Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
20/11.0TBVVC-A.E1
Relator: MATA RIBEIRO
Descritores: RECUSA A DEPOR
SEGREDO PROFISSIONAL
MÉDICO
Data do Acordão: 04/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - O artº 417.º, n.º 4, do NCPC (artº 519.º, n.º 4, do VCPC) remete o levantamento do sigilo profissional para o disposto no processo penal, que no seu artº 135º regula o regime de quebra estabelecendo o princípio da prevalência do interesse preponderante;
2 - Embora o médico tenha o direito/dever de recusa de prestar depoimento, a norma não deve interpretar-se como dando uma faculdade ou o direito de escolha a este, de se escusar a depor sobre factos abrangidos pelo segredo, cabendo ao tribunal tal apreciação.
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 20/11.0TBVVC-A.E1 (2ª secção cível)


ACORDAM 0S JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

(…), médico, indicado como testemunha no processo n.º 20/11.0TBVVC, em que (…) demanda (…) e Outros, com vista a declarar nulo ou anulado o testamento outorgado em 25/11/2004 por (…), veio por requerimento de 12/06/2013 solicitar que lhe seja reconhecida como legítima a recusa em prestar depoimento nos aludidos autos, caso incida sobre o assunto referente à sanidade mental de (…) (já falecida), pois, segundo presume, os autos terão por objeto a apreciação de situações relacionadas com esta pessoa, que a testemunha, enquanto médico atestou, à data, a sua sanidade mental, facto este que deu origem a inquéritos criminais, num dos quais foi acusado da prática do crime de falsidade de perícia.
Sobre tal requerimento veio a incidir, em sede de audiência de julgamento, despacho do seguinte teor:
“Sendo certo que a testemunha (…) é arguido no âmbito do inquérito supra identificado, a verdade é que, e tal como sublinha a própria testemunha, ainda não foi proferido qualquer despacho final de acusação ou arquivamento. Por outro lado, não resulta quer do requerimento apresentado pela testemunha, quer da própria informação prestada pelo Ministério Público da Instância local de Estremoz (nem sequer o poderia fazer quanto a este último) que a aludida investigação diga respeito aos factos que são objeto da presente ação. Acresce ainda que a circunstância de contra si estar a decorrer um processo crime, no qual já foi constituído arguido, não constitui, nos termos do disposto no art.º 497º do CPC, recusa legítima a depor.
É entendimento deste Tribunal que tal circunstância, quando muito, poderá estar direcionada com a maior ou menor credibilidade do depoimento desta testemunha, o qual será apreciado (obviamente) cm sede própria.
Por todo o exposto, nomeadamente por inadmissibilidade legal e nos termos do disposto no artº 497º do CPC, indefere-se o requerido pela testemunha (…) e uma vez que a parte não prescinde do seu depoimento determina-se a inquirição da mesma.
Notifique.”
Finda a prestação de depoimento testemunhal e em face do teor das declarações produzidas, foi ordenado pelo Julgador a extração de “duas certidões das presentes declarações, remetendo-as uma ao processo …/13.7TAETZ e outra aos Serviços do Ministério Público desta instância local, para os fins que tiverem por convenientes.”
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Inconformado com estas decisões, veio a testemunha interpor o presente recurso e apresentar as respetivas alegações, terminando por formular as seguintes conclusões que se transcrevem:
“1. A prova pode ser reputada por inadmissível, designadamente, porque pode ofender direitos fundamentais, os quais, funcionam como limites à descoberta da verdade.
2. Considera-se que a utilização do depoimento do ora recorrente como meio de prova contra a sua vontade é clara e manifestamente incompatível, nomeadamente, com o princípio da dignidade da pessoa humana.
3. Ou seja, assistiria ao recorrente o direito de recusar legitimamente prestar depoimento e tal posição deveria ter sido aceite pela Meritíssima Juiz "a quo", ao invés do que sucedeu, atento o estabelecido no art.132°, n.º 2, do CPP, aplicável aos presentes autos, por via do disposto no art.º 519°, n.º 4, do CPC, ora art.º 417°, n.º 4, do CPC, tal como reclamado pelo recorrente em requerimento apresentado no dia 12 de Junho de 2013.
Sem conceder
4. Ao indeferir o peticionado pelo recorrente, a Meritíssima Juiz ‘a quo’ violou o disposto no n.º 8 do art.º 32° da CRP.
5. Pelo que, o douto despacho ora objeto do presente recurso enferma de nulidade, nos termos do aludido preceito legal.
Acresce que,
6. Mesmo que se reputasse como admissível o depoimento do recorrente, em momento ou circunstância alguma poderia determinar-se, na sequência daquele, a extração de certidões, no propósito de instruir e/ou instaurar processos-crime.
7. Em virtude do princípio da não auto-incriminação surgir como uma emanação da lista de direitos de defesa contemplados no art.º 32° da CRP, devendo prevalecer sobre o direito do tribunal utilizar elementos fornecidos pelo próprio recorrente, aquando da prestação do seu depoimento.
8. A decisão da Meritíssima Juiz “a quo” violou ainda o estabelecido no n.º 2 do artº 18º da CRP, que consagra o princípio da proporcionalidade, na sua vertente de necessidade, ao deferir a realização de um meio de prova ostensiva e notoriamente lesivo para os direitos fundamentais do recorrente.
9. A Meritíssima Juiz "a quo" ofendeu ainda a integridade moral do recorrente, sendo por isso também tal prova nula.
10. A Meritíssima Juiz "a quo" violou o correto entendimento dos princípios e preceitos legais supra invocados.”
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Apreciando e decidindo

Como se sabe o objeto do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.
Assim, em síntese, do que resulta das conclusões, caberá apreciar da legalidade da prestação de depoimento por parte do recorrente, médico de profissão, enquanto testemunha, bem como do poder do Juiz que presidiu à inquirição de determinar a extração de certidões, para eventual instauração de procedimento criminal.
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O seguinte circunstancialismo factual a ter em consideração é o expresso no relatório, que nos dispensamos de transcrever de novo.
Conhecendo da questão
Insurge-se o recorrente, médico de profissão, contra a decisão que em sede de audiência de julgamento admitiu a sua prestação de depoimento enquanto testemunha, devido ao facto de ser arguido em sede de processo criminal por factos relacionados com a sua intervenção como perito em que atestou a sanidade mental da testadora e também e por via do segredo profissional a que está adstrito, ser considerado inábil para depor.
O sigilo profissional deve ser aferido em função direta da matéria sobre a qual incide o depoimento, tanto mais que desde logo o relato de factos de conhecimento pessoal, alheios à qualidade do depoente e próprios de qualquer pessoa comum, não se podem conter dentro da previsão inibitiva de prestação de depoimento decorrente da verificação do sigilo profissional.
Entre os inábeis para depor como testemunha contam-se os incapazes, os que possam depor como partes e os adstritos ao segredo profissional quanto aos factos por ele abrangidos (artigos 616º, 617º e 618º, nº 4, do VCPC - art.ºs 495º, 496º e 497º n.º 3 do NCPC).
No caso vertente, é a própria testemunha que pretende escusar-se a depor, alegando a existência de processos-crime contra si, relacionados com a sua atuação enquanto médico, e invocando, também, o direito ou dever de sigilo profissional.
O artº 417º n.º 4 do NCPC (artº 519.º, n.º 4 do VCPC) remete o levantamento do sigilo profissional para o disposto no processo penal, que no seu artº 135º regula regime de quebra estabelecendo o princípio da prevalência do interesse preponderante.
Embora o médico tenha o direito/dever de recusa de prestar depoimento a norma não deve interpretar-se como dando uma faculdade ou o direito de escolha a este, de se escusar a depor sobre factos abrangidos pelo segredo, cabendo ao tribunal tal apreciação.
No caso presente temos de reconhecer que o depoimento em causa se mostra relevante para o apurar de factos essenciais para a justa decisão da causa e em face do circunstancialismo que foi invocado para a escusa em depor por parte do requerente (instauração contra si de processos crime) o Tribunal entendeu que tais circunstâncias não eram impeditivas do depoimento atendendo a que não estariam em causa, com o depoimento a revelação de factos abrangidos pelo sigilo que configurassem uma recusa legítima a prestar depoimento, não tendo aplicação o disposto no artº 497º do NCPC.
Este entendimento deve ter-se por correto. Ou seja, não tendo sido invocado expressamente, nem resultando à evidência, que do depoimento a prestar em face do que está em discussão nos autos, envolva a revelação de factos abrangidos pelo sigilo profissional, sendo que o próprio requerente informa que não foi médico que tivesse tido como paciente Maria de Jesus Dias, intervindo, apenas, como perito no ato do testamento, não se vislumbra impedimento legal a que o requerente possa prestar depoimento na qualidade de testemunha, isto sem prejuízo, em face dos aludidos inquéritos crime que contra si impendem, se poder recusar a responder quando verificar que das respostas possa resultar a sua responsabilização penal, devendo alegar tal, no ato da formulação da pergunta, conforme resulta do artº 132º n.º 2 do CPP, sendo certo, que de qualquer modo as suas declarações não constituirão uma confissão para efeitos criminais tal como se reconhece no artº 344º do CPP.
Não podemos, por isso aceitar o entendimento consignado na conclusão 3., uma vez que o artº 132º n.º 2 do CPP[1] diz respeito, apenas, ao reconhecido direito de como testemunha não responder a determinadas perguntas cuja resposta possa ter consequências em termos de responsabilização criminal e não ao genérico direito de prestar depoimento como testemunha.
Também, não se vislumbra, até porque o recorrente não invoca qualquer argumentação atinente, em que é que o indeferimento do peticionado viola o princípio constitucional das garantias do processo criminal, designadamente na previsão do n.º 8 do artº 32º da CRP, que alude à nulidade das provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa á integridade física ou moral das pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicilio, na correspondência ou nas telecomunicações, bem como o princípio da proporcionalidade que alude estar consignado no n.º 2 do artº 18º da CRP que dispõe que a lei só pode restringir os direitos liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
No que se refere ao segmento do despacho que ordenou extração de certidões das declarações prestadas para remeter ao serviços do MP para os fins que tiver por convenientes, temos de reconhecer que é um dever e uma obrigação do Julgador quando se evidencie que possa existir, em face de outros elementos constantes nos autos, a prática de crime de falsas declarações por parte da testemunha, tal tomada de posição, não se evidenciando de tal atuação viole qualquer princípio constitucional referente às garantias do processo criminal.
Deste modo, irrelevam as conclusões do recorrente sendo de julgar improcedente a apelação e de confirmar a decisão recorrida.
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DECISÂO
Pelo exposto, nos termos supra referidos, decide-se julgar improcedente a apelação e, consequentemente, manter a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Évora, 16 de Abril de 2015

Mata Ribeiro

Sílvio Teixeira de Sousa
Rui Machado e Moura

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[1] - Artigo 132.º
Direitos e deveres da testemunha

1 …
2 - A testemunha não é obrigada a responder a perguntas quando alegar que das respostas resulta a sua responsabilização penal.