Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
13/07.1GLBJA.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: CRIME DE AMEAÇAS
Data do Acordão: 11/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário:
1. O crime de ameaças na sua configuração atual é um crime de perigo concreto.

2. A expressão “Tenho que te partir as ventas todas!” – encerra, inequivocamente, o sentido de causar um mal à integridade física do ofendido, configurando acção de atingir o ofendido, corporalmente, na face.

3. Falece um dos pressupostos do tipo legal – a temporalidade futura - se as expressões usadas foram acompanhadas por actos próprios de agressão, estando esta implícita naquelas
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora


1. RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, perante tribunal singular, com o n.º 13/07.1GLBJA, do 2º.Juízo do Tribunal Judicial de Beja, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido JB, imputando-lhe, como autor material, um crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153.º, n.º 1, do Código Penal (CP), pela prática dos factos descritos a fls. 50/51.

Octávio M deduziu pedido de indemnização civil contra o mesmo JB, como consta de fls. 59/62, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de €600,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal, a contar da data da notificação do pedido e até efectivo e integral pagamento.

O arguido apresentou rol de testemunhas e juntou um documento.

Realizado o julgamento e por sentença proferida em 27.11.2009, decidiu-se, além do mais:

- condenar o arguido, como autor material de um crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153.º, n.º 1, do CP, na pena de 70 (setenta) dias de multa à razão diária de €7,00 (sete euros), perfazendo o global de €490,00;

- condenar o mesmo a pagar ao demandante Octávio Relvas a quantia de €600,00 (seiscentos euros), acrescida dos juros de mora a contar da data da sentença e até efectivo e integral pagamento, à taxa de 4%.

Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso, formulando - após convite ao seu aperfeiçoamento, nos termos do art.417.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (CPP) - as conclusões:

A) O presente recurso versa matéria de facto e de direito;

B) Quanto à primeira, encontram-se erradamente dadas por provadas as expressões “ai de ti que voltes a dar boleia à minha filha” e “tenho que te partir as ventas todas”;

C) As expressões julgadas ameaçadoras “ai de ti que voltes a dar boleia à minha filha” e “tenho que te partir as ventas todas” não preenchem os elementos objectivos típicos do crime de ameaça, designadamente por não integrarem a ameaça com um mal futuro, pelo que a douta sentença recorrida violou o artigo 153º nº 1 do Código Penal;

B) O objecto do presente recurso incide sobre a insuficiência da matéria de facto dada como provada, e consequente absolvição do arguido, atento o princípio constitucional do in dubio pro reo;

C) O Tribunal “a quo” fundamentou a decisão sobre a matéria de facto, com base na análise da prova produzida em audiência, pelos depoimentos do ofendido, da testemunha MR e a testemunha António, que admite como “exagerados”, tendo em conta a máxima da experiência comum;

D) Tais depoimentos não demonstraram isenção, consistência, inventaram muitas expressões e atitudes que o arguido não disse e que não constam da acusação, logo têm todas as condições para não serem credíveis e as expressões dadas por provadas pelo Tribunal “a quo” não serem dadas como provadas;

E) Como se alcança da Gravação Áudio (CD) do depoimento do ofendido Octávio M, primeiro este refere que o arguido o ameaçou, dizendo: “tinha que conversar assim e assado” e “se der boleia à minha filha”, conforme gravação da Audiência Discussão e Julgamento, como se alcança da Gravação Áudio (CD) declarações do ofendido e concretamente a partir de 03.50 até 4.04. Mais, referiu que também foi ameaçado com a expressão “quando te apanhar faço-te e acontece-te” como se alcança da Gravação Áudio (CD) declarações do ofendido e concretamente a partir de 04.21 até 4.38, “és um filho da mãe”, “és um porco”, “não vales nada”, como se alcança da Gravação Áudio (CD) declarações do ofendido e concretamente a partir de 06.49 até 6.55, “sei lá, até ao ponto, se calhar, posso-te matar”, como se alcança da Gravação Áudio (CD) declarações do ofendido e concretamente a partir de 07.13 até 7.21;

F) É o ofendido que no seu depoimento em Julgamento diz “chamou aqueles nomes todos”, como se alcança da Gravação Áudio (CD) declarações do ofendido e concretamente a partir de 10.44 até 10.45, e “qualquer pessoa ficava com medo dos nomes”, como se alcança da Gravação Áudio (CD) declarações do ofendido e concretamente a partir de 10.51 até 10.52;

G) Depois explica o ofendido ao Tribunal “a quo”, que depois das “alegadas ameaças”, o arguido o agarrou no pescoço e o atirou contra a parede, como se alcança da Gravação Áudio (CD) declarações do ofendido e concretamente a partir de 04.45 até 4.53, a partir de 05.32 até 5.35, a partir de 05.55 até 6.05, a partir de 1 0.30 até 10.43, a partir de 17.35 até 17.40 e a partir de 17.57 até 18.18. Tanto assim, que a fls. 7 dos autos assinou uma declaração a “autorizar para todos os efeitos legais que o Hospital Distrital de Beja forneça aos serviços do Ministério Público, todos dos dados clínicos referentes aos exames médicos efectuados em 27/08/2007, pelas 11,30 horas, naquela Instituição Hospitalar”;

H) Perante o depoimento do ofendido Octávio M ficamos esclarecidos que afinal não foi nem se sentiu verdadeiramente ameaçado mas sim agredido. Além disso, como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações do ofendido Octávio M e concretamente a partir de 6.37 até 6.39, o ofendido caracteriza o facto como agressão – “a última que meteu agressão”;

I) Perante o depoimento do ofendido o Tribunal “a quo” deveria ter dado como não provada a acusação;

J) Ao contrário da convicção do Tribunal “a quo” o depoimento da testemunha MR, veio demonstrar falta de isenção, até mesmo e como explicou ao Tribunal “tem conflitos com o arguido motivado pela separação de ambos e a relação entre ambos não está boa”, como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações da testemunha MR e concretamente a partir de 1.28 até 1.30;

K) A testemunha MR no seu depoimento afirmou “que se encontrava no seu veiculo e não ouvia o que alegadamente o arguido e o ofendido falavam”, como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações da testemunha R e concretamente a partir de 5.04 até 5.05. Mais, disse a testemunha que somente ouviu “só ouvi dizer: ai de ti”, como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações da testemunha MR e concretamente a partir de 5.10 até 5.12 e de 5.17 até 5.18 e seguidamente “o senhor Manuel agarrou-se ao pescoço e atirou-o contra a parede”, como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações e concretamente a partir de 5.37 até 5.45;

L) Ofendido Octávio, no seu depoimento referiu ao Tribunal que após os alegados factos “foi directo para o Posto da Guarda Nacional Republicana de Aljustrel, para apresentar queixa das alegadas AMEAÇAS”, como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações do ofendido e concretamente a partir de 18.19 até 18.32. Mesmo tendo sido agredido conforme referiu ao Tribunal, e a testemunha MR, no seu depoimento disse que o ofendido Octávio e a testemunha foram para sua casa, logo após os alegados factos, porque ele estava muito nervoso “primeiro teve que se acalmar, não conseguia articular uma palavra e depois foi apresentar queixa à GNR”, como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações da testemunha MR e concretamente a partir de 6.49 até 7.03 e de 10.15 até 10.29;

M) No auto de inquérito, a fls. 25 e 26 dos autos, que se dá por provado, a testemunha MR refere que “... por isso ficou bastante perto, e dava para ouvir e ver perfeitamente o que sucedeu”. Mas, no depoimento em julgamento disse que se encontrava no seu veiculo e não ouvia o que alegadamente o arguido e o ofendido falavam, como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações da testemunha e concretamente a partir de 5.04 até 5.05. Mais, disse a testemunha que somente ouviu “só ouvi dizer: ai de ti”, como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações da testemunha MR e concretamente a partir de 5.10 até 5.12 e de 5.17 até 5.18. A fls. 34 dos autos, a Exmª Senhora Procuradora Adjunta, devolveu os autos à GNR de Ervidel para que procedessem de novo à inquirição da testemunha MR, de forma a “declarar quais foram, em concreto, as expressões proferidas pelo arguido, não bastando a declaração genérica de confirmação do conteúdo do Auto de Denúncia que, aliás, não deverá ser lido à testemunha”;

N) Perante os diferentes depoimentos da testemunha MR, o Tribunal “a quo” deveria ter dado como não provada a acusação e considerar que o depoimento foi prestado de uma forma não isenta;

O) Nos factos provados, o Tribunal “a quo” concluiu em que o arguido quis apenas “...assustar o arguido. Isto é, o agarrar o pescoço do arguido visou mostra-lhe que o mesmo queria fazê-lo acreditar dos seus intentos futuros.”. Perante os depoimentos do ofendido e da testemunha MR, não existem intentos futuros, mas uma agressão actual, que não consta da acusação, como se alcança da Gravação Áudio (CD) declarações do ofendido Octávio e concretamente a partir de 04.45 até 4.53, a partir de 05.32 até 5.35, a partir de 05.55 até 6.05, a partir de 10.30 até 10.43, a partir de 17.35 até 17.40 e a partir de 17.57 até 18.18 e como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações da testemunha Maria Helena Rosa e concretamente a partir de 5.37 até 5.45;

P) Como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações do ofendido Octávio e concretamente em 11.16, no seu depoimento disse ao Tribunal que “andava traumatizado”, a partir de 11.37 até 11.50, disse que “muitas vezes impediu de sair a um café”, no mesmo passo que a partir de 11.40 até 11.47, disse “muitas vezes quando os meus amigos me pediam para ir beber um café, eu não ia só para não estar a encontrar com o senhor José”. Na sequência do depoimento do ofendido Octávio e concretamente a partir de 12.19 até 12.22, veio dizer que “se ele entrava eu saía”, e concretamente a partir de 20.30 até 20.46, veio dizer que “cheguei a ir ao café, beber café e abalar. Se ele entrasse eu saía”. Por outro lado, o ofendido Octávio e concretamente a 11.20 até 11.21, disse que “não saía de casa". No mesmo passo, que o ofendido bem sabia que ao deslocar-se ao café em Ervidel, encontraria o ora recorrente, tanto assim, como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações do ofendido Octávio e concretamente a 21.01 até 21.20, veio confirmar tais encontros;

Q) O ofendido nunca teve qualquer medo ou inquietação em encontrar o recorrente;

R) Tanto assim, que além das declarações do ofendido, a testemunha AM como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações da testemunha e concretamente a 5.15 até 5.16, referiu ao Tribunal no seu depoimento que o ofendido “continuou a ir ao café com o ofendido” depois da data dos alegados factos. Mais, referiu “que o ofendido se encontrou com o ora recorrente no café, e que se manteve no mesmo sem sair”, ou seja, “o ofendido não se sentia incomodado com a presença do recorrente, nem sentia quaisquer receio por estar na sua presença”, como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações da testemunha AM e concretamente a 5.29 até 5.42;

S) Além disso, o Tribunal “a quo” no exame crítico da prova, na douta Sentença recorrida, vem dizer que a testemunha Fernando nada viu (tal como a actual companheira do arguido) e referiu que arguido e ofendido já se cruzaram no café (o que o ofendido confirmou). De igual forma que na douta Sentença, no ponto 1.2 . Dos factos não provados, considerou o Meritíssimo Juiz “a quo”, que o ofendido Octávio com a conduta do arguido receou sair à noite, passando a privar menos com os seus amigos e familiares e colegas, os quais encontram-no isolado, triste e pensativo;

T) O ofendido Octávio não poderia ter receios somente durante alguns períodos do dia, pois essa situação é ilógica e inadmissível, segundo as regras da experiência;

U) A testemunha AM no seu depoimento fez uma descrição irrealista querendo impressionar o Tribunal com uma realidade que nunca existiu. Tanto assim, que na douta sentença o Tribunal “a quo” diz “AM acabou também por, a nosso ver, exagerar um pouco a realidade...”. O Tribunal “a quo” considerou as “declarações da testemunha MR como um reforço ao depoimento do ofendido uma vez que o seu depoimento foi prestado de uma forma isenta e segura, Mais, foi globalmente congruente quanto ao que aquele referiu... Esta testemunha acabou também por persuadir o tribunal da reacção que o ofendido teve perante os acontecimentos.” O depoimento da testemunha em nada reforça o depoimento do ofendido, tanto assim, que enquanto que o ofendido diz que frequentou o café na presença do ora recorrente, como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações do ofendido Octávio e concretamente a 21.01 até 21.20, veio confirmar tais encontros. No entanto, como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações da testemunha MR e concretamente a 10.51 até 11.20, diz que o ofendido e arguido “não se encontraram em locais públicos”, o ofendido “não faz vida de café, deixou de ir”. Mais, como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações da testemunha MR e concretamente a 11.32 até 11.41, diz “que o senhor Octávio evita encontrar-se com o arguido”. Afinal, que reforço de depoimento é esse se o ofendido diz uma coisa e a testemunha MR diz outra completamente diferente? No modesto entendimento do ora recorrente, não existe qualquer exame crítico das provas;

V) De igual forma, como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações da testemunha Fernando e concretamente a 2.53 até 4.20, no seu depoimento disse “que por várias vezes na companhia do arguido, esteve no mesmo café onde se encontrava o ofendido Octávio, e que este nunca se retirou nem notou nele quaisquer receios e incómodos, pelo facto de estar no mesmo local com o ora recorrente. Pelo contrário, permaneceu no café.”. Assim, como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações da testemunha Isabel e concretamente a 3.02 até 3.40, no seu depoimento disse ao Tribunal “que por várias vezes na companhia do arguido, esteve no mesmo café onde se encontrava o ofendido Octávio, e que este nunca se retirou nem notou nele quaisquer receios e incómodos, pelo facto de estar no mesmo local com o ora recorrente”. De igual forma, “que quando se encontrava com o ora recorrente no café e o ofendido entrava, não evitava a entrada nem a permanecer no café”. Como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações da testemunha Isabel e concretamente a 2.27 até 2.47, disse ao Tribunal que “o senhor Octávio passa constantemente à porta do arguido;

W) O ofendido no seu depoimento disse ao “Tribunal a quo” que “muitas vezes queria trabalhar e não conseguia”, como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações do ofendido Octávio e concretamente a partir de 12.38 até 12.39. Mas, conforme se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações do ofendido Octávio e concretamente a partir de 21.54 até 22.25, “nunca esteve ausente do local de trabalho, não esteve de baixa nem mudou de posto de trabalho”, devido aos alegados factos;

X) Ora, perante tais depoimentos não entende o recorrente como pode o Tribunal “a quo” dar como provado o receio, medo e inquietação do ofendido, se o mesmo teve comportamento exactamente contrário, conforme provam os depoimentos das testemunhas. Mesmo assim, o Tribunal “a quo” condenou o ora recorrente ao pagamento de uma indemnização. Tal como refere a douta Sentença “Em face das lesões ocorridas...”, a fls. 117, questiona o recorrente: quais lesões? O ofendido no seu depoimento, tentou convencer o Tribunal que “muitas vezes queria trabalhar e não conseguia”, como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações do ofendido Octávio e concretamente a partir de 12.38 até 12.39. Mas, conforme se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações do ofendido Octávio e concretamente a partir de 21.54 até 22.25, “nunca o ofendido esteve ausente do local de trabalho, não esteve de baixa nem mudou de posto de trabalho”, devido aos alegados factos. De igual forma como nunca deixou de fazer a sua vida normal, deixou de ir aos locais onde pudesse encontrar o recorrente, como aconteceu por muitas vezes e continua a acontecer, logo não entende o recorrente o porquê da condenação ao pagamento de uma indemnização por algo que não fez e por um receio e medo que nunca existiu, porque os factos nunca existiram;

Y) Face à prova produzida em Audiência Discussão e Julgamento, não ficou provado que o arguido tenha ameaçado o ofendido, mas sim agredido, pelo depoimento do ofendido e neste caso parece-nos que o mal anunciado não seria futuro, mas estava iminente, conforme o depoimento do ofendido: “o arguido o ameaçou e o agarrou pelo pescoço e o atirou contra a parede”, como se alcança da Gravação Áudio (CD) declarações do ofendido Octávio e concretamente a partir de 04.45 até 4.53, a partir de 05.32 até 5.35, a partir de 05.55 até 6.05, a partir de 10.30 até 10.43, a partir de 17.35 até 17.40 e a partir de 17.57 até 18.18 e como se alcança da Gravação Áudio (CD) das declarações da testemunha MR e concretamente a partir de 5.37 até 5.45. E assim, não pode a situação enquadrar-se na previsão do art° 153° do Código Penal;

Z) A prova testemunhal de António e MR , tudo como melhor consta da Sentença proferida, fica longe do exigível para estribar com segurança a condenação do arguido;

AA) Solicitando por isso a V. Exas. a reapreciação da matéria de facto, nomeadamente os depoimentos do ofendido, da testemunha MR e António, Isabel e Fernando o qual se encontram gravados - como consta da Acta - através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, quanto aos períodos mencionados nestas conclusões de recurso;

BB) De igual forma, que o ofendido não foi atemorizado pelo ora recorrente, não sentiu receios, inquietação, ou foi prejudicado na sua liberdade de determinação, nem viveu com medo porque a conjugação dos depoimentos das testemunhas Fernando, António, MR, Fernando e Isabel provam exactamente o contrário do provado pelo Tribunal “a quo”, como se alcança da Gravação Áudio (CD) declarações dos mesmos depoimentos mencionados nestas conclusões;

CC) A medida da pena de multa fixada em 70 (setenta) dias de multa taxa diária de 7 € (sete euros), o que perfaz a soma de 490,00 € (quatrocentos e noventa euros), não encontra qualquer justificação em sede de culpa ou de prevenção, pelo que nesta parte, a douta sentença viola os parâmetros respectivos enunciados nos artigos 40° nº 2, 47° n° 1 e 2 e 71° todos do Código Penal;

DD) Também o quantitativo diário da multa aplicada se revela exagerada, quer em face da situação financeira do arguido, que o Tribunal “a quo” não provou, nem tal ressalta da mui douta Sentença, recorrida, violando o art° 47° nº 2 do Código Penal; o que “in casu”;

EE) De igual forma foi o arguido condenado relativamente à parte cível a pagar ao ofendido Octávio a quantia global de 600,00 € (seiscentos euros), tal como peticionada, relativa aos danos não patrimoniais, acrescidos dos juros legais desde a data da douta sentença, quando não foi feita qualquer prova relativamente a danos;

FF) Com o devido respeito e salvo melhor opinião, o Tribunal “a quo” deveria ter aplicado o princípio “in dubio pro reo” absolvendo o arguido da acusação que sobre ele impende. Deste modo e in casu, por não se verificar um dos elementos objectivos do tipo de ilícito, o carácter futuro do mal, impõe-se a absolvição do recorrente, assim como a absolvição do pedido de indemnização civil, por não provados quaisquer danos ao ofendido Octávio;

GG) A Sentença recorrida julgou incorrectamente a matéria de facto, pelo que, padece dos vícios a que aludem as alíneas a) e c) do nº 2 do art° 410.° do CPP:

HH) Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; e

II) Erro notório na apreciação da prova (cfr. art.º 410.° n.º 2, alíneas a) e c).

JJ) Tais vícios levaram a que o Tribunal se decidisse pela condenação, quando a decisão não poderia deixar de ser absolutória;

KK) Acreditamos que esse Venerando Tribunal, apreciando a prova, de forma global e objectiva, dar-nos-á razão, sem necessidade de lançar mão da aplicação do princípio in dubio pro reo, o qual seria sempre, em última instância, aplicável.

LL) Absolvendo em consequência o arguido.

TERMOS EM QUE,
Deve o recurso ser julgado procedente por provado e consequentemente revogada a decisão recorrida, substituindo-a por outra que absolva o arguido.

O Ministério Público apresentou resposta, concluindo:

1 - Vem o arguido interpor recurso da sentença que o condenou, reapreciando a prova produzida em julgamento. No entanto, não deu integral cumprimento ao disposto no art.412°, nº 3 e 4 do Cód. Proc. Penal, aplicável por via do nº 4 do art. 413º do mesmo diploma.

2 - Na verdade, o arguido não indica as concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida, as eventuais provas a renovar. Assim, não é possível a reapreciação da prova produzida em julgamento, devendo, nesta parte, ser rejeitado o recurso.

3 - Contrariamente ao sustentado pelo arguido, a matéria de facto provada sustenta a condenação: não foi violado o princípio «in dubio pro reo»; nem existe contradição insanável entre a fundamentação e a matéria de facto.

4 - Afigura-se-me adequado, atenta a matéria de facto provada, condenar o arguido pela prática do crime de ameaça p. e p. pelo art.153º nº 1 do Código Penal, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de €7, perfazendo €490.

5 - Deste modo, deve ser mantida a decisão recorrida, por a mesma não merecer qualquer reparo, nem padecer de qualquer vício.

O recurso foi admitido por despacho de fls. 194.

Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, de fls. 201/203 e com os fundamentos que aí constam, em síntese, aludindo a que deverá o recorrente ser convidado, nos termos do art.417º, nº.3, do C.P.P., a aperfeiçoar as suas conclusões, sob pena de rejeição, que as expressões proferidas reportam-se necessariamente a condutas positivas e negativas futuras e a que deverá o recurso ter provimento parcial no concerne à medida da pena imposta, que em nossa opinião, é excessiva.

Cumprido o n.º 2 do art. 417.º do CPP, o arguido (embora tendo vindo a oferecer novas conclusões, que mereceram ainda o referido convite ao aperfeiçoamento), nada acrescentou.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, de harmonia com o disposto no art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as de nulidade da sentença (art. 379.º do CPP) e as previstas no art. 410.º, n.º 2, do CPP, conforme ainda jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, publicado in D.R. I-A Série de 28.12.1995 – v. Simas Santos/Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3.ª edição, a pág. 48; e Germano Marques da Silva, em “Curso de Processo Penal”, Verbo, 1994, vol. III, págs. 320/321.

Assim, delimitando-o, sem embargo de que o conhecimento de alguma(s) das questões possa ficar prejudicado pela decisão dada a outra(s), reside em apreciar:

A) – se a sentença padece dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação na prova;

B) – se os factos provados, reportados às concretas expressões que ao recorrente foram imputadas e ao medo, com isso, causado ao ofendido, devem ser considerados como não provados, à luz dos elementos probatórios que convoca e do princípio “in dubio pro reo”;

C) – se, ainda que assim se não entenda, as expressões dadas por provadas não integram o crime de ameaça por que foi condenado;

D) - se, ao nível da medida da pena aplicada, foram violados os parâmetros enunciados nos arts. 40.º, n.º 2, 47.º, n.ºs 1 e 2, e 71.º do CP;

E) - se, relativamente à indemnização civil arbitrada, inexistem danos provados.

Consta da sentença recorrida:

Factos provados:

a) No dia 22 de Agosto de 2007, na Rua da Zorreira, em Ervidel, o arguido, com o seu carro, impediu OCTÁVIO de prosseguir a marcha do seu veículo, saiu do veículo e dirigiu a Octávio as seguintes expressões: “Ai de ti que voltes a dar boleia à minha filha!”; “Tenho que te partir as ventas todas!”.

b) Acto contínuo o arguido lançou as mãos ao pescoço de OCTÁVIO tendo este conseguido desviar-se por forma a evitar a agressão.

c) OCTÁVIO receou que o arguido concretizasse as promessas que lhe fez e temeu pela sua integridade física.

d) O arguido sabia que dirigia a OCTÁVIO palavras em que prometia vir a molestá-lo corporalmente, de forma capaz de lhe causar – como causou – medo.

e) Agiu deliberada, livre e conscientemente sabendo a sua conduta proibida e punida por lei.

f) Do CRC do arguido não constam quaisquer condenações.

g) O arguido mora com uma companheira numa casa arrendada (pagam cerca de €120,00 de renda por mês).

h) Ela recebe cerca de €350,00, por mês num part time.

i) Ele recebe uma quantia não apurada.

j) Os dois possuem veículo automóvel.

k) Sustentam dois filhos de 10 e 11 anos de idade.

l) Com a conduta do arguido Octávio passou a ter medo de que o arguido concretizasse aquela expressão.

Factos não provados:
Octávio com a conduta do arguido receou sair à noite, passando a privar menos com os seus amigos e familiares e colegas, os quais encontram-no isolado, triste e pensativo.

Passou a sentir dificuldades em concentrar-se no trabalho.

Indicação e exame crítico das provas:
O tribunal formou a sua convicção do seguinte modo:

O arguido não quis prestar declarações.

O ofendido prestou depoimento sincero, espontâneo, detalhado, consistente e persuasivo atenta a postura demonstrada conjugada com as regras da experiência. Por isso, o tribunal considerou provados os factos vertidos na acusação.

As consequências da conduta do arguido também resultaram do depoimento deste, se bem que o tribunal tenha considerado exageradas as demais consequências dando por isso como não provadas parte das mesmas (António acabou também por, a nosso ver, exagerar um pouco a realidade, asserção esta que foi devidamente analisada tendo em conta as máximas da experiência).

Por fim, as declarações de MR reforçaram tudo isto uma vez que o seu depoimento foi prestado de uma forma isenta e segura. Mais, foi globalmente congruente quanto ao que aquele referiu e no que realmente importava: a prática dos factos típicos. Esta testemunha acabou também por persuadir o tribunal da reacção que o ofendido teve perante os acontecimentos.

Quanto ao elemento subjectivo considerado provado, o tribunal considera que a forma como os factos foram praticados e atentas as regras da experiência (e pelo que se disse supra) é forçoso concluir pela sua ocorrência. E é com base na prova testemunhal que o tribunal considera que o arguido quis apenas assustar o arguido. Isto é, o agarrar o pescoço do arguido visou mostrar-lhe que o mesmo queria fazê-lo acreditar dos seus intentos futuros. Ademais, como o próprio ofendido referiu, se o arguido quisesse tinha-o agredido, tendo-se limitado ao circunstancialismo supra mencionado.

Quanto às condições económicas do arguido, apenas com as declarações da sua actual companheira foi possível apurar alguns factos, sendo certo que esta referiu desconhecer o ordenado/proventos do arguido.

O certificado de registo criminal levou à decisão tomada quanto à ausência de antecedentes criminais.
A certidão junta pelo arguido em nada releva nos autos.

Fernando nada viu (tal como a actual companheira do arguido) e referiu que arguido e ofendido já se cruzaram no café (o que o ofendido confirmou). Assim, sai reforçada a mencionada convicção de que ocorreu uma certa hiperbolização dos danos causados.

Analisando:

A) -
Invoca o recorrente que a decisão incorre nos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e em erro notório na apreciação da prova, respectivamente previstos nas alíneas a) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, o que, de acordo, com a aludida jurisprudência firmada pelo STJ, corresponde a situação de conhecimento oficioso.

Ao nível do recurso e através da consagração dos vícios de julgamento, institui-se um recurso que…se não restringisse à tradicionalmente chamada «questão-de-direito», mas devesse ser admissível face a contradições insanáveis entre as comprovações constantes da sentença e a prova registada, a erros notórios ocorridos na apreciação da prova ou, em geral, a dúvidas sérias suscitadas contra os factos tidos como provados na sentença recorrida, como refere Figueiredo Dias, in “Para uma Reforma Global do Processo Penal Português”, em “Para uma Nova Justiça Penal”, Almedina, 1983.

Além do mais, este sistema de revista protege o arguido dos perigos de um erro de julgamento, designadamente, de erro grosseiro na decisão da matéria de facto e, desse modo, defende-o do risco de uma sentença injusta – v. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 322/93, in BMJ n.º 427, a pág. 109.

De qualquer modo, tratando-se de vícios inerentes à decisão, eles terão de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, nos termos do mesmo art. 410.º, n.º 2, isto é, por um lado, sem apelo a elementos extrínsecos à mesma decisão e, por outro, tendo em conta as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece.

O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar solução de direito, não se confundindo, todavia, com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida – v. entre outros, o acórdão do STJ 13.02.1991, citado em anotação ao preceito em “”Código de Processo Penal Anotado”, de Maia Gonçalves, Almedina, 1998, a pág. 724, e o acórdão do STJ de 01.06.2006, proferido no proc. n.º 06P1614, acessível em www.dgsi.pt.

Contém, em si, o significado de que a decisão de facto apurada não é suficiente para a decisão de direito encontrada, ou, como salienta Germano Marques da Silva, ob. cit., a pág. 325, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito.

Segundo se consignou no acórdão do STJ de 16.04.1998 (www.dgsi.pt), verifica-se quando o tribunal “a quo” deixou de apurar matéria de facto que lhe cabia apurar, dentro do objecto do processo, tal como este está enformado pela acusação e pela defesa, sem prejuízo do mais que a prova produzida em audiência justifique.

Ou, ainda, como no acórdão do STJ de 20.04.2006, proferido no proc. n.º 06P363 (www.dgsi.pt), A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista à sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.

Aliás, a exigência subjacente à conceptualização e ao conhecimento do vício decorre do princípio geral de descoberta da verdade material e da boa decisão da causa consagrado no art. 340.º do CPP, com o necessário apuramento da culpabilidade e da determinação da sanção, de harmonia com os arts. 368.º e 369.º do mesmo Código.

Quanto ao erro notório na apreciação da prova, este não é um princípio de prova, nem é um meio de valoração da mesma, mas sim um erro de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum.
Terá de ser interpretado como o tem sido o conceito de facto notório em processo civil, ou seja, como o facto de que todos se apercebem directamente, ou que, observado pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório - v. entre outros o acórdão do STJ de 06.04.1994, in CJ Acs. STJ, ano II, tomo II, pág. 185.

Deste modo, deparar-se-á quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio – cf. acórdão do STJ de 24.03.2004, proferido no proc. n.º 03P4043 (www.dgsi.pt).

Ainda, segundo Maria João Antunes, in “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, ano 4 (1994), a pág. 120, verifica-se «sempre que, para a generalidade das pessoas, seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal, nisto se concretizando a limitação ao princípio da livre apreciação da prova estipulada no art. 127.º do CPP, quando afirma que a prova é apreciada segundo as regras da experiência».

Neste sentido, constitui efectivamente uma limitação àquele princípio - Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente -, mas desde que revista o referido carácter notório, distinguindo-se de uma valoração diferente da matéria de facto, cuja análise, em sede recursiva, se reconduz a uma reapreciação da prova, sujeita a específicos e diversos requisitos (arts. 412.º, n.ºs 3 e 4, e 431.º, alínea b), do CPP).

Ora, o recorrente não fundamenta minimamente a presença dos alegados vícios, tão-só os apresentando de forma conclusiva e, claramente, situando-os ao nível da própria impugnação da decisão em matéria de facto, e não mais do que isso.

Por seu turno, também, da leitura do texto da sentença, conjugando a factualidade fixada e a respectiva fundamentação crítica, não se detecta, de modo algum, que a decisão incorra nos referidos vícios.

Atente-se que, não obstante, em nada fica prejudicada a eventual existência de erro na apreciação da prova, que possa decorrer do conhecimento da impugnação apresentada.

B) -
Constitui princípio geral que as Relações conhecem de facto e de direito, nos termos do art. 428.º do CPP.

O recurso interposto versa nas duas vertentes, sendo que, no tocante à pretendida impugnação da matéria de facto, obedece às condições exigidas pelo art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do mesmo diploma, especificadamente, aludindo aos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e às provas que suportam a sua posição, referindo passagens da prova oral produzida e com menção ao suporte técnico respectivo.

Por isso, proceder-se-á à apreciação neste âmbito, com apelo, tanto quanto necessário, à audição desse suporte de gravação.

Ao nível da impugnação, o recorrente insurge-se contra as circunstâncias de ter sido dado por provado que dirigiu a Octávio as expressões consignadas no facto provado sob a alínea a) e de, com isso, lhe ter causado medo, conforme factos provados sob as alíneas d) e l).

Há que notar, desde logo e como vem sendo pacificamente entendido, que o recurso é mero remédio jurídico, e não novo julgamento com repetição dos meios de prova produzidos em 1.ª instância - exceptuado o caso em que seja admissível a renovação da prova -, mas sim uma nova reapreciação da prova documentada.

Por isso, mesmo quando se considere a impugnação da matéria de facto de forma processualmente válida, como é o caso, nem por isso a impugnação equivale necessariamente à modificação da decisão de facto recorrida.
Tal impugnação não se bastará, pois, para que venha a proceder, com a pretensão de dar-se como provada determinada versão, com base nas provas produzidas e diferentemente valoradas por quem recorre.

Terá sempre de ser equacionada com o princípio da livre apreciação da prova, em que se inclui a livre convicção do tribunal “a quo”, de acordo com o disposto no referido art. 127.º do CPP, no qual se consagra, verdadeiramente, um direito constitucional concretizado (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1165/96, reiterado pelo acórdão do mesmo Tribunal n.º 464/97), não podendo ser essa apreciação entendida como operação puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável e, havendo, sim, que traduzir-se em valoração racional e crítica, à luz das regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos.

Intimamente ligados a tal princípio, estão os princípios da continuidade, ou da concentração, da audiência, da oralidade e da imediação da prova.

Estes dois últimos constituem, a um tempo, decorrência lógica do princípio da livre apreciação da prova e, a outro, “conditio sine qua non” para a respectiva admissibilidade.

Com efeito, apenas quem tenha assistido à produção da prova e às disposições assumidas pela acusação e pela defesa poderá estar capaz, no fim da discussão, de se considerar convicto de uma determinada verdade, podendo proceder ao julgamento, decidindo.

Paralelamente, a oralidade permite com muito maior probabilidade aceder a um discurso directo, espontâneo, não ensaiado e vivo, o que obviamente contribui para um aumento das possibilidades de descoberta da verdade e de formação de uma correcta convicção.

Não obstante, a fundamentação da análise que se faça dos meios de prova disponíveis constitui requisito essencial da sentença, nos termos do art. 374.º, n.º 2, do CPP, dela devendo constar uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

A fundamentação da sentença insere-se em exigência do moderno processo penal, com a dupla finalidade de, extraprocessualmente, constituir condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que a determinaram e de, intraprocessualmente, de realização do objectivo de reapreciação da decisão por via do sistema de recursos.

Trata-se, aliás, da concretização do desiderato constitucional a que alude o art. 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), impondo a fundamentação na forma prevista na lei, como parte integrante do próprio conceito de Estado de Direito democrático e da legitimação da própria decisão judicial e da garantia do direito ao recurso (conforme Gomes Canotilho e Vital Moreira, em Constituição Anotada, a pág. 799), por respeito às garantias de defesa do condenado (art .32.º, n.º 1, da CRP) e de acesso à tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º, n.º 4, da CRP), no sentido de que assegure, também, um julgamento equitativo (“fair trail”), como vem sendo reconhecido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e se apresenta consagrado, em termos amplos, no art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Conforme Germano Marques da Silva, ob. cit., Verbo, 1993, vol. II, a págs. 112/113: Quando tratámos dos actos decisórios referimos a finalidade da sua fundamentação: lograr uma maior confiança do cidadão na Justiça, o autocontrolo das autoridades judiciárias e o direito de defesa a exercer através dos recursos.

A primeira das finalidades indicadas ajuda à compreensão da decisão e, consequentemente, à sua aceitação, facilitando a necessária confiança dos cidadãos nas autoridades judiciárias.

O autocontrolo que a exigência de motivação representa manifesta-se a níveis diferentes: por um lado, obsta à comissão de possíveis erros judiciários, evitáveis precisamente pela necessidade de justificar a decisão; por outro lado, implica a necessidade de utilização por parte das autoridades judiciárias de um critério racional de valoração da prova, já que se a convicção se formou através de meras conjecturas ou suspeitas, a fundamentação será impossível. Assim, a motivação actua como garantia de apreciação racional da prova.

Finalmente, a motivação é absolutamente imprescindível para efeitos de recurso, sobretudo quando tenha por fundamento o erro na valoração da prova; o conhecimento dos meios de prova e do processo dedutivo são absolutamente necessários para poder avaliar-se da correcção da decisão sobre a prova dos factos, pois só conhecendo o processo de formação da convicção do julgador se poderá avaliar da sua legalidade.

É, pois, inequívoco que, ao dever de fundamentar, correspondem, em concreto, determinadas exigências, sem as quais não é viável atingir as respectivas finalidades, cumprindo, em sintonia com o indicado art. 374.º, n.º 2, do CPP, adequá-las à medida necessária para que, no fim de contas, a decisão seja compreensível e, por isso, a sentença deve conter, para além da indicação dos factos provados e não provados e dos meios de prova, a explicitação dos elementos que, em razão das regras da experiência e/ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção se formou em determinado sentido ou foram valorados os diversos meios (v. acórdão do STJ de 13.02.1992, in CJ ano XVII, tomo I, a pág. 36), sem que, no entanto, deixe de ser tão completa quanto possível, ainda que sucinta.

Assim, no tocante às expressões em apreço, resulta da sentença que se terá fundamentado nas declarações do ofendido, sendo que o aqui recorrente não prestou declarações em audiência quanto à matéria “sub judice”.

As expressões constavam da acusação formulada e nos termos em que foram dadas por provadas – v. fls. 51.

São, pois, as declarações do ofendido, que o recorrente convoca, para concluir deverem ser essas expressões questionadas, já que, como se alcança da própria motivação do recurso, conjugada com a fundamentação da decisão, outra prova, sobre esse aspecto, não terá sido valorada.

Ora, segundo as declarações prestadas pelo ofendido (a que o tribunal conferiu credibilidade) - assente o circunstancialismo imediatamente prévio à acção do aqui recorrente de dirigir as expressões, o que foi por aquele confirmado e que este não contesta -, resulta que efectivamente as expressões em causa foram-lhe ditas pelo recorrente, entre outras a que aludiu, ainda que não se encontrem vertidas nas passagens transcritas no recurso, devendo, sem dificuldade, até pelo contexto referido pelo ofendido (provocações e ameaças do aqui recorrente por várias vezes, conflitualidade deste com a anterior esposa, MR que na altura seguia num veículo atrás do conduzido pelo ofendido, e conjugação com outras expressões de idêntico teor), não se verem infirmadas de modo algum.

A argumentação do recorrente, quanto a ter o ofendido declarado que aquele o agarrou no pescoço e o atirou contra a parede, não põe minimamente em causa que lhe tivesse dirigido as expressões.

Por seu lado, se bem que o depoimento de MR não tenha sido propriamente aqui relevante, esta também se reportou às expressões que ficaram provadas, se não de modo inteiramente coincidente, inegavelmente com o mesmo sentido.

Acresce que a alegação de que tal depoimento contrariou o produzido em inquérito não assume pertinência, pois, independentemente de, como referido, o tribunal “a quo” não lhe ter atribuído relevo na vertente em análise, só as provas produzidas (ou examinadas) em audiência podem ser atendidas, já que nenhuma excepção a este princípio se verificou (art.355.º do CPP).

Sobre as expressões em apreço, inexiste, pois, fundamento para qualquer modificação da matéria de facto.

Analisando, então, a questionada prova de que as expressões tivessem sido adequadas a causar medo ao ofendido e que este tivesse passado a tê-lo, o tribunal fundou essa materialidade, não só nas declarações do ofendido, como também nos depoimentos de A e de MR.

A apreciação desses factos provados - sob as alíneas d) e l) - redunda sequencial à factualidade provada vertida sob a alínea c) – OCTÁVIO receou que o arguido concretizasse as promessas que lhe fez e temeu pela integridade física -, sendo, o primeiro daqueles, reportado ao conhecimento do aqui recorrente – O arguido sabia que dirigia a OCTÁVIO palavras em que prometia molestá-lo corporalmente, de forma capaz de lhe causar – como causou - medo e, o segundo, sua consequência, seu resultado – passou a ter medo -, não se podendo tais aspectos desligar.

O tribunal recorrido deu especial relevo à circunstância, por um lado, das expressões serem adequadas a provocar esse medo no ofendido e, por outro, de que o ora recorrente quis assustar o ofendido (e não o arguido, como, por lapso, consta da análise crítica da prova), revelando-o, com a sua acção provada sob a alínea b) – lançou as mãos ao pescoço de OCTÁVIO – e atendendo a que se limitou a tanto, segundo as próprias declarações do ofendido.

No respeitante ao que este declarou, em audiência, decorre, em síntese, que não viu razão para que o aqui recorrente tivesse proferido a expressão relacionada com a boleia à filha, que ficou efectivamente com medo, porque atribuiu seriedade aos actos daquele, evitando, desde essa altura, cruzar-se com ele e, designadamente, no café.

Quanto ao depoimento de MR, que se encontrava no local da ocorrência, mas, segundo o ofendido, seguindo noutro veículo e do qual não chegou a sair, resulta que este ficou muito nervoso e com medo, já não se tratando da primeira vez que ocorriam factos similares, que no local não viu mais alguém para além dos intervenientes e, ainda, que o ofendido «não faz vida de café» e não se sente bem com a perspectiva de encontrar-se com o aqui recorrente.
e
A isenção e a segurança do depoimento, atribuídas pelo tribunal, não suscitam reserva, coadunando-se com a experiência comum e sem que, não obstante MR tivesse relação conflituosa com o recorrente desde 2004 (segundo referiu), a depoente conferisse, ao ocorrido, importância para além da que, medianamente, se justificava.

Não se afigura que isso deva ser infirmado pela alegada circunstância do ofendido só ter ido ao hospital depois de ter estado ainda em casa da testemunha, situação que foi efectivamente referida, em audiência, por ambos.

Quanto aos depoimentos de António, de Fernando e de Isabel, o tribunal explicitou, embora sucintamente, a sua valoração, concluindo por certa limitação da credibilidade, quanto ao primeiro, designadamente, por conjugação com os restantes.

E, na verdade, não se divisa, também, que os elementos trazidos, ora, pelo recorrente sejam de molde a dever terem-se por excluídos o seu conhecimento do significado das expressões que proferiu e o medo do ofendido.

Sendo este um sentimento e, bem assim, a vontade do agente não mais do que manifestação do que subjectivamente deseje, a sua prova não se obterá de forma directa, pois não são susceptíveis desse modo de apreensão, por pertencerem ao foro íntimo, psíquico, emocional, sensorial e, como tal, não directamente captáveis pelos sentidos.

Por isso, só através de lógicas inferências extraídas de outros elementos probatórios directamente colhidos se logram obter, sendo clássica a distinção entre prova directa e prova indirecta. Aquela refere-se imediatamente aos factos probandos, ao tema da prova, enquanto a prova indirecta ou indiciária se refere a factos diversos do tema da prova, as que permitem, com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova (Germano Marques da Silva, ob. cit., 1999, vol. II, a pág. 96).

Nesta vertente, ainda que a fundamentação constante da sentença seja escassa, configura-se que, à valoração, esteve implícita a adequação das expressões, em termos de normalidade, àqueles conhecimentos e sentimento, sem que, do ponto de vista do comportamento do recorrente, tivesse existido alguma indicação em contrário, designadamente, através da postura então demonstrada, consistente em conferir-lhes seriedade, mediante o que se provou sob a alínea b).

Isso mesmo foi retratado nas declarações do ofendido, além de que, quer do depoimento de MR, quer do de António, colhe-se alguma contribuição, na medida em que, a primeira, esclareceu que era habitual o ofendido dar boleia à sua filha, a seu pedido, em razão das dificuldades decorrentes do seu trabalho por turnos e, o segundo, referiu que o assunto era, consigo, por vezes, comentado pelo ofendido.

Por seu turno, se bem que a testemunha António tivesse referido que o ofendido, indo consigo ao café, não saía quando o recorrente aí entrava ou se encontrava, e que as testemunhas Fernando e Isabel tenham aludido a que nunca se aperceberam de receios por parte do ofendido, não é legítimo concluir que este não veio a sentir medo, no sentido de alguma perturbação intrínseca ao teor das expressões a si dirigidas, no circunstancialismo em que o foram, sendo que, para tanto, não seria naturalmente exigível que andasse a fugir do aqui recorrente, ou que deixasse de trabalhar, além do mais, considerando que residiam ambos em localidade (Ervidel), na qual a circulação de pessoas propiciará de que não será difícil compaginá-la com inevitáveis encontros, mesmo que não desejados.

Havendo, tanto o conhecimento do significado normal das expressões, como o medo do ofendido, de traduzir-se em aspectos exteriores donde seja viável concluí-los, os elementos probatórios configuram-se minimamente adequados a perfeccioná-los, segundo normais padrões de exigibilidade, não se vendo justificação para modificar o sentido que aos mesmos foi atribuído.

As supostas dúvidas que o recorrente invoca, acaso existissem, foram ultrapassadas pela análise crítica da prova, sendo certo que não resulta da decisão que o tribunal “a quo” tivesse incorrido em erro na apreciação, situação que limitaria e poderia inquinar essa valoração.

E teve a preocupação de fundamentar até onde lhe era exigível a posição que assumiu perante os elementos probatórios disponíveis, não descurou a imposição de apuramento da verdade material e não preteriu os inerentes limites legais, atingindo a certeza necessária sobre os factos.

Concluiu, assim, de modo a que não tivesse persistido dúvida, que, a existir, favoreceria o ora recorrente, de harmonia com o princípio “in dubio pro reo”, decorrente da presunção de inocência, consagrada no art. 32.º, n.º 2, da CRP.

Esta é uma norma directamente vinculante e constitui um dos direitos fundamentais do cidadão, significando que, enquanto não for demonstrada a culpabilidade do arguido, não é admissível a sua condenação, pelo que é clara a sua repercussão ao nível da valoração da prova e, assim, do referido princípio, segundo o qual a dúvida, relevante, séria, fundada e inultrapassável, terá sempre de ser valorada em favor do arguido.

Relacionada com tal problemática, estará sempre a convicção judicial, a qual será suficientemente objectivável e motivável quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará, pois, de uma mera opção “voluntarista” pela certeza de um facto e contra toda a dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável pelo menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse.

Como tal, afigura-se que o tribunal recorrido procedeu adequadamente ao exame crítico das provas, mormente das indicadas, sem que transpareça alguma dúvida quanto à extraída factualidade, a cuja apreciação, aqui, se procedeu.

C) -
O recorrente insurge-se contra o enquadramento jurídico-penal operado pelo tribunal.

Sustenta que as expressões dadas por provadas não preenchem os elementos objectivos típicos do crime de ameaça, por não integrarem, no seu entender, a ameaça de um mal futuro.

Ainda, decorre da sua fundamentação que, em concreto, defende que as expressões são indeterminadas e vagas, inculcando a ideia de um anúncio, não se focalizando em específica alusão a um mal dirigido a um bem jurídico, nem a um mal futuro.

A previsão do crime de ameaça, na sua tipologia, consta do art. 153.º, n.º 1, do CP (cuja redacção, à data dos factos, se manteve à luz da revisão operada pela Lei n.º 59/2007, de 04.09), nos seguintes termos:

Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

O texto do preceito é o resultante da revisão do Código Penal levada a efeito pelo Dec. Lei n.º 48/95, de 15.03, relativamente ao qual correspondia, na versão originária, o art. 155.º, n.º 1.

Confrontado com o anterior art. 379.º do Código Penal de 1886, notava-se naquele art. 155.º, uma saliente divergência, pois enquanto que, naquele Código, o crime de ameaça era concebido como um crime de mera actividade, passou, nessa versão, a ser um crime material ou de resultado – v. acórdão do STJ de 20.04.1983, in BMJ n.º 286, a pág. 78, e acórdão da Relação de Évora de 11.06.1985, in BMJ n.º 350, a pág. 400.

Tal perspectiva é aplicável, mutadis mutandis, à estruturação do crime de ameaça, actualmente previsto.

A introdução, feita na revisão de 1995, da expressão «de forma adequada a provocar-lhe» mais não é do que um afloramento da doutrina da causalidade adequada, perfilhada na Parte Geral do Código Penal, para definir o nexo causal entre a conduta e o resultado nos crimes materiais – v. M. Maia Gonçalves in “Código Penal Português, Anotado e Comentado”, Almedina, 10.ª edição, a pág.527.

Assim, o crime de ameaça, no Código Penal de 1886, foi um crime de perigo abstracto. Depois, na versão originária do Código Penal de 1982, esse art. 155.º configurava-o como crime de resultado/dano, no sentido referido.

Após a revisão de 1995, mantendo essa estrutura de causalidade, passou a configurar-se como um crime de perigo concreto.

Com efeito, não se exige, hoje, a ocorrência do dano (efectiva perturbação da liberdade do ameaçado), mas também não basta a simples ameaça da prática do crime, exigindo-se, ainda, que essa ameaça seja, na situação concreta, adequada a provocar medo ou inquietação – v. Taipa de Carvalho, in ”Comentário Conimbricense do Código Penal”, dirigido por Figueiredo Dias, tomo I, Coimbra, 1999, a pág. 349.

O bem jurídico protegido com a incriminação é a liberdade de decisão e de acção, “a autonomia de volição e de acção individual” na expressão citada em “O Código Penal de 1982”, vol. 2, de Leal-Henriques e Simas Santos, Rei dos Livros, 1986, a pág. 160, o que se mantém válido face à actual redacção do preceito.

O tipo legal está, em sintonia, sistematicamente inserido no Capítulo IV – Dos crimes contra a liberdade pessoal – do Título I – Dos crimes contra as pessoas – da Parte Especial do Código Penal.

A tutela penal da liberdade é, por excelência, uma tutela negativa e pluridimensional: negativa, na medida em que visa impedir as acções de terceiros que afectem a liberdade de decisão e de acção individual; pluridimensional, uma vez que assume as diversas manifestações da liberdade pessoal (liberdades de autodeterminação, de movimento, de acção, sexual) como autónomos objectos de protecção penal, como refere Taipa de Carvalho, ob. cit., a pág. 341.

O mal ameaçado tem de constituir crime, para que tenha relevância criminal, o que se encontra em harmonia com o evitar a criminalização de condutas, socialmente inevitáveis, mas sem a carga negativa suficiente para merecerem a tutela penal.

Objectivamente, pune-se a ameaça, definida esta como mal e mal futuro, dependente da vontade do agente.

Ainda em relação à versão originária, salienta-se que a revisão do Código de 1995 estreitou o campo de aplicação do tipo legal, através da indicação dos bens ameaçados, que terão agora de ser a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens de considerável valor, enquanto que, sob o domínio da versão originária, podia ser qualquer um.

As ameaças, que como tal sejam tidas, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afectam, naturalmente, a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade.

A averiguação da dependência de vontade do agente tem de partir de um critério objectivo-individual, “prima facie” na perspectiva do homem comum, mas sem olvidar, na globalidade, as características da pessoa ameaçada.

Igualmente, é pacífico que se trata de um crime de mera acção e de perigo, não exigindo qualquer especificidade de conduta do agente, nem que, como aludido, se verifique qualquer dano (entre outros, v. acórdão da Relação do Porto de 21.03.2007, no proc. n.º 0617077, tendo como relator o Exmo. Desembargador Borges Martins, em www.dgsi.pt).

Necessária, sim, é a adequação da acção ao resultado de causar medo ou inquietação ou prejudicar a liberdade de autodeterminação da pessoa ameaçada, ou seja, que a ameaça seja susceptível de afectar, de lesar a paz individual ou a liberdade de determinação, de acordo com o referido critério, simultaneamente objectivo e individual.

Por isso, como se referiu, é um crime de perigo concreto, exigindo que a adequação seja, também em concreto, analisada, sem perder de vista que, à luz do bem jurídico protegido, como refere Pinto de Albuquerque, no seu “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica, 2008, a pág. 412, pode considerar-se como de perigo abstracto-concreto, o que é mesmo que dizer que inclui as condutas que sejam aptas, numa perspectiva “ex ante”, a criar perigo para esse bem jurídico.

Na vertente subjectiva, trata-se de um crime doloso, que pode assumir qualquer uma das modalidades previstas no art. 14.º do CP.

Conforme Leal-Henriques e Simas Santos, ob.cit., a pág. 351, Tendo em conta que o que releva é o critério do efeito e, portanto, a consciência do agente da susceptibilidade de provocação de medo ou intranquilidade, é irrelevante que o agente tenha, ou não, a intenção de concretizar a ameaça.

Em termos gerais, o acto de ameaçar contém, em si, o significado que corresponde ao de prometer ou pronunciar um mal futuro, seja para os bens pessoais, como os patrimoniais, elencados no preceito legal.

Para o preenchimento do tipo objectivo descrito, exige-se que a ameaça proferida reúna as características adequadas a provocar medo ou inquietação, consubstanciadas em que estas correspondam a um mal, na vertente dos bens protegidos, que esse mal objecto da ameaça seja futuro e que a sua ocorrência dependa da vontade do agente (Taipa de Carvalho, ob. cit., a pág. 343).

Ao invés, não é necessário que, em concreto, a ameaça provoque medo, perturbação, inquietação, conforme referiu Figueiredo Dias (cfr. Acta da 45.ª Sessão da Comissão Revisora do Código Penal, de 11.12.1990): o que se exige, para preenchimento do tipo, é que a acção reúna certas características adequadas a provocar medo ou inquietação, não sendo necessário que, em concreto, chegue a provocar o medo ou a inquietação.

A característica temporal (ameaça de mal futuro) serve de critério para distinguir a acção, como crime de ameaça, da tentativa de execução do respectivo acto violento (Taipa de Carvalho, ob. cit., a pág. 343).

Assim, tendo presentes as apontadas premissas, afigura-se que, apelando ao mencionado critério objectivo-individual, aceita-se, pacificamente, que as expressões dirigidas pelo aqui recorrente ao ofendido eram, intrinsecamente, susceptíveis de lhe incutir um receio, atendendo que, pese embora a expressão “Ai de ti que voltes a dar boleia à minha filha!” revele, isoladamente, um mero anúncio, não se quedou o recorrente em dizê-la, já que a acompanhou de expressão – “Tenho que te partir as ventas todas!” – que encerra, inequivocamente, o sentido de causar um mal à integridade física do ofendido, sendo irrelevante que manifeste, atento o seu conteúdo verbal, uma correlação com o presente.

Na verdade, surgindo como uma imposição ao próprio recorrente, com o significado de ter de fazer o que dizia – partir as ventas -, não pode deixar de ser tida, comummente, como configurando acção de atingir o ofendido, corporalmente, na face, envolvendo, em si mesma, a manifestação de acção prometida e a executar.

A sua adequação, para criar o perigo de lesão de bem jurídico sobre o qual a ameaça tem de versar, não permite, assim, concluir que se tivesse tratado de um mero anúncio, até porque foi acompanhado, acto contínuo, por acção do recorrente de lançar as mãos ao pescoço do ofendido.

Isso mesmo conflui para a circunstância de que o recorrente quis conferir um grau de seriedade àquelas expressões, como se explicitou na sentença.

Todavia, esse acto contínuo do recorrente não deve ser menosprezado na análise criteriosa da subsunção dos factos, pois esta não prescinde duma global avaliação, em face de todos os critérios legais acima pormenorizados quanto ao tipo de ilícito em presença.

Dúvida não há de que o recorrente não resumiu a sua acção à prolação das expressões referidas, na medida em que, de seguida a tê-lo feito, lançou as mãos ao pescoço do ofendido, ainda que este tivesse logrado desviar-se e, assim, evitar a agressão.

Nada na factualidade provada nos diz que algo se tivesse verificado, entre aquela prolação das expressões e o que se seguiu, de molde a poder desprender-se tais expressões da configurada tentativa de agressão.

Aliás, esta última apresenta-se como sequência lógica da pretensa ameaça de lhe partir as ventas, redundando, assim, em que o aqui recorrente, desde logo, encetou acção tendente a exteriorizar o que dizia.

Ainda que se admita que a expressão “Tenho que te partir as ventas todas!” tivesse sido proferida em relação à anterior, no sentido de que, caso o ofendido desse boleia à filha do recorrente, tal aconteceria, sempre cumprirá enquadrá-la com a acção subsequente.

Por seu lado, a sua acção de lançar as mãos ao pescoço do ofendido denota uma carga de agressividade importante (sendo irrelevante que a agressão não tivesse sido consumada) e idónea a que fosse seguida do concretizar daquela outra que explicitou, através das ditas expressões.

Se bem que existisse um clima de conflitualidade latente, motivado por relações anteriores, e que o ofendido tivesse sentido medo, o que é normal no contexto apurado, é difícil perspectivar, pois, que as expressões consubstanciem um mal futuro, quando foram acompanhadas por actos próprios de agressão, estando esta implícita naquelas.

Objectivamente, falece o pressuposto em que a caracterização do tipo legal assenta, ou seja, a necessária temporalidade futura inerente às expressões usadas.

Nos crimes contra a liberdade, nomeadamente nos crimes de ameaça e de coacção, está subjacente uma certa tensão entre o interesse na salvaguarda da liberdade de decisão e de acção e o interesse em não limitar excessivamente a liberdade social de acção, isto é, a liberdade de acção de terceiros. Nesta relação de tensão entre os interesses contrapostos, procura o legislador o ponto razoável de equilíbrio, de modo que, sem descurar a tutela penal das essenciais manifestações da liberdade individual, não caia numa excessiva criminalização de condutas que, apesar de afectarem, em alguma medida, a liberdade individual, são socialmente inevitáveis (Taipa de Carvalho, ob. cit., a pág. 341).

Em conformidade, a globalidade dos factos assentes denota essa tensão, mas o ponto de equilíbrio conflui para que a mesma não mereça a tutela penal ínsita ao crime de ameaça.

Recordando Eduardo Correia, a propósito das “Grandes Linhas da Reforma Penal” (em “Para Uma Nova Justiça Penal”, Almedina, 1983, págs. 13 e seg.), num Estado de direito democrático devem os limites máximos do âmbito da legislação penal aferir-se pela sua necessidade. Nesse quadro, a afirmação criminalmente protegida de certos bens jurídicos há-de por ela limitar-se. Só que essa necessidade de defesa e protecção não deve ser arbitrária, ou de qualquer tipo conceitual, como seria a que partisse da ideia de um mínimo ético, de saúde pública, ou da sua particular importância para a organização da vida em sociedade. Ela deve, antes, ser, desde logo, limitada materialmente, pela maior coincidência possível com uma concepção maioritária e obtida através dos órgãos constitucionais competentes (art. 168º). Até porque, deste modo, se reduzirão ao mínimo os conflitos entre a visão do Estado e dos particulares, entre a lei penal e a consciência de cada um, limitando, até um limite do possível, os chamados crimes de consciência.

Embora com fundamentação em parte diversa, ao recorrente assiste razão, devendo ser absolvido do crime de ameaça por que foi condenado.

D) –
A apreciação da medida da pena aplicada fica prejudicada.

E) –
Decorre da sentença que os danos provocados pela conduta do recorrente foram considerados como danos não patrimoniais, merecedores da tutela do direito.

Considerou, ainda, como adequada, a fixação da indemnização civil em favor do demandante no valor de €600,00, acrescido dos juros legais, o qual corresponde ao que fora peticionado.

Ora, tendo o recorrente sido absolvido nos termos sobreditos, incumbirá retirar da inerente procedência, nessa parte, do recurso, as consequências legalmente impostas – art. 403.º, n.º 3, do CPP.

Todavia, não existe obstáculo legal a que, a uma sentença absolutória, corresponda uma condenação em indemnização civil sempre que o pedido respectivo se vier a revelar fundado, nos termos do art. 377.º, n.º 1, do CPP.

E, ainda, quanto à condenação em causa, estabelece o art. 400.º, n.º 2, do CPP, que Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade dessa alçada.

Assim, sendo, “in casu”, o valor do pedido (€600,00), bem como o da decisão impugnada (que condenou nesse valor), são em montantes inferiores àqueles limites, dado que, à data em que o pedido foi formulado (08.09.2009), a alçada dos tribunais de 1.ª instância (que actualmente se mantém) era de €5.000,00, nos termos do disposto no art. 24.º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13.01, na redacção dada pelo Dec. Lei n.º 303/2007, de 24.08.

Logo, a decisão quanto à indemnização sob censura não é recorrível.

Nesta parte, em razão da ausência desse pressuposto, rejeita-se o recurso, ao abrigo dos arts. 400.º, n.º 2, 414.º, n.º 2, e 420.º, n.º 1, alínea b), do CPP.

3. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, decide-se:

- rejeitar o recurso quanto ao atinente à condenação em indemnização civil;

- no restante, conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, revogar a sentença recorrida na parte em que o condena como autor de um crime de ameaça e determinar a sua absolvição, dando sem efeito a pena que lhe foi aplicada.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em soma correspondente a 3 UC.

Elaborado informaticamente, em processador de texto, e integralmente revisto pelo Relator.

Évora, 4 de Novembro de 2010

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(Carlos Jorge Viana Berguete Coelho)

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(João Henrique Pinto Gomes de Sousa)