Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
270/16.2T8STB.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: ACIDENTE EXCLUÍDO
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
Data do Acordão: 06/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - É de 15 dias o prazo para interposição do recurso do despacho de rejeição de meio de prova, prazo esse a contar da notificação do mesmo despacho.
2 - Não se colhendo da matéria de facto provada que o veículo seguro interveio no acidente ou desencadeou o embate do veículo da Recorrente no muro, que o embate do veículo da Recorrente no muro ocorreu em consequência de qualquer interferência do veículo seguro, não há que chamar à colação a responsabilidade civil decorrente dos riscos próprios do veículo seguro pela Recorrida, pelo que inexiste fundamento para condenar a Recorrida no pagamento de indemnização à Recorrente.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 270/16.2T8STB.E1


ACÓRDÃO

Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora

I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Autora: (…)

Recorrida / Ré: (…) – Insurance, PLC

Trata-se de uma ação declarativa de condenação através da qual a A pretende obter a condenação da R a pagar-lhe a quantia de €31.500 acrescida de juros a título de indemnização pelos danos sofridos por via de acidente de viação causado por veículo seguro pela R. O que esta contesta, porquanto das averiguações levadas a cabo concluiu que os danos que o veículo da A apresentavam eram preexistentes à data do evento relatado nos autos.

II – O Objeto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando a ação totalmente improcedente.

Inconformada, a A apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da sentença recorrida, a substituir por outra que condene a R no pedido, ou que ordene a remessa dos autos de volta à 1.ª instância para ser ordenada a notificação da R para juntar aos autos cópia da participação do acidente, ordenando-se a reabertura da produção de prova com a convocação do condutor do veículo seguro pela R para esclarecer o conteúdo da participação que fez à R. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«1. Pretende o presente recurso a emissão de pronúncia sobre as seguintes questões:
1.1. No decorrer da segunda sessão de audiência de discussão e julgamento a A requereu a notificação da R. para juntar aos autos cópia da participação que o seu segurado lhe fez do acidente em discussão.
1.2. Fê-lo nessa audiência e não antes devido à falta de comparência do referido segurado que foi apresentado como testemunha por ambas as partes, mas não compareceu.
1.3. Facto que se pretende seja entendido como superveniente e justificativo da oportunidade do requerido nessa sessão de julgamento.
1.4. Entende também a recorrente que o referido documento tem força probatória relevante e é credor de fé em juízo, tendo em conta a função dessa participação no contexto da lei do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, em especial na parte reservada dessa declaração onde o segurado descreve a sua versão da ocorrência.
1.5 A não ter sido deferida aquela pretensão da apelante deveria o Tribunal ter marcado nova sessão de julgamento para, em cumprimento do disposto no artigo 411º do CPC poder dirimir as dúvidas que o impediram de proferir decisão acertada e definitiva sobre o objeto em litígio.
2. A não ser deferido aquele pedido e, em consequência reaberta a fase processual de produção de prova, ainda assim deve a decisão de improcedência ser alterada por se verificarem os pressupostos elencados no artigo 503º do C. Civil e em consequência a ação ser julgada parcialmente procedente por provada tendo em conta a factualidade apurada na sentença, de onde se transcreve:
1. No dia 13.05.2014, pelas 21:50 horas, a autora circulava na Rua (…) (Estrada dos …) seguindo a direcção Palmela-(…), ao volante do seu veículo ligeiro de passageiros, marca BMW, matrícula belga (…).
2 – Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, ao aproximar de uma curva e por motivos não concretamente apurados, a autora desviou a trajetória do veículo para a direita, indo embater num muro que ladeava a estrada.
3 – Ao embater no muro, o veículo sofreu um incêndio no motor.
4 – À data, a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo ligeiro (…), (marca Bedford) encontrava-se transferida para a ré através da apólice (…).
5 – O segurado da ré, (…), participou à ré um sinistro envolvendo a sua viatura e o veículo da autora e que teria ocorrido nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 1.
3. Ao decidir da forma relatada a Mmª Juiz violou o princípio do inquisitório e por isso a sentença enferma de vício que afeta a sua validade material.
4. Também não pode a matéria de facto assente na decisão conformar-se com o princípio da responsabilidade objetiva consagrado no artigo 503º do C. Civil quando não consegue apurar as circunstâncias concretas de um acidente que ocorreu numa curva, no cruzamento de 2 veículos em que um dos condutores participa à sua seguradora o envolvimento da sua viatura nesse evento.
5. Mostram-se violados os comandos já citados pelo que deverá a, alias, douta sentença ser revogada e substituída por outra que ordene a remessa dos autos de volta à primeira instância para ser ordenada a notificação da Ré para juntar aos autos cópia da participação do acidente na parte especial que contém a descrição do acidente da autoria do seu segurado.
6. Ordenando-se também a reabertura da produção de prova com a convocação do condutor do veículo (…), a fim de esclarecer o conteúdo dessa participação.
7. Atentos os factos apurados e descritos de 1 a 5 da sentença – que já preenchem os pressupostos elencados no artigo 503º do C. Civil – deveria a decisão ter considerado a responsabilidade objetiva do condutor daquela viatura e condenado a seguradora pelo risco inerente à circulação dela.
8. Neste sentido deva ter sido considerado o conteúdo do artigo 411º do CPC e a sua aplicação ao caso concreto.
9. Também o artigo 503º do C Civil deveria ter a interpretação que se refere no antecedente ponto 4 que deveria determinar a condenação da R. no caso de insuperável duvida sobre as concretas circunstâncias da ocorrência.
10. Sendo decisivamente esta a melhor solução de direito na medida em que a A alegou no artigo 6º da PI que o condutor da viatura assumiu de imediato todas as responsabilidades pela ocorrência e participou o evento à seguradora, a qual, embora diga que os factos são falsos confessa essa participação do segurado no artigo 3º da contestação.»

A R apresentou contra-alegações, sustentando dever manter-se a sentença recorrida.

Assim, em face das conclusões da alegação da Recorrente, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso[1], sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso e sendo certo que apenas cabe apreciar as questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso, são as seguintes as questões a decidir:
- da intempestividade do recurso atinente à rejeição de meio de prova;
- da verificação dos fundamentos em que se funda o dever de a Recorrida indemnizar a Recorrente a coberto do risco de circulação da viatura segura.


III – Fundamentos

A – Os factos provados em 1.ª instância
1. No dia 13.05.2014, pelas 21:50 horas, a autora circulava na Rua (…) (Estrada dos …) seguindo a direcção Palmela-(…), ao volante do seu veículo ligeiro de passageiros, marca BMW, matrícula belga (…).
2 – Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, ao aproximar de uma curva e por motivos não concretamente apurados, a autora desviou a trajetória do veículo para a direita, indo embater num muro que ladeava a estrada.
3 – Ao embater no muro, o veículo sofreu um incêndio no motor.
4 – À data, a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo ligeiro (…), (marca Bedford) encontrava-se transferida para a ré através da apólice (…).
5 – O segurado da ré, (…), participou à ré um sinistro envolvendo a sua viatura e o veículo da autora e que teria ocorrido nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 1.
6 – A ré fez peritagem ao veículo da autora, concluindo que a reparação não era viável e que o valor de eventual indemnização seria de € 29.900,00.
7 – Porém, após instrução do processo de sinistro, a ré não assumiu o pagamento de qualquer valor à autora.
8 – A autora o suportou o custo de € 100,00 com o reboque do veículo do local do acidente.

Outros dados a considerar:
- (…) foi convocado, na qualidade de testemunha, para comparecer nas duas sessões da audiência final, tendo faltado a ambas;
- na 2.ª sessão da audiência final, a 07/10/2016, o ilustre mandatário da A declarou prescindir do depoimento da testemunha (…);
- nessa 2.ª sessão da audiência final, concluída a inquirição das testemunhas, o ilustre mandatário da A requereu que a R fosse notificada para juntar aos autos a participação amigável de acidente apresentada pelo segurado (…);
- o que foi indeferido por despacho proferido na mesma sessão da audiência final;
- o presente recurso foi interposto a 14/12/2016.

B – O Direito

Da intempestividade do recurso atinente à rejeição de meio de prova

A Recorrente sustenta que o Tribunal a quo errou ao indeferir a sua pretensão de notificação da R para juntar aos autos documentos, pelo que deve ser ordenada a remessa dos autos de volta à 1.ª instância para ser ordenada a notificação da R para juntar aos autos cópia da participação do acidente, ordenando-se a reabertura da produção de prova com a convocação do condutor do veículo seguro pela R para esclarecer o conteúdo da participação que fez à R.

Está em causa uma decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, na 2.ª sessão da audiência final, conhecendo de requerimento formulado pelo ilustre mandatário da A, após a inquirição das testemunhas presentes nessa audiência. No início de tal sessão, o mesmo ilustre mandatário tinha declarado prescindir do depoimento da testemunha (…), o condutor do veículo seguro pela R, cujo depoimento pretende agora seja ordenado. O que teve lugar a 7 de Outubro de 2016, resultando ambas as partes nessa mesma data notificadas de tal despacho.

Nos termos do disposto no art. 638.º n.º 1 do CPC, o prazo para a interposição do recurso é de 30 dias e conta-se a partir da notificação da decisão, reduzindo-se para 15 dias nos processos urgentes e nos casos previstos no n.º 2 do artigo 644.º e no artigo 677.º.

O recurso do despacho de admissão ou rejeição de meio de prova encontra-se previsto no art. 644.º n.º 2 al. d) do CPC. Trata-se de situação processual que admite recurso autónomo, nos termos do n.º 2 do art. 644.º do CPC, não integrando “as restantes decisões” a que se refere o n.º 3 de tal normativo legal (estas sim, são impugnadas por meio do recurso que seja interposto da decisão final). Por conseguinte, o prazo de interposição de recurso é de 15 dias a contar da notificação da decisão.

Uma vez que à data da interposição do presente recurso tinham decorrido bem mais do que 15 dias sobre a data de notificação da decisão às partes, impõe-se rejeitar o recurso, neste âmbito, por intempestividade.

Já a invocada violação do princípio do inquisitório por parte do Tribunal a quo constitui nulidade processual cujo regime se encontrada plasmado no art. 195.º, 199.º e 149.º do CPC. Se a Recorrente considera que, na sessão da audiência de julgamento que teve lugar a 7 de outubro de 2016, o juiz a quo devia ter determinado a inquirição de testemunha que a própria Recorrente nessa audiência declarou prescindir, então impunha-se tivesse arguido a nulidade no prazo de 10 dias. Do respetivo regime legal resulta que dela não cabe diretamente recurso, devendo ser arguida perante o respetivo tribunal decisor. Só posteriormente, no caso de discordância com o despacho que aprecie a arguição da nulidade, é que dessa decisão caberá recurso para o tribunal superior.

Da verificação dos fundamentos em que se funda o dever de a Recorrida indemnizar a Recorrente a coberto do risco de circulação da viatura segura.

A Recorrente sustenta que a factualidade provada em 1.ª instância reclama a condenação da R a pagar a peticionada indemnização ao abrigo do regime inserto no art. 503.º do CC, dado que não se conseguiram apurar as circunstâncias concretas do acidente que ocorreu numa curva, no cruzamento de 2 veículos, em que um dos condutores participa à sua seguradora o envolvimento no mesmo acidente.

Estando diante de uma ação de responsabilidade civil, cumpre desde logo atentar no disposto no art. 483.º do CC. Decorre de tal preceito que são requisitos do direito de indemnização o facto voluntário, a ilicitude do mesmo facto, o nexo de imputação do facto ao lesante, a ocorrência de danos e o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano verificado. Trata-se de uma causa de pedir complexa, que é integrada pelos diversos pressupostos de facto que condicionam a aplicabilidade das regras do instituto da responsabilidade civil.

Na medida em que a presente ação é proposta contra a seguradora (…), àqueles pressupostos acresce a existência de um contrato de seguro de responsabilidade civil através do qual esta assuma o risco de circulação do veículo causador ou interveniente no acidente, contrato esse que reveste a natureza de contrato a favor de terceiro.

Mais cumpre atentar no seguinte:
- incumbe ao lesado a prova da culpa do autor da lesão, salvo se houver presunção legal de culpa (art. 487.º n.º 1 do CC);
- na esfera de acidentes de viação, a culpa emerge da violação das regras ou da omissão dos cuidados que disciplinam a circulação rodoviária, o que gera responsabilidade civil do infrator e a inerente obrigação de reparar os danos daí resultantes;
- neste âmbito da circulação estradal, existe ainda a obrigação de indemnizar independentemente de culpa (responsabilidade pelo risco), já que o titular da direção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre que o utiliza no seu próprio interesse retira as vantagens decorrentes da sua circulação, deve responder pelos riscos próprios do mesmo (arts. 503.º a 508.º do CC).
Ora, acidente de viação é toda a ocorrência lesiva de pessoas e bens provocada por veículo sempre que este manifeste os seus riscos especiais. Estão em causa os danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação (art. 503.º n.º 1 do CC), abarcando tal forma legal tanto os danos provenientes de acidentes provocados pelo veículo em circulação, quer na via pública quer em via ou recinto franqueado ao trânsito, como os causados pelo veículo estacionado. Fora do círculo dos danos abrangidos pela responsabilidade objetiva ficam os que não têm conexão com os riscos específicos do veículo, os que são estranhos aos meios de circulação ou transporte terrestre, como tais, os que foram causados pelo veículo como poderiam ter sido provocados por qualquer outra coisa móvel.[2]

Posto isto, analisemos os factos assentes nos autos, de modo a apurar se o embate se deveu a culpa de algum ou de ambos os condutores dos veículos versados nos autos, se o veículo seguro pela R interveio na dinâmica que implicou na eclosão do embate, ou se se pode afirmar que nenhum dos condutores dos veículos versados nos autos teve culpa (o que pressupõe a prova dessa ausência de culpa), ou ainda se, face aos factos apurados, não se pode afirmar a existência de culpa ou a ausência dela por parte desses condutores.

Cumpre atentar na seguinte factualidade provada:
1 – No dia 13.05.2014, pelas 21:50 horas, a autora circulava na Rua (…) (Estrada dos …) seguindo a direcção Palmela-(…), ao volante do seu veículo ligeiro de passageiros, marca BMW, matrícula belga (…).
2 – Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, ao aproximar de uma curva e por motivos não concretamente apurados, a autora desviou a trajetória do veículo para a direita, indo embater num muro que ladeava a estrada.
3 – Ao embater no muro, o veículo sofreu um incêndio no motor.
4 – À data, a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo ligeiro (…), (marca Bedford) encontrava-se transferida para a ré através da apólice (…).
5 – O segurado da ré, (…), participou à ré um sinistro envolvendo a sua viatura e o veículo da autora e que teria ocorrido nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 1.

Atento este concreto quadro circunstancial, não há como afirmar que o veículo seguro pela R interveio sequer no acidente, que de algum modo tenha desencadeado o embate do veículo da Recorrente no muro. O que não é contrariado pelo facto de o segurado ter participado à seguradora a ocorrência de acidente nas circunstâncias relatadas: o facto assente é que ocorreu a participação; a factualidade assente, que não foi impugnada em sede de recurso (cfr. art. 640.º do CPC), não contempla a descrição de facto ou evento donde resulte a intervenção do veículo seguro no embate do veículo da Recorrente no muro.

E se não há como afirmar que o veículo seguro interveio no acidente ou desencadeou o embate do veículo da Recorrente no muro, não cabe apreciar se o embate decorreu de riscos próprios de tal veículo – sendo certo que a factualidade provada também não contempla a descrição de facto ou evento donde resulte que o embate do veículo da Recorrente no muro ocorreu em consequência dos riscos próprios do veículo seguro pela Recorrida.

Inexiste, pois, fundamento para condenar a Recorrida no pagamento de indemnização à Recorrente.

As custas recaem sobre a Recorrente – art. 527.º, n.º 1, do CPC.

IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Évora, 8 de Junho de 2017

Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria da Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura
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[1] Cfr. arts. 637.º, n.º 2 e 639.º, n.º 1, do CPC.
[2] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 5.ª edição. vol. I, pág. 625 a 627.