Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
101/20.9T8PSR-C.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 07/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Para que se mostre verificada a nulidade da sentença por falta de fundamentação, prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, é necessário que se esteja perante uma situação de ausência de fundamentação de facto e/ou de direito, não bastando, assim, uma mera situação de insuficiência, mediocridade ou erroneidade de tal fundamentação.
II – Se a sentença de verificação e graduação de créditos, apesar de apresentar uma graduação de créditos, não proceder previamente à identificação dos créditos reconhecidos, designadamente através da homologação dos créditos reconhecidos constantes da lista de créditos elaborada pelo administrador da insolvência, conforme expressamente prevê o n.º 3 do artigo 130.º do CIRE, estamos perante uma sentença que padece de total fundamentação de facto.
III – De igual modo, se nessa sentença, apesar de se efetuar uma graduação de créditos, não se apresentar qualquer fundamentação jurídica para tal graduação, estamos também perante uma sentença que padece de total fundamentação de direito.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 101/20.9T8PSR-C.E1
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]
I - Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, Juízo de Competência Genérica de Ponte de Sor – Juiz 2, nos autos de insolvência n.º 101/20.9T8PSR, (…), efetuada a regular tramitação, veio a ser declarado insolvente por sentença, proferida em 10-11-2020, transitada em julgado em 26-11-2020.
Foi apresentada pelo administrador do insolvente (…), nos termos do artigo 129.º do CIRE, a relação dos créditos reconhecidos (distinguindo-se os garantidos, os privilegiados, os comuns e os subordinados) e não reconhecidos.
Notificados os credores da referida relação de créditos, não foi apresentada qualquer reclamação.
Aberta conclusão nos termos do artigo 130.º, n.º 3, do CIRE, foi proferido pelo tribunal a quo a seguinte sentença:
Refª 1751242:
Gradua-se os créditos, constantes do Mapa sob a ora cit. Refª, pela seguinte ordem:
1º - Créditos Garantidos e Privilegiados:
A) Crédito do “Condomínio sito na Rua (…)”, no montante de € 1.212,31;
B) Crédito da “(…), STC, SA”, no montante de € 146.721,60;
C) Crédito Privilegiado do “Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital de Portalegre”, no montante de € 23.969,78;
D) Crédito Privilegiado do Ministério Público (em representação da Fazenda Nacional), no montante de € 458,02;

- Os respetivos pagamentos, na impossibilidade de serem integrais, terão de ser efetuados, no rateio final, na proporção dos respetivos montantes;
*
2º - Créditos Comuns:
A) Crédito da “(…), Limited”, no montante de € 30.242,21;
B) Crédito do “Banco (…), S.A.”, no montante de € 1.092,19;
C) Crédito da “(…), Europe Limited”, no montante de € 17.870,26;
D) Crédito do “Condomínio sito na Rua (…)”, no montante de € 3.636,92;
E) Crédito da “(…), STC, SA”, no montante de € 52.744,00;
F) Crédito da “(…), STC, SA”, no montante de € 33.078,71;
G) Crédito Comum do “Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital de Portalegre”, no montante de € 3.190,35;
H) Crédito Comum do Ministério Público (em representação da Fazenda Nacional), no montante de € 234.757,98;
- Os respetivos pagamentos, na impossibilidade de serem integrais, terão de ser efetuados, no rateio final, na proporção dos respetivos montantes;
*
3º - Crédito Subordinado do “Banco (…), S.A.”, no montante de € 25,92.
*
Sem custas. Registe e Notifique.
Não se conformando com a sentença proferida, veio a credora “(…), STC, S.A.” recorrer, apresentando as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença sobre a verificação e graduação de créditos quanto aos bens apreendidos, uma vez que da mesma resulta uma incorreta graduação dos mesmos.
2. A Sentença proferida e da qual se recorre não identifica as partes, o objecto da causa, nem se pronuncia acerca do saneamento do processo.
3. A referida Sentença não específica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão proferida, conforme preceito legal previsto como causa de nulidade da sentença, nos termos da al. b) do número 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil (C.P.C.).
4. Da sentença proferida nos autos, não se depreende qual o bem sobre o qual a graduação é feita,
5. Sendo que, do inventário elaborado pelo Sr. Administrador de Insolvência, resulta que existem também bens móveis, três veículos automóveis, sem que na sentença se faça referência aos mesmos.
6. A sentença, também não distingue os créditos privilegiados dos garantidos, limitando-se a graduar os créditos de forma rateada, sem indicar especificamente qual o crédito graduado em 1º lugar, qual o montante reconhecido, bem como os restantes créditos.
7. O crédito do Condomínio ficou graduado, ao que parece em primeiro lugar, assumindo a posição A), contudo, tal não poderá ocorrer, uma vez que nos termos do n.º 1 artigo 98º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) resulta que “os créditos não subordinados do credor a requerimento de quem a situação de insolvência tenha sido declarada passam a beneficiar de privilégio creditório geral, graduado em último lugar, sobre todos os bens móveis integrantes da massa insolvente, relativamente a um quarto do seu montante, num máximo correspondente a 500 UC”.
8. Ora, o Condomínio, requerente da insolvência beneficia de privilégio creditório geral, mas apenas quanto aos bens móveis, sendo que da sentença resulta que se trata da graduação quanto ao bem imóvel, o que não se compreende, não fazendo o condomínio do leque de créditos privilegiado ou garantido, pelo que a sua graduação deverá ser revista.
9. O crédito reclamado pelo Ministério Público, refente ao IMI, no valor de 361,12 €, goza de goza de privilégio imobiliário especial, incidindo o mesmo sobre a “Fracção autónoma designada pela letra “L”, destinada a habitação, tipologia T2, sita na Rua (…) e Rua (…), n.º 14, da freguesia de União das Freguesias de Ponte de Sor, Tramaga e Vale de Açor, do concelho de Ponte Sor e do distrito de Portalegre, inscrita na matriz predial sob o artigo (…), e descrita na Conservatória do Registo Predial de Ponte Sor, sob o n.º (…), pelo que o referido crédito deveria ser graduado de forma diferente à constante na Sentença proferida nos autos.
10. Já quanto ao crédito reclamado no montante de 96,90 €, a título de IUC gozando este crédito de privilégio creditório mobiliário especial, deverá ser graduado de forma diferente à constante na sentença, por ser um crédito com natureza diferente, não devendo o mesmo ser integrado no crédito de IMI.
11. Já quanto ao crédito da ora credora, encontra-se garantido por Hipoteca (AP. 6 de 2005/07/20, com um Montante Máximo Assegurado de 146.721,60 €) referente ao imóvel identificado no ponto 7, pelo que se trata de um crédito garantido, que deverá ser devidamente classificado e graduado.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deve ser revogada a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo e, ser proferida nova sentença, devendo os créditos reclamados ser devidamente graduados, atenta a sua natureza e origem.
Assim farão V.as Ex.as a acostumada JUSTIÇA!
Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Após ter sido recebido o recurso neste tribunal nos seus exatos termos e dispensados os vistos por acordo, cumpre apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (artigo 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Assim, no caso em apreço, as questões que importam decidir são:
1) Nulidade da sentença por falta de fundamentação;
2) Errada graduação dos créditos.
III – Matéria de Facto
Os factos relevantes para a decisão são os que já constam do presente relatório.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se (i) s sentença é nula por falta de fundamentação; e (ii) errou na graduação dos créditos.
1 – Nulidade da sentença por falta de fundamentação
Entende a Apelante que a sentença recorrida é nula por falta de fundamentação, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, uma vez que não identifica as partes, o objeto da causa, não se pronúncia sobre o saneamento do processo, não específica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão proferida, nem se depreende qual o bem sobre o qual a graduação é feita e nem distingue os créditos privilegiados dos garantidos.
Apreciemos.
Dispõe o artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, que:
1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
2 - A omissão prevista na alínea a) do número anterior é suprida oficiosamente, ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura.
3 - Quando a assinatura seja aposta por meios eletrónicos, não há lugar à declaração prevista no número anterior.
4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.

Dispõe ainda o artigo 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, que:
4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.

Relativamente à nulidade da sentença por falta de fundamentação, para que se mostre verificado este vício, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, como resulta pacífico na nossa doutrina e jurisprudência, é necessário que se esteja perante uma situação de ausência de fundamentação de facto e/ou de direito, não bastando, assim, uma mera situação de insuficiência, mediocridade ou erroneidade de tal fundamentação.
Cita-se a este propósito o acórdão do STJ, proferido em 02-06-2016, no âmbito do processo n.º 781/11.6TBMTJ.L1.S1[2]:
II - Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade ou erroneidade – integra a previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do NCPC, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento.

De igual modo, se cita a explanação do professor Alberto do Reis[3] sobre esta específica nulidade:
Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.

Ora, no caso em apreço, para além de a presente sentença de verificação e graduação de créditos não identificar as partes, o objeto do litígio, nem se pronunciar acerca do saneamento do processo, também dela não consta qualquer discriminação dos factos que considera provados ou qualquer fundamentação fáctica, bem como inexiste qualquer interpretação e aplicação de normas jurídicas[4], de forma a permitir compreender a graduação de créditos que nela consta, tudo em flagrante violação do disposto nos nºs. 2, 3 e 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil[5].
Aliás, na presente sentença procede-se à graduação dos créditos, sem ter havido qualquer homologação prévia dos créditos reconhecidos constantes da lista de créditos elaborada pelo administrador da insolvência, conforme expressamente prevê o n.º 3 do artigo 130.º do CIRE, pelo que a graduação é efetuada sem que existam efetivamente créditos reconhecidos por sentença homologatória.
Ao se tomar uma decisão de graduação de créditos, sem que haja reconhecimento prévio de quaisquer créditos, estamos perante uma sentença que padece de fundamentação de facto.
De igual modo, decide-se sobre a graduação de créditos sem ser efetuada qualquer fundamentação jurídica, desconhecendo-se a razão da graduação efetuada, onde se misturam créditos garantidos com créditos privilegiados, aparentando ter-se simplesmente seguido um critério alfabético na graduação de créditos apresentada e não um critério jurídico.
Em conclusão, procede integralmente a pretensão da Apelante, sendo a presente sentença nula por falta de fundamentação de facto e de direito, por estarmos perante uma absoluta ausência de fundamentação de facto e de direito e não apenas perante uma fundamentação insuficiência, mediocridade ou erroneidade.
Em face da intensidade do vício de que padece a presente sentença, é inviável qualquer substituição deste tribunal, determinando-se a devolução dos autos à 1.ª instância, a fim de ser proferida nova sentença.
Em face da presente declaração de nulidade da sentença recorrida, fica prejudicada a restante questão constante deste recurso.
Sumário elaborado pela relatora (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(...)
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar totalmente procedente o recurso e, em consequência, determinar a nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação de facto e de direito, sendo remetido o processo à 1.ª instância, a fim de ser proferida nova sentença.
Sem custas.
Notifique.
Évora, 14 de julho de 2021
Emília Ramos Costa (relatora)
Conceição Ferreira (vota em conformidade, nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13-03)
Eduarda Branquinho (vota em conformidade, nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13-03)


__________________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.ª Adjunta: Conceição Ferreira; 2.ª Adjunta: Eduarda Branquinho.
[2] Consultável em www.dgsi.pt.
[3] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, p. 140.
[4] Não se mostra indicada uma única norma jurídica.
[5] Aplicável ao processo de insolvência nos termos do artigo 17.º, n.º 1, do CIRE.