Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
102/16.1GBSTC-B.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PRAZO DO RECURSO
FÉRIAS JUDICIAIS
Data do Acordão: 09/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
O prazo de interposição do recurso da decisão de revogação da suspensão da execução da pena em processo em que o arguido foi condenado pela prática de crime de violência doméstica ter-se-á como suspenso durante as férias judiciais, nos termos da regra geral do n.º 1 do art.º 103.º do CPP.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No âmbito dos autos com o NUIPC 102/16.1GBSTC, em que é arguido (...), foi, em 23 de julho de 2020, proferido o seguinte despacho (transcrição):

“Nos presentes autos foi o arguido (...) condenado por sentença, transitada em julgado no dia 26-10-2018, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob condição de se submeter a consulta médica de alcoologia, e fazer tratamento à dependência do álcool.

Solicitada informação sobre o cumprimento das condições impostas ao arguido, veio a DGRSP informar que o arguido não está a cumprir a condição imposta, tendo faltado a diversas consultas, sem justificar a sua ausência.

Foi designada data para a audição do condenado e da técnica da DGRSP que tem estado a acompanhar o cumprimento da condição.

O Ministério Público teve vista dos autos, tendo requerido a revogação da suspensão da execução da pena.

A defensora oficiosa do arguido pronunciou-se no sentido de ser mantida a suspensão da execução da pena.

Cumpre apreciar e decidir:

Do relatório de acompanhamento junto aos autos pela DGRSP resulta que o arguido foi encaminhado para a Cri do Litoral Alentejano, onde esteve presente em consulta a 08/04/2019, 17/06/2019, 16/09/2019. Só compareceu no Cri, nas referidas datas, após grande insistência do técnico da reinserção social. Não compareceu a qualquer outra consulta nem iniciou tratamento, tendo faltado às consultas que lhe foram agendadas em 03/06/2019, 22/07/2019, 16/10/2019, 25/10/2019, 28/10/2019, não tendo justificado a sua ausência às mesmas, demonstrando assim, a falta de verdadeiro empenho no tratamento ao alcoolismo. Só após insistência do técnico da reinserção social, e por temer consequências judiciais, marcou consulta recentemente (06/03/2020), à qual compareceu.o mesmo.

Ouvido o arguido, o mesmo declarou que a última consulta a que foi, já foi há muito tempo, nem se lembra, diz que é capaz de ter sido há 5 meses; mais disse que este ano não foi a nenhuma consulta, a última consulta há-de ter sido em Setembro do ano passado; afirmou que não tem bebido; disse que bebe uma cervejinha ou outra à sexta-feira, afirmou que não bebe todos os dias, e não tem bebidas em casa, mais disse que com a sua mãe está tudo bem.

Ouvida a Técnica que procede ao acompanhamento do arguido, a mesma referiu que sempre acompanhou o arguido, tendo referido que o fez com muitas dificuldades, uma vez que este não demonstra qualquer consciência do problema do alcoolismo de que padece, o que dificulta a sua adesão a qualquer acompanhamento no CRI do Litoral Alentejano. Referiu que o arguido compareceu a algumas consultas, mas faltou mais vezes do que aquelas que compareceu, o que torna muito difícil para que o mesmo faça um verdadeiro tratamento.

Quando comparece, volta-lhe a ser marcada uma nova consulta com um espaçamento temporal muito grande, e essa questão foi colocada pela senhora técnica, tendo-lhe sido dito, que aquela era a data que o arguido tinha pedido, com fundamento no facto de não poder ir mais vezes por questões de trabalho. Não obstante esta justificação por parte do arguido, a DGRSP tem conhecimento que o mesmo umas vezes trabalha, outras vezes não trabalha ou trabalha só quando o dinheiro acaba. Tem, por isso, disponibilidade para ir às consultas, se forem quinzenais ou semanais e não o faz. Paralelamente, continua a beber com muita frequência, em excesso, e mesmo agora durante o estado de emergência, com os cafés fechados, comprava bebidas alcoólicas para consumir em casa, mantendo sempre o mesmo padrão de consumo que anteriormente. O arguido refere que com a mãe (a vítima), que não há conflito nenhum, mas ele também não admite os factos pelos quais foi condenado, portanto, a autocrítica dele é nula. Por outro lado, a vítima diz que ele não voltou a ser violento fisicamente com ela, mas quando chega a casa ao fim do dia depois de estar no café, é muito difícil lidar com ele, porque ele tem um comportamento muito irritável e com pouca tolerância a qualquer palavra que a mãe diga, sendo que a mesma tem feito um esforço muito grande para que nada tenha acontecido até agora.

Os motivos que podem determinar a revogação da suspensão da pena de prisão constam do artigo 56.º, n.º 1, do mesmo Código, o qual determina, por sua vez, que: “A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:

a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou,

b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas”.

Conforme resulta deste preceito, a revogação não é automática e só deve ter lugar quando o incumprimento dos deveres ou o cometimento do facto ilícito que determinou a condenação posterior revelarem que as finalidades que estavam na base da suspensão já não podem ser atingidas através dessa suspensão.

A suspensão de execução da pena, enquanto medida com espaço autónomo no sistema de penas da lei penal, traduz-se numa forte imposição dirigida ao agente do facto para pautar sua a vida de modo a responder positivamente às exigências de respeito pelos valores comunitários, procurando uma desejável realização pessoal de inclusão, e por isso também socialmente valiosa.

Para além das circunstâncias do facto e das condições pessoais do agente, a satisfação das finalidades da punição constitui um dos pressupostos relevantes da suspensão da pena, no sentido de que esta medida não poderá ser decretada quando não satisfaça, em concreto, aquelas finalidades.

A suspensão da execução da pena de prisão, aqui prevista, assenta num prognóstico favorável relativamente ao comportamento futuro do agente, que se fundamentará na ponderação da personalidade do agente e das circunstâncias do facto (mesmo posteriores ao facto e mesmo que tenham já sido valoradas em sede de medida da pena).

No caso dos presentes autos, decorridos quase 2 anos desde a sua condenação, o mesmo não demonstrou, demonstra a mínima vontade ou empenho em cumprir a condição que lhe foi imposta no plano de readaptação social e que constitui condição da suspensão da execução da pena de prisão.

Ao invés, o arguido, alheou-se totalmente da obrigação de cumprimento da condição que lhe foi imposta, não reconhecendo a necessidade de tratamento ou de comparecer às consultas, mesmo que instado a fazer pela Técnica que o acompanhava, denotando uma ausência de autocrítica para o seu comportamento e uma manifesta insensibilidade ao direito e às consequências inerentes à sua condenação nos presentes autos.

Acresce ainda que é patente no comportamento do arguido que o mesmo não pretende adoptar uma postura diferente, porquanto, não obstante o juízo de prognose favorável que lhe foi feito mediante a suspensão da execução da pena, o mesmo não cumpre a condição imposta mantendo o mesmo padrão de consumo de bebidas alcoólicas com total ausência de autocrítica para o seu comportamento e negando o mesmo.

Por outro lado, esta postura do arguido e a persistência do mesmo nos consumos que levaram à prática dos factos pelo mesmo, não permitem, neste momento, formular um juízo de prognose favorável ao mesmo.

A própria vítima, embora tenha dito à técnica da DGRSP que ele não voltou a ser violento fisicamente com ela, a verdade é que também disse, que, quando o arguido chega a casa ao fim do dia depois de estar no café, é muito difícil lidar com ele, porque ele tem um comportamento muito irritável e com pouca tolerância a qualquer palavra que a mãe diga.

Isto é, se nada aconteceu até agora, “e se está tudo bem com a mãe”, foi porque a vítima tem feito um esforço muito grande para que nada tivesse acontecido.

Ou seja, nem a iminência de poder ver a suspensão da pena ser-lhe revogada levou a que alterasse o seu comportamento.

Ora, nenhuma das soluções mitigadas previstas no artigo 55º, do Código Penal, considerando a personalidade manifestada pelo condenado, se mostram adequadas a fazer alterar o comportamento do condenado, nem levá-lo a cumprir essa condição.

Pelo que a outra conclusão não pode chegar o Tribunal a não ser que que as finalidades que se pretendiam alcançar com a suspensão da execução da pena de prisão aqui aplicada não podem ser alcançadas, pela infracção grosseira e repetidamente, por parte do arguido das regras de conduta que lhe foram impostas.

Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artigo 56º, n.º 1, al. a), do Código Penal, revogo a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido e determino o cumprimento efectivo da pena de prisão de dois anos e dois meses em que o arguido (...) foi condenado.

Notifique.

Após trânsito, passe os competentes mandados de condução do arguido ao Estabelecimento Prisional, para cumprimento de pena de prisão efectiva.

(…)”


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Inconformado com tal decisão, o arguido interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões.

I – O Recorrente não se conforma com a decisão em crise por várias ordens de razões:

a. O douto Tribunal a quo não relevou a postura do arguido ao longo de todo o processo,

b. Não foi, outrossim, devidamente considerado, o principal fim visado para a suspensão da execução da pena, especificamente enumerado na douta Sentença que a determinou.

c. O Tribunal a quo partiu de uma premissa errada dando por verificado o incumprimento das sanções acessórias, quando na verdade o arguido foi a várias consultas, que entretanto foram suspensas como medida para evitar a propagação da doença COVID-19.

II – A decisão pela suspensão da execução da pena de prisão de dois anos e dois meses aplicada ao arguido, assentou num conjunto de pressupostos que assentaram na formulação de um juízo de prognose favorável.

III – Pode ler-se na douta Sentença condenatória que «[…] o Tribunal começou por atender às declarações do arguido que admitiu a globalidade da factualidade objectiva dada, negando que tenha infligido maus tratos físicos e psíquicos sobre a mãe desde data não determinada e até 11.06.2016, mas admitiu o episódio ocorrido nesse dia. […]».

IV - Mais adiante, refere a douta Sentença que «[…] O arguido tem a seu favor a circunstância de se ter tratado de um facto isolado e de ter admitido a sua prática.»

V – Além de ter confessado os factos, o arguido cooperou com a realização da justiça contribuindo substancialmente para a descoberta da verdade material, tendo evidenciado que compreendeu o desvalor da sua conduta.

VI – Aliás nunca mais o arguido voltou a praticar qualquer crime de violência doméstica ou qualquer outro tipo ilícito.

VII – Era este juízo de prognose favorável que se teceu que era necessário afastar para revogar a decisão de suspensão de execução da pena de prisão, o que não aconteceu se não for uma forma muito superficial.

VIII - Pode ler-se na douta Sentença sob a epigrafe “Dispositivo” que se decidiu pela aplicação de uma pena de 2 anos e dois meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, mediante condição do arguido se submeter a consulta médica por forma a averiguar se o mesmo padece de alguma patologia, designadamente com comportamentos aditivos de álcool, e na afirmativa, sujeitar-se ao tratamento que lhe seja determinado, tudo em moldes a definir pela DGRSP.

IX – O arguido compareceu em consultas e tratamentos, tendo reduzido substancialmente o consumo de bebidas alcoólicas.

X – E, apesar de manter um consumo reduzido, o arguido tem não mais praticou qualquer maltrato a sua mãe ou a qualquer outra pessoa.

XI – Termos em que não se mostram reunidos elementos suficientes para determinar a revogação a suspensão da execução daqueloutra pena de prisão.

Nestes termos, e, nos demais de direito que V/Exas., doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida por outra que determine a aplicabilidade do artigo 55º do Código Penal.


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Por despacho de 17/11/2020, o recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.

*

O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela extemporaneidade do mesmo, ou, se assim não for entendido, pela respetiva improcedência, formulando as seguintes conclusões:

1ª O Recurso interposto é extemporâneo e deve ser rejeitado – como resulta do douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2021, publicado no DR n.º 112/2021, Série I , de 11-6-2021 (Uniformização de jurisprudência), aplicável aos presentes autos por remissão do artº 4º, do C.P.P.

2ª Se assim não se entender, temos que,

3ª Estamos perante um condenado que nada fez, nem fará, para alterar o seu quadro mental; para se integrar, em pleno, na vida em comunidade.

4ª Estamos perante um condenado que não cumpre a condição que lhe foi imposta, simplesmente porque não quer cumprir, não vendo na mesma qualquer vantagem.

5ª Optou por manter um comportamento de total desinteresse pela sua reabilitação para a vida em comunidade, para o assumir de responsabilidades e para a alteração de comportamento. Aliás, até para a sua audição teve o Tribunal de determinar a emissão de mandados de condução, pois o condenado não compareceu voluntariamente, isto apesar de regularmente notificado para a morada do TIR.

6ª O comportamento de desinteresse assumido pelo condenado é notório e espelha que as finalidades subjacentes à aludida suspensão não puderam, efetivamente, por meio dela virem a ser alcançadas.

7ª Aliás, mais do que desinteresse, o comportamento do condenado tem sido de desrespeito ostensivo e consciente, o que nos leva a concluir, que não é sequer de prever que cumpra o que quer que seja dada a sua personalidade de desrespeito.

8ª Em suma, estamos perante um incumprimento grosseiro e reiterado da condição suspensiva da execução da pena de prisão, imposta ao condenado.

9ª É assim, patente, que o condenado não se mostrou merecedor do prognóstico favorável formulado aquando da condenação proferida nos presentes autos.

10ª O incumprimento desta condição, pela sua reiteração e consistência, é grave e determina que a suspensão da pena de prisão aplicada ao condenado seja revogada.

11ª Com efeito, nenhuma das soluções mitigadas previstas no artigo 55º, do Código Penal, considerando a personalidade manifestada pelo condenado, se mostram adequadas a fazer alterar o comportamento do condenado, nem levá-lo a cumprir essa condição.

12ª Exortá-lo e exigir garantias de cumprimento, quando ele mente sem pudor em Tribunal, impor-lhe novos deveres quando não cumpriu os anteriores e manifestou claramente não ser sua intenção cumprir os mesmos, ou prorrogar o prazo para o cumprimento da condição imposta, que não é cumprida desde o 1º dia, são medidas que não têm qualquer pendor educativo, ressocializador ou mesmo repressor perante alguém com a personalidade demonstrada pelo condenado.

13ª A douta decisão recorrida não merece qualquer censura e deve ser mantida, e em consequência, o recorrente deverá cumprir a pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão em que foi condenado.


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No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da extemporaneidade da interposição do recurso, ou, a assim não se entender, concordando com a resposta apresentada ao recurso em 1ª instância.

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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, não foi apresentada resposta ao Parecer.

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.

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Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr.Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).

No caso sub judice a questão suscitada pelo recorrente e que, ora, cumpre apreciar, traduz-se em saber se estão, ou não, verificados os pressupostos da revogação da suspensão da execução da pena.


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Apreciando

Questão prévia

Da extemporaneidade do recurso invocada pelo MP em 1ª instância na resposta ao recurso e secundada pelo Exmº Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação no Parecer emitido.

O M.ºP.º junto do tribunal a quo e depois secundado pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação suscitou a extemporaneidade do recurso invocando que “ resulta do douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º1/2021, publicado no DR n.º 112/2021, Série I , de 11-6-2021 (Uniformização de jurisprudência), aplicável ao nosso processo (ex vi artº 4º, do C.P.P.), que:

“Os atos inseridos na tramitação dos processos qualificados como urgentes, cujos prazos terminem em férias judiciais, são praticados no dia do termo do prazo, não se transferindo a sua prática para o primeiro dia útil subsequente ao termo das férias judiciais.”

Vejamos

O processo onde foi proferida a decisão recorrida respeita à prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal, onde o arguido/recorrente foi condenado na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na execução pelo período de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses mediante condição do arguido se submeter a consulta médica por forma a averiguar se o mesmo padece de alguma patologia, designadamente com comportamentos aditivos de álcool, e na afirmativa, sujeitar-se ao tratamento que lhe seja determinado, tudo em moldes a definir pela DGRSP. 152.º, n.ºs 1, alín. a) e 2, do CP.

Nos termos do disposto no art.º 28.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, “os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos” (n.º 1), sendo que ”a natureza urgente dos processos por crime de violência doméstica implica a aplicação do regime previsto no n.º 2 do art.º 103.º do CPP” (n.º 2).

Daí que, nos termos do n.º 2 do art.º 104.º do mesmo diploma legal, os prazos respetivos corram em férias, mormente os correspondentes ao trânsito em julgado da respetiva decisão.

Ora, “O carácter urgente do processo por crime de violência doméstica, desde logo revelado pela epígrafe do próprio art.º 28.º da Lei n.º 112/2009 (“celeridade processual”), mais não constitui que a concretização do art.º 3.º desse diploma legal que, sob a epígrafe de “finalidades”, visa “consagrar os direitos das vítimas, assegurando a sua protecção célere e eficaz”.

Protecção essa do bem jurídico da saúde física, psíquica e mental das vítimas como tal consideradas (art.º 2.º, alíns. a) e b))e cuja celeridade é explicada pela defesa dos direitos delas próprias.

Quer dizer, a celeridade é endoprocessual, nenhuma razão havendo para que da tutela dos direitos dessas vítimas se extravase para a tutela de outros interesses e finalidades, v. g. para a uniformização de jurisprudência através de um recurso assumidamente extraordinário a partir de uma decisão tomada no seu âmbito.

Assim é que a natureza urgente do processo por crime de violência doméstica deva cessar com o trânsito em julgado da respectiva decisão, até porque esta se torna exequível desde esse momento (…)” (cfr.Ac do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. 768/10.6SMPRT.P1-A.S1, de 03-03-2016, in www.dgsi.pt).

Assim, o prazo de interposição do recurso da decisão de revogação da suspensão da execução da pena ter-se-á como suspenso durante as férias judiciais, nos termos da regra geral do n.º 1 do art.º 103.º do CPP.

No caso sub judice, em 23.07.2020 foi proferida decisão, pela qual se revogou a suspensão da execução da pena de prisão, determinando-se o cumprimento efetivo da mesma (cfr. referência Citius n.º 90701093).

Tal decisão foi notificada à defensora oficiosa via Citius em 27.07.2020 e ao arguido por via postal Citius com prova de depósito em 01.08.2020.

O arguido interpôs recurso em 23.09.2020 (cfr. referência Citius 5310573).

Assim, o recurso interposto é claramente atempado, pelo que improcede a questão prévia suscitada da sua extemporaneidade.


*

- Da invocada não verificação dos pressupostos da revogação da suspensão da execução da pena por inexistência de natureza grosseira da violação dos deveres impostos ao condenado.

Dispõe o artigo 50.º, n.º1, do Código Penal que «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».

As finalidades da punição são, nos termos do disposto no artigo 40.º, do Código Penal, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Traduzindo-se na não execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos, a suspensão da execução da pena constitui uma verdadeira pena autónoma.

A suspensão de execução da prisão é uma pena de substituição.

As finalidades das penas de substituição são exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa. A culpa tem a ver com o momento de determinação da medida da pena e já não com a escolha da espécie de pena (v. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crimes, pag. 331 e ss.), sendo a principal finalidade politico-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes, isto é, estão em causa essencialmente interesses de prevenção especial.

E dispõe o art. 56º nº 1 al. a) do Código Penal que a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social.

A suspensão deverá ser revogada sempre que as finalidades que estavam na base da suspensão não forem conseguidas. E, como se disse, o instituto da suspensão da execução da pena visa essencialmente o afastamento do delinquente da criminalidade.

“ A violação grosseira dos deveres ou regras de conduta impostos, de que se fala na alínea a), do n.º 1, do artigo 56º, do Código Penal, há de constituir uma indesculpável atuação, em que o comum dos cidadãos não incorra e que não mereça ser tolerada nem desculpada; só a inconciliabilidade do incumprimento com a teleologia da suspensão da pena é que deve conduzir à respetiva revogação.

Importa no entanto salientar que a infração grosseira dos deveres que são impostos ao arguido não exige nem pressupõe necessariamente um comportamento doloso, bastando a infração que seja o resultado de um comportamento censurável de descuido ou leviandade ( cfr. Ac. TRC de 17-10-2012).

As causas de revogação da suspensão não devem ser entendidas como um critério formalista, mas antes como demonstrativas das falhas do condenado no decurso do período de suspensão. Neste sentido, o arguido deve ter demonstrado com o seu comportamento que não se cumpriram as expectativas que motivaram a concessão da suspensão da pena.

O primeiro dos pressupostos justificativos da revogação da suspensão é a “infração grosseira ou repetida dos deveres ou regras de conduta impostas ou do plano de readaptação social”.

Tal violação dos deveres ou regras de conduta há de, então e como já se disse, constituir uma atuação indesculpável e insuportável para a comunidade e deve demonstrar inequivocamente que as finalidades da punição não puderam ser alcançadas através da simples ameaça de pena de prisão (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de Fevereiro de 1997, C.J., Ano XXII, Tomo I, p. 166).

Trata-se, como decorre da lei, de uma situação limite, a denunciar linearmente que o condenado assumiu uma conduta significativamente culposa, destruindo a esperança que se depositou na sua recuperação e a cujo projeto tinha aderido (Manuel de Oliveira Leal-Henriques e Manuel José Carrilho de Simas Santos in “Código Penal Anotado”, 1.º Volume, p. 712, 3.ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2002).

Ora, no caso sub judice, como se refere no despacho sob recurso “ (…) foi o arguido (...) condenado por sentença, transitada em julgado no dia 26-10-2018, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob condição de se submeter a consulta médica de alcoologia, e fazer tratamento à dependência do álcool.

Solicitada informação sobre o cumprimento das condições impostas ao arguido, veio a DGRSP informar que o arguido não está a cumprir a condição imposta, tendo faltado a diversas consultas, sem justificar a sua ausência.

Foi designada data para a audição do condenado e da técnica da DGRSP que tem estado a acompanhar o cumprimento da condição.

O Ministério Público teve vista dos autos, tendo requerido a revogação da suspensão da execução da pena.

A defensora oficiosa do arguido pronunciou-se no sentido de ser mantida a suspensão da execução da pena.

(…)

Do relatório de acompanhamento junto aos autos pela DGRSP resulta que o arguido foi encaminhado para a Cri do Litoral Alentejano, onde esteve presente em consulta a 08/04/2019, 17/06/2019, 16/09/2019. Só compareceu no Cri, nas referidas datas, após grande insistência do técnico da reinserção social. Não compareceu a qualquer outra consulta nem iniciou tratamento, tendo faltado às consultas que lhe foram agendadas em 03/06/2019, 22/07/2019, 16/10/2019, 25/10/2019, 28/10/2019, não tendo justificado a sua ausência às mesmas, demonstrando assim, a falta de verdadeiro empenho no tratamento ao alcoolismo. Só após insistência do técnico da reinserção social, e por temer consequências judiciais, marcou consulta recentemente (06/03/2020), à qual compareceu.o mesmo.

Ouvido o arguido, o mesmo declarou que a última consulta a que foi, já foi há muito tempo, nem se lembra, diz que é capaz de ter sido há 5 meses; mais disse que este ano não foi a nenhuma consulta, a última consulta há-de ter sido em Setembro do ano passado; afirmou que não tem bebido; disse que bebe uma cervejinha ou outra à sexta-feira, afirmou que não bebe todos os dias, e não tem bebidas em casa, mais disse que com a sua mãe está tudo bem.

Ouvida a Técnica que procede ao acompanhamento do arguido, a mesma referiu que sempre acompanhou o arguido, tendo referido que o fez com muitas dificuldades, uma vez que este não demonstra qualquer consciência do problema do alcoolismo de que padece, o que dificulta a sua adesão a qualquer acompanhamento no CRI do Litoral Alentejano. Referiu que o arguido compareceu a algumas consultas, mas faltou mais vezes do que aquelas que compareceu, o que torna muito difícil para que o mesmo faça um verdadeiro tratamento.

Quando comparece, volta-lhe a ser marcada uma nova consulta com um espaçamento temporal muito grande, e essa questão foi colocada pela senhora técnica, tendo-lhe sido dito, que aquela era a data que o arguido tinha pedido, com fundamento no facto de não poder ir mais vezes por questões de trabalho. Não obstante esta justificação por parte do arguido, a DGRSP tem conhecimento que o mesmo umas vezes trabalha, outras vezes não trabalha ou trabalha só quando o dinheiro acaba. Tem, por isso, disponibilidade para ir às consultas, se forem quinzenais ou semanais e não o faz. Paralelamente, continua a beber com muita frequência, em excesso, e mesmo agora durante o estado de emergência, com os cafés fechados, comprava bebidas alcoólicas para consumir em casa, mantendo sempre o mesmo padrão de consumo que anteriormente. O arguido refere que com a mãe (a vítima), que não há conflito nenhum, mas ele também não admite os factos pelos quais foi condenado, portanto, a autocrítica dele é nula. Por outro lado, a vítima diz que ele não voltou a ser violento fisicamente com ela, mas quando chega a casa ao fim do dia depois de estar no café, é muito difícil lidar com ele, porque ele tem um comportamento muito irritável e com pouca tolerância a qualquer palavra que a mãe diga, sendo que a mesma tem feito um esforço muito grande para que nada tenha acontecido até agora. “

Vejamos, então, se se mostra violada qualquer obrigação imposta como condição da suspensão da execução da pena.

E, compulsados os autos, verificamos que o arguido violou grosseiramente os deveres que lhe foram impostos como condição da suspensão da execução da pena.

Com efeito, como resulta da decisão recorrida “ No caso dos presentes autos, decorridos quase 2 anos desde a sua condenação, o mesmo não demonstrou, demonstra a mínima vontade ou empenho em cumprir a condição que lhe foi imposta no plano de readaptação social e que constitui condição da suspensão da execução da pena de prisão.

Ao invés, o arguido, alheou-se totalmente da obrigação de cumprimento da condição que lhe foi imposta, não reconhecendo a necessidade de tratamento ou de comparecer às consultas, mesmo que instado a fazer pela Técnica que o acompanhava, denotando uma ausência de autocrítica para o seu comportamento e uma manifesta insensibilidade ao direito e às consequências inerentes à sua condenação nos presentes autos.

Acresce ainda que é patente no comportamento do arguido que o mesmo não pretende adoptar uma postura diferente, porquanto, não obstante o juízo de prognose favorável que lhe foi feito mediante a suspensão da execução da pena, o mesmo não cumpre a condição imposta mantendo o mesmo padrão de consumo de bebidas alcoólicas com total ausência de autocrítica para o seu comportamento e negando o mesmo.

Por outro lado, esta postura do arguido e a persistência do mesmo nos consumos que levaram à prática dos factos pelo mesmo, não permitem, neste momento, formular um juízo de prognose favorável ao mesmo.

A própria vítima, embora tenha dito à técnica da DGRSP que ele não voltou a ser violento fisicamente com ela, a verdade é que também disse, que, quando o arguido chega a casa ao fim do dia depois de estar no café, é muito difícil lidar com ele, porque ele tem um comportamento muito irritável e com pouca tolerância a qualquer palavra que a mãe diga.

Isto é, se nada aconteceu até agora, “e se está tudo bem com a mãe”, foi porque a vítima tem feito um esforço muito grande para que nada tivesse acontecido.

Ou seja, nem a iminência de poder ver a suspensão da pena ser-lhe revogada levou a que alterasse o seu comportamento.”

Decorre assim que o arguido não cumpriu com o estabelecido, recusando mudança no seu comportamento, esquecendo as razões do Tribunal para lhe suspender a execução da pena de prisão.

Desta atitude de desconsideração do arguido, resulta evidente que o mesmo não interiorizou o desvalor da sua conduta, nem interiorizou as finalidades que estiveram na origem da decisão de suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado, tendo optado por adotar uma postura de indiferença e de desrespeito frontal para com o Tribunal e uma conduta ofensiva do comportamento conforme o dever-ser jurídico.

Tal conduta coloca, definitivamente, em causa o juízo de prognose favorável que esteve na base da suspensão da execução da pena de prisão, revelando-se a simples ameaça da pena de prisão claramente insuficiente para manter o arguido afastado da delinquência, conformando o seu comportamento no respeito pelas normas que regem ética e juridicamente a nossa comunidade.

Por outras palavras, a suspensão da execução da pena não se revela, no caso em apreço, suficiente para acautelar as finalidades preventivas gerais e especiais que subjazem à aplicação de uma pena ou medida de segurança.

Assim, atento o supra referido e com tais fundamentos, não restava ao Tribunal a quo outra alternativa que não fosse a de revogar a suspensão da execução da pena de prisão.


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Decisão

Face ao supra exposto e com tais fundamentos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em:

- julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido, mantendo-se a decisão recorrida.

- Condenar o recorrente em custas fixando em 3 Ucs a taxa de justiça.


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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 7 de setembro de 2021

Laura Goulart Maurício

Maria Filomena Soares