Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
700/06.1TASTB.E1
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 04/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I. Não sendo deduzida acusação, o requerimento de abertura de instrução substitui tal peça, delimitando o thema decidendum.

II. É em função do conteúdo dessa peça que o arguido pode praticar o contraditório e exercer, na sua plenitude, as suas garantias de defesa.

III. Não deve ser recebido um RAI onde se não delimitem, com precisão, os factos concretos a apurar, susceptíveis de integrar os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime imputado ao arguido
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE COMPÕEM A 2ª SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I. No inquérito que, com o nº 700/06.1TASTB, corre termos nos serviços do Ministério Público da comarca de Setúbal, foi proferido, em 25/5/2007, despacho final de arquivamento.

Luís P. constituiu-se assistente e requereu a abertura da instrução.

O Mº JIC, contudo, rejeitou o requerimento de abertura de instrução por, atento o seu conteúdo, se verificar uma inadmissibilidade legal da instrução.

Não conformado, o assistente interpôs o competente recurso, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcritas):

«a) Inconformado com o teor do despacho de arquivamento proferido em sede dos autos, veio o Recorrente requerer a abertura de instrução, por intermédio do requerimento de fls. 65-66;

b) A sua pretensão foi liminarmente rejeitada pelo Tribunal a quo;

c) Ora, salvo o devido respeito, de forma alguma o Recorrente se poderá conformar com o teor do despacho que recaiu sobre o requerimento apresentado e, consequentemente, rejeitou a abertura da instrução requerida;

d) O requerimento para abertura da instrução requerida pelo assistente deve conter, para além do mais, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança,

incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada;

e) Assim determinam, em consonância, as alíneas b) e c), do n.º 3 do artigo 283.°, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi pelo n.º 2, parte final, do artigo 287.° do mesmo Código;

f) Nestes termos e ao contrário do decidido, o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo ora Recorrente, mostra-se perfeito, tendo em conta a identificação dos arguidos, a narração sumária dos factos que determinam a pronúncia, as regras jurídicas violadas e a prova apresentada;

g) É, pois, inevitável reconhecer que nenhum requisito legalmente exigível ficou por preencher, apresentando-se, assim, o requerimento em apreço, formal e metodologicamente estruturado, não existindo, pelo exposto, qualquer fundamento para negar a abertura de instrução, atento o facto de estarem preenchidos os requisitos referentes aos formalismos necessários de conteúdo do requerimento em apreço;

h) Logo, o douto despacho recorrido, ao determinar que não foram cumpridos os ditames do artigo 283.°, do Código de Processo Penal, padece de fundamento legal quanto à rejeição do aludido requerimento de abertura de instrução, pelo que o Tribunal a quo deveria nos termos do artigo 287.°, n.º 3, do Código de Processo Penal, mandar seguir os autos de instrução em virtude de não existir fundamento legal para a sua rejeição;

i) Acresce ainda que, os fundamentos da rejeição do requerimento de instrução são taxativos e não se subsumem ao fundamento invocado, mas também e por outro lado, ainda que os argumentos expostos não procedam, o que não se concede, nos casos em que a lei não sancione o vício com a nulidade, o acto ilegal é irregular com os efeitos cominados no artigo 123.°, do Código de Processo Penal;

j) O Tribunal a quo, deveria ter ordenado a aplicação do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, ordenando a repetição do acto, notificando a assistente para completar os elementos que, na óptica daquele órgão jurisdicional, o assistente omitiu.

k) Mostram-se assim violados os artigos 9.°, 118.°, 122.°, 123.°, 287.°, n.º 2 e 283.º, todos do Código de Processo Penal».

O Digno Magistrado do MºPº na 1ª instância respondeu, pedindo a improcedência do recurso.

Nesta Relação, porém, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, entendendo que se justificava a formulação de um convite ao aperfeiçoamento.

Cumprido o disposto no artº 417º/2 do CPP, não houve resposta.

II: Realizado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Sabido que são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam o âmbito do recurso - artºs 403º e 412º, nº 1 do CPP - cumpre dizer que em discussão nos presentes autos estão as seguintes questões:

1ª - o RAI (requerimento de abertura de instrução) deduzido pelo assistente reúne as condições legais para ser recebido?
2ª - em caso negativo, deveria ter sido proferido despacho convidando o assistente a aperfeiçoá-lo?

Escreveu-se no despacho recorrido, na parte que aqui releva:

«No presente caso, o requerimento não é extemporâneo, e o tribunal é competente.

Porém, compulsado o arrazoado que consta do requerimento de abertura de instrução, detecta-se que não enunciou um acervo factual pelo qual o Ministério Público não deduziu acusação, e não se vislumbra no mesmo qualquer alusão ao elemento subjectivo do crime imputado ao acusado.

Na realidade, não se alegam factos que consubstanciem o crime de denúncia caluniosa que é imputado ao acusado, apenas se alude a uma declaração emitida pela Polícia Judiciária – que constituiria um eventual meio de prova relativamente a determinados factos, se os mesmos viessem alegados – sem se assacar ao acusado a prática de quaisquer factos que integrem o elemento objectivo – e menos ainda o elemento subjectivo – do tipo criminal que lhe é imputado.

Apreciando.

Após a entrada em vigor das alterações ao artigo 287º do Código de Processo Penal, operadas pela Lei número 59/98 de 25/08, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente está sujeito ao formalismo prescrito nas alíneas b) e c) do número 3 do artigo 283º do mesmo diploma.

Quer isto dizer que deve conter sob pena de nulidade, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (incluindo se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação do agente).
De facto, “não compete ao juiz perscrutar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que se poderão indiciar como cometidos pelo arguido, pois, se assim fosse, estar-se-ia a transferir para o juiz o exercício da acção penal, com violação dos princípios constitucionais e legais vigentes. Após o arquivamento pelo M.P., o requerimento de abertura de instrução do assistente equivalerá em tudo à acusação, definindo e limitando o objecto do processo a partir da sua apresentação.”

É uma consequência da estrutura acusatória do processo a definição do seu thema decidendum pela acusação. Quando esta não existe, é o requerimento de abertura de instrução que tem que fixar tais limites.

E esclareça-se, a instrução não tem por finalidade directa a fiscalização ou complemento da actividade de investigação e recolha de prova realizada no inquérito. A instrução é actualmente uma actividade materialmente judicial e não de investigação ou materialmente policial ou de investigações.

Como consequência, a insuficiência da investigação realizada pelo Ministério Público no inquérito é sindicada hierarquicamente por via de reclamação e a errada valoração dos indícios colhidos na investigação é sindicada judicialmente por via da abertura de instrução.

Nos casos de decisão de arquivamento, como sucede aqui, o juiz de instrução, quando aceite as razões aduzidas pelo assistente, e discordando da decisão de não acusação do Ministério Público, não ordena a este órgão que proceda em conformidade com a sua decisão, antes recebe a acusação implícita no requerimento do assistente, pronunciando, se for o caso disso, o arguido pelos factos constantes dessa acusação.

O acusador, no caso, o assistente, requer ao tribunal a submissão a julgamento do acusado (relativamente ao qual o processo foi arquivado) pela prática dos factos que obrigatoriamente tem que descrever na acusação, em conformidade com as disposições legais aplicáveis, que também deve (obrigatoriamente) indicar.

No caso do requerimento de abertura de instrução apresentado nos autos, verifica-se a omissão de imputação de qualquer ilícito ao acusado por falta de menção dos elementos objectivo e subjectivo do tipo criminal enunciado.

De facto, verifica-se que nem sequer são imputados factos concretos ao denunciado.

É que a prática de um ilícito criminal importa o preenchimento não só do elemento objectivo, mas também do elemento subjectivo, este que por sua vez se subdivide nos elementos cognitivo e volitivo.

A imputação tem que ser absoluta em si, com efeito, se se imputam factos donde resulte a existência dos dois elementos, na sua integralidade, esses factos tem que vir claramente discriminados, para que o acusado deles se possa defender.

Como se referiu, não existe no requerimento de abertura de instrução qualquer referência factual relativa ao elementos típicos do crime imputado ao denunciado.

Sempre defendi todavia, que sendo possível, deve o tribunal convidar a parte a aperfeiçoar as suas posições. É a justiça material que deve nortear a actuação dos tribunais.

Porém, no presente caso tal, possibilidade não se verifica.

É que caso o tribunal se substituísse ao assistente, estaria a proceder a uma alteração substancial de factos, inadmissível in casu, pondo em causa os princípios da imparcialidade do julgador, do contraditório e da estrutura acusatória do processo penal (artigo 32°, número 5, da Constituição da República Portuguesa).

Relembre-se a conclusão a que se chegou no Acórdão de Fixação de Jurisprudência número 7/2005 (in DR. I-A, número 212, de 4 de Novembro de 2005): “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”.

Ora, face a tudo o que ficou exposto, dúvidas não restam de que a presente instrução é inadmissível, uma vez que não obedece à estrutura acusatória do processo, nem assegura as garantias de defesa do arguido, estando em clara violação do disposto no artigo 283º, número 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi artigo 287º, número 2, do mesmo diploma, sendo o seu objecto impossível e consequentemente inexistente.

Pelo exposto, outra solução não existe que, ao abrigo do disposto no artigo 287º, número 3, do Código de Processo Penal, rejeitar o requerimento de abertura de instrução de fls. 65-66, por, atento o conteúdo do mesmo (e dele se extrair a violação do comando dos artigos 287º, número 2, e 283º, número 3, als. b) e c) do mesmo diploma), se verificar uma inadmissibilidade legal da instrução.

O que vai decidido».

III. . Apreciando (e nesta parte seguindo de muito perto o Ac. desta RE proferido no Proc. 1443/09.0TASTB.E1, também oriundo dos Serviços do MºPº da comarca de Setúbal, relatado pelo aqui também relator):

a) O RAI deduzido pelo assistente reúne as condições legais para ser recebido?

Nos termos do disposto no artº 287º, nº 2 do CPP, o requerimento de abertura da instrução “não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º”.

Este acréscimo de exigência legal constante da parte final do preceito referido foi, como se sabe, introduzido pela L. 59/98, de 25/8.

E assim sendo, o requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente há-de conter “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” (al. b) do nº 3 do artº 283º) e “a indicação das disposições legais aplicáveis” (al. c) idem).

Percebe-se que assim seja.

Não sendo deduzida acusação, o requerimento de abertura de instrução substitui tal peça, delimitando o thema decidendum, a actividade instrutória do juiz e, em última análise, o conteúdo de eventual despacho de pronúncia (cfr. o disposto nos artºs 303º, 308º e 309º do CPP).

É em função do conteúdo dessa peça que o arguido pode praticar o contraditório e exercer, na sua plenitude, as suas garantias de defesa. Daí que o cumprimento do estatuído nas als. b) e c) do nº 3 do artº 283º do CPP (ex vi do artº 287º, nº 2 do mesmo diploma) tenha em vista, em última instância, a tutela dessas garantias de defesa: perante um requerimento de abertura de instrução onde se não delimitem, com precisão, os factos concretos a apurar, susceptíveis de integrar os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime imputado ao arguido, carece este de elementos suficientes em ordem a organizar a sua defesa.

Como refere Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 140, “na instrução a requerimento do assistente, o juiz investigará os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar indiciados e nada mais obstar ao recebimento da acusação pronunciará o arguido por esses factos (arts. 308º e 309º). Não há lugar a uma nova acusação; o requerimento do assistente actuou como acusação e, assim, se respeita formal e materialmente a acusatoriedade do processo”.

No mesmo sentido vai o acórdão desta Relação proferido em 14/4/95, CJ ano XX, 2º, 280: “I. O requerimento de abertura de instrução, no caso de abstenção da acusação, equivale à acusação, devendo conter a indicação dos factos concretos a averiguar e que possam preencher os elementos objectivos e subjectivos do crime imputado ao arguido. II. A decisão instrutória só pode recair sobre factos que foram objecto da instrução, ficando o objecto do processo delimitado pela indicação feita naquele requerimento” (ainda no mesmo sentido vão os acórdãos desta Relação de 16/12/97, BMJ 472º, 585 e de 13/1/98, BMJ 473º, 586 e o Ac. RP de 21/11/2001, www.dgsi.pt). E pelo mesmo diapasão alinha a generalidade da jurisprudência mais recente dos nossos tribunais superiores (a título meramente exemplificativo, cfr. Acs. RL de 1/4/2008 e de 31/1/2008 (rel. Ana Sebastião e João Carrola, respectivamente) e da RC de 1/4/2009 [1] (rel. Jorge Gonçalves), in www.dgsi.pt.

Assim delimitados os termos da questão, cabe verificar se o RAI formulado nos autos cumpre os requisitos enunciados no artº 287º, nº 2 do CPP e, em particular, as exigências legais expressas nas als. b) e c) do nº 3 do artº 283º do mesmo diploma (por força da remissão operada pelo primeiro dispositivo legal citado).

O requerente (e ora recorrente) começa por referir que “conforme resulta dos autos, no seguimento de uma denúncia apresentada pelo aqui Requeridos Carlos Rosa e outros, pela alegada prática do crime de sequestro, o OPC chamado ao local indicado, in casu, Inspectores da PJ, terão constatado que o crime denunciado não se encontrava a acontecer” – artº 10º. Refere, de seguida (artº 11º), o que a Srª Coordenadora Superior de Investigação Criminal fez consignar nos autos (o seu entendimento de que os factos objecto de denúncia não tinham fundamento e que, consequentemente, a gravidade da conduta do denunciante não poderia ficar impune) – artºs 11º a 14º. Refere, de seguida, as diligências efectuadas pelo Magistrado do MºPº (artºs 17º a 31º), para concluir que “os factos descritos em 9º e 10º são susceptíveis de integrar a prática de um crime de simulação de crime” – artº 32º. E termina, indicando as diligências de prova que, em seu entender, hão-de ter lugar.

Aquilo que de forma mais ou menos perceptível se retira do RAI (e mesmo assim, só em termos conclusivos) é que o requerido Carlos Rosa “e outros” (exactamente, quem?) terão denunciado a prática de um crime que não tivera lugar.

Tão só.

As circunstâncias de tempo, modo e lugar são absolutamente omitidas.

Não basta remeter para o conteúdo de documentos existentes nos autos: é necessário concretizar, de forma clara, coerente e consequente, os factos que, na óptica do requerente, fundamentam a aplicação ao(s) arguido(s) de uma pena.

No RAI em apreço, nem sequer se elencam, aliás, quaisquer factos relativos ao elemento subjectivo do tipo.

Ora, como bem se decidiu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 358/2004 (relatado pela Srª Conselheira Fernanda Palma), acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040358.html, «a estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução. Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa. Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis. Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução. Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada».

E a propósito da possibilidade de tal menção ser feita por remissão para elementos dos autos, pergunta-se no mesmo aresto: «Será, porém, aceitável a exigência de que tal menção seja feita por remissão para elementos dos autos, ou pelo contrário, será inconstitucional, por violação do direito ao acesso aos tribunais, que seja vedada a possibilidade de tal indicação ser feita por remissão para elementos dos autos? A resposta é negativa. Com efeito, a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo. De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa. Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo. Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito».

E é isso que falta no RAI formulado nestes autos: a delimitação factual sobre a qual há-de incidir a instrução, uma verdadeira “acusação alternativa”, com o mesmo rigor e precisão que é exigível ao libelo acusatório (público ou particular).

Em suma: o RAI formulado nestes autos não respeita a exigência legal contida no artº 283º, nº 3, al. b) do CPP.

b) Aqui chegados, há que responder à segunda questão suscitada nas conclusões do recurso: deveria o Mº juiz ter proferido despacho convidando o assistente a aperfeiçoar o RAI?

Trata-se de matéria que, como é sabido, suscitou entendimentos diversos na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, querela à qual foi posto termo pelo Acórdão do STJ para uniformização de jurisprudência nº 7/2005, publicado no DR I-série-A nº 212, de 4/11/2005: «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».

Como é sabido, nos termos do disposto no artº 445º, nº 3 do CPP, tal acórdão “não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão”.

Com esta norma não se quis, como bem observa o STJ, no seu Ac. de 27/02/2003, relatado pelo Cons. Simas Santos, www.dgsi.pt, “referir o dever geral de fundamentação das decisões judiciais (artºs 97º, nº 4, 374º do CPP), antes postular um dever especial de fundamentação destinado a explicitar e explicar as razões de divergência em relação à jurisprudência fixada”. Mais: havendo recurso obrigatório das decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo STJ e limitando-se este Tribunal a aplicar a jurisprudência fixada, “apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada” - artº 446º, nº 3 do CPP - as únicas razões que podem levar um tribunal judicial a afastar-se da jurisprudência fixada são, então, aquelas que levam à conclusão de que a mesma está ultrapassada. Ainda segundo o entendimento perfilhado no Ac. STJ de 27/02/2003 supra referido, isso sucederá quando:
“- o tribunal judicial em causa tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador (no seu texto ou em eventuais votos de vencido), susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada;

- se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a que, na actualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso; ou, finalmente,

- a alteração da composição do Supremo Tribunal de Justiça torne claro que a maioria dos juízes das Secções Criminais deixaram de partilhar fundadamente da posição fixada”.

Nenhuma destas três situações se verifica no caso em apreço. Consequentemente, justifica-se completamente a adesão à doutrina fixada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência acima aludido.

E porque assim é, não havia lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento, como o Mº juiz a quo bem decidiu.

Em suma e em conclusão: deve ser objecto de rejeição o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, na sequência de despacho de arquivamento do inquérito, que não contenha a descrição circunstanciada, ainda que sintética, dos factos relativos quer aos elementos objectivos, quer aos elementos subjectivos do tipo, imputados ao arguido, susceptíveis de fundamentar a aplicação de uma pena.

E nessa medida improcede o recurso.

IV. Em conclusão, nos termos das disposições legais citadas, acordam os juízes desta secção criminal em julgar totalmente improcedente o recurso, confirmando o douto despacho recorrido.

Pagará o assistente taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UC’s – artº 515º, nº 1, al. b) do CPP.

Évora, 12 de Abril de 2011 (processado e revisto pelo relator)

Sénio Manuel dos Reis Alves

Fernando Ribeiro Cardoso

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[1] Pela sua pertinência, permitimo-nos aqui transcrever o sumário desse acórdão: «1 - Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa. II - Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis. III - Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução. IV - O assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. V - Não tendo sido deduzida acusação pública, o requerimento (do assistente) de abertura da instrução que não contenha os factos que se imputam ao arguido e pelos quais se pretende que este venha a ser pronunciado não será apto a possibilitar a prolação de uma decisão instrutória de pronúncia que seja válida. No mínimo (e dizemos “mínimo” porque, nessas condições, parece inexistir um verdadeiro objecto da instrução), tal decisão seria nula nos termos do artigo 309.º, n.º1».