Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
702/19.8T9STR.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
INALEGABILIDADE DOS VÍCIOS DO ARTIGO 410º
Nº 2 DO CPP
NÃO PRONÚNCIA CRIMES DE DIFAMAÇÃO E DE DENÚNCIA CALUNIOSA
Data do Acordão: 01/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Pese embora, em termos de sistematização, o artigo 410º, nº 2 do CPP se integre no capítulo da “Tramitação unitária do recurso” e tenha por epígrafe “Fundamentos do recurso”, o que poderia inculcar a ideia de que o seu âmbito de aplicação abrangeria todos os recursos, a verdade é que, no que diz respeito ao seu nº 2, a referência expressa à “apreciação da prova” e à “matéria de facto provada”, reconduz-nos necessariamente à peça processual a que tais referências se adequam, ou seja, à sentença. Tais vícios só poderão, pois, dizer respeito à sentença e não à decisão instrutória, conquanto nesta última, consabidamente, não existe matéria de facto provada e não provada, mas apenas matéria de facto suficientemente indiciada ou não suficientemente indiciada.
II - É atípica a conduta do arguido consubstanciada na apresentação de uma participação relatando comportamentos do assistente, não contendo tal participação quaisquer juízos sobre o caráter e índole pessoal do visado, nem imputações de factos falsos e tendo-se apurado indiciariamente, na fase de instrução do processo, matéria factual que permite contextualizar e legitimar o conteúdo da referida participação. Tal conduta sempre se enquadraria no exercício legítimo do direito à crítica e da liberdade de expressão do seu autor, nunca podendo subsumir-se às previsões dos tipos penais de difamação ou de denúncia caluniosa.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos presentes autos de instrução que correm termos no Juízo de Instrução Criminal de … - J…, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º 702/19.8T9STR, foi proferido despacho de não pronúncia do arguido AA, solteiro, professor, nascido a … 1964, filho de BB e de CC, residente na Rua …, … relativamente aos crimes de difamação qualificada p. e p. pelos artigos 180º, nº 1, 183º, nº 1, al b) e 184º do C.P. ex vi do artigo 132º, nº 2, al. l), todos do C.P. e de denúncia caluniosa p. e p. pelo artigo 365º, nº 1, 2 e 3, al. b) do C.P. que lhe haviam sido imputados no requerimento de abertura de instrução (RAI) apresentado pelo assistente após o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público no final do inquérito.

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Inconformado com tal decisão, veio o assistente interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“1 - Quanto aos factos indiciados e não indiciados entendemos que não andou bem o Tribunal a quo.

2 - O artigo 180.º do Código Penal tutela o bem jurídico honra como um bem jurídico complexo, que integra quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a sua própria reputação ou consideração exterior, sendo elementos objetivos do crime de difamação a imputação de um facto ofensivo da honra a outra pessoa, a formulação de um juízo ofensivo da honra de outra pessoa ou a reprodução daquela imputação ou deste juízo.

3- O crime de difamação está suficientemente indiciado, uma vez que, independentemente de qualquer que seja o conceito de honra e consideração que se perfilhe, é manifesto que, as afirmações/juízos em causa, no contexto em que foram proferidos, têm um significado inequivocamente ofensivo da honra e consideração à luz dos padrões médios de valoração social, pelo que são objetivamente difamatórias.

4 - Atento o contexto em que foram proferidas as afirmações do arguido, pode afirmar-se que este teve efetiva intenção de ofender a honra e a consideração do recorrente, na medida em que, os juízos por si reportados, revelavam-se irrelevantes para aferir da existência ou não de indícios da prática de ilícito disciplinar, não se vislumbrando, assim, qualquer razão para o recorrido, de boa-fé, proferir tais afirmações, senão com o único objetivo de ofender a honra e a consideração do recorrente.

5 - A atuação do recorrido objetiva e subjetivamente difamatória não poderá ser considerada justificada nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 32.º do Código Penal.

6 - Atenta a prova constante dos autos é possível concluir-se que existem indícios suficientes da prática do crime de difamação, pois, da simples leitura da participação disciplinar que deu origem ao presente processo, analisado com recurso às regras da experiência e da lógica, sendo, por isso, manifesto que existem indícios suficientes para submeter o recorrido a julgamento.

7 – A participação disciplinar apresentada pelo recorrido é exorbitante, extravasa e excede o que era exigível a uma pessoa que pretendesse deixar de receber emails do assistente. Era-lhe exigível e tinha por obrigação, pessoal e processual, expor sobre as razões do proceder de uma pessoa e não sobre as qualidade e modos de ser, agir e comportar de outra pessoa.

8 - Assim, relativamente ao crime de difamação agravada, não pode negar-se que as afirmações do arguido na participação apresentada são difamatórias, ofendendo o bom nome do assistente e a sua honra, porquanto afirma que o mesmo levantou suspeições e fez acusações graves, com base em factos falsos, o que não corresponde à verdade, como ficou demonstrado nos documentos juntos aos autos.

9 – O arguido acusou o assistente de bullying profissional e moral, de ser absolutamente vexatório e criminoso e de ter um comportamento absolutamente abusivo, e sucessivo, mais o apelidando de absolutamente vil, baixo, criminoso e destituído de qualquer ética, isto é, imputa ao assistente factos concretos ilícitos e emite juízos de desvalor sobre este, desrespeitando-o e ofendendo a sua honra e consideração.

10 - Tais expressões exprimem juízos de apreciação e de valoração pessoais pejorativos que ultrapassam o âmbito da crítica objetiva, visando o núcleo essencial das qualidades morais do assistente, uma vez que, caso fosse verdadeira tal imputação, tornaria o assistente socialmente “inadequado” para o exercício da sua profissão por, nessa linha de raciocínio, carecer das condições de natureza moral consideradas essenciais para o exercício do cargo.

11 - Tais expressões colocam manifesta e objetivamente em causa a dignidade do assistente, a sua honorabilidade pessoal e profissional, atingindo-o como pessoa, desde logo, mas também como docente: imputa-lhe uma conduta intencionalmente contrária aos seus deveres profissionais como docente.

12 - O arguido imputou ao assistente factos ofensivos da sua honra pessoal e da sua honra profissional. Não se está perante um juízo ou crítica relativos à sua atuação objetiva mas perante a imputação de uma conduta consciente de violação dos deveres de zelo, correção, lealdade e prossecução do interesse público, imputações que não têm qualquer fundamento pois o arguido nunca provou a verdade dessas imputações e não tinha qualquer fundamento, para em boa-fé, acreditar numa eventual verdade dessa imputação, o que afasta a previsão do artigo 180º, nº 2, alíneas a) e b) do código penal, ou do artigo 31º, do código penal, mormente nº 2, alíneas b) e c).

13- Pelo contrário, o arguido sabia perfeitamente e tinha consciência que os factos relatados pelo assistente nos emails que efetivamente enviou, correspondiam à verdade, pelo que ao fazer a participação e prestar as declarações no âmbito do processo disciplinar, fê-lo de forma livre, voluntária e com o manifesto propósito de atingir o assistente na sua honra e consideração de professor e pessoa, além do propósito de que, contra o assistente fosse instaurado processo disciplinar e aplicada sanção disciplinar.

14 - O arguido sabia que praticava factos proibidos e punidos por lei, não se coibindo de os praticar.

15 - O bem jurídico protegido pelo crime de difamação é a honra.

16 - A difamação compreende, portanto, comportamentos lesivos da honra e consideração de alguém.

17 - No caso do crime de difamação, o direito tem que intervir quando é posta em causa a tutela constitucional do direito fundamental ao bom nome e reputação de qualquer pessoa, direito esse que se encontra consagrado no artigo 26º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.

18 - Apesar deste direito ter de ser compatibilizado com outro direito fundamental que é a liberdade de expressão, que compreende não só a liberdade de pensamento como a liberdade de exteriorização de opiniões e juízos, uma vez que o exercício desse direito pode entrar em conflito com bens jurídicos como a honra e consideração, é importante que as expressões utilizadas se circunscrevam ao sentido próprio da crítica, não atingindo o nível de ofensa pessoal desnecessária, inadequada ou desproporcional ao normal exercício do direito de expressar opinião.

19 - No caso concreto, o arguido acusou o assistente de bullying profissional e moral, de ser absolutamente vexatório e criminoso e de ter um comportamento absolutamente abusivo, e sucessivo, mais o apelidando de absolutamente vil, baixo, criminoso e destituído de qualquer ética, isto é, imputa ao assistente factos concretos ilícitos e emite juízos de desvalor sobre este, desrespeitando-o e ofendendo a sua honra e consideração.

20 - Tais expressões exprimem juízos de apreciação e de valoração pessoais pejorativos que ultrapassam o âmbito da crítica objetiva, visando o núcleo essencial das qualidades morais do assistente, uma vez que, caso fosse verdadeira tal imputação, tornaria o assistente socialmente “inadequado” para o exercício da sua profissão por, nessa linha de raciocínio, carecer das condições de natureza moral consideradas essenciais para o exercício do cargo.

21 - Tais expressões colocam manifesta e objetivamente em causa a dignidade do assistente, a sua honorabilidade pessoal e profissional, atingindo-o como pessoa, desde logo, mas também como docente: imputa-lhe uma conduta intencionalmente contrária aos seus deveres profissionais como docente.

22 - O arguido imputou ao assistente factos ofensivos da sua honra pessoal e da sua honra profissional. Não se está perante um juízo ou crítica relativos à sua atuação objetiva mas perante a imputação de uma conduta consciente de violação dos deveres de zelo, correção, lealdade e prossecução do interesse público, imputações que não têm qualquer fundamento pois o arguido nunca provou a verdade dessa imputação e não tinha qualquer fundamento, para em boa-fé, acreditar numa eventual verdade dessa imputação, o que afasta a previsão do artigo 180º, nº 2, alíneas a) e b) do código penal, ou do artigo 31º, do código penal, mormente nº 2, alíneas b) e c).

23 - Pelo contrário, o arguido sabia perfeitamente e tinha consciência que os factos relatados pelo assistente nos emails que efetivamente enviou correspondiam à verdade, pelo que ao fazer a participação e prestar as declarações no âmbito do processo disciplinar, fê-lo de forma livre, voluntária e com o manifesto propósito de atingir o assistente na sua honra e consideração de professor e pessoa, além do propósito de que, contra o assistente fosse instaurado processo disciplinar e aplicada sanção disciplinar.

24 - O arguido sabia que praticava factos proibidos e punidos por lei, não se coibindo de os praticar.

25 - Face o teor das expressões proferidas pelo arguido impõe-se concluir que não se verifica qualquer causa justificativa, uma vez que o conteúdo de tais expressões ultrapassa o livre direito de crítica objetiva, porquanto atingem a honra e consideração devida ao assistente, com idoneidade para o desprestigiar perante terceiros, sendo que se revelam excessivas e desnecessárias ao exercício do direito de crítica por parte do arguido ao exercício de funções daquele, ultrapassando o seu direito de expressão.

26 - O arguido até poderia ter manifestado o seu desagrado, exercendo o seu livre direito de crítica, de modo objetivo, não utilizando as suprarreferidas expressões, ofensivas aos olhos de qualquer cidadão de média compreensão.

27 - Dito de outro modo, as expressões suprarreferidas, porque desde logo colocam em causa a honra, consideração e conduta profissional do assistente, ultrapassam o admissível no âmbito da “normal” conflitualidade processual ou pessoal.

28 - Não preenche a causa de exclusão da ilicitude prevista no artº 180º, nº 2, do CP, a conduta do arguido que acusou o assistente bullying profissional e moral, de ser absolutamente vexatório e criminoso e de ter um comportamento absolutamente abusivo, e sucessivo, mais o apelidando de absolutamente vil, baixo, criminoso e destituído de qualquer ética, quando sabe que tais factos são falsos.

29 - Nos presentes autos está em causa uma participação enviada pelo arguido ao presidente do …, do qual o assistente era à data dos factos, docente, relatando um conjunto de factos falsos praticados por este que configurariam a prática de infração disciplinar.

30 - Afigura-se-nos, pois, manifesto que tal missiva foi dirigida a uma autoridade, o …, porquanto é a entidade que nos termos legais tem exclusiva jurisdição disciplinar sobre os docentes daquele instituto, que visava outra pessoa, devidamente identificada, o aqui assistente, que quem a subscreve tem a intenção de que, contra o visado, seja instaurado procedimento disciplinar, visto o alegado comportamento e tendo em conta que o próprio arguido requer a instauração de processo disciplinar ao assistente.

31 - Ficou demonstrado na factualidade apurada e descrita, como ficou provado em sede de instrução, que tal não corresponde à realidade e que o arguido tinha consciência dessa falsidade.

32 - Aliás, o arguido sabia perfeitamente, porquanto os emails enviados pelo assistente estão todos fundamentados em provas documentais, que os factos relatados nos referidos emails correspondem inteiramente à verdade, que aliás, o arguido não desmente, apenas acusa de serem falsos, mas sem explicar porquê, ao contrário do assistente, que explica fundamentadamente os factos veiculados nos emails.

33 - Nestes termos, temos por preenchidos todos os elementos constitutivos do tipo objetivo e subjetivo do crime de difamação agravada e de denúncia caluniosa.

34 - Tais expressões foram proferidas pelo arguido de forma livre, voluntária e com o manifesto propósito de atingir o assistente na sua honra e consideração pessoal e profissional.

35 - O arguido sabia perfeitamente e tinha consciência que os factos relatados pelo assistente nos emails que efetivamente enviou, correspondiam à verdade, pelo que ao fazer a participação e prestar as declarações no âmbito do processo disciplinar, fê-lo de forma livre, voluntária e com o manifesto propósito de atingir o assistente na sua honra e consideração de professor e pessoa, além do propósito de que, contra o assistente fosse instaurado processo disciplinar e aplicada sanção disciplinar.

36 - Ao não decidir desta forma, violou o douto despacho recorrido o disposto nos artigos 180º, n.º 1, 182º, 183º, n.º 1, al. b) e 184º do Código Penal, por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. l) do mesmo diploma legal, bem como o artigo 365º n.ºs 1, 2 e 3, al. b) do CP.”

Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que pronuncie o arguido pela prática dos crimes acima referidos.

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O recurso foi admitido.

Notificado o arguido e o Ministério Público da interposição do recurso, apenas o Ministério Público apresentou resposta, tendo pugnado pela respetiva improcedência e pela consequente manutenção da decisão recorrida e tendo apresentado as seguintes conclusões:

“1. O presente recurso tem por objeto aferir se o despacho do Mmo Juiz do Tribunal “a quo” padece de erro notório na apreciação da prova ao considerar não indiciados factos alegados no RAI e passíveis de consubstanciar a prática, pelo arguido, dos crimes de denúncia caluniosa e de difamação;

2. Pugna o recorrente pela verificação de indícios suficientes de o arguido, na participação que remeteu ao Presidente do …, ter imputado ao recorrente factos falsos cuja falsidade conhecia e com intenção, conseguida, de ser instaurado processo disciplinar contra este;

3. Tais factos, na ótica do recorrente, consubstanciam a prática, pelo arguido, como autor material e em concurso real de um crime de difamação agravada, p.p. pelos artºs 180º, nº 1, 182º, 183º, nº 1, al. b), 184º, por referência à al. l) do nº 2 do artº 132º, todos do Código Penal e um crime de denúncia caluniosa, p.p. pelo artº 365º, nºs 1, 2 e 3 al. b) do CPenal e pelos quais o pretende ver pronunciado;

4. Quanto a nós, entendemos que, sempre que esteja em causa a denúncia de factos ou suspeitas falsas atentatórias da honra e consideração de outrem verificar-se-á uma relação de concurso aparente entre o crime de difamação e o crime de denúncia caluniosa, subsistindo este em detrimento do primeiro;

5. A instrução visa comprovar ou infirmar a decisão tomada pelo Ministério Público na fase de inquérito, culminando com um despacho de pronúncia sempre que se tiverem recolhido indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, ou com um despacho de não pronúncia do arguido pelos factos de que vem denunciado/acusado, no caso contrário;

6. No caso dos autos, a prova recolhida na fase de inquérito e na instrução reconduz-se à prova documental e testemunhal sendo que as testemunhas inquiridas não têm conhecimento direto dos factos e as declarações prestadas pelo assistente, ora recorrente, e pelo arguido são diametralmente opostas;

7. A nível da prova documental, a mesma reconduz-se à exposição/participação remetida pelo arguido ao Presidente do …, e que constitui o “corpo do delito”, e que fez acompanhar de vários anexos constituídos por cópias de e-mails’s que rececionou e remetidos pelo recorrente;

8. Do teor literal de tal exposição/participação não resulta qualquer intenção do arguido de ver instaurado qualquer processo disciplinar ao recorrente uma vez que, após expor as razões que o levam a apresentar tal participação, o arguido concluiu solicitando que sejam tomadas medidas que impeçam o ora recorrente de continuar a remeter a “avalanche de e-mail’s” que tem vindo a remeter e que o arguido considera incomodativa;

9. Ademais, pese embora o arguido tenha referido que o teor de alguns e-mails’s são atentatórios do seu bom nome “junto das várias entidades em redor da …”, não foi por sua iniciativa que veio a ser instaurado o presente processo, sendo que, só quando inquirido (na qualidade de ofendido) manifestou desejo de procedimento criminal porquanto a situação ainda se mantinha, continuando a receber e-mail’s do recorrente, nos quais nem sequer é visado;

10. Assim, e ao contrário do sufragado pelo recorrente, a atitude do arguido ao longo do processo não contradiz aquilo que expressamente refere na participação, o seja, que a sua intenção era, tão só, a de parar com o envio dos e-mails’s por parte do recorrente;

11. Ademais, se a finalidade era a instauração de um processo disciplinar ao recorrente, não se vê razão para o arguido não ter efetuado uma participação com tal finalidade, optando, na ótica do recorrente, por o fazer de forma indireta, com recurso a subterfúgios;

12. Assim, se o arguido não o fez de forma expressa, então, é legitimo supor que não viu a conduta do recorrente como violadora de um qualquer dever funcional, mas, tão só, perturbadora do seu sossego e, como tal, tal conduta não conduziria, nem direta nem necessariamente, à instauração de um processo disciplinar contra o recorrente;

13. Mas, ainda que assim não se entenda, e admitindo, ainda que hipoteticamente, que a pretensão do arguido era a de ver instaurado um processo disciplinar ao recorrente, inexistem, igualmente, nos autos, indícios suficientes que permitam concluir que os factos alegados em tal participação e imputados ao recorrente, são falsos;

14. Mais uma vez, e considerando que a única prova assenta nas declarações do recorrente e do arguido, há que lançar mão de outros indícios que permitam corroborar um dos depoimentos em detrimento do outro, sob pena de, na dúvida, se ter de lançar mão do princípio “in dúbio pro reo”;

15. Ora, o preenchimento do tipo objetivo exige ainda que a denúncia ou suspeita seja, no seu conteúdo essencial, falsa, sendo que, no caso dos autos, o único suporte probatório que permite corroborar uma das versões é, precisamente, a decisão final proferida no âmbito do processo disciplinar na qual se considerou provados os factos constantes da participação, ainda que tal decisão não tenha, ainda, transitado nem exista qualquer outra de sentido contrário;

16. No que tange às expressões alegadamente atentatórias da honra e consideração do recorrente importa ter presente que os crimes de difamação e injúria supõem a imputação de factos ou a formulação de juízos sobre uma pessoa;

17. Não cabem na previsão legal a formulação de juízos sobre factos, atuações, obras, prestações ou realizações. Estes juízos não configuram elemento constitutivo de algum desses dois tipos de crime;

18. No caso dos autos, o arguido ao utilizar as expressões “bulling profissional e moral”, “incomodar”, “importunar” “vexatório”, “comportamento abusivo”, fá-lo por referência ao comportamento do assistente e não, por referência à pessoa do assistente;

19. Com efeito, tais expressões são utilizadas para qualificar a conduta do assistente ao remeter injustificadamente ao arguido a “avalanche” de e-mails’s cujas cópias anexou à participação e cujo envio não é negado pelo ora recorrente;

20. Assim, no caso dos autos não existem meios de prova objetivos que relacionados de uma forma coerente permitam a reconstituição de um esquema narrativo de factos integradores do crime de denúncia caluniosa e/ou do crime de difamação e, desse modo, perspetivar a condenação do arguido em julgamento;

21. Razão pela qual bem andou a Mma Juiz do Tribunal “a quo” ao considerar não indiciados os factos atinentes ao preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de denúncia caluniosa e de difamação e, consequentemente, ter proferido despacho de não pronúncia.

Termos em que, deve negar-se provimento ao recurso, mantendo-se a decisão instrutória de 23.06.2023 que decidiu não pronunciar o arguido AA, pelos factos e incriminações (qualificação jurídica) que constam do RAI apresentado pelo assistente.”

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O Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da improcedência do recurso.

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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

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II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso, considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação e as questões de conhecimento oficioso, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir:

A) Determinar se se revela admissível a invocação do vício do erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410º nº 2, alínea c) do CPP relativamente à decisão instrutória, nos termos constantes do recurso.

B) Determinar se os factos indiciados se revelam suficientes para a imputação ao arguido dos crimes de difamação qualificada p. e p. pelos artigos 180º, nº 1, 183º, nº 1, al b) e 184º do C.P. ex vi do artigo 132º, nº 2, al. l), do C.P. e de denúncia caluniosa p. e p. pelo artigo 365º, nº 1, 2 e 3, al. b) também do C.P. e se, consequentemente, o arguido deverá ser pronunciado pela sua prática.

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II.II - A decisão recorrida.

Reproduz-se a decisão recorrida na parte que releva para a apreciação do recurso, ou seja, quanto ao juízo indiciário, optando-se por se não transcreverem as partes que incluem exposição meramente teórica, cujo conteúdo não se encontra posto em causa pelo recorrente:

“(…) FACTOS INDICIADOS (face ao que consta do RAI e com relevo):

O assistente exerceu funções de professor coordenador na …, tendo-se aposentado a 21/11/2019 e entre 08/03/2018 e 29/03/2019 era professor adjunto na área de … da … e estava integrado no Departamento de … e exercia funções de coordenador desta área científica de … e funções de coordenador do departamento de …, área de departamento a que o arguido pertencia.

O arguido exerce funções de professor adjunto na aludida instituição.

Em 02 de Abril de 2019 e com a mencionada data, o arguido enviou ao então Presidente do … uma carta, por si assinada e rubricada, com o teor que consta de fls. 2 e segs., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, o que fez da sua residência, sita na Rua …, …, em dois pacotes de correio, carta contendo 19 paginas e tendo anexos 52 anexos.

Na sequência dessa carta e por determinação do então Presidente do …, foi instaurado contra o aqui assistente um processo disciplinar, a que veio a ser apenso um outro processo disciplinar.

O aqui arguido não participou, influenciou ou de alguma maneira determinou a decisão do Presidente do …. de instauração contra o assistente de processo disciplinar, na sequência da recepção da aludida carta, por si enviada.

O assistente teve conhecimento da instauração desse processo disciplinar, através do aviso nº …/2019, publicado no DR, 2ª S, de …2019.

Em 15/11/2019, o assistente recebeu cópia dos autos de procedimento disciplinar (fls. 813).

Na sequência da instauração dos supra dois mencionados processos disciplinares, ao arguido foi aplicada a sanção disciplinar de despedimento, a qual foi objecto de impugnação por este, em apreciação pelo TAF de ….

A mencionada sanção disciplinar teve, parcialmente, por base os factos constantes da carta supra referenciada enviada pelo aqui arguido ao Presidente do ….

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Não indiciado que a carta enviada pelo arguido consubstancie uma denuncia caluniosa e um rol de acusações difamatórias com o único objectivo de causar dano pessoal e profissional ao aqui assistente.

Não indiciado que o arguido tinha consciência da falsidade da imputação dos factos que constavam da aludida carta.

Não indiciado que o arguido pretendia a instauração de processo disciplinar contra o aqui assistente com o envio e redacção de tal carta.

Não indiciado que o assistente soubesse que a sua conduta, ao redigir e apresentar a carta supra referenciada, fosse ilícita, sabendo que era proibida e punida por lei, por conter expressões ofensivas da honra e consideração devidas ao assistente e por conter a imputação de factos falsos.

Não indiciado que o facto de o arguido não ter cumprido a sua “ameaça” ou ter continuado a receber e-mails do aqui assistente, após o envio da carta supra e nada ter feito, implique que os e-mails enviados pelo assistente não lhe causaram qualquer dano psíquico ou anímico e não consubstanciem assédio moral ou profissional.

Não indiciado que o arguido pudesse, por si só, barrar a recepção dos e-mails enviados pelo aqui assistente nos seus endereços de correio electrónico, profissionais.

Não indiciado que os e-mails enviados pelo assistente ao arguido, enquanto direto destinatário, versem sobre assuntos que directamente lhe dissessem respeito e devessem ser do conhecimento do aqui arguido, na sua qualidade de professor adjunto.

Não indiciado que incumba ao aqui assistente dar conhecimento ao aqui arguido das matérias e assuntos sobre os quais os e-mails enviados por si ao aqui arguido, versam.

Não indiciado que o arguido, ao enviar a carta supra referenciada, agiu com o intuito de prejudicar e ofender a honra, bom nome e dignidade do aqui assistente.

Não indiciado que a carta aqui em apreço contenha expressões ofensivas da honra e consideração devidas ao aqui assistente e que das mesmas e da sua natureza ofensiva, o arguido tivesse consciência.

Não indiciado que o arguido agiu com o propósito supra referenciado e o de ser instaurado procedimento disciplinar ao assistente, alcançado, bem sabendo que a sua conduta é proibida e, ainda assim, não se coibindo de a concretizar.

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Apreciação dos indícios recolhidos:

Indubitável é que o arguido apresentou a exposição objecto dos autos ao Presidente do …, a qual deu origem a um processo disciplinar ao aqui assistente, que culminou na aplicação de sanção disciplinar de despedimento, judicialmente impugnada (processo disciplinar a que foi apenso outro processo disciplinar).

Tal exposição foi redigida e subscrita pelo aqui assistente e era instruída com 52 documentos, dos quais vários e-mails enviados ao aqui arguido e a outras pessoas, entre os anos de 2018 e 2019.

Indubitável também é que da dita exposição, não se requer, nem resulta que a intenção clara e directa do aqui arguido com a mesma, seja a instauração de processo disciplinar contra o aqui assistente, conforme melhor resulta do seu teor.

Na verdade, dessa exposição se diz “tendo em vista defender a minha saúde psíquica e emocional e também o direito ao meu bom nome junto das várias entidades em redor da … e não pretendo mais do que tentar travar comportamentos que atentam contra o meu bem estar pessoal, familiar e profissional”.

E “solicito assim a V. Exa.se digne impedir o contacto do Professor Coordenador DD seja porque forma for, seja ela através do contacto pessoal, por via telefónica ou por via digital, vulgo, e-mail”.

Ou “venho solicitar a V. Exª. Senhor Presidente do …, se digne intervir para que o Professor Coordenador DD pare esta avalanche incómoda e condicionante moral e psicológica, na forma de comunicações institucionais”.

Aliás, o arguido ouvido a fls. 1111 e segs./1127 e segs.afirma que a sua intenção foi a de se defender, não tendo dirigido a carta a terceiros e em instrução que foi a de parar com o envio de tais e-mails (auto de declarações de fls. 1127 e segs.), sendo que foi informado que não poderia ser encerrado o endereço de e-mail (em sede de instrução) e não poderia igualmente barrar os e-mails do assistente, sendo que o endereço era um endereço profissional e nele recebia outros mails de outras fontes, de natureza profissional.

O processo disciplinar foi instaurado por determinado pelo Presidente do …, sem qualquer participação, intervenção ou influência do aqui arguido.

O arguido nunca apresentou queixa crime contra o aqui assistente em nenhum tribunal ou polícia. Limitou-se a expor superiormente um conjunto de situações. O facto de daí puder eventualmente resultar processo disciplinar para o arguido, não se comprovando que esse seja o fim visado pelo assistente, não transforma um fim possível, provável ou necessário num directamente pretendido.

Não esqueçamos que uma coisa é o dolo direto, outra, os dolos necessários ou eventuais.

O arguido veio invocar na instrução e já o tinha feito em sede de processo disciplinar, que só pretendia parar com o envio de e-mails por parte do aqui assistente, alguns sem relação consigo ou suas funções. A explicação dada pelo assistente (para o envio de tais e-mails), não se nos afigura colher, correspondendo a mesma à alegada necessidade de todos estarem informados sobre temáticas de interesse geral e de exercer em plenitude uma participação activa na vida académica.

E-mails há enviados a um conjunto de pessoas, incluindo o aqui arguido, que não se nos afigura serem do interesse ou correlacionados com o arguido, versando sobre temáticas gerais. Por exemplo, anexo 16, sobre a contratação de uma professora para a área de … e questões sobre a razão de tal contratação.

Outros e-mails, claramente visavam arguido e o punham em cheque e que foram enviados ou dados a conhecer, a diversas pessoas, sem qualquer necessidade, dada a sua temática e fim, entendendo o arguido que tal envio de tais e-mails. com tais teores enviados a quem era desnecessário deles tomar conhecimento implicava, por parte do aqui assistente, assédio moral e profissional.

O arguido mencionou que o assédio pessoal e profissional se reporta não só à quantidade de e-mails enviados, como ao seu conteúdo, nomeadamente, aqueles que nenhum interesse têm para si, sem correlação com a sua pessoa e as suas funções ou que, tendo correlação consigo, o punham em cheque.

Assim, diversos e-mails dos que constituem os 52 anexos enviados pelo arguido foram enviados ao Presidente do … ou outros destinatários, mas com conhecimento a docentes, funcionários, gabinete jurídico e outras pessoas ou entidades, incluindo o aqui arguido, o que resulta ser um procedimento continuo e constante do aqui assistente, independentemente do destinatário dos e-mails, em vista do que são tais 52 anexos.

Por exemplo, a dedução do incidente de suspeição levantado pelo aqui assistente à Profª. Adjunta EE, enviado e dirigido à Presidente do … foi objecto de conhecimento a um conjunto de pessoas (Vide fls. 25 e segs., anexo 13).

Pedido de aclaração da decisão atinente ao incidente de suspeição que constitui o anexo 33, de fls. 419 e segs., em que o e-mail é dirigido à Presidente do … mas com conhecimento um conjunto de pessoas ai elencadas em “Cc”.

Por outro lado, examinados tais e-mais, alguns claramente visam o aqui arguido, pondo-o em cheque, bem como à sua actuação profissional, tendo sido enviados a quem, seria desnecessário deles tomar conhecimento, como bem indica o aqui arguido que diz ter-se sentido assediado pelo aqui assistente e visado pelo mesmo, por tal razão e pelo seu teor.

E, o arguido fá-lo, em termos gerais, empregando linguagem não adequada, de cariz não institucional, que se pressupõe ser uma linguagem sóbria, objectiva, sem mesclar juízos de valor ou adjectivaçao de comportamentos, sem que tenha impugnado através dos meios próprios, mormente nos Tribunais Administrativos, tais actos administrativos, cuja legalidade ou regularidade põe em causa.

Assim,

No anexo 15, de fls. 28 e segs., o aqui assistente põe em causa a indicação do aqui arguido para integrar um júri, na área de …, em …, questionando a legalidade de tal indicação.

No anexo 34, e-mail de 18/04/2018, 12h21, põe em causa a actuação do aqui arguido, quanto a um acordo com entidade externa, decisão sobre estágios curriculares e selecção de alunos, dizendo que o mesmo “exerceu funções e competências que não lhe estão atribuídas” e solicitando informação quanto a conhecimento “destas acções do Prof. AA e, em caso afirmativo, se as aprovou”.

Tal e-mail do assistente foi dirigido ao aqui arguido e ao Director da …, mas com conhecimento ao subdiretor e com conhecimento de FF e GG, quando o e-mail enviado pelo aqui arguido, de 17/04/2018, 19h23m, só dava conhecimento ao subdirector e ao aqui assistente.

Ora, segundo o arguido, tais diligências foram-lhe solicitadas superiormente, como implicitamente resulta do e-mail em que se alude a intenção da instituição de realizar um protocolo com a … “manifestada junto do Senhor Subdirector”.

E-mail que constitui anexo 50, de onde consta “estou certo que os membros desse Conselho irão eleger, por unanimidade e aclamação, o Prof. AA como Coordenador da …, seguramente

com rasgados elogios do Director da …, seu compagnon de route no processo de (des) acreditação da Licenciatura em …”.

Ou de onde conta que “por proposta do Coordenador da …, Prof. AA, com a bênção do Director da … e a cumplicidade da Presidente e membros do …, foi, em 14-12-2018, aprovado “um novo” plano de estudos da Licenciatura em ….

Do mesmo modo, os e-mails atinentes ao processo de acreditação da dita licenciatura que constituem os anexos 51, de fls. 71v em que se diz “este processo de acreditação foi conduzido pelo Director da … e pelo Coordenador da Licenciatura, Profº. AA, às escondidas, sem darem conhecimento ao Coordenador da área científica (…) e sem o … ter deliberado como é habitual (…). Foi um processo rodeado de um insólito e suspeito secretismo, com o resultado que se conhece”.

Em tal e-mail ainda se diz que “a grande responsabilidade é do Coordenador da licenciatura, Prof. AA” ou “responsabilidade repartida pelo Director, … e Coordenador da Licenciatura”, sendo este o aqui arguido.

Tal e-mail foi enviado com conhecimento ao Presidente, HH, II e enviado aos docentes (fls. 71 v).

O anexo 52 (e-mail enviado às 10h12) tem igual conteúdo.

Frise-se que o aqui assistente não era, nem nunca foi superior hierárquico do aqui arguido, não exerceu funções de Presidente ou Vice-Presidente do … ou integrava os órgãos de gestão ou fiscalização do aludido …, mas detinha, para além da qualidade de docente, a qualidade de coordenador de departamento.

Nesta medida, não detinha nem exercia funções de controlo de legalidade dos actos praticados mormente pelo seu colega, AA, aqui arguido, nem tal lhe estava acometido no âmbito das suas funções, incluindo de coordenador.

E não colhe o argumento relativo à participação na gestão lato sensu considerada, da instituição pelo arguido.

Assim, quer o número, quer essencialmente o conteúdo, mormente com ataques à pessoa do aqui arguido e sua divulgação desnecessária a terceiros, quer o envio de e-mails sem interesse para o aqui arguido ou sem correlação directa com as suas funções, implicam que exista fundamento para o arguido se dizer assediado moral e profissionalmente, sujeito a bullying, por parte do aqui assistente, com a intenção deste lhe causar dano, incómodo, humilhação, vexame.

Mesmo a considerar-se, em abstracto, que as afirmações do aqui assistente são verdadeiras, mormente quanto à responsabilidade da não acreditação do curso de … ou outros assuntos, não lhe incumbia ao assistente apontá-lo, visando o aqui arguido e nos termos e forma como o fez e sobretudo disso dando conhecimento a um conjunto de pessoas.

Tal objectivamente implicou para o arguido humilhação e vexame.

O facto de existirem factos não comprovados pelo arguido não implica que sejam falsos (por exemplo, quanto ao dano efectivo à sua saúde ou pessoal, mormente psíquica grave).

Perpectivas pessoais, sentimentos ou opiniões, conclusões extraídas pelo aqui arguido da conduta do aqui assistente, não consubstanciam factos e muitos menos factos falsos. Parte das expressões que o assistente põe em causa, dizendo que são falsas, não consubstanciam factos.

V.g.:

“incomodam profundamente o signatário” Causam-me dano psíquico grave”.

“o signatário considera que o Professor Coordenador DD foi absolutamente vexatório e criminoso”.

“o signatário não compreende (…)”.

“o signatário considera (…)”.

“o signatário sentiu-se humilhado e vexado”.

“o signatário considera que o Professor (…) está a tentar confundir o signatário”

“o signatário considera que o envio deste e-mail não se enquadra em nenhuma das suas atribuições como professor adjunto”.

Do mesmo modo, dizer-se que um comportamento é absolutamente abusivo e sucessivo, em relação ao signatário não é mais do que uma opinião sobre um comportamento, um juízo de valor não sobre a pessoa, salienta-se, mas sobre o seu comportamento.

Do mesmo, inexactidões, não consubstanciam factos falsos. Por exemplo, o facto de o arguido dizer que depôs como testemunha da defesa, o que é verdadeiro, não implica que soubesse que também teria deposto indicado pela acusação, que nega.

O arguido justifica o que vai dizendo, ponto a ponto, com a menção aos anexos, seu conteúdo e razão da sua incompreensão ou dos seus entendimentos, que explicita.

Nesta medida, não consideramos nem que tais expressões sejam ofensivas da honra e consideração devida ao aqui assistente, mas a sê-lo, sempre o arguido teria objectivas e concretas razões para o dizer, que em geral vai explicitando na aludida carta ou explicitou mais posteriormente, nem consideramos que o arguido impute ao assistente factos e factos que sejam comprovadamente falsos, com a consciência dessa falsidade, aquando da redacção e envio da aludida carta/exposição.

Não deixamos de frisar que o arguido adoptou um conjunto de cuidados prévios ao envio da exposição/carta aqui em apreço, desde logo, consultar a advogada do sindicato, juntar os anexos ou explicitar o que diz na própria carta/exposição. Ora, daqui resulta que, ao redigir e enviar tal exposição/carta fê-lo convicto que agiu de forma lícita, dentro dos limites legais, de que se certificou.

Logo, agiu convicto que estava a exercer um direito legal de defesa do seu bom nome e bem estar, bem como um direito a expressar a sua opinião.

Desta maneira e por tal razão, só suficientemente indiciados os factos que, como tal foram considerados pelo Tribunal e não suficientemente indiciados os factos relativos à consciência da ilicitude, dolo, intenção de instaurar procedimento disciplinar, carácter ofensivo das expressões constantes da dita exposição/carta ou imputação de factos falsos na mesma, ao aqui assistente, dados como não indiciados, segundo o critério que é o vigente nesta fase processual, de mera suficiência indiciária.(…)”

***

II.III - Apreciação do recurso.

A) Da não invocabilidade do vício do erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410º nº 2, alínea c) do CPP relativamente à decisão instrutória.

Defende o recorrente que o despacho recorrido faz uma apreciação errada da prova indiciária, pelo que enferma do vício previstos do artigo 410º, nº 2, alínea c) do C.P.

A propósito da temática da admissibilidade ou da inadmissibilidade da invocação dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2 do C.P. com reporte a outras decisões que não a sentença, designadamente no que diz respeito à decisão instrutória, encontramos abundante jurisprudência, pronunciando-se a mesma, de forma largamente maioritária, no sentido de que os mesmos são vícios próprios da sentença. (1)

E os argumentos utilizados para sustentar tal linha de entendimento, que convictamente subscrevemos, parecem-nos claros, assentando a sua validade não só na letra, como também na ratio da norma legal que consagra os vícios em causa.

Atentemos, pois, na previsão do artigo 410º, nº 2 do CPP:

“Artigo 410.º

Fundamentos do recurso

(…)

2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.(…)”

*

Pese embora, em termos de sistematização, a norma transcrita se integre no capítulo da “Tramitação unitária do recurso” e tenha por epígrafe “Fundamentos do recurso”, o que poderia inculcar a ideia de que o seu âmbito de aplicação abrangeria todos os recursos, a verdade é que, no que diz respeito ao seu nº 2, a referência expressa à “apreciação da prova” e à “matéria de facto provada”, reconduz-nos necessariamente à peça processual a que tais referências se adequam, ou seja, à sentença. Efetivamente, reportando-se os aludidos vícios à matéria de facto provada e não provada, parece-nos evidente, com o devido respeito por diferente entendimento, que os mesmos só poderão dizer respeito à sentença e não à decisão instrutória, conquanto nesta última, consabidamente, não existe matéria de facto provada e não provada, mas apenas matéria de facto suficientemente indiciada ou não suficientemente indiciada.

Acresce que, conforme de forma praticamente unânime, tem vindo a ser argumentado pela jurisprudência nacional, o facto de os aludidos vícios terem que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência, excluindo o recurso a quaisquer elementos externos à decisão, reforça, naturalmente o entendimento de que os mesmos não poderão ser convocados para a apreciação do recurso da decisão instrutória, pois que, tal como sucede no caso dos autos, o conhecimento de tal recurso demanda a análise de todos os elementos indiciários constantes do processo, tudo para viabilizar a conclusão sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios e pela consequente adequação ou inadequação do correspetivo despacho de pronúncia ou de não pronúncia. (2) A este propósito, e aludindo, ademais, ao elemento histórico, também relevante na interpretação da norma, escreveu, com toda a pertinência, a Desembargadora Ana Barata Brito, no acórdão da Relação de Évora de 03.07.2012, que:

“(…) O controlo da decisão final por via dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal – e, por via dele, do julgamento da matéria de facto – é historicamente prévio ao actual controlo da decisão da matéria de facto por via da impugnação da matéria de facto com recurso à prova registada (art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do Código de Processo Penal), e permitia (e ainda permite) um certo controlo da decisão de facto pelo tribunal ad quem.

Com efeito, logo aquando da autonomização dos recursos em processo penal do processo civil, com o Código de 1987, se consagrou a revista alargada, traduzida no reexame da matéria de facto a partir do texto da decisão e das regras da experiência comum, para detecção de determinados vícios (do art. 410º, nº2 do Código de Processo Penal).

Com a Revisão do Código de Processo Penal de 1998 opera-se o grande passo de passagem de um sistema de reexame da matéria de facto por via da revista alargada (detecção dos vícios formais do art. 410º, nº2) para um sistema de recurso efectivo em matéria de facto para todos os tipos de crime (art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do Código de Processo Penal),

O próprio corpo do nº 2 – “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição à matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos…” – é indicador de que estes vícios visam garantir a ampliação do recurso da matéria de direito, ou seja, a revista alargada. E indicador de que respeita a vícios da sentença.

Ora, no recurso da decisão instrutória de não pronúncia do que se trata é precisamente de sindicar o juízo sobre as provas (indiciárias) efectuado pelo juiz de instrução, ou seja, de julgar o texto em confronto com ou em conjunto com os todos os indícios recolhidos na fase instrutória do processo (em sentido amplo de inquérito e instrução). E não, que se julgue o texto separado das provas. Assim, mais do que uma proibição de aplicação do art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal à decisão instrutória, do que se trata é de uma ausência de sentido útil e de coerência histórica e sistémica na convocação dos mecanismos nele previstos.

A ratio do nº2 reside na garantia do escrutínio (limitado) da decisão de facto, fora da possibilidade (ampla) do recurso da matéria de facto, dicotomia sem nenhum sentido na impugnação da decisão de não pronúncia, em que está sempre em causa a reavaliação total e ampla das provas (indiciárias).(…)”

Por último, corroborando o entendimento propugnado, haverá ainda que atender à consequência estabelecida pelos artigos 426º e 426º-A do CPP para a verificação de qualquer um dos vícios enunciados no artigo 410º, nº 2 do mesmo código, qual seja a do “reenvio do processo para novo julgamento”, o que, para além de pressupor que os vícios tenham derivado de um julgamento anterior, e não de diligências realizadas no inquérito e na instrução, obviamente, se não coaduna com a fase processual da instrução que culminou na prolação da decisão recorrida.

Concluímos, assim, que o recorrente invoca o vício do erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410º nº2, alínea c) do CPP fora das condições legais, constatando-se que o que pretende é contestar a valoração da prova indiciária, sustentado na sua própria valoração dos indícios, o que apreciaremos no item seguinte, improcedendo, consequentemente, este invocado segmento do recurso.

***

B) Da insuficiência dos factos indiciados para a imputação ao arguido dos crimes de difamação qualificada p. e p. pelos artigos 180º, nº 1, 183º, nº 1, al b) e 184º do C.P. ex vi do artigo 132º, nº 2, al. l), todos do C.P. e/ou de denúncia caluniosa p. e p. pelo artigo 365º, nº 1, 2 e 3, al. b) do C.P.

Previamente à avaliação do juízo indiciário constante da decisão recorrida – assentando em que a finalidade da fase da instrução, conforme resulta do artigo 286.º, n.º 1 do CPP, é a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, o arguido a julgamento – recordemos que, atendendo ao preceituado no artigo 308.º do CPP, será proferida decisão de pronúncia quando a prova produzida permitir concluir pela presença de indícios suficientes da prática de um crime, sendo certo que o juízo acerca da suficiência dos indícios decorre da apreciação da prova realizada quer em fase de inquérito, quer em fase de instrução.

Importa precisar o conceito de indícios suficientes.

Conforme evidencia Carlos Adérito Teixeira (3), a lei parece ter acolhido o entendimento jurisprudencial e doutrinal do Código de Processo Penal de 1929, mas conferiu-lhe também uma “natureza eminentemente jurídica”, cuja “densificação” e “carácter operativo” não se mostram de fácil recorte.

Nos termos do disposto no artigo 283.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, os indícios deverão considerar-se suficientes quando justificam a realização de um julgamento, sendo que, atendendo à gravidade das consequências e das repercussões da submissão de uma pessoa a julgamento, dever-se-á analisar com especial cuidado a verificação da suficiência dos indícios. Esta a razão pela qual, “no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de proteção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional”. (4) (artigo 3.º daquela Declaração e 27.º da Constituição da República Portuguesa).

Relativamente ao conceito de “possibilidade razoável” de o arguido vir a ser condenado, tem existido alguma divergência na doutrina e na jurisprudência, sendo que a posição que tem merecido maior acolhimento é a da probabilidade predominante. Com vista à concretização deste conceito, relevam os contributos de Germano Marques da Silva, que considera que uma possibilidade razoável é uma probabilidade mais positiva do que negativa (5) e Figueiredo Dias, segundo o qual, “os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição” (6).

Os indícios referidos no artigo 308.º do Código de Processo Penal, podem, assim, definir-se, como meios de prova que consubstanciam sinais da prática do crime, sendo certo que para a decisão de pronúncia a lei exige apenas a existência desses mesmos sinais, tendo vindo a ser entendido que a possibilidade razoável de uma futura condenação deve afigurar-se como uma possibilidade mais positiva do que negativa. Os indícios serão, pois, suficientes quando haja uma alta probabilidade de o arguido vir a ser condenado ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição. Dito de outro modo, existirá indiciação suficiente se o conjunto de elementos probatórios permitirem formar convicção de que o arguido virá a ser condenado pela prática do crime que lhe é imputado.

*

E o que dizer do juízo indiciário realizado na decisão recorrida? Os crimes que o assistente pretende ver imputados ao arguido são os crimes de difamação qualificada p. e p. pelos artigos 180º, nº 1, 183º, nº 1, al b) e 184º do C.P. ex vi do artigo 132º, nº 2, al. l), todos do C.P. e de denúncia caluniosa p. e p. pelo artigo 365º, nº 1, 2 e 3, al. b) do C.P., pelo que importa convocar nesta sede as normas penais que contêm a previsão dos tipos penais em causa. Preceituam tais disposições legais da seguinte forma:

“Artigo 180.º

Difamação

1 - Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

2 - A conduta não é punível quando:

a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e

b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.

3 - Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.

4 - A boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.”

*

Artigo 183.º

Publicidade e calúnia

1 - Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 182.º:

a) A ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou,

b) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação;

as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.

2 - Se o crime for cometido através de meio de comunicação social, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias.

*

Artigo 184.º

Agravação

As penas previstas nos artigos 180.º, 181.º e 183.º são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade.

*

Artigo 365.º

Denúncia caluniosa

1 - Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2 - Se a conduta consistir na falsa imputação de contra-ordenação ou falta disciplinar, o agente é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

3 - Se o meio utilizado pelo agente se traduzir em apresentar, alterar ou desvirtuar meio de prova, o agente é punido:

a) No caso do n.º 1, com pena de prisão até 5 anos;

b) No caso do n.º 2, com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

4 - Se do facto resultar privação da liberdade do ofendido, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

5 - A requerimento do ofendido o tribunal ordena o conhecimento público da sentença condenatória, nos termos do artigo 189.º

*

É precisamente a decisão de não pronúncia pela prática dos referidos crimes que constitui o objeto da nossa análise.

Com vista a melhor compreendermos os tipos penais aos quais se reportam as questões que somos chamados a apreciar no presente recurso, façamos uma breve referência aos elementos constitutivos dos tipos e aos bens jurídicos que a sua previsão visa tutelar.

No artigo 180.º, n.º 1 do Código Penal criminaliza-se a conduta daquele que, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo que sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir tal imputação ou juízo. Trata-se de um crime contra as pessoas, no qual se pretende proteger as respetivas honra e consideração. Independentemente da forma como se caracterize a honra (7) e, consequentemente, da posição que se adote quanto à querela que opõe as diferentes conceções normativas e as diversas sensibilidades fáctico-normativas, é indiscutível que é esse o bem jurídico que se pretende tutelar com a incriminação da difamação e que ele tem natureza eminentemente pessoal.

Ao nível do tipo objetivo o crime de difamação comporta três condutas distintas:

- A imputação a outra pessoa de um facto, que consiste na atribuição de um facto a outra pessoa, entendido facto como um acontecimento passado ou presente, passível de prova, ou seja, cuja existência é demonstrável;

- A formulação de um juízo sobre outra pessoa, que constitui uma elaboração valorativa, que “será toda a afirmação que encerra uma apreciação pessoal negativa sobre o carácter da pessoa acerca da qual se subscreve tal juízo” (8);

- Ou a reprodução dessa imputação ou juízo, que se traduz na divulgação de uma afirmação alheia, isto é, consiste na difusão de uma afirmação que não teve origem no agente que a divulga.

Importa reter que a imputação de factos desonrosos não é ilícita quando é verdadeira e quando prossegue interesses legítimos. De igual modo não são ilícitos os juízos feitos no uso do direito à liberdade de expressão, direito fundamental previsto nos artigos 37.º e 38.º da Constituição, no artigo 19.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e no artigo 10.º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

A nível do tipo subjetivo, o crime de difamação comporta o dolo, em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal, sendo irrelevante que o agente tenha, ou não, o propósito de ofender a honra e consideração de outrem, sendo hoje pacífico na doutrina e na jurisprudência, que o tipo não exige um dolo específico, o chamado animus difamandi, bastando o chamado dolo genérico. Isto é para o preenchimento do tipo penal de difamação basta que o agente tenha conhecimento que está a atribuir um facto ou a formular um juízo de desvalor sobre outrem cujo significado se pode considerar ofensivo do seu bom-nome e reputação e o queira fazer. (9)

As circunstâncias agravantes previstas nos artigos 183.º, nº 1.º, al. b) e 184º do CP imputadas ao arguido radicam, respetivamente, no conhecimento da falsidade das imputações e na qualidade do ofendido, circunstâncias que tornam mais desvaliosa a conduta criminosa.

No que tange ao crime de denúncia caluniosa, tratando-se igualmente de um crime doloso, o tipo exige a “falsidade” da denúncia, tanto do ponto de vista objetivo como do ponto de vista subjetivo. Os factos denunciados devem ser objetivamente falsos e o agente deve ter disso conhecimento, ou seja, exige-se a consciência da falsidade da imputação.

*

Conhecidos os elementos fundamentais dos crime de difamação e de denúncia caluniosa, detenhamo-nos então sobre a situação dos autos, avaliando se os mesmos contêm indícios suficientes para submeter o arguido a julgamento pela prática por algum de tais crimes ou por ambos, como se defende no recurso, ou se o processo deverá ser arquivado, conforme foi decidido na decisão recorrida.

Sustenta o assistente que, com a sua participação, o arguido extravasou o direito à liberdade de expressão, tendo ofendido o visado na sua honra e reputação e tendo conscientemente denunciado factos falsos pelo que se constituiu como autor de um crime de difamação agravado e de um crime de denúncia caluniosa.

Tal entendimento não foi sufragado pelo Ministério Público no despacho de encerramento do inquérito, nem não foi aceite pelo juiz “a quo”, que, na decisão recorrida, tendo concluído pela insuficiência dos indícios, decidiu não pronunciar o arguido pela prática dos crimes que lhe vinham imputados no RAI.

Para rebater tal juízo indiciário e a consequente decisão de não pronúncia do arguido invocou o assistente, fundamentalmente – nas conclusões que extraiu da longa, repetitiva e pouco sistematizada motivação do recurso (10) – que a participação apresentada pelo arguido ao Presidente do…, lida à luz das regras da experiência comum e analisada em conjugação com as declarações prestadas pelo seu autor em fase de instrução, revela que a mesma consubstancia uma participação disciplinar, apresentada com o propósito de ofender a honra e a dignidade do visado, imputando-lhe conscientemente factos falsos, o que igualmente encerra uma denúncia caluniosa. Entende, pois, o assistente que tais meios probatórios constantes dos autos suportam a indiciação de factos que permitem pronunciar o arguido pela prática dos crimes que lhe vinham imputados no RAI.

*

Não lhe assiste, porém, razão.

Com efeito, analisada a prova produzida nos autos, não se nos afigura que a decisão recorrida seja merecedora dos reparos feitos pelo recorrente. Começamos por registar que a omissão de referência às funções desempenhadas pelo arguido como Coordenador da Licenciatura de … do … no elenco dos factos considerados indiciados, que o recorrente assinala a fls. 5 do recurso, (11) é absolutamente destituída de sentido, conquanto nos factos constantes do RAI, e que deveriam substanciar a chamada acusação alternativa, mais não se consignou relativamente às funções do arguido do que o que a decisão recorrida teve por indiciado. Com efeito a fls. 14 da RAI, no início da enumeração dos factos que o assistente pretendia imputar ao arguido, podemos ler:

“1. O assistente exerceu funções de Professor Coordenador na Escola … de … (doravante apenas designada por …), tendo-se aposentado em 21.11.2019.

2. O arguido exerce as funções de Professor Adjunto na ….”.

Assim, tivesse a Mmª. JIC tido por suficientemente indiciado que o arguido, para além das funções indicadas no RAI, desempenhava também outras, teria seguramente vulnerado o princípio do acusatório e da vinculação temática. Mal se compreende, aliás, que o recorrente impute à decisão recorrida omissões factuais às quais ele próprio, na qualidade de acusador, deu causa!

Por outro lado, o argumentário apresentado pelo recorrente lavra em manifesto equívoco. Com efeito, na sua longa e fastidiosa alegação – à semelhança, aliás, do que havia já ocorrido com a alegação constante do RAI – invoca o texto dos e-mails que haviam sido enviados pelo assistente ao arguido e que integram os anexos apresentados com a participação, fazendo menção de escrutinar o seu conteúdo e a sua relevância, como se de tal escrutínio pudéssemos retirar a prova dos comportamentos criminosos que o assistente pretende imputar arguido.

Ora, tal alegação revela uma ostensiva confusão de planos, pois que o que importa apurar nos presentes autos é o caráter ilícito e penalmente relevante da conduta do arguido, que, a verificar-se, apenas poderia decorrer da consciente e voluntária imputação de factos falsos ao assistente ou da formulação de juízos que constituíssem uma elaboração valorativa que encerrasse uma apreciação pessoal negativa sobre o carácter do visado. E, na verdade, conforme decorre da fundamentação da decisão recorrida, não só a participação não contém qualquer imputação de juízos de valor relativamente à pessoa do assistente – mas apenas críticas e valorações negativas quanto ao seu comportamento, consubstanciado no envio sucessivo de e-mails, comportamento, que na perspetiva do arguido, se revelava perturbador da sua tranquilidade pessoal e profissional – como o arguido nunca admitiu, nem decorre da documentação em causa, que os factos participados fossem falsos.

Acresce que os argumentos apresentados pelo recorrente encontram rebate antecipado na decisão recorrida, em termos que integralmente subscrevemos. Ali se consignou, com relevo para a análise dos argumentos convocados no recurso, que:

“(…) Indubitável é que o arguido apresentou a exposição objecto dos autos ao Presidente do …, a qual deu origem a um processo disciplinar ao aqui assistente, que culminou na aplicação de sanção disciplinar de despedimento, judicialmente impugnada (processo disciplinar a que foi apenso outro processo disciplinar).

Tal exposição foi redigida e subscrita pelo aqui assistente [ter-se-á querido dizer arguido] e era instruída com 52 documentos, dos quais vários e-mails enviados ao aqui arguido e a outras pessoas, entre os anos de 2018 e 2019.

Indubitável também é que da dita exposição, não se requer, nem resulta que a intenção clara e directa do aqui arguido com a mesma, seja a instauração de processo disciplinar contra o aqui assistente, conforme melhor resulta do seu teor.

Na verdade, dessa exposição se diz “tendo em vista defender a minha saúde psíquica e emocional e também o direito ao meu bom nome junto das várias entidades em redor da … e não pretendo mais do que tentar travar comportamentos que atentam contra o meu bem estar pessoal, familiar e profissional”.

E “solicito assim a V. Exa.se digne impedir o contacto do Professor Coordenador DD seja porque forma for, seja ela através do contacto pessoal, por via telefónica ou por via digital, vulgo, e-mail”.

Ou “venho solicitar a V. Exª. Senhor Presidente do …, se digne intervir para que o Professor Coordenador DD pare esta avalanche incómoda e condicionante moral e psicológica, na forma de comunicações institucionais”.

Aliás, o arguido ouvido a fls. 1111 e segs./1127 e segs. afirma que a sua intenção foi a de se defender, não tendo dirigido a carta a terceiros e em instrução que foi a de parar com o envio de tais e-mails (auto de declarações de fls. 1127 e segs.), sendo que foi informado que não poderia ser encerrado o endereço de e-mail (em sede de instrução) e não poderia igualmente barrar os e-mails do assistente, sendo que o endereço era um endereço profissional e nele recebia outros mails de outras fontes, de natureza profissional.

O processo disciplinar foi instaurado por determinado pelo Presidente do …, sem qualquer participação, intervenção ou influência do aqui arguido.

O arguido nunca apresentou queixa crime contra o aqui assistente em nenhum tribunal ou polícia. Limitou-se a expor superiormente um conjunto de situações. O facto de daí poder eventualmente resultar processo disciplinar para o arguido, não se comprovando que esse seja o fim visado pelo assistente, não transforma um fim possível, provável ou necessário num directamente pretendido.

Não esqueçamos que uma coisa é o dolo direto, outra, os dolos necessários ou eventuais.

O arguido veio invocar na instrução e já o tinha feito em sede de processo disciplinar, que só pretendia parar com o envio de e-mails por parte do aqui assistente, alguns sem relação consigo ou suas funções. A explicação dada pelo assistente (para o envio de tais e-mails), não se nos afigura colher, correspondendo a mesma à alegada necessidade de todos estarem informados sobre temáticas de interesse geral e de exercer em plenitude uma participação activa na vida académica.

E-mails há enviados a um conjunto de pessoas, incluindo o aqui arguido, que não se nos afigura serem do interesse ou correlacionados com o arguido, versando sobre temáticas gerais. Por exemplo, anexo 16, sobre a contratação de uma professora para a área de … e questões sobre a razão de tal contratação.

Outros e-mails, claramente visavam arguido e o punham em cheque e que foram enviados ou dados a conhecer, a diversas pessoas, sem qualquer necessidade, dada a sua temática e fim, entendendo o arguido que tal envio de tais e-mails. com tais teores enviados a quem era desnecessário deles tomar conhecimento implicava, por parte do aqui assistente, assédio moral e profissional.

O arguido mencionou que o assédio pessoal e profissional se reporta não só à quantidade de e-mails enviados, como ao seu conteúdo, nomeadamente, aqueles que nenhum interesse têm para si, sem correlação com a sua pessoa e as suas funções ou que, tendo correlação consigo, o punham em cheque.

Assim, diversos e-mails dos que constituem os 52 anexos enviados pelo arguido foram enviados ao Presidente do … ou outros destinatários, mas com conhecimento a docentes, funcionários, gabinete jurídico e outras pessoas ou entidades, incluindo o aqui arguido, o que resulta ser um procedimento continuo e constante do aqui assistente, independentemente do destinatário dos e-mails, em vista do que são tais 52 anexos.

Por exemplo, a dedução do incidente de suspeição levantado pelo aqui assistente à Profª. Adjunta EE, enviado e dirigido à Presidente do … foi objecto de conhecimento a um conjunto de pessoas (Vide fls. 25 e segs., anexo 13).

Pedido de aclaração da decisão atinente ao incidente de suspeição que constitui o anexo 33, de fls. 419 e segs., em que o e-mail é dirigido à Presidente do … mas com conhecimento um conjunto de pessoas ai elencadas em “Cc”.

Por outro lado, examinados tais e-mais, alguns claramente visam o aqui arguido, pondo-o em cheque, bem como à sua actuação profissional, tendo sido enviados a quem, seria desnecessário deles tomar conhecimento, como bem indica o aqui arguido que diz ter-se sentido assediado pelo aqui assistente e visado pelo mesmo, por tal razão e pelo seu teor.

E, o arguido fá-lo, em termos gerais, empregando linguagem não adequada, de cariz não institucional, que se pressupõe ser uma linguagem sóbria, objectiva, sem mesclar juízos de valor ou adjectivaçao de comportamentos, sem que tenha impugnado através dos meios próprios, mormente nos Tribunais Administrativos, tais actos administrativos, cuja legalidade ou regularidade põe em causa.

(…)

Frise-se que o aqui assistente não era, nem nunca foi superior hierárquico do aqui arguido, não exerceu funções de Presidente ou Vice-Presidente do … ou integrava os órgãos de gestão ou fiscalização do aludido …, mas detinha, para além da qualidade de docente, a qualidade de coordenador de departamento.

Nesta medida, não detinha nem exercia funções de controlo de legalidade dos actos praticados mormente pelo seu colega, AA, aqui arguido, nem tal lhe estava acometido no âmbito das suas funções, incluindo de coordenador.

E não colhe o argumento relativo à participação na gestão lato sensu considerada, da instituição pelo arguido.

Assim, quer o número, quer essencialmente o conteúdo, mormente com ataques à pessoa do aqui arguido e sua divulgação desnecessária a terceiros, quer o envio de e-mails sem interesse para o aqui arguido ou sem correlação directa com as suas funções, implicam que exista fundamento para o arguido se dizer assediado moral e profissionalmente, sujeito a bullying, por parte do aqui assistente, com a intenção deste lhe causar dano, incómodo, humilhação, vexame.

Mesmo a considerar-se, em abstracto, que as afirmações do aqui assistente são verdadeiras, mormente quanto à responsabilidade da não acreditação do curso de … ou outros assuntos, não lhe incumbia ao assistente apontá-lo, visando o aqui arguido e nos termos e forma como o fez e sobretudo disso dando conhecimento a um conjunto de pessoas.

Tal objectivamente implicou para o arguido humilhação e vexame.

O facto de existirem factos não comprovados pelo arguido não implica que sejam falsos (por exemplo, quanto ao dano efectivo à sua saúde ou pessoal, mormente psíquica grave).

Perpectivas pessoais, sentimentos ou opiniões, conclusões extraídas pelo aqui arguido da conduta do aqui assistente, não consubstanciam factos e muitos menos factos falsos. Parte das expressões que o assistente põe em causa, dizendo que são falsas, não consubstanciam factos.

V.g.:

“incomodam profundamente o signatário” Causam-me dano psíquico grave”.

“o signatário considera que o Professor Coordenador DD foi absolutamente vexatório e criminoso”.

“o signatário não compreende (…)”.

“o signatário considera (…)”.

“o signatário sentiu-se humilhado e vexado”.

“o signatário considera que o Professor (…) está a tentar confundir o signatário”

“o signatário considera que o envio deste e-mail não se enquadra em nenhuma das suas atribuições como professor adjunto”.

Do mesmo modo, dizer-se que um comportamento é absolutamente abusivo e sucessivo, em relação ao signatário não é mais do que uma opinião sobre um comportamento, um juízo de valor não sobre a pessoa, salienta-se, mas sobre o seu comportamento.

Do mesmo, inexactidões, não consubstanciam factos falsos. Por exemplo, o facto de o arguido dizer que depôs como testemunha da defesa, o que é verdadeiro, não implica que soubesse que também teria deposto indicado pela acusação, que nega.

O arguido justifica o que vai dizendo, ponto a ponto, com a menção aos anexos, seu conteúdo e razão da sua incompreensão ou dos seus entendimentos, que explicita.

Nesta medida, não consideramos nem que tais expressões sejam ofensivas da honra e consideração devida ao aqui assistente, mas a sê-lo, sempre o arguido teria objectivas e concretas razões para o dizer, que em geral vai explicitando na aludida carta ou explicitou mais posteriormente, nem consideramos que o arguido impute ao assistente factos e factos que sejam comprovadamente falsos, com a consciência dessa falsidade, aquando da redacção e envio da aludida carta/exposição.

Não deixamos de frisar que o arguido adoptou um conjunto de cuidados prévios ao envio da exposição/carta aqui em apreço, desde logo, consultar a advogada do sindicato, juntar os anexos ou explicitar o que diz na própria carta/exposição. Ora, daqui resulta que, ao redigir e enviar tal exposição/carta fê-lo convicto que agiu de forma lícita, dentro dos limites legais, de que se certificou.

Logo, agiu convicto que estava a exercer um direito legal de defesa do seu bom nome e bem estar, bem como um direito a expressar a sua opinião.

Desta maneira e por tal razão, só suficientemente indiciados os factos que, como tal foram considerados pelo Tribunal e não suficientemente indiciados os factos relativos à consciência da ilicitude, dolo, intenção de instaurar procedimento disciplinar, carácter ofensivo das expressões constantes da dita exposição/carta ou imputação de factos falsos na mesma, ao aqui assistente, dados como não indiciados, segundo o critério que é o vigente nesta fase processual, de mera suficiência indiciária.(…)”

É clara e fundamentada a decisão recorrida, que parcialmente acabámos de transcrever, no que tange ao juízo formulado acerca da insuficiência dos indícios, sendo certo que o escrutínio da prova produzida nos permitiu corroborar tal convencimento. Revela-se, assim, a nosso ver, inultrapassável a conclusão de que não se encontram suficientemente indiciados nos autos os factos atinentes aos elementos subjetivos dos tipos, pelo que bem andou a tribunal a quo ao decidir integrar tais factos no elenco dos factos não suficientemente indiciados.

*

Ora, desde logo, a falta de indiciação dos elementos subjetivos dos tipos, nos termos constantes da decisão recorrida, determinaria, por si só, a não pronúncia do arguido. De todo o modo, sempre se dirá ainda relativamente à pretensão recursória que, em nosso entender, o conteúdo do documento elaborado e enviado pelo arguido e apresentado pelo assistente para sustentar as incriminações, não contém, em si mesmo, objetivamente, qualquer calúnia ou quaisquer expressões difamatórias. Conforme se consignou na decisão recorrida e tal como assertivamente refere o Ministério Público, do referido texto resulta que o arguido se limitou a emitir opiniões sobre os comportamentos do assistente. Efetivamente, na mencionada participação não encontramos juízos sobre o caráter e índole pessoal do assistente, nem imputações de factos concretos, de conteúdo atentatório da reputação do visado, pelo que, a nosso ver, a conduta sindicada sempre se enquadraria no exercício legítimo do direito à crítica e da liberdade de expressão do seu autor, nunca podendo subsumir-se às previsões dos tipos penais de difamação ou de denúncia caluniosa. São, pois, atípicas as condutas indiciadas nos autos

No mesmo sentido se pronunciou o recente acórdão da Relação do Porto de 22.02.2023, relatado pelo Desembargador Pedro Vaz Pato, no qual podemos ler, relativamente aos juízos de valor que poderão assumir caráter difamatório que:

“(…) Integra a prática de um crime de difamação a formulação de juízos ofensivos da honra e consideração da pessoa visada (artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal). Porque há que conciliar o direito à honra e a liberdade de expressão, há que distinguir, a este respeito, entre a crítica da atuação de uma pessoa e a crítica que atinge a própria pessoa na sua dignidade, entre um juízo sobre essa atuação (que poderá até ser injusto, exagerado, formulado em termos agressivos, ou indelicados e descorteses) e um juízo sobre a pessoa.

(…) Traçar a fronteira entre uma e outra dessas situações passa por distinguir entre a formulação de juízos ofensivos sobre a própria pessoa visada e a formulação de juízos críticos sobre a atuação ou conduta de uma pessoa. Manuel da Costa Andrade (in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal – Uma Perspectiva Jurídico-Criminal, Coimbra Editora, 1996, pgs. 232 a 240) é claro ao considerar atípica a crítica objetiva, ou seja, a crítica de obras, prestações, realizações e atuações. Essa crítica pode situar-se nos âmbitos político, artístico, desportivo, ou outros. Estaremos perante uma situação de atipicidade, e nem sequer perante uma justificação, nos termos do artigo 31.º, n.º 2, c), do Código Penal, de uma conduta típica pelo exercício de um direito (neste caso, o direito de crítica). Na verdade, da redação dos artigos 180.º, n. 1, e 181.º, n.º 1, do Código Penal resulta que os crimes de difamação e injúria supõem a imputação de factos ou a formulação de juízos sobre uma pessoa, não a formulação de juízos sobre factos, atuações, obras, prestações ou realizações. Estes juízos, que são cobertos pela liberdade de expressão e crítica, não configuram elemento constitutivo de algum desses dois tipos de crime.”. (12)

Importa reter que a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) – que, nos termos do artigo 8.º, nº 2.º da Constituição, vigora em Portugal, na hierarquia normativa, como direito supra ordinário, ainda que infraconstitucional – no seu artigo 10.º, regula a liberdade de expressão e suas exceções. Igualmente importante se revela atentar na interpretação que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem vindo a fazer, casuisticamente, nas questões que se lhe têm colocado relativamente a esta matéria e que se tem traduzido num amplo reconhecimento do direito à liberdade de expressão, garantindo a sua tutela alargada, com base na consideração de que a divulgação de opiniões estimula o debate sobre vários assuntos, promovendo a autonomia pessoal e fomentando o progresso das sociedades, tornando-as mais abertas e democráticas.

Nesta linha de entendimento, estamos, aliás, convictos que o que permite aferir se as imputações em causa nos presentes autos se integrariam no regular exercício da liberdade de expressão do arguido é a sua contextualização, isto é, a consideração das circunstâncias em que as mesmas foram realizadas e, bem assim, dos objetivos subjacentes a tal realização. Ora, conforme refere a decisão recorrida, o fim visado com a apresentação da participação encontra-se na mesma expressamente consignado (13) e foi reiterado nas declarações prestadas pelo arguido, no mesmo não se descortinando qualquer conteúdo ou intenção difamatórios ou caluniosos.

Assim, tendo-se apurado indiciariamente, na fase de instrução do processo, matéria factual que permite contextualizar e legitimar o conteúdo da participação – mormente atendendo ao objetivo de defesa do direito à tranquilidade pessoal e profissional que se visou prosseguir – nunca a conduta do arguido poderia qualificar-se como um atropelo injustificado do direito à honra e consideração e do direito ao bom-nome e reputação do assistente.

A decisão recorrida de não pronúncia assentou na seguinte fundamentação:

- [quanto ao crime de denúncia caluniosa]“(…)No caso presente, o Tribunal não considerou que a intenção do arguido fosse a de se instaurar contra o assistente procedimento disciplinar, nem considerou que ocorreu falsa imputação de falta disciplinar (aliás, tanto assim que é o assistente foi de facto condenado em sanção disciplinar de despedimento no âmbito dos dois processos disciplinares instaurados), nem que o arguido tivesse consciência dessa falsidade.

Assim sendo, não se indiciando os factos atinentes aos elementos do tipo objectivo e subjectivo aqui em apreço, a que acresce a falta de indiciação quanto à consciência da ilicitude, há que não pronunciar o arguido por tais factos ou ilícito. (…)”

- [quanto ao crime de difamação] (…) No caso presente, não consideramos as expressões que constam da dita carta/exposição como ofensivas da honra e consideração devidas ao aqui assistente.

- Ou ainda “(…) venho solicitar a V. Exª. Senhor Presidente do …, se digne intervir para que o Professor Coordenador DD pare esta avalanche incómoda e condicionante moral e psicológica, na forma de comunicações institucionais (…)”.

Mas a sê-lo, o arguido agiu no exercício de um direito, a liberdade de expressão e opinião, por um lado e sua defesa, por outro, legítimos, em que a critica ainda se reconduz à conduta e comportamento do aqui assistente, e não versa de forma gratuita sobre a sua pessoa, tendo o arguido fundamento para ter dito o que disse.

A considerarmos o que diz como imputação de factos, o arguido visou a tutela de interesses legítimos (seus, seja a defesa do seu bom nome, saúde e bem estar) e tinha fundamentos sérios, concretos e objectivos, para dizer o que disse, como resulta da análise da própria carta/exposição e da sua prévia consulta com advogado. A forma como o disse não excede os ditames da adequação, contenção e proporcionalidade. Deste logo, o arguido utiliza sistematicamente a expressão “considera”, “não compreende”.

Nesta medida, pois, tal critica é admissível, atento o seu contexto, a motivação do arguido, as expressões utilizadas, o tom e carga utilizados, afigurando-se-nos não exceder os limites da liberdade de expressão, não se verificando qualquer aludida necessidade social imperiosa que implique a ingerência do Estado na aludida liberdade de expressão, restringindo-a, em concreto, para defesa de honra e dignidade de outrem e do ofendido em concreto. (…)

Nestes termos, também não se verifica que o arguido tenha incorrido no ilícito aqui em apreço, não se mostrando preenchidos os elementos do tipo objectivo e sujectivo deste tipo de ilícito..”

Sufragamos totalmente a conclusão de que o arguido não foi além do exercício legítimo da sua liberdade de expressão, aliás colocada ao serviço da defesa dos seus direitos pessoais e profissionais. E, nessa medida, as imputações ao assistente que fez constar da participação que enviou ao presidente do …, não poderão ser geradoras de responsabilidade penal.

São estas as razões pelas quais acompanhamos a posição adotada na decisão recorrida no sentido de que o conjunto da prova produzida nas fases de inquérito e da instrução não nos permite considerar suficientes os indícios da prática pelo arguido dos crimes de difamação e/ou de denúncia caluniosa visando a pessoa do assistente, não devendo, consequentemente, o arguido ser pronunciado e responder em julgamento pelos factos e referências normativas que lhe são imputados no requerimento de abertura de instrução, termos em que o recurso improcederá.

***

Nesta conformidade e pelas razões expostas, somos a concluir que a decisão recorrida se encontra devidamente fundamentada, e que não merece reparo, pelo que deverá manter-se nos seus precisos termos.

***

III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, em manter integralmente a decisão recorrida.

*

Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (artigo 515.º, n.º 1, alínea b) do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III anexa ao RCP).

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)

Évora, 09 de janeiro de 2024

Maria Clara Figueiredo

António Condesso

Nuno Garcia

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1 Assim decidiram, entre os outros, os seguintes acórdãos: acórdãos da Relação de Lisboa de 12.05.2015 e de 31.10.2017, relatados pelo Desembargador Artur Vargues, de 20.05.2015, relatado pela Desembargadora Elisa Sales, de 03.04.2019, relatado pela Desembargadora Filipa Costa Lourenço, de 24.11.2020 e de 08.06.2021, relatados pelo Desembargador Paulo Barreto, de 13.01.2021, relatado pelo Desembargador Alfredo Costa, de 22.09.2021, relatado pela Desembargadora Cristina Almeida Costa e de 12.10.2022, relatado pela Desembargadora Maria Perquilhas; acórdão da Relação do Porto de 26.05.2021, relatado pelo Desembargador Paulo Costa; acórdãos da Relação de Évora de 03.07.2012, relatado pela Desembargadora Ana Barata Brito, e mais recentemente, de 18.04.2017, relatado pela Desembargadora Leonor Esteves, de 13.07.2021, relatado pelo Desembargador Fernando Pina e de 07.02.2023, por nós relatado, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Em sentido contrário, encontramos o acórdão da Relação do Porto de 27.01.2010, relatado pelo Desembargador Maria Deolinda Dionísio, e o voto de vencido subscrito pelo Desembargador Rui Teixeira no acórdão da Relação de Lisboa de 12.10.2022.

2 No sentido de que a crítica à decisão sobre a existência ou inexistência dos indícios não comporta a invocação do vício de erro notório na apreciação da prova tal como no nosso ordenamento jurídico se encontra configurado se pronunciou também Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal - Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2008, pág. 909.

3 Carlos Adérito Teixeira, “Indícios Suficientes. Parâmetro de Racionalidade e “Instância” de Legitimação Concreta do Poder-Dever de Acusar” in Revista do CEJ, n.º 1

4 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de junho de 2006, disponível em www.dgsi.pt, no qual se consignou também que “a sujeição de alguém a julgamento não é um ato neutro, nem moralmente nem juridicamente, sendo sempre um incómodo, se não mesmo um vexame”.

5 Germano Marques da Silva, “Do Processo Penal Preliminar”, Editora Minerva, Lisboa, 1990.

6 Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, 1.º vol., Coimbra Editora, 1974

7 São duas as vertentes que podemos descortinar no direito à honra: a honra subjetiva, o bom-nome, que consiste no juízo valorativo que cada pessoa faz de si própria; e a honra objetiva, a reputação, que se traduz na consideração que os outros têm sobre uma pessoa, a chamada opinião pública.

8 Leal - Henriques e Simas Santos, “Código Penal Anotado”, Vol. II, 2000, pág. 470.

9 Neste sentido, entre outros, ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de janeiro de 2009, Proc. 08P3056 e Acórdão da Relação do Porto de 27 de novembro de 2019, relatado pelo Desembargador Raúl Esteves, disponíveis em disponível em www.dgsi.pt.

10 O que, manifestamente, dificultou a apreensão e compreensão dos argumentos apresentados.

11 Alegação que não incluiu nas conclusões do recurso.

12 Acórdão da Relação do Porto de 22.02.2023, também citado pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso, relatado pelo Desembargador Pedro Vaz Pato e disponível em www.dgsi.pt.

13 Podemos ler na participação:

- “(…) tendo em vista defender a minha saúde psíquica e emocional e também o direito ao meu bom nome junto das várias entidades em redor da … e não pretendo mais do que tentar travar comportamentos que atentam contra o meu bem estar pessoal, familiar e profissional. (…)”

- Ou “(…) solicito assim a V. Exa.se digne impedir o contacto do Professor Coordenador DD seja porque forma for, seja ela através do contacto pessoal, por via telefónica ou por via digital, vulgo, e-mail (…)”.