Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
583/16.3T8SSB.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: INABILITAÇÃO
DECISÃO JUDICIAL
EXAME PERICIAL
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário:
I – O artigo 899.º do CPC não permite o indeferimento imediato do pedido de interdição ou de inabilitação, na sequência de interrogatório e exame pericial;
II – Caso a ação tenha sido contestada ou inexistam elementos seguros que permitam decretar a interdição ou a inabilitação, devem os autos seguir os termos do processo comum, posteriores aos articulados;
III - É nula, por excesso de pronúncia, a decisão que indeferiu o pedido de inabilitação, na sequência de interrogatório e exame do requerido.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório

AA intentou a presente ação de inabilitação, com processo especial, contra seu irmão BB, divorciado, alegando que o requerido vive sozinho, anda constantemente alcoolizado, gasta todo o dinheiro da pensão que recebe em bebidas alcoólicas, não se alimenta nem compra produtos de alimentação, não toma banho por sua iniciativa, não confeciona refeições, não paga eletricidade, água, gás nem quaisquer impostos, não lava as suas roupas, tendo a requerente assumido estas tarefas e encargos, pagando a um centro comunitário para que proceda à entrega de alimentação no domicílio do requerido, sendo que este deixou de abrir a porta às assistentes sociais, impedindo a entrega da alimentação e assim ficando sem se alimentar quando a requerente se vê impossibilitada de aí se deslocar; acrescenta que o requerido demonstra regularmente confusão mental, esquecimentos e discurso incoerente, bem como total alheamento da realidade, por vezes andando na rua desorientado, sendo encontrado caído na rua, alcoolizado e sujo de urina e fezes; conclui, pedindo se decrete a inabilitação do requerido.
Recebida a petição, procedeu-se à afixação de editais e à publicação de anúncio.
Citado, o requerido não constituiu mandatário, pelo que foi nomeada curadora provisória, a qual foi citada em representação do requerido e não apresentou contestação, na sequência do que foi citado o Ministério Público que igualmente não deduziu oposição.
O requerido foi submetido a interrogatório e a exame pericial.
O Ministério Público teve vista aos autos, pronunciando-se no sentido de dever ser decretada a inabilitação do requerido.
Foi proferida sentença que decidiu o seguinte:
Por tudo o exposto o tribunal julga a ação improcedente, por não provada, e consequentemente não decreta qualquer medida de proteção relativamente ao Requerido.
Inconformada, a requerente interpôs recurso desta sentença, arguindo a nulidade da decisão recorrida e pugnando pela respetiva revogação, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«A
I
A Sentença proferida pelo Tribunal “a quo” encontra-se ferida de Nulidade, nos termos do artigo 615º, n.º1, alínea d) do C.P.P.;
II
Caso o Tribunal entendesse que no caso sub judice não estávamos perante uma das situações previstas no artigo 899º, n.º1 do C.P.C., deveria ter determinado que, após o interrogatório e o exame do Recorrido, o processo seguisse os tramites do processo declarativo comum, nos termos dos artigos 590º e seguintes do C.P.C.
III
O Tribunal “a quo” ao proferir a Sentença que proferiu pronunciou-se sobre matéria que, naquela fase processual, ainda não poderia tomar conhecimento;
Contudo, mesmo que assim não se entenda, o que não se concede e por mero dever de patrocínio se coloca, no caso Sub judice o Tribunal a quo deveria ter declarado a inabilitação do recorrido;
B
IV
Resulta claramente do Relatório pericial, elaborado com base na entrevista ao Recorrido, que:
“Para o seu modus vivendi a inabilitação será o procedimento mais adequado.
A interdição, por si só arriscaria um prejuízo da necessária estimulação cognitiva, baixando a autoestima e aumentando a dependência.
Todavia e por de facto existirem deficits e períodos de abuso do consumo de álcool, importará salvaguardar os seus direitos, o seu acompanhamento próximo e supervisão, apoio e tratamentos que se considerem necessários pelo que integra pressupostos médico -legais de situação de inabilitação, devendo ser nomeado curador, que dele cuide supervisione e se sinta afetivamente próximo.”
V
Ficou patente uma incapacidade, com início que a Senhora Médica perita indicou como data provável no ano de 2011;
VI
Importa ainda ter presente que do Relatório Social elaborado pelo Centro Comunitário da Quinta do Conde, que acompanhava o Recorrido, consta o seguinte:
“Os vizinhos, por terem conhecimento que o Centro Comunitário apoiava o Sr. BB, por vezes contactavam para alertar para o facto do mesmo andar na rua desorientado, por vezes era encontrado caído na rua, alcoolizado, e todo sujo de urina e fezes.”
VII
O Recorrido encontra-se desorientado no tempo, e carece do apoio de terceiras pessoas para tarefas básicas como sejam a sua higiene pessoal;
VIII
Ao decidir como decidiu o tribunal “a quo” violou os artigos 152º, 153º e 154º do Código Civil.»
O Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
- da nulidade da decisão recorrida;
- da verificação dos pressupostos de inabilitação do requerido.


2. Fundamentos

2.1. Factos considerados provados em 1.ª instância:
A. O Requerido nasceu no dia 24.08.1954, é divorciado e é filho de CC e de DD.
B. O Requerido reside sozinho na Rua …, lote …, Quinta do Conde.
C. O Requerido apresenta o diagnóstico de abuso de álcool.
D. O Requerido aufere anualmente uma pensão de cerca de € 7500.
E. O Requerido não toma banho por sua iniciativa.
F. O Requerido:
- Apresenta um quadro de défice cognitivo ligeiro/moderado;
- Frequentou o Centro de Dia do Centro Comunitário da Quinta do Conde entre julho de 2013 e julho de 2014, tendo abandonado o centro por dificuldade no cumprimento de regras e de adaptação às rotinas impostas;
- Sabe ler e escrever;
- Encontra-se desorientado no tempo e orientado no espaço;
- Conhece o valor do dinheiro;
- Encontra-se dependente de apoio a terceira pessoa para as atividades da vida diária relacionadas com a higiene e vestuário.

2.2. Apreciação do objeto do recurso

2.2.1. Nulidade da decisão recorrida
A apelante arguiu a nulidade, por excesso de pronúncia, da decisão que, na sequência do interrogatório e do exame pericial, indeferiu imediatamente o pedido de inabilitação do requerido.
Sustenta a recorrente que o artigo 899.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, não permite ao Tribunal decidir, naquele momento processual, no sentido do indeferimento do pedido; acrescenta que, caso se entendesse que o processo não fornecia os elementos suficientes para ser decretada imediatamente a inabilitação, deveria ter sido determinado que seguisse os termos do processo comum posteriores aos articulados.
Vejamos se lhe assiste razão.
A nulidade em causa encontra-se prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPC, e ocorre quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Sob a epígrafe Termos posteriores ao interrogatório e exame, dispõe o artigo 899.º do CPC, no n.º 1, o seguinte: se o interrogatório, quando a ele haja lugar, e o exame do requerido fornecerem elementos suficientes e a ação não tiver sido contestada, pode o juiz decretar imediatamente a interdição ou inabilitação; acrescenta o n.º 2 do indicado preceito que, nos restantes casos, seguem-se os termos do processo comum, posteriores aos articulados; sendo ordenado na fase de instrução novo exame médico do requerido, aplicam-se as disposições relativas ao primeiro exame.
Extrai-se da indicada norma que, não havendo contestação, se o interrogatório, caso se realize, e o exame pericial fornecerem elementos suficientes, pode o juiz decretar imediatamente a interdição ou a inabilitação; nos restantes casos, isto é, se a ação tiver sido contestada ou, ainda que o não tenha sido, se o interrogatório e o exame não fornecerem elementos que permitam decretar a interdição ou a inabilitação, deverão os autos seguir os termos do processo comum, posteriores aos articulados.
Daqui decorre que não permite o preceito o indeferimento imediato do pedido deduzido, na sequência do interrogatório e do exame pericial, devendo os autos seguir os termos do processo comum, caso inexistam elementos seguros que permitam decretar a interdição ou a inabilitação.
Em anotação ao artigo 952.º do anterior CPC – preceito que estabelecia regime idêntico ao emergente do artigo 899.º do atual CPC –, explica Carlos Lopes do Rego (Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 1999, p. 631) que “o n.º 1 permite a prolação de decisão sumária, sempre que a acção não haja sido contestada e o interrogatório e exame pericial do requerido fornecerem elementos cabais no sentido da procedência do pedido”, acrescentando que “apenas se prevê esta forma de decisão, sumária e imediata, a propósito do deferimento da interdição, não contestada pelo requerido – mas já não como forma de indeferimento ou rejeição do pedido (como o permitia o preceito, na redacção anterior à reforma): na verdade, não pode, neste caso, ser o autor privado do direito de, nos termos gerais, fazer prova dos fundamentos do pedido que dirigiu ao tribunal”.
Neste sentido, podem indicar-se, a título exemplificativo, os acórdãos seguintes: o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-01-2013 (relator: Gregório Silva Jesus), proferido na revista n.º 2382/09.0TBFIG.C1.S1 - 1.ª Secção, no qual se entendeu que “na acção especial em que se requeira a interdição nos termos dos arts. 944.º a 958.º do CPC, o juiz só pode decidir imediatamente no sentido da interdição, se após o interrogatório e o exame pericial, fornecerem estes elementos suficientes, e não houver contestação (n.º 1 do art. 952.º). O conjunto destes dados aponta para uma evidência relativamente à necessidade da interdição, que dispensa um formalismo mais rigoroso”, acrescentando que “está vedado ao julgador que indefira o pedido de imediato, ainda que dos meios de averiguação oficiosa resulte a concordância de que o requerido não é incapaz, tenha este oferecido, ou não, contestação. Isto, dado que na primeira situação se mantém uma área de divergência entre o requerente e o requerido que importa apurar, e na segunda por respeito do princípio dispositivo”; o acórdão da Relação do Porto de 17-01-2008 (relator: Fernando Baptista), proferido no processo n.º 0736746, no qual se entendeu que “a prolação de decisão sumária (definitiva) sobre o mérito, no processo especial de interdição ou inabilitação, imediatamente a seguir ao exame e ao interrogatório do arguido, só pode ocorrer desde que preenchidos (cumulativamente) os seguintes requisitos: 1) – a acção não tenha sido contestada; 2) – o interrogatório e o exame do requerido forneçam elementos suficientes para ser proferida logo decisão; 3) – esta decisão seja no sentido de ser “decretada” a interdição”; o acórdão da Relação de Lisboa de 15-02-2007 (relator: Ferreira de Almeida), proferido no processo n.º 4847/2006-7, no qual se entendeu que “a acção de interdição por anomalia psíquica pode findar, decretando-se a interdição, se o interrogatório e exame do requerido fornecerem elementos suficientes e a acção não tiver sido contestada (artigo 952.º/1 do Código de Processo Civil)”, acrescentando que “se assim não suceder, o processo deve prosseguir, não devendo a acção ser julgada improcedente (artigo 952.º/2 do C.P.C.)”, todos publicados em www.dgsi.pt.
Na presente ação, em que vem peticionada a inabilitação do requerido, não foi apresentada contestação e, na sequência da realização de interrogatório e de exame pericial, foi proferida decisão que indeferiu imediatamente o pedido formulado.
Tendo-se concluído que o citado artigo 899.º veda ao julgador o indeferimento do pedido de interdição ou inabilitação na sequência de interrogatório e exame do requerido, impondo o prosseguimento dos autos, verifica-se que o Tribunal de 1.ª instância, ao indeferir o pedido de inabilitação após a realização de interrogatório e exame pericial, conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento, pelo que enferma a decisão recorrida de excesso de pronúncia.
Assim, é nula, por verificação do previsto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, a decisão da 1.ª instância que conheceu e julgou improcedente o pedido de inabilitação, na sequência de interrogatório e exame do requerido.
Procede a arguição de nulidade da decisão recorrida.

2.2.2. Pressupostos de inabilitação do requerido
Pretende a apelante se decrete, de imediato, a inabilitação do requerido, sustentando que a ação não foi contestada e que o interrogatório e o exame pericial fornecem elementos suficientes para o efeito.
Porém, a recorrente, que não impugnou a decisão sobre a matéria de facto, baseia a indicada pretensão em factualidade que não foi considerada assente, extraída da respetiva alegação, bem como do interrogatório a que se submeteu o requerido, do exame pericial realizado e de prova documental que apresentou.
Verificando que parte da factualidade invocada pela recorrente para fundamentar a pretensão de prolação de decisão, sumária e imediata, de inabilitação do requerido não se encontra assente, não poderá concluir-se que se mostram reunidos elementos suficientes para decretar, desde já, tal inabilitação, assim cumprindo determinar que os autos sigam os termos do processo comum, posteriores aos articulados, conforme dispõe o artigo 899.º do CPC.

Em conclusão:
I – O artigo 899.º do CPC não permite o indeferimento imediato do pedido de interdição ou de inabilitação, na sequência de interrogatório e exame pericial;
II – Caso a ação tenha sido contestada ou inexistam elementos seguros que permitam decretar a interdição ou a inabilitação, devem os autos seguir os termos do processo comum, posteriores aos articulados;
III - É nula, por excesso de pronúncia, a decisão que indeferiu o pedido de inabilitação, na sequência de interrogatório e exame do requerido.


3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, declarar a nulidade, por excesso de pronúncia, da decisão recorrida, determinando que os autos sigam os termos do processo comum, posteriores aos articulados.
Sem custas.
Notifique.

Évora, 28-06-2018
Ana Margarida Leite
Silva Rato
Mata Ribeiro