Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
201/10.3GBVRS.E1
Relator: ANTÓNIO CONDESSO
Descritores: SUSPENSÃO DO PRAZO DE PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
COVID
ESTADO DE EMERGÊNCIA
REGIME PENAL MAIS FAVORÁVEL
Data do Acordão: 02/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal prevista nos artºs 7º, nº 3, da L. 1-A/2020 de 19/3, igualmente prevista na L. 4-B/2021 de 1/2, não se aplica aos factos ocorridos antes da sua vigência.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora

(…) veio recorrer do despacho de 12-12-2019 que o declarou contumaz.

Terminou o recurso com conclusões, nas quais suscitou, em síntese, a seguinte questão:

- o procedimento criminal encontra-se prescrito desde 27/02/2019, conforme foi declarado no despacho de 2-11-2018.

Tal recurso foi rejeitado por manifesta improcedência (art. 420º, nº1, al. a) CPP), por decisão sumária.

Veio, então, o arguido apresentar reclamação para a conferência, constante de fls. 885, requerendo, também, a fls. 888 que seja declarada a prescrição do procedimento criminal.


*

Apreciando

Vejamos, então, antes de mais, se o procedimento criminal se encontra prescrito.

Está aqui em causa um crime de condução de veículo ligeiro de passageiros sem habilitação legal, por factos cometidos a 27 de Agosto de 2010, cujo prazo de prescrição do procedimento é de 5 anos (art. 118º, nº1, al. c) Cód. Penal).

Como factos relevantes susceptíveis de incorporarem causas de suspensão ou interrupção do procedimento criminal detecta-se que o arguido foi notificado da acusação em 23-11-2012, uma vez não ter ainda transitado em julgado o despacho que o declarou contumaz.

A notificação da acusação constitui-se como causa de suspensão (art. 120º, nº1, al. b) CP) pelo período máximo de 3 anos (120º, nº2 CP) e de interrupção (art. 121º, nº1, al. b) CP) da prescrição.

Face a tais elementos forçoso é concluir que decorridos 8 anos a partir de 23-11-2012, na inexistência de qualquer outra causa de suspensão ou interrupção do procedimento criminal este prescreveria.

Sucede que, entretanto, foi publicada a Lei n.º 1-A/2020, de 19-3, que estipula no n.º 3 do respectivo art. 7º que “a situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos”.

Questão está, assim, em saber se tal dispositivo excepcional tem, ou não, aplicação no presente caso, até porque, entretanto, foi, igualmente, publicada a Lei 4-B-2021, de 1-2, da qual consta dispositivo de igual teor.

Entendemos, contudo, que tais diplomas não são aplicáveis a factos praticados anteriormente à sua vigência, pelas razões correctamente explanadas em estudos e jurisprudência que de seguida se enunciam.

Assim escrevem, por exemplo, Rui Cardoso e Valter Baptista no e-book do CEJ, Estado de Emergência - COVID-19 Implicações na Justiça, 608-610, entre o mais, o seguinte:

“Dispõe o n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 que «[a] situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos».

Aqui se cria uma nova causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal e de suspensão da prescrição das penas e das medidas de segurança, a par das indicadas nos artigos 120.º e 125.º do Código Penal, respetivamente. Porém, apesar da clareza da norma, a sua aplicação no âmbito penal oferece alguns problemas.

Não obstante a discussão dogmática acerca da natureza da prescrição do procedimento criminal, para uns instituto de direito substantivo, para outros de direito adjetivo ou misto, temos por seguro que enquanto causa de extinção da responsabilidade criminal se refere ao exercício do direito de punir e não tanto, ou pelo menos não tão diretamente, ao exercício da ação penal, assumindo-se assim como verdadeiras normas de determinação do direito substantivo.

Resulta da conjugação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 4, da CRP, que ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior, sendo ainda que ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos, aplicando-se retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.

Por conseguinte, e nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do Código Penal, o momento de aplicação da lei penal no tempo é o da prática que leva à consumação do crime, sendo retroativa toda a aplicação a esses factos de lei que for posterior a esse momento.

O n.º 4 deste artigo prescreve ainda, para o que ora releva, que, quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente.

Semelhante é o resultado para quem defende o instituto da prescrição como tendo natureza adjetiva ou mista, pois as normas relativas à prescrição, seus prazos e causas de suspensão ou interrupção, inserem-se nas designadas normas processuais materiais, vinculadas também ao princípio da legalidade, pois comportam elementos relativos à punibilidade do agente.

Tais normas processuais materiais não são alheias à questão da retroatividade da lei penal, a qual veda a possibilidade de agravação do estatuto do arguido a partir de modificações posteriores à lei aplicável ao facto praticado, matéria a que também não é alheio o teor do artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do CPP.

Do supra exposto, afigura-se-nos que a nova causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal e das penas e medidas de segurança, sendo prejudicial ao arguido, pois alargará necessariamente tais prazos de prescrição, apenas poderá ser aplicada para os factos praticados na sua vigência.

Recorde-se que, nos termos previstos no artigo 3.º do Código Penal, o tempus delicti é o momento em que o agente atuou ou, no caso de omissão, deveria ter atuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido.

É esse (e não o da consumação do crime, que pode ser posterior ao da atuação do agente, ou, no caso da condenação, o do trânsito em julgado) o momento para determinação da lei penal aplicável.

Entender que a nova causa de suspensão do procedimento criminal se aplica aos prazos que, à data da sua entrada em vigor, estavam já em curso seria conferir-lhe um efeito retroativo proibido, em violação do disposto no artigo 29.º, n.º 4, da CRP, porque mais gravoso para a situação processual do arguido, alargando a possibilidade da sua punição.

O mesmo se diga relativamente a quaisquer penas ou medidas de segurança já aplicadas ou que venham ser aplicadas por crimes em que o tempus delicti é anterior à vigência da Lei n.º 1A/2020.

Note-se que o n.º 6 do artigo 19.º da CRP expressamente estabelece que «[a] declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar […] a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos […]», tendo o mesmo ficado consagrado no n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 44/86. Assim ficou igualmente expresso nos Decretos do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, que declarou o estado de emergência (artigo 5.º, n.º 1), 17-A/2020, de 2 de abril (artigo 7.º, n.º 1), e 20-A/2020, de 17 de abril (artigo 6.º, n.º 1), que o renovaram.

A nova causa de suspensão do procedimento criminal e das penas e medidas de segurança apenas poderá, então, ser aplicada para os factos praticados na sua vigência...”.

Na mesma linha vai igualmente o Ac. TRL de 24-7-2020, pr. 128/16.5SXLSB.L1-5, in www.dgsi.pt, no qual se sumariou:

- A lei penal temporária nunca é aplicável retroactivamente, a não ser nos casos em que se reconheça existir uma verdadeira sucessão de leis penais temporárias em que será aplicável a mais favorável.

- Por conseguinte, a lei penal ainda que temporária aplica-se aos factos praticados na sua vigência, tendo em conta o tempus delicti, nos termos do artigo 2.º, n.º1, do Código Penal.

- A causa de suspensão da prescrição estabelecida no artigo 7.º, n.º3, da Lei n.º 1-A/2020, enquanto seja aplicada aos prazos de prescrição do procedimento criminal e de prescrição das penas e das medidas de segurança, aplica-se aos factos praticados na sua vigência.

E pode ler-se, também, o seguinte:

“Ora, aplicar a nova causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal e de suspensão da prescrição das penas e das medidas de segurança aos prazos que, à data da sua entrada em vigor, estavam já em curso, ou seja, a factos praticados antes da sua vigência, implica, a nosso ver, uma aplicação retroactiva da lei, em sentido mais gravoso para o agente do crime e em violação do já mencionado artigo 29.º, n.º4, da C.R.P., sendo certo que nem mesmo nas situações de declaração do estado de sítio ou do estado de emergência pode ser afectada “a não retroactividade da lei criminal”, como expressamente se consagra no artigo 19.º, n.º 6, da mesma C.R.P. e foi também consagrado na Lei n.º 44/86, de 30 de Setembro, que estabelece o regime do estado de sítio e do estado de emergência.

E o mesmo - não afectação da não retroactividade da lei criminal - ficou expresso nos Decretos do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março, que declarou o estado de emergência (artigo 5.º, n.º1), n.º 17-A/2020, de 2 de Abril (artigo 7.º, n.º1) e n.º 20-A/2020, de 17 de Abril (artigo 6.º, n.º1), que o renovaram.

Esta é a questão em causa: não tanto a de convocar o artigo 2º, nº 4, do Código Penal, para a resolução do problema suscitado, mas sim o de identificar na posição perfilhada nos despachos recorridos a aplicação retroactiva da nova lei, enquanto reportada a prazos de prescrição do procedimento criminal e de prescrição das penas e das medidas de segurança - aplicação que afastamos.

Conclui-se, assim, que a causa de suspensão da prescrição estabelecida no artigo 7º, nº3, da Lei nº 1-A/2020, enquanto seja aplicada aos prazos de prescrição do procedimento criminal e de prescrição das penas e das medidas de segurança, aplica-se aos factos praticados na sua vigência.

Finalmente, o referido diploma, como já dissemos, foi publicado em 19 de Março e entrou em vigor no dia seguinte (artigo 11.º), devendo produzir efeitos a 9 desse mês nos termos do artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 4-A/2020.

Porém, sob pena de aplicarmos retroactivamente uma lei criminal, o mencionado nº3 do artigo 7.º, enquanto reportado a prazos de prescrição do procedimento criminal ou de penas e medidas de segurança, apenas pode vigorar para o futuro, ou seja, desde o momento da entrada em vigor da Lei nº1-A/2020: 20 de Março de 2020.”

O mesmo entendimento perfilha ainda, por ex., o Juiz José Martins em estudos publicados na revista Julgar online.

Daí que se imponha julgar extinto por prescrição o procedimento criminal em causa nos presentes autos.

Decisão

Termos em que se julga extinto por prescrição o procedimento criminal contra o arguido (…).

Sem custas.

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Évora,3/2/2021 António Condesso

Ana Bacelar