Insolvência de Santo Tirso, Almedina, Coimbra, 2014, págs. 257 e seguintes.
[25] José Gonçalves Ferreira, A exoneração do passivo restante, Coimbra Editora, Coimbra, 2013.
[26] Mafalda Bravo Correia, Critérios de fixação do rendimento indisponível no âmbito do procedimento de exoneração do passivo restante na jurisprudência e na conjugação com o dever de prestar alimentos, Julgar, 2017, 31, págs. 109 e seguintes.
[27] Maria Assunção Cristas, Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Themis, edição especial, 2005.
[28] Maria do Rosário Epifânio, Manual do Direito da Insolvência, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 2016.
[29] Paulo Mota Pinto, Exoneração do passivo restante: fundamento e constitucionalidade, in Catarina Serra (coordenação), III Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2015, pág. 175 e seguintes.
[30] Pedro Pidwell, Insolvência de pessoas Singulares. O “Fresh Start” – será mesmo começar de novo? O fiduciário. Algumas notas”, revista de Direito da insolvência, 2016, nº=, págs. 195 e seguintes.
[31] Artigo 243.º (Cessação antecipada do procedimento de exoneração), na redacção introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro.
1 - Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
2 - O requerimento apenas pode ser apresentado dentro dos seis meses seguintes à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respetiva prova.
3 - Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.
4 - O juiz, oficiosamente ou a requerimento do devedor ou do fiduciário, declara também encerrado o incidente logo que se mostrem integralmente satisfeitos todos os créditos sobre a insolvência.
[32] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 867.
[33] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05/12/2019, consultável em www.dgsi.pt.
[34] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02/03/2023, disponibilizado em www.dgsi.pt.
[35] Artigo 244.º (Decisão final da exoneração):
1 - Não tendo havido lugar a cessação antecipada, ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor.
2 - A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.
3 - Findo o prazo da prorrogação do período de cessão, se aplicável, o juiz decide sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante nos termos dos números anteriores.
[36] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/04/2023, cuja leitura pode ser realizada em www.dgsi.pt.
[37] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03/06/2014, pesquisável em www.dgsi.pt.
[38] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 733/2021, de 22/09/2021, pesquisável em www.tribunalconstitucional.pt.