Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
20/23.7ZFFAR.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
REJEIÇÃO
REMISSÃO PARA AUTO DE NOTÍCIA
FORTES INDÍCIOS
CRIME DE CONTRAFAÇÃO DE DOCUMENTO AGRAVADO
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A remissão para auto de notícia onde se refere que existem fortes indícios não pode tornar a acusação manifestamente infundada.
Para o preenchimento do tipo objetivo basta fazer constar a existência de indícios suficientes nos termos do art.º 283º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal

Referindo expressamente quer o auto de notícia, quer a acusação, quais são as características dos passaportes que indiciam a falsidade, compreende-se, muito bem, quais são os factos concretos que se estão a imputar à arguida, estando bem ao alcance desta exercer cabalmente o seu direito de defesa.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
RELATÓRIO

No âmbito do presente processo foi proferido o seguinte despacho:

“Determina o artigo 311.º, n.º 2, al. a), do CPP que, quando não tenha havido fase de instrução (como é o caso destes autos), o juiz deve rejeitar a acusação «se a considerar manifestamente infundada». E será manifestamente infundada a acusação quando os factos não constituírem crime, conforme decorre do disposto na alínea d) do n.º 3 daquele artigo.

E afigura-se-nos que é esta última situação a que se verifica no caso vertente.

Com efeito, atentando devidamente na factualidade descrita no auto de notícia para o qual a acusação remete (nos termos permitidos pelo disposto no artigo 391.º-B, n.º 1, do CPP), do mesmo consta que «a cidadã (…) quando foi identificada posteriormente na zona de chegadas apresentou a seguinte identificação (…)» e, bem assim, que, «após análise dos passaportes (…) verificou-se que os mesmos apresentam fortes indícios de ser Documento Contrafeito, porquanto não obedecem aos requisitos de um documento genuíno (…)».

Cabe assim retirar as devidas consequências do sobredito.

Ora, carecendo o auto de notícia, para o qual a acusação remete, de factos que permitam o preenchimento do elemento objectivo do tipo legal imputado (porquanto apenas imputam a existência de fortes indícios de o documento apresentado pela arguida ser contrafeito, mas não que o seja efectivamente), é a acusação manifestamente infundada, porquanto tais factos nunca levariam à condenação da arguida por não constituírem crime, isto é, mesmo admitindo que a descrição factual que consta do mencionado auto de notícia lograsse obter demonstração em Juízo, sempre estaria a acusação fadada ao insucesso, resultando necessariamente na absolvição da arguida, pois soçobrava por falta de descrição de factos que permitissem preencher o elemento objectivo do tipo legal.

Pelo exposto e ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d), do CPP, rejeito a acusação deduzida pelo Ministério Público contra a arguida AA, por manifestamente infundada e, consequentemente, determino que, após trânsito do presente despacho, se proceda ao oportuno arquivamento dos autos.”

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Inconformado com tal despacho, dele recorreu o Ministério Público, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“1. A decisão proferida pelo Tribunal a quo a 31 de outubro de 2023 violou o disposto no art.º 283.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal na medida em que exigiu para, o preenchimento do elemento objetivo do tipo legal imputado à arguida que o Ministério Público afirmasse que o documento apresentado pela mesma era contrafeito, ao invés de constar existirem indícios suficientes de ser contrafeito ou, como neste caso, constar forte indícios de ser Documento Contrafeito.

2. O juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no n.º 2 do art.º 283.º do C.P.P., não equivale ao juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação.

3. Neste caso, perante a comunicação da notícia de um crime e da detenção do seu agente em flagrante delito, o Ministério Público "apenas”, verificou a existência de uma possibilidade razoável de vir a provar-se, com certeza, que a arguida praticou o crime.

4. Ao contrário do que o Tribunal a quo propalou, o Ministério Público não tinha de afirmar que, efetivamente, o documento era contrafeito - bastando para o preenchimento do tipo objetivo fazer constar a existência de indícios suficientes nos temos do aludido art.º 283º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal - pois tal conduta exigida pelo Tribunal a quo, no dizer do Tribunal Constitucional, acórdão n.º 439 /2002 violaria o principio in dubio pro reo por ultrapassar a atividade de valoração da prova que subjaz à decisão de submeter o arguido a julgamento reduzindo “desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no art.º 32.º n.º 2, da Constituição”.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, o despacho proferido pelo Mm.º Juiz a quo em 31 de outubro de 2023 ser revogado e substituído por outro que mande notificar a arguida a fim de, querendo, apresentar contestação, e proceda à marcação de data para audiência de julgamento.

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No entanto, Vossas Excelências, como sempre, farão a tão costumada

Justiça!”

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A arguida não respondeu ao recurso.

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Neste tribunal da relação, a Exmª P.G.A. emitiu parecer no sentido da procedência do recurso e, cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi oferecida resposta ao parecer.

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APRECIAÇÃO

A única questão que importa apreciar é a de se saber se a acusação formulada pelo Ministério Público é, ou não, manifestamente infundada.

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A acusação em causa é do seguinte teor:

“ACUSAÇÃO NA FORMA DE PROCESSO ABREVIADO

Dos factos vertidos no auto de notícia por detenção que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais (cf. art.º 391.º -B n.º 1 do Código de Processo Penal), resulta suficientemente indiciada a prática pela arguida identificada no ponto 5 do aludido auto de notícia e no respetivo TIR, em autoria material e na forma consumada, de um crime de contrafação de documento agravado, previsto e punido, pelos art.º 255.º al. a) e 256.º n.º 1, al. e) [por referência à al. a)] e n.º 3, todos do Código Penal, e artigos 363.º n.ºs 1 e 2 e 372.º n.º 2 [in fine] ambos do Código Civil.

Resulta ainda suficientemente indiciado que a arguida agiu conforme descrito naquele auto de notícia livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de exibir aqueles documentos perante Inspetor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, ciente de que o substrato dos documentos não correspondia ao modelo oficial de Passaporte emitido pela Estónia, a impressão de fundo/segurança era artesanal e a marca de água bem como a sobreimpressão fluorescente eram simuladas/irregulares no intuito de criar a falsa aparência de que os dados biográficos que delas constavam correspondiam aos seus e da criança, fazendo-se passar, bem como à menor, por cidadãos nacionais da …, a fim de não ser colocado qualquer obstáculo, designadamente, a exibição de comprovativo da prévia obtenção de Visto, na sua entrada em Portugal.

Sabia, ainda, a arguida que toda a sua atuação era idónea a prejudicar, e prejudicava, a fé pública inerente aos documentos oficiais emitidos pelas autoridades públicas.

Sabia a arguida que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, que podia e devia ter observado.

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Prova – toda a dos autos, designadamente:

Pericial – Protesto juntar os relatórios de exame pericial aos documentos com as inscrições PASSAPORTE Nº … e PASSAPORTE Nº …, solicitados através do ofício com a referência Citius ….

Documental – Auto de notícia por detenção,

- Auto de apreensão;

- Documentos com a aparência de Passaportes em saco prova;

Testemunhal – BB e

- CC, Inspetoras do SEF, identificadas no aludido auto de notícia por detenção.”

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A questão que importa resolver reveste extrema simplicidade e, daí, que essa simplicidade seja transposta para apresente decisão.

Assim:

Entendeu-se no despacho recorrido que a acusação era manifestamente infundada porque o que nela consta não constitui crime, uma vez que remeteu-se para o auto de notícia e neste consta que há indícios de que os passaportes utlizados pela arguida (o seu e o DO seu filho menor) são falsos, mas não que os mesmos são falsos.

Efectivamente o auto de notícia refere que os passaportes apresentam forte indícios de serem contrafeitos e não que são contrafeitos Mas não podia ser de outra forma, pois concluiu-se pela existência de tais fortes indícios apenas pela observação (experiente, tendo em conta a qualidade de quem observou) dos documentos.

A remissão da acusação para tal auto de notícia, possibilitada pelo artº 391º-B, nº 1, do C.P.P., assume essa existência de fortes indícios, como sempre acontece em qualquer acusação, por força do artº 283º, nº 1, do C.P.P., referindo-se, aliás, a indícios suficientes.

Não nos deixemos embrenhar por “jogos de palavras” e concentremo-nos em interpretar e aplicar as leis de forma sensata e equilibrada com o objectivo de lograrmos todos fazer Justiça.

Se o Ministério Público acusa alguém é porque entende que ocorrem, pelo menos, indícios suficientes da prática dos factos que imputa, pese embora não seja habitual iniciar-se uma acusação referindo isso (existem indícios suficientes) expressamente.

Só quando for proferida sentença transitada em julgado é que se pode afirmar que o condenado praticou determinados factos. Até lá, são só indícios que, consoante a fase processual em causa, terão que ser mais, ou menos, acentuados.

Não parece, pois, que a remissão para auto de notícia onde se refere que existem fortes indícios, possa tornar a acusação manifestamente infundada.

Mas há mais: quer o auto de notícia, quer a acusação, referem expressamente quais são as características dos passaportes que indiciam a falsidade: “o substrato dos documentos não correspondia ao modelo oficial de Passaporte emitido pela …, a impressão de fundo/segurança era artesanal e a marca de água bem como a sobreimpressão fluorescente eram simuladas/irregulares.” (transcrição da acusação)

Compreende-se, pois, muito bem quais são os factos concretos que se estão a imputar à arguida, estando bem ao alcance desta exercer cabalmente o seu direito de defesa.

Entende-se que não se justificam quaisquer outras considerações para se concluir que o presente recurso merece provimento.

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar o recurso procedente e, em consequência, decidem revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que não rejeite a acusação por ser manifestamente infundada.

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Sem tributação.

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Évora, 19 de Março de 2024

Nuno Garcia

Maria Clara Figueiredo

Laura Goulart Maurício