Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1052/078TTSTB.E3
Relator: JOÃO NUNES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ACIDENTE IN ITINERE
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
ALCOOLÉMIA
RETRIBUIÇÃO
PRÉMIO DE PRODUTIVIDADE
Data do Acordão: 04/26/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I – No domínio da Lei n.º 100/97, de 13-09 (LAT) e do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30-04 (RLAT), deve qualificar-se um acidente in itinere (também designado de trajecto ou de percurso) como acidente de trabalho se ocorrer no trajecto normalmente utilizado de ida e regresso entre o local de trabalho, durante o período ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador, mesmo quando esse trajecto tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador.
II – É de considerar como acidente de trabalho, o sofrido pelo trabalhador, operador de máquinas agrícolas, que tendo terminado o trabalho pelas 17.00h numa herdade explorada pela empregadora, se dirigia no tractor para outra herdade explorada pela mesma empregadora, onde deveria ligar as bombas de rega, tinha a sua residência e desempenhava as funções de caseiro, sendo que antes das 19.00h, interrompeu esse trajecto, tendo entrado num café, onde reuniu com amigos, confraternizou e bebeu cervejas e, pelas 19.21h, quando se dirigia para o tractor, a fim de retomar o trajecto, foi vítima de atropelamento mortal.
III – Para descaracterizar um acidente de trabalho quando o sinistrado apresenta álcool no sangue - ainda que em grau susceptível de influenciar o comportamento humano e de afectar as respectivas faculdades intelectuais psico-motoras - é necessário demonstrar a existência de nexo de causalidade entre aquela situação e a verificação do acidente, ou seja, que o acidente se deveu, em exclusivo, à elevada taxa de alcoolemia que o sinistrado tinha;
IV – Tal não ocorre se apenas se prova que o sinistrado se encontrava com uma taxa de alcoolemia de 2,42, mas já não que essa quantidade de álcool tenha diminuído os reflexos, equilíbrio e coordenação de movimentos do sinistrado no atravessamento da via.
V – O artigo 26.º, n.º 3, da Lei n.º 100/97, de 13-09, adopta um conceito de retribuição mais amplo que o do Código do Trabalho, onde engloba todas as prestações que assumam carácter de regularidade, apenas dele excluindo aquelas prestações que se destinem a compensar custos aleatórios do sinistrado;
VI – Provando-se que ao longo dos cerca de 5 meses de vigência do contrato de trabalho a empregadora sempre pagou ao sinistrado uma quantia mensal, variável, a título de prémio de produção, ainda que não houvesse um critério definido quanto à atribuição e montante do prémio – sendo a direcção que decidia atribuir ou não esse prémio – , a mesma deve integrar a retribuição para efeitos de cálculo da reparação do acidente de trabalho.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1052/07.8TTSTB.E3
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório[2]
Em 3 de Dezembro de 2007 BB, S.A, participou um acidente ocorrido em 27/11/2007 de que fora vítima mortal CC. O acidente foi participado no (extinto) Tribunal de Trabalho de Setúbal, transitou para o (extinto) Tribunal Judicial de Santiago do Cacém e, por fim, foi afeto ao actual Juízo do Trabalho de Beja, onde se concluiu a tentativa de conciliação com que culminou a fase conciliatória do processo.
Nessa tentativa de conciliação, presidida pelo Ministério Público, apresentaram-se como beneficiários legais por morte do referido CC e a reclamar prestações: (i) DD (solteira, que vivia maritalmente com o sinistrado há mais de dois anos), (ii) EE (nascida em 26/10/2001, filha do sinistrado e da referida DD, no acto representada por esta por ser menor), (iii) FF (nascido a 12/04/1991, filho do sinistrado e de …, tendo esta, divorciada do sinistrado, intervindo em representação do filho por ser menor) e (iv) GG (nascida a 1/05/1989, filha do sinistrado e da referida DD).
A essa diligência foram chamadas, como entidades eventualmente responsáveis, a seguradora BB, S.A. e a entidade empregadora do sinistrado HH, Ldª.
Frustrada a tentativa de conciliação veio, em 7/04/2010, DD, por si e em representação da filha menor EE, através de advogado constituído, apresentar petição inicial contra BB, S.A. e HH, Ldª.
(…)
Tendo os autos baixado novamente à 1.ª instância, aí foi proferido em 17/11/2014 novo despacho saneador – comum a todas as petições entradas, e respectivas contestações –, no qual (i) foi indeferida a requerida (pela empregadora) intervenção na acção de II, (ii) se julgou improcedente a excepção de ilegitimidade da Ré seguradora, (iii) se julgou improcedente a excepção de caducidade do direito, tendo ainda sido consignados os factos assentes e se elaborado a base instrutória, de que reclamou, com êxito parcial, a Ré empregadora.
Logo a seguir, no mesmo despacho saneador, foi proferida “decisão parcial” que absolveu a Ré seguradora dos pedidos, tendo, por isso, os autos prosseguido apenas contra a Ré empregadora HH, Ld.ª.
No prosseguimento dos autos, para além de vicissitudes processuais várias que ora não relevam, procedeu-se à realização da audiência de julgamento, que se prolongou por diversas sessões, e em 13/10/2017 foi proferida sentença, que julgou parcialmente procedente a acção, sendo a parte decisória do seguinte teor:
«Por tudo o exposto, julga-se parcialmente procedente a ação e, em consequência, decide-se:
a) Condenar a Ré “HH, Lda.” a reconhecer o acidente sofrido pelo sinistrado CC, como acidente de trabalho;
c) Condenar a Ré “HH, Lda.” a pagar à autora DD:
i. Uma pensão anual no valor de € 5.021,06 (cinco mil e vinte e um euros e seis cêntimos), devida desde 28 de novembro de 2007, a qual será paga pela quantia única de € 15.063,18 (quinze mil e sessenta e três euros e dezoito cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa civil desde a data do vencimento até efectivo e integral cumprimento;
ii. O subsídio por morte no montante de € 2.418,00 (dois mil quatrocentos e dezoito euros), acrescida dos juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento;
iii. A quantia de € 1.612,00 (mil seiscentos e doze euros) a título de compensação pelas despesas de funeral, acrescida dos juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento;
iv. A quantia de € 60,00, referente a despesas com deslocação da autora ao tribunal, acrescida dos juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento;
d) Condenar a Ré “HH, Lda.” a pagar à autora EE:
i. Uma pensão anual no valor de € 2.789,48 (dois mil setecentos e oitenta e nove euros e quarenta e oito cêntimos), devida desde 28 de novembro de 2007 até aquela perfazer 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respectivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, a qual será paga nos termos previstos no artigo 51º do DL 143/99 de 30.04, acrescida de juros de mora à taxa civil desde a data do vencimento até efectivo e integral cumprimento;
ii. O subsídio por morte no montante de € 806,00 (oitocentos e seis euros), acrescida dos juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento;
e) Condenar a Ré “HH, Lda.” a pagar ao autor FF:
i. Uma pensão anual no valor de € 2.789,48 (dois mil setecentos e oitenta e nove euros e quarenta e oito cêntimos), devida desde 28 de novembro de 2007 até 12.04.2009, a qual será paga nos termos previstos no artigo 51º do DL 143/99 de 30.04, acrescida de juros de mora à taxa civil desde a data do vencimento até efectivo e integral cumprimento;
ii. O subsídio por morte no montante de € 806,00 (oitocentos e seis euros), acrescida dos juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento;
iii. A quantia de € 60,00, referente a despesas com deslocação do autor ao tribunal, acrescida de juros de mora desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;
f) Condenar a Ré “HH, Lda.” a pagar à autora GG:
i. Uma pensão anual no valor de € 2.789,48 (dois mil setecentos e oitenta e nove euros e quarenta e oito cêntimos), devida desde 28 de novembro de 2007 até 15.07.2009, a qual será paga nos termos previstos no artigo 51º do DL 143/99 de 30.04, acrescida de juros de mora à taxa civil desde a data do vencimento até efectivo e integral cumprimento;
ii. O subsídio por morte no montante de € 806,00 (oitocentos e seis euros), acrescida dos juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento;
iii. A quantia de € 60,00, referente a despesas com deslocação da autora ao tribunal, acrescida de juros de mora desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;
g) Absolver a ré do demais peticionado;
h) Absolver os autores do pedido de condenação como litigantes de má-fé formulado contra os mesmos pela ré empregadora».

Inconformada com o assim decidido, a Ré (empregadora) veio interpor recurso para este tribunal, tendo nas alegações apresentadas formulado as seguintes conclusões:
«A) O presente recurso vem interposto da sentença proferida pelo Juízo do Trabalho de Beja, no âmbito da acção emergente de acidente de trabalho, intentada pelos beneficiários, ora Recorridos, DD, EE, FF e GG, que qualificou como acidente de trabalho o sinistro que, no dia 27.11.2007, vitimou CC, provocando a sua morte, e, consequentemente, condenou a Ré, ora Recorrente, a pagar aos Recorridos as pensões, indemnizações e subsídios melhor descritos na sentença recorrida.
B) Como fundamento para qualificação como “acidente de trabalho” do sinistro que vitimou o Sinistrado, e consequente condenação da ora Recorrente, entendeu, em síntese, o Tribunal a quo que, face aos contornos inerentes ao referido acidente, o mesmo era subsumível à previsão do artigo 6.º, n.º 2, alínea d) do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, ou seja, que se verificou no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador entre os seus locais de trabalho.
C) Adicionalmente, considerou o Tribunal a quo que a paragem do mesmo no estabelecimento “JJ”, para convívio com amigos e consumo de bebidas alcoólicas, sito na zona da Mimosa “(…) integra o conceito de necessidades atendíveis previsto na lei, tendo em conta que é costume enraizado nos trabalhadores rurais e outros proceder a pausas no trabalho de descanso para irem tomar café, comprar cigarros, beber uma cerveja ou comer um petisco (…)”.
D) Por fim, no que respeita à qualificação da conduta adoptada pelo Sinistrado no momento em que ocorreu o sinistro, nomeadamente sobre se o mesmo agiu com negligência grosseira, acrescentou o Tribunal a quo que “apesar de se ter provado que o autor efectuava a travessia da estrada com elevada taxa de alcoolemia, não logrou a ré provar que aquele iniciou o atravessamento da via fora da passagem de peões existente a menos de 50 metros nem que tal factor de conduta negligente tivesse alcançado o elevado grau qualitativo de culpa grosseira ou que o atropelamento se tivesse ficado a dever unicamente ao comportamento do sinistrado (…)”.
E) A Recorrente entende que o Tribunal a quo podia – e deveria – ter decidido de forma diferente.
F) Assim, o presente recurso abrange, por um lado, a decisão proferida pelo Tribunal a quo no que respeita à matéria de facto e, por outro, as consequências jurídicas decorrentes de tais factos que deveriam ter sido dados como assentes, bem como, o erro de julgamento do Tribunal na aplicação do direito aos factos.
G) Com efeito, atendendo a todos os elementos probatórios produzidos em sede de audiência de discussão e julgamento, bem como àqueles que foram juntos aos autos pelas partes, não pode a Recorrente deixar de discordar com parte da matéria de facto considerada provada e não provada.
H) Adicionalmente, e como consequência da discordância relativa à decisão proferida sobre a matéria de facto, entende igualmente a Recorrente que o Tribunal a quo poderia – e deveria – ter decidido de forma diversa quanto à qualificação do acidente sofrido pelo Sinistrado, atentos, nomeadamente, os factos provados em sede de audiência de discussão e julgamento.
I) Pretende, desta forma, a Recorrente, pelo presente recurso, o reexame e alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo e, como consequência directa da referida alteração, a qualificação do sinistro sofrido pelo Sinistrado como não consubstanciando um acidente de trabalho.
Assim, e no que respeita à impugnação da matéria de facto,
(…)
Relativamente à fundamentação da sentença recorrida,
II) Entende a Recorrente que o Tribunal a quo poderia – e deveria – ter decidido de forma diversa, uma vez que a correcta apreciação da prova oferecida, produzida e apreciada pelo Tribunal teria sido manifestamente suficiente para fundamentar decisão contrária à que veio a ser proferida.
JJ) Na Sentença recorrida o Tribunal a quo qualificou o acidente sofrido pelo Sinistrado como acidente de trabalho, subsumindo-o à previsão do artigo 6.º, n.º 2, alínea d) do Decreto-Lei n,º 143/99, de 30 de Abril, entendendo que o mesmo “integra-se no conceito de acidente de trabalho de trajecto em serviço (…) sendo irrelevante para este tribunal o facto (…) de o sinistrado ter sofrido o acidente quando fez uma pausa no caminho habitual de ida de uma herdade para outra onde residia e prestava o seu trabalho para a empregadora para ir a um café beber cervejas com um amigo (pausa social para relaxamento do trabalhador)”.
KK) A qualificação do acidente como acidente de trabalho por via deste preceito não pode, porém, proceder por duas razões: (i) porque o acidente não ocorreu no tempo habitualmente gasto pelo trabalhador (corpo da norma) e (ii) porque o Sinistrado não se dirigia para um outro local de trabalho.
LL) Com efeito, se bem se atentar ao disposto no corpo do artigo 6.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril e na alínea a) do n.º 2, do artigo 6.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, resulta que será acidente de trabalho o que ocorra no trajecto de ida e/ou regresso para e do local de trabalho desde que (i) o trajecto seja o normalmente utilizado pelo trabalhador sinistrado; e (ii) durante o tempo ininterrupto normalmente gasto pelo trabalhador.
MM) No caso dos autos, o Sinistrado saiu da Herdade do Roxo após ter terminado o seu trabalho, pelas 17:00 horas – cfr. ponto 27 da fundamentação de facto – e dirigiu-se ao café “JJ”, tendo o acidente que o vitimou ocorrido apenas às 19:21 horas – cfr. ponto 9 da fundamentação de facto.
NN) Deste modo, e conforme se viu supra, da prova oferecida e produzida nos presentes autos resulta que o Sinistrado, após terminar a sua prestação de trabalho diário na Herdade do Roxo, dirigiu-se ao café “JJ” a fim de conviver com amigos e aí ingerir bebidas alcoólicas, tendo ali permanecido durante, pelo menos, 1 hora.
OO) Pelo que, sem qualquer sombra de dúvida, o acidente que vitimou o Sinistrado não ocorreu no tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo Sinistrado no trajecto.
PP) No entanto, entendeu o Tribunal a quo que a paragem do Sinistrado no café “(…) integra o conceito de necessidades atendíveis previsto na lei, tendo em conta que é costume enraizado nos trabalhadores rurais e outros proceder a pausas no trabalho de descanso para irem tomar um café, comprar cigarros, beber uma cerveja ou comer um petisco, sendo certo que, no caso dos autos, o trabalhador teve o acidente quando se preparava para continuar o trajecto para outro local de trabalho, local onde também residia”.
QQ) Contrariamente ao entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo, o encontro do Sinistrado no café com, pelo menos, um amigo seu, com o objectivo único de proporcionar ao Sinistrado momentos de lazer e descontracção não consubstancia um qualquer “interrupção ou desvio determinado pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador”.
RR) Com efeito, e em primeiro lugar, a questão não tem que ver com qualquer espécie de costume enraizado dos trabalhadores alentejanos, sob pena de se considerar que o acidente sofrido por um trabalhador alentejano que parou durante cerca de 1 hora num café para “beber umas cervejas” pode ser considerado acidente de trabalho, enquanto que o acidente ocorrido após idêntica paragem de um trabalhador de Lisboa já não será.
SS) Em segundo lugar, um encontro num café, de pelo menos 1 hora, com o objectivo único e exclusivo de socializar, confraternizar e consumir bebidas alcoólicas, e do qual resulta uma taxa de álcool no sangue de 2,42 gramas por litro – taxa que, para quem vá conduzir, constitui crime – não consubstancia uma “necessidade atendível” de nenhum trabalhador!
TT) Assim, e salvo o devido respeito, andou mal o Tribunal a quo ao considerar que o encontro entre o Sinistrado e seus amigos, num café sito na zona da Mimosa, com o objectivo de ali confraternizarem e ingerirem bebidas alcoólicas durante, pelo menos, 1 hora, não consubstanciou qualquer interrupção no trajecto ditada por necessidade atendível do Sinistrado.
UU) Pelo que deveria o Tribunal a quo ter absolvido a ora Recorrente do pedido, na medida em que, face aos elementos disponíveis, não poderia ter qualificado o acidente sofrido pelo Sinistrado como um acidente de trabalho.
VV) O Tribunal a quo tentou ainda justificar a qualificação do acidente como acidente de trabalho considerando que o Sinistrado, quando parou no café na zona da Mimosa, estava em pleno período normal de trabalho, devendo considerar-se tal interrupção como “tempo de trabalho” para efeitos do artigo 156.º do Código do Trabalho de 2003.
WW) Sucede porém que, como ficou demonstrado supra, no dia 27.11.2007, o Sinistrado concluiu a sua prestação diária de trabalho às 17:00 horas, conforme resultou provado, razão pela qual não se dirigia para o seu local de trabalho, mas sim para a sua residência.
XX) De facto, se enquanto caseiro havia tarefas que o Sinistrado poderia ter de efectuar na Herdade das Sesmarias, o certo é que não se poderá considerar que todo o tempo passado na Herdade das Sesmarias seria tempo de trabalho, nem que a Herdade das Sesmarias era, exclusivamente, local de trabalho do Sinistrado.
YY) Ao sair do estabelecimento “JJ” na Mimosa, o Sinistrado pretendia dirigir-se para a sua residência, não tendo tido o Tribunal a quo o cuidado de considerar a circunstância de que o Sinistrado também residir na Herdade das Sesmarias.
ZZ) Com efeito, esquecer que o Sinistrado residia na casa/monte sito na Herdade das Sesmarias implicaria que o mesmo, independentemente da natureza da deslocação, estivesse sempre numa deslocação de ou para o local de trabalho.
AAA) Ora, pese embora nem a lei nem qualquer instrumento de regulamentação colectiva de trabalho regulem, especificamente, as condições de trabalho dos caseiros, a solução para esta questão poderá ser encontrada – se não por analogia, pelo menos pela norma que o intérprete criaria se houvesse que legislar dentro do espírito do sistema – no Decreto-Lei n.º 235/92, de 24 de Outubro, que regula as relações de trabalho emergentes de contratos de serviço doméstico.
BBB) O qual, no seu artigo 13.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 235/92, de 24 de Outubro, dispõe que no caso dos trabalhadores alojados [empregados domésticos internos] apenas são considerados, para efeitos do número anterior, os tempos de trabalho efectivo.
CCC) Tudo porque, tal como para os caseiros, para os empregados domésticos internos, a linha que separa a vida profissional e a vida pessoal, naquela que é a sua residência, é ténue.
DDD) Deste modo, e aplicando ao caso concreto, apenas o tempo de trabalho efectivamente prestado pelo Sinistrado seria considerado tempo de trabalho.
EEE) Deste modo, ao chegar à Herdade das Sesmarias, o único tempo de trabalho que o Sinistrado ainda teria (naquele dia, apenas uns 15 minutos de trabalho) seria o tempo que o Sinistrado demoraria a deslocar-se até à bomba, ligá-la e regressar à sua residência , à hora que bem entendesse, que até poderia ser apenas à meia-noite.
FFF) Acidente de trabalho ocorreria, porventura, entre a residência do Sinistrado e o local onde se situavam as bombas da rega, mas nunca entre a Herdade do Roxo (local de trabalho habitual) e o monte que era sua residência.
GGG) Daí que, também por este motivo, o acidente que vitimou o Sinistrado não ocorreu, pois, numa deslocação em serviço, nem no tempo de trabalho do Sinistrado, mas sim após o mesmo ter terminado, às 17:00 horas, a sua prestação de trabalho diário ao serviço da Recorrente, quando o Sinistrado se dirigia para a sua residência, tendo porém ocorrido após paragem para um convívio lúdico e social, que interrompeu o nexo causal do acidente.
HHH) Pelo que a Recorrente deveria ter sido absolvida do pedido.
III) Sem prejuízo de todo o exposto, entende a ora Recorrente que, caso se considere que o Sinistrado sofreu um acidente de trabalho – o que não se concede e apenas por dever de patrocínio se admite – ainda assim não haveria lugar à reparação dos danos emergentes do mesmo na medida em que o acidente foi descaracterizado devido à negligência grosseira do Sinistrado, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro.
JJJ) Relativamente a esta matéria, entendeu o Tribunal a quo que “atenta a prova produzida nos autos, entende o Tribunal que a resposta não pode deixar de ser negativa uma vez que apesar de se ter provado que o autor efectuava a travessia da estrada com elevada taxa de alcoolemia, não logrou a ré provar que aquele iniciou o atravessamento da via fora da passagem de peões existente a menos de 50 metros nem que tal factor de conduta negligente tivesse alcançado o grau qualitativo de culpa grosseira ou que o atropelamento se tivesse ficado a dever única e exclusivamente ao comportamento do sinistrado, prova que incumbia à ré efectuar”.
KKK) No entanto, entende a Recorrente que os elementos constantes dos autos afiguram-se suficientes e inequívocos no sentido da qualificação da conduta do Sinistrado como negligência grosseira.
LLL) De facto, no momento em que ocorreu o acidente, o Sinistrado apresentava uma taxa de alcoolemia de 2,42 gramas de álcool por cada litro de sangue, a qual determinava que o Sinistrado registasse uma diminuição dos seus reflexos, influenciando a sua destreza e capacidade de atenção, provocando ainda a diminuição da sua acuidade visual e do respectivo campo de visão, bem como das distâncias – facto que, de resto, é notório.
MMM) Estas conclusões resultam expressamente das conclusões médico-legais constantes do relatório da autópsia, bem como do depoimento da testemunha ….
NNN) Adicionalmente, ficou provado que o Sinistrado atravessou a faixa de rodagem fora da passadeira de peões existente para o efeito, violando os deveres de cuidado a que estava obrigado nos termos do artigo 101.º, n.ºs 1 e 3 do Código da Estrada.
OOO) O atropelamento do Sinistrado ficou, assim, a dever-se unicamente ao comportamento adoptado pelo mesmo, tendo em especial consideração que não ficou provado, nos presentes autos, que o veículo que atropelou o Sinistrado circulasse em excesso de velocidade.
PPP) Assim, face aos elementos disponíveis no âmbito dos presentes autos deveria o Tribunal a quo ter considerado que o acidente se encontrava descaracterizado em virtude da negligência grosseira que caracterizou a conduta do Sinistrado, e que foi causa exclusiva para a ocorrência do acidente e, em consequência, absolvido a Recorrente do pedido.
QQQ) Sem prejuízo do supra exposto, caso se considere que o Sinistrado sofreu um acidente de trabalho e que não havia lugar à sua descaracterização – o que não se concede e apenas por dever de patrocínio se admite – sempre se dirá que a retribuição do Sinistrado, para efeito do cálculo das pensões devidas, não corresponde àquela que foi apurada pelo Tribunal a quo.
RRR) Com efeito, não obstante ter dado como provado que o prémio de produção recebido pelo Sinistrado nos meses de Julho a Outubro tinha montante variável e não estava antecipadamente garantido ao trabalhador, o Tribunal a quo qualificou-o como retribuição para efeitos do regime de reparação de acidentes de trabalho.
SSS) Contudo, a discricionariedade inerente à decisão de atribuição do prémio, a aleatoriedade dos critérios de determinação e atribuição, bem como o desconhecimento, pelos trabalhadores, dos referidos “objectivos” e elementos de que dependia a sua atribuição, leva necessariamente à conclusão de que esta prestação não revestia carácter de regularidade e, por conseguinte não integra o conceito de retribuição.
TTT) Acresce que, o facto de o Sinistrado ter recebido o prémio durante 4 meses seguidos, não poderá ser critério determinante para a sua qualificação como retribuição mensal, tendo em especial consideração que o Sinistrado só iniciou a sua relação laboral com a ora Recorrente em Junho de 2007.
UUU) Deste modo, andou mal o Tribunal a quo ao considerar que o prémio de produção recebido pelo Sinistrado integrava a sua retribuição anual, de onde resultou um aumento da retribuição média mensal do Sinistrado em € 575,16.
VVV) Por conseguinte, a admitir-se a qualificação do acidente como acidente de trabalho e a sua não descaracterização – apenas por dever de patrocínio, sem conceder – sempre se dirá que a retribuição anual do Sinistrado, para efeitos do cálculo das pensões anuais, seria apenas a relativa à sua retribuição base, num total de € 10.410,10 (dez mil, quatrocentos e dez euros e dez cêntimos).
Nestes termos, e nos melhores de Direito aplicáveis, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e, em consequência, decidir-se:
(a) Que o acidente que, no dia 27.11.2007, vitimou o Sinistrado não consubstanciou qualquer acidente de trabalho e, em consequência, ser a Recorrente absolvida do pedido;
(b) Caso assim não se entenda, o que apenas por cautela de patrocínio se admite, sem conceder, deverá o mesmo, atenta a negligência grosseira subjacente à conduta adoptada pelo Sinistrado, ser descaracterizado e, em consequência, ser a Recorrente absolvida do pedido;
(c) Caso assim não se entenda, o que apenas por dever de patrocínio se admite, sem conceder, deverá a retribuição anual do Sinistrado, para efeitos do cálculo das pensões anuais, ser fixada por referência à retribuição base, num total de € 10.410,10 só assim se fazendo a tão acostumada JUSTIÇA!».

A recorrida GG respondeu ao recurso, a pugnar pela sua improcedência, assim concluindo:
(…)
10 - Face à prova produzida o Tribunal a quo aplicou corretamente o Direito;
11 - Bem andou, pois, o Tribunal a quo ao condenar a recorrente.
Termos em que, Deverão Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, negar provimento ao Recurso interposto, confirmando a Sentença recorrida».

O recurso foi admitido na 1.ª instância, como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Recebidos os autos neste tribunal, presentes à exma. Procuradora-Geral Adjunta para efeitos do n.º 3 do artigo 87.º do Código de Processo do Trabalho, neles emitiu parecer, no qual concluiu pela improcedência do recurso.
Ao referido parecer respondeu a recorrente, a manifestar a sua discordância e a reiterar que o recurso deve ser julgado procedente.

II. Objecto do recurso
Sabido como é que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigos 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho), no caso colocam-se à apreciação deste tribunal as seguintes questões:
1. se existe fundamento para alterar a matéria de facto;
2. se o acidente deve ser qualificado como de trabalho;
3. em caso afirmativo, se deve ser descaracterizado, por negligência do sinistrado;
4. qualificando o acidente como de trabalho, e não se tendo por descaracterizado, determinar qual a retribuição a atender para efeitos da reparação do acidente.
III. Factos
A 1.ª instância deu como provada a seguinte factualidade:
1. A Ré HH, Lda., admitiu o sinistrado – CC - ao seu serviço em Junho de 2007.
2. Exercendo este último a sua actividade profissional sob a autoridade e direcção daquela.
3. O sinistrado desempenhava a função de trabalhador agrícola indiferenciado.
4. A Ré HH, Lda., entidade empregadora do sinistrado celebrou com a Ré “BB, S.A.” um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem, na modalidade de agrícola genérico, titulado pela apólice nº … nos termos constantes do documento junto aos autos a fls. 439, cujo conteúdo se dá como reproduzido.
5. Cujas condições e garantias são as constantes da condições particulares e especiais da apólice e as condições gerais juntas a fls. 440 e seguintes dos autos, cujo conteúdo se dá como reproduzido.
6. Através de tal contrato a segunda Ré transferiu para a primeira a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho sofridos pelos trabalhadores ao seu serviço nos locais indicados na apólice, Herdade das Sesmarias, Herdade do Monte Espada e Herdade de São João, todas sitas no concelho de ….
7. Tendo declarado como salário máximo, para a categoria do sinistrado, a quantia de € 665,00 mensais, acrescida de valor de € 96,20 mensais, a título de subsídio de alimentação.
8. O sinistrado CC estava a trabalhar na Estrada da Mimosa, freguesia de …, Concelho de …, na Herdade do Roxo.
9. O sinistrado foi atropelado pelo veículo …, conduzido pelo Sr. …, às 19 horas e 21 minutos do dia 27 de Novembro de 2007.
10. Tendo tido morte, como consequência do atropelamento, no dia 27 de Novembro de 2007.
11. O sinistrado faleceu com o estado de divorciado.
12. O sinistrado encontrava-se a atravessar a estrada nacional IC1, ao km 627, na zona de Mimosa.
13. No momento em que foi efectuada a autópsia o sinistrado apresentava uma taxa de álcool no sangue de 2,42 g/l.
14. O sinistrado é pai de EE, nascida em 26 de Outubro de 2001.
15. O sinistrado é pai de FF, nascido em 12 de Abril de 1991.
16. O sinistrado é pai de GG nascida no dia 1 de Maio de 1989.
17. A segunda Ré aceita que o sinistrado auferia a remuneração mensal de € 639,90, acrescido de subsídio de alimentação de € 133,10 x 11 meses.
18. A autora GG concluiu o 12.º ano de escolaridade em 15 de Julho de 2009.
19. O autor FF frequentou um curso de formação profissional de mecânica, de 27 de Julho de 2007 a 18 de Dezembro de 2009, ministrado pela …, curso este que não comporta qualquer processo de avaliação;
20. O curso de formação profissional que FF frequentava não conferia equiparação ou equivalência ao ensino secundário e visava apenas criar condições adequadas para a integração no mercado de trabalho de pessoas com qualquer tipo de deficiência ou incapacidade.
21. Em despesas de deslocação a juízo, o FF despendeu € 60,00.
22. Para além do montante referido em 17. o sinistrado recebeu um prémio de produção de montante variável que no mês de Julho foi de € 526,33; em Agosto foi de € 835,41; em Setembro de € 782,50; em Outubro foi de € 1.010,83 e em Novembro foi de € 295,99.
23. Esse prémio foi pago ao sinistrado nos meses de Julho, Agosto, Setembro, Outubro e Novembro do ano de 2007.
24. O prémio de produção era de montante variável e não estava antecipadamente garantido ao trabalhador.
25. Entre CC e a entidade patronal foi estabelecido um horário de trabalho das 08:00 às 17:00 horas, com uma hora de intervalo para almoço, prolongando-se, contudo, diariamente, a sua actividade laboral ao serviço da Ré, para além desse horário, na Herdade das Sesmarias, local onde residia e assumia as funções de caseiro, e que era explorado pela sua entidade patronal, efectuando várias tarefas por conta desta.
26. No momento do atropelamento CC deslocava-se da Herdade onde estivera a trabalhar para a Herdade das Sesmarias.
27. No dia 27 de Novembro, o sinistrado terminou a prestação do seu trabalho na Herdade do Roxo, pelas 17:00 horas e, após esse horário, o mesmo deveria ligar as bombas de rega na Herdade das Sesmarias (este facto é alterado infra).
28. Ainda antes das 19.00 horas, o sinistrado dirigiu-se ao café “JJ” sito na zona da Mimosa onde se reuniu com amigos seus.
29. No dia do acidente, o sinistrado encontrou-se nesse estabelecimento comercial com um amigo, confraternizou e ingeriu cervejas.
30. O atropelamento ocorreu após CC ter saído do referido café e quando se deslocava para o tractor por si utilizado, propriedade da entidade patronal.
31. No momento do atropelamento era já de noite.
32. A Autora DD, por si e em representação de EE deslocou-se, na sequência deste processo, uma vez ao Tribunal de Santiago do Cacém e três vezes a este Juízo do Trabalho de Beja.
33. A Autora GG, na sequência deste processo, deslocou-se uma vez ao Tribunal de Santiago do Cacém e três vezes a este Juízo do Trabalho de Beja.
34. No dia 27 de Novembro de 2007, CC efectuou um dos percursos habitualmente por si utilizados na deslocação entre a Herdade onde estivera a trabalhar e a sua residência.
35. A Autora DD e o sinistrado viviam na mesma casa há sete anos.
36. Confecionavam e tomavam as refeições em conjunto.
37. Pernoitavam juntos na mesma cama.
38. Dividiam todas as despesas suportadas pelo agregado familiar.
39. Cerca de pelo menos um ano após a morte do sinistrado, a Autora DD e KK viveram na mesma casa pelo menos durante dois anos.
40. Pernoitavam juntos na mesma cama.
41. Dividiam as despesas do agregado familiar.
Mais se provou:
42. A autora DD suportou as despesas com o funeral do sinistrado.
43. Por sentença proferida a 25.11.2011 não transitada em julgado no âmbito do processo comum singular n.º 411/07.0GTBJA pelo juiz 2 do juízo Instância Criminal de Santiago do Cacém do Tribunal da Comarca do Alentejo Litoral, II foi condenado como autor material, na forma consumada de 1 (um) crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 210 (duzentos e dez) dias de multa à razão diária de € 8,00 (oito euros), perfazendo o montante global de € 1.680,00 (mil seiscentos e oitenta euros), pelos factos referentes ao atropelamento do sinistrado no dia 27.11.2007 no IC1.

IV. Fundamentação
1. Da impugnação da matéria de facto
(…)
1.2.6. Em síntese, quanto à alteração da matéria de facto:
A resposta ao artigo 6.º da b.i., e consequente artigo 27.º da matéria de facto, passará a ter a seguinte redacção:
«No dia 27 de Novembro, o sinistrado terminou a prestação do seu trabalho na Herdade do Roxo, pelas 17:00 horas, e após esse horário deveria ligar as bombas de rega na Herdade das Sesmarias, tarefa que lhe ocuparia entre 15 e 30 minutos».
Mantém-se a respeitante matéria de facto impugnada.

2. Quanto a saber se o acidente deve ser qualificado como de trabalho
Como decorre do disposto no artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, de 13-09 (LAT) – aplicável ao caso, tendo em conta que o “acidente” ocorreu em 27 de Novembro de 2007 –, é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
Assim, como é comummente afirmado, o conceito de acidente de trabalho é delimitado por três elementos cumulativos: (i) o local de trabalho – elemento espacial, (ii) o tempo de trabalho – elemento temporal, (iii) e o nexo de causalidade entre o evento e a lesão, perturbação ou lesão – elemento causal.
E, nos termos da alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo, considera-se também acidente de trabalho o ocorrido no trajecto de ida e de regresso para e do local de trabalho, nos termos em que vier a ser definido em regulamentação posterior.
Essa regulamentação é a que consta do referido Decreto-Lei n.º 143/99, de 30-04 (RLAT).
De acordo com o n.º 2 do artigo 6.º estão compreendidos nos acidentes de trabalho mencionados na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º da LAT, os acidentes que se verifiquem no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador entre a sua residência habitual ou ocasional, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública até às instalações que constituem o seu local de trabalho [alínea a) do referido n.º 2].
E não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou caso fortuito (n.º 3 do mesmo artigo).
Ou seja, nos termos dos referidos dispositivos legais, para que se qualifique um acidente in itinere (também designado de trajecto ou de percurso) como acidente de trabalho basta que ocorra no trajecto normalmente utilizado entre a sua residência habitual ou ocasional e o local de trabalho, bem como no trajecto inverso, durante o período ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador, mesmo que esse trajecto tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.

No caso que nos ocupa, está em causa um acidente sofrido pelo trabalhador no regresso do trabalho ao seu domicílio, isto é à herdade das Sesmarias, onde, como “caseiro”, tinha a sua residência (e do seu agregado familiar) e tinha ainda de proceder à ligação das bombas de rega e, assim está em causa a qualificação ou não do acidente como de trabalho.
No essencial, resulta da factualidade que assente ficou que:
- no dia 27 de Novembro de 2007, o sinistrado estava a trabalhar na Herdade do Roxo e deslocava-se (num tractor por si conduzido ) para a Herdade das Sesmarias, onde residia e assumia as funções de caseiro (factos 8, 25 e 26);
- Tinha terminado a prestação de trabalho pelas 17.00 horas desse dia, devendo ainda na Herdade das Sesmarias ligar as bombas de rega (n.º 27);
- No trajecto entre as Herdades efectuou um dos percursos habitualmente por si utilizados (n.º 34);
- Entretanto, ainda antes das 19.00 h., interrompeu esse percurso e dirigiu-se ao café “JJ”, sito na Mimosa, onde confraternizou com um amigo e bebeu umas cervejas (n.ºs 28 e 29);
- Após ter saído do café, ao atravessar a EN IC1, ao Km 627, na Mimosa, quando se dirigia ao tractor por si utilizado, propriedade da sua empregadora, pelas 19.21h foi atropelado pelo veículo …, conduzido por II (n.ºs 9, 12 e 30);
- O atropelamento e consequentes lesões sofridas foram causa directa da sua morte (n.º 10);
- No momento em que foi efectuada a autópsia o sinistrado apresentava uma taxa de alcoolemia de 2,42 g/l (n.º 13).

Face à referida matéria de facto a sentença recorrida concluiu ser de qualificar como de trabalho o acidente sofrido pelo Autor.
Para tanto ponderou, no que ora releva, que a paragem do trabalhador no café/estabelecimento «(…) integra o conceito de necessidades atendíveis previsto na lei, tendo em conta que é costume enraizado nos trabalhadores rurais e outros proceder a pausas no trabalho de descanso para irem tomar um café, comprar cigarros, beber uma cerveja ou comer um petisco, sendo certo que, no caso dos autos, o trabalhador teve o acidente quando se preparava para continuar o trajecto para outro local de trabalho, local onde também residia (cfr. facto 30).
No caso dos autos, no trajecto habitual de um local de trabalho para outro, o sinistrado, fez uma paragem num café, onde permaneceu com um amigo, e depois pretendia retomar o seu caminho; assim sendo, não se pode deixar de considerar que a paragem encontra-se inserida no tempo de trabalho (as interrupções ao trabalho encontram previsão no artigo 156º do Código de Trabalho de 2003) e que o sinistrado se encontrava naquele local por força da sua deslocação em trabalho.
Na realidade, no momento do acidente, o sinistrado encontrava-se ainda na disponibilidade da entidade empregadora, uma vez que se encontrava em viagem do trabalho (da Herdade do Roxo para a Herdade das Sesmarias), entre um local de prestação da actividade e outro, sendo certo que se provou que no seu local de residência, e também local de trabalho, o sinistrado ainda tinha tarefas para cumprir para benefício da entidade patronal, o que fazia habitualmente».
A recorrente rebela-se contra tal entendimento, argumentando, em síntese, que «(…) o encontro entre o Sinistrado e seus amigos, num café sito na zona da Mimosa, com o objectivo de ali confraternizarem e ingerirem bebidas alcoólicas durante, pelo menos, 1 hora, não consubstanciou qualquer interrupção no trajecto ditada por necessidade atendível do Sinistrado» (conclusão TT).
Vejamos.
Como se deixou supra afirmado, e resulta do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 100/97, conjugado com a alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 143/99, os acidentes ocorridos no trajecto de ida e de regresso para e do local de trabalho só são considerados de trabalho quando ocorram no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador; isto, ainda que « (…) o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados para satisfação das necessidades atendíveis do trabalhador» (n.º 3 do mesmo artigo).
É incontroverso que no caso o trabalhador utilizou um dos percursos por si utilizados habitualmente (cfr. facto 34); ao parar na localidade de Mimosa para se deslocar ao café, fez um desvio no trajecto, mesmo que tenha apenas saído da via pública para entrar no mesmo, ou seja, ainda que o café se encontrasse à beira da via pública por onde ele circulava (para tal conclusão não se afigura com relevância jurídica a circunstância de embora o Autor circulasse na via principal, onde se situava o café onde entrou e permaneceu, ter, de acordo com vários depoimentos, estacionado o tractor numa via lateral).
E interrompeu também o trajecto, na medida em que parou para se reunir com amigos, confraternizar, tendo ingerido cervejas (cfr. factos 28 e 29).
Refira-se que ao contrário do que parece perpassar das conclusões das alegações da recorrente, não está provado que o sinistrado tenha permanecido no café durante pelo menos uma hora.
Com efeito, o que resulta da matéria de facto é que antes das 19.00 horas o sinistrado se dirigiu ao café/estabelecimento em causa e que sofreu o acidente às 19.21horas, quando saiu daquele e atravessou a via.
Por isso, de seguro apenas se poderá afirmar que o sinistrado esteve, pelo menos, 22 minutos no estabelecimento.
Mas a questão que subsiste consiste em saber se a referida interrupção do trajecto se pode considerar justificada (ou “determinada” no dizer da lei) para satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador.
Na decisão a proferir não poderá, como se afigura evidente, deixar de se atender ao circunstancialismo concreto.
Como escrevia Francisco Ferrara (Interpretação e Aplicação das Leis, traduzido por Manuel de Andrade e publicado com o Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis, deste Autor, 3.ª Edição, Colecção Stvdivm, Arménio Amado – Editor, Sucessor, pág. 130), «a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica», por isso que o jurista «há-de ter sempre diante dos olhos o fim da lei, o resultado que quer alcançar na sua actuação prática; a lei é um ordenamento de protecção que entende satisfazer certas necessidades, e deve interpretar-se no sentido que melhor corresponda a estas necessidades, e portanto em toda a plenitude que assegure tal tutela».
Ora, no caso, o sinistrado havia terminado um dia de trabalho na Herdade do Roxo e teria ainda que realizar outro trabalho, tendo em conta as funções de caseiro, na Herdade das Sesmarias.
Tem-se por medianamente assente, face às regras da normalidade e da experiência comum, que a residência numa Herdade (“Monte”) acarreta algum isolamento para quem aí vive.
Por isso se compreenderá ou, se se quiser, se aceitará que o sinistrado tivesse parado no trajecto para confraternizar, conviver e beber cervejas! (quanto a estas bebidas, dada a expressão utilizada, “beber cervejas”, significa que tanto podiam ser duas como mais…mas essa é outra questão, referente à negligência e estado de alcoolemia, que se analisará infra).
Isto, sublinhe-se, quando o sinistrado tinha tido um dia de trabalho e ao chegar à sua residência ainda tinha mais trabalho para realizar.
É neste contexto que terá que se analisar a paragem do sinistrado num estabelecimento, na Mimosa: não se pode exigir a um homem/ser humano que seja, permita-se-nos a expressão, “uma máquina”, que terminado o trabalho numa Herdade se deslocasse, de imediato e sem paragens, para a outra Herdade, onde tinha a sua residência e ia continuar o trabalho (agora como caseiro): o convívio social faz parte da essência humana.
Assim, cremos que no concreto circunstancialismo, designadamente atendendo ao tipo de actividade desenvolvida pelo trabalhador/sinistrado e à sua residência numa Herdade – o que, pelo menos, dificultará a possibilidade de confraternizar com amigos – a paragem no local em causa e para os fins em vista deve ser considerada para satisfação das (suas) necessidades atendíveis, pelo que tal facto não afasta a tutela infortunístico-laboral do acidente ocorrido.
Acresce que se encontram também compreendidos nos acidentes de trabalho previstos no n.º 2 alínea a) da LAT os que se verifiquem entre o local onde por determinação da entidade empregadora o trabalhador presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual [alínea d) do n.º 2 do artigo 6.º da RLAT].
Ora, o sinistrado deslocava-se da Herdade do Roxo, onde tinha realizado o trabalho, para a Herdade do Roxo, onde tinha a sua residência, desempenhava as funções de caseiro e iria ainda realizar trabalho (designadamente ligar as bombas de rega): por isso, segundo se entende, o acidente ocorrido entre os referidos locais é de qualificar como de trabalho.
Improcedem, por consequência, nesta parte, as conclusões das alegações de recurso.

3. Da negligência grosseira
A sentença recorrida concluiu não se verificar a descaracterização do acidente por negligência grosseira do sinistrado, porquanto para que se verifique tal descaracterização terá que a causalidade ser exclusiva e a culpa/negligência do sinistrado ser grosseira, o que no caso não se verifica, pois «(…) apesar de se ter provado que o autor efetuava a travessia da estrada com elevada taxa de alcoolemia, não logrou a ré provar que aquele iniciou o atravessamento da via fora da passagem de peões existente a menos de 50 metros nem que tal factor de conduta negligente tivesse alcançado o grau qualificativo de culpa grosseira ou que o atropelamento se tivesse ficado a dever unicamente ao comportamento do sinistrado, prova que incumbia à ré efectuar.
Para além do mais sempre se dirá que o condutor da viatura que atropelou o sinistrado foi, embora por sentença não transitada em julgado, condenado por homicídio na forma negligente, o que evidencia ser pouco provável que o atropelamento pudesse ser exclusivamente imputado à conduta do sinistrado».
Diferente é o entendimento da recorrente, que sustenta, em síntese, «(…) no momento em que ocorreu o acidente, o Sinistrado apresentava uma taxa de alcoolemia de 2,42 gramas de álcool por cada litro de sangue, a qual determinava que o Sinistrado registasse uma diminuição dos seus reflexos, influenciando a sua destreza e capacidade de atenção, provocando ainda a diminuição da sua acuidade visual e do respectivo campo de visão, bem como das distâncias – facto que, de resto, é notório» [conclusão LLL)] e «[a]dicionalmente, ficou provado que o Sinistrado atravessou a faixa de rodagem fora da passadeira de peões existente para o efeito, violando os deveres de cuidado a que estava obrigado nos termos do artigo 101.º, n.ºs 1 e 3 do Código da Estrada» [conclusão NNN)].
Adiante-se desde já que também nesta parte se entende que na sentença recorrida se decidiu com acerto.
Expliquemos porquê.

De acordo com o disposto no artigo 7.º, n.º 1, alínea b) da LAT em vigor à data do acidente (Lei n.º 100/97, de 13-09), não dá direito a reparação o acidente [q]ue provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado”.
Por sua vez, estatui o n.º 2 do artigo 8.º do Regulamento dessa lei (Decreto-Lei n.º 143/99, de 30-04) que se entende por «negligência grosseira» “() o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão”.
A referida norma é de conteúdo idêntico à que consta do artigo 14, n.º 1, alínea b) e n.º 3 da LAT actual, que se aplica aos acidentes de trabalho ocorridos a partir de 01-01-2010 (Lei n.º 98/2009, de 04-09), e à que vigorava anteriormente àquela (Lei n.º 2.127, de 3 de Agosto de 1965), que na sua Base VI, n.º 1, alínea b), aludia a “…falta grave e indesculpável da vítima”, expressão que era entendida, como escreve Cruz de Carvalho (Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Livraria Petrony, 1983, pág. 51), como equivalente a “… um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência, uma imprudência e temeridade inútil, indesculpável, mas voluntária, embora não intencional, e além disso que tal comportamento seja a causa única do acidente, como resulta do advérbio «exclusivamente»”.
Também Feliciano Resende (Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Almedina, pág. 23) assinala que para descaracterizar o acidente não basta a culpa leve, como na negligência, imprudência, distracção, imprevidência ou comportamentos semelhantes.
Carlos Alegre escreve (Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Almedina, 2ª Edição, pág. 63) que “ao qualificar a negligência de grosseira, o legislador está a afastar implicitamente a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considere os prós e contras (…) [sendo] grosseira porque é grave e por ser aquela que em concreto não seria praticada por um suposto homo diligentissimus ou bonus pater-familias”.
Assim, como a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem repetidamente afirmado [vide, entre muitos outros, os acórdãos de 10-12-2008 (Proc. n.º 1893/08), de 25-11-2009 (Proc. n.º 331/07.9TTVCT.P1.S1), de 24-02-2010 (Proc. n.º 747/04.2TTCBR.C1.S1) e de 24-10-2012 (Proc. n.º 1087/07.0TTVFR.P1.S1), todos da 4.ª Secção e disponíveis em www.dgsi.pt] para que se verifique a descaracterização do acidente ao abrigo da citada alínea é necessário: (i) negligência grosseira do sinistrado; (ii) que o acidente tenha resultado, “exclusivamente”, desse comportamento.
Isto é, para a descaracterização de um acidente de trabalho a lei não se basta com a omissão de um qualquer dever objectivo de cuidado ou diligência: é necessário que se verifique um comportamento temerário, ostensivamente indesculpável, com desprezo gratuito pelas mais elementares regras de prudência, comportamento esse que só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser assumido. Além disso, exige-se que o mesmo seja a causa exclusiva do acidente.
Com vista a delimitação do referido conceito de “negligência grosseira” importa atentar, como se dá conta no referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-02-2010, que a negligência ou mera culpa consiste na violação de um dever objectivo de cuidado, sendo usual distinguir entre aquelas situações em que o agente prevê como possível a produção do resultado lesivo, mas crê, por leviandade ou incúria, na sua não verificação (negligência consciente) e aquelas em que o agente, podendo e devendo prever aquele resultado e cabendo-lhe evitá-lo, nem sequer concebe a possibilidade da sua verificação (negligência inconsciente).
E a negligência pode assumir diferentes graus: levíssima (quando o agente tenha omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excepcionalmente diligente teria observado), leve (quando o padrão atendível for o comportamento de uma pessoa normalmente diligente) e grave (quando a omissão corresponder àquela em que só uma pessoa excepcionalmente descuidada e incauta teria também incorrido).
A negligência grosseira corresponde a uma culpa grave, reprovável pelo mais elementar senso comum, a apreciar perante as circunstâncias concretas que se deparam, de forma que, num juízo de prognose, um homem diligente, colocado na posição do sinistrado, não teria prosseguido idêntico comportamento.

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem também repetidamente afirmado que para descaracterizar um acidente de trabalho quando o sinistrado apresenta álcool no sangue - ainda que em grau susceptível de influenciar o comportamento humano e de afectar as respectivas faculdades intelectuais psico-motoras - é necessário demonstrar a existência de nexo de causalidade entre aquela situação e a verificação do acidente, ou seja, que o acidente se deveu, em exclusivo, à elevada taxa de alcoolemia que o sinistrado [cfr., entre outros, os acórdãos de 29-10-2003 (Recurso n.º 2056/03), de 27-05-2004 (Recurso n.º 13/04), de 01-03-2007 (Recurso n.º 4613/06), de 02-05-2007 (Recurso n.º 4725/06) e de 17-03-2010 (Recurso n.º 110/06.0TTCBR.C1.S1), todos da 4.ª Secção e disponíveis em www.dgsi.pt].
No caso, é certo, o sinistrado apresentava uma taxa de álcool no sangue de 2,42 g/l.
Porém, não se mostra provado que tal taxa de alcoolemia tenha afectado as respectivas faculdades intelectuais psico-motoras do sinistrado tendo em vista o/no atravessamento da via (basta atentar que muitos peões, sem qualquer taxa de alcoolemia, atravessam as vias fora das passagens existentes para o efeito e que se encontram próximas, acabando por ser intervenientes em acidentes), sendo que, como se afirmou, não pode eleger-se a alcoolemia como causa exclusiva do acidente produzido com base em simples ilação fáctica obtida por recurso às regras da experiência.
Por isso, como se concluiu no referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-05-2007, «[a] circunstância de o sinistrado apresentar um elevado grau de alcoolemia não pode considerar-se causa exclusiva do acidente, se não se demonstra que a quantidade de álcool ingerida o tenha privado do uso da razão ou que, de algum modo, tenha afectado a sua capacidade de reacção ou de análise dos riscos».
Deste modo, ainda que, como pretendia a recorrente, se desse como provado que o atropelamento ocorreu a cerca de 12 metros da passagem para peões e, deste modo, que o sinistrado tinha atravessado a via a 12 metros da passadeira, infringindo o disposto no artigo 101.º do Código da Estrada, e tendo tido um comportamento negligente – ao se encontrar a atravessar a via com uma taxa de 2,42 g/l de álcool no sangue – não pode, todavia, concluir-se que tal comportamento foi causa exclusiva do acidente.
Recorde-se que quando ocorreu o acidente era noite (pelas 19.21h do dia 27 do mês de Novembro) e, note-se, o próprio depoimento da testemunha II, condutor da viatura interveniente no acidente/atropelamento do sinistrado, aponta no sentido de afastar a exclusividade do comportamento do sinistrado no acidente, ao afirmar que após passar a passadeira de peões foi encandeado pelos “sinais de luzes” (ligação momentânea dos faróis na posição de “máximos”) do “camião” (veículo pesado de mercadorias) que vinha em sentido contrário, só se apercebendo do sinistrado aquando do embate do corpo na sua viatura, não tendo, por isso, feito qualquer travagem.
Nesta sequência, só nos resta concluir, também nesta parte, pelas conclusões das alegações de recurso.

4. Da retribuição a atender para efeitos de reparação do acidente
Quanto a esta problemática, a sentença recorrida considerou que para efeitos de reparação do acidente a quantia recebida pelo sinistrado durante os meses de vigência do contrato sob a denominação de “prémio de produção” integravam a sua retribuição, pelo que deve à mesma atender-se no cálculo daquela.
Diversamente, no entendimento da recorrente o prémio em causa só foi pago durante 4 meses, era de montante variável e não estava antecipadamente garantido, pelo que não deve integrar a retribuição para efeitos de reparação do acidente.
Analisemos.
Dispõe o artigo 26.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro:
«1. (…)
2. As pensões por morte e por incapacidade permanente, absoluta ou parcial, serão calculadas com base na retribuição anual ilíquida normalmente recebida pelo sinistrado.
3. Entende-se por retribuição mensal tudo o que a lei considera como seu elemento integrante e todas as prestações recebidas mensalmente que revistam carácter de regularidade e não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios.
4. Entende-se por retribuição anual o produto de 12 vezes a retribuição mensal acrescida dos subsídios de Natal e de férias e outras remunerações anuais a que o sinistrado tenha direito com carácter de regularidade.
5. Se a retribuição correspondente ao dia do acidente não representar a retribuição normal, será esta calculada pela média tomada com base nos dias de trabalho e correspondente a retribuições auferidas pelo sinistrado no período de um ano anterior ao acidente. Na falta destes elementos, o cálculo far-se-á segundo o prudente arbítrio do juiz, tendo em atenção a natureza dos serviços prestados, a categoria profissional do sinistrado e os usos.
6. (…)».
Do citado n.º 2 do artigo 26.º decorre que a pensão por acidente de trabalho deve ser calculada tendo por base a retribuição anual ilíquida “normalmente” recebida pelo sinistrado; ou seja, a retribuição que por regra era recebida pelo sinistrado, tendo em conta os elementos constitutivos desta e a sua permanência, a sua cadência: está em causa o carácter normal, e não excepcional ou esporádico da retribuição.
Mas ao aludir a retribuição anual ilíquida, a lei não pretende significar que se deva atender à retribuição efectivamente auferida pelo sinistrado durante um ano: basta atentar que o trabalhador pode ser vítima de um acidente de trabalho logo num dos primeiros dias em que inicia a actividade para uma determinada entidade empregadora e nem por isso no cálculo da pensão a que o mesmo tenha direito deixará de se ter em conta a retribuição que normalmente ele auferiria nesse ano; o que a lei pretende ao estatuir que se atenda à retribuição anual ilíquida é, por um lado, determinar o cálculo da retribuição tendo por base um determinado período temporal e, por outro, precisar que essa retribuição a atender é ilíquida e não líquida.
É nesta linha de entendimento que o número 4 do artigo 26.º manda atender, para efeitos de cálculo da retribuição anual não à retribuição concreta, mas ao “produto” (valor abstracto) que resulta da multiplicação por 12 vezes a retribuição mensal, acrescida dos subsídios de férias e de Natal e outras remunerações anuais que revistam carácter de regularidade.
Já quanto ao n.º 3 do citado preceito, do mesmo decorre um conceito de retribuição mais amplo que o do Código do Trabalho, onde engloba todas as prestações que assumam carácter de regularidade, apenas dele excluindo aquelas prestações que se destinem a compensar custos aleatórios do sinistrado.
Como se assinalou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-03-2010 (Recurso n.º 436/09.1YFLSB, disponível em www.dgsi.pt), «[o] art. 26.º, da LAT, adopta um conceito de retribuição que, aproximando-se, num primeiro momento, do conceito genérico vertido no art. 249.º, do Código do Trabalho de 2003, acaba por nele integrar, num segundo momento, todas as prestações que assumam carácter de regularidade, o que significa que perfilha um conceito mais abrangente, apenas aludindo, para efeitos de exclusão retributiva, à variabilidade e contingência das prestações» (no mesmo sentido, veja-se, entre outros, o acórdão do mesmo tribunal de 13-04-2011, Recurso n.º 216/07.9TTCBR.C1.S1, também disponível em www.dgsi.pt).
E isto porque, como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação do Porto 01-12-2014 (Proc. n.º 166/09.4TTOAZ.P1, disponível em www.dgsi.pt), «procurando-se com as indemnizações ou pensões fixadas na sequência de um acidente de trabalho, compensar o trabalhador da falta ou diminuição da sua capacidade laboral e, consequentemente, da falta ou diminuição dos rendimentos provenientes do trabalho, lógico é que, para o cálculo daquelas indemnizações ou pensões, se atenda a todas as prestações que o empregador satisfazia e em função das quais o trabalhador programava regularmente a sua vida (por não serem desde logo absorvidas em custos aleatórios).
Só não deverão contabilizar-se neste módulo retributivo assinalado essencialmente pela medida das expectativas de ganho do trabalhador aquelas prestações que, na palavra do artigo 26.º da LAT de 1997, se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios, ou seja, aquelas que têm uma causa específica e individualizável, diversa da remuneração do trabalho ou da disponibilidade da força de trabalho».

No caso em apreciação, o sinistrado foi admitido ao serviço da Ré/recorrente em Julho de 2007 (facto n.º 1).
Para além da retribuição base e do subsídio de alimentação, a Ré pagou-lhe nos meses de Julho a Novembro uma quantia variável, sob a denominação de “prémio de produção”, o qual não estava antecipadamente garantido (factos n.ºs 22 a 24).
Daqui decorre que durante a vigência do contrato com a Ré o sinistrado recebeu mensalmente uma quantia variável sob a denominação de prémio de produção.
Como a testemunha …, coordenador técnico da Ré, explicitou, esta começou a desenvolver a actividade em Portugal em Junho de 2007, tendo instituído um “prémio de produção” aos trabalhadores como o sinistrado de forma a incentivar ao desenvolvimento do trabalho, não havendo um critério definido quanto à atribuição e montante do prémio, sendo a direcção que decidia atribuir ou não esse prémio.
Todavia, no caso, o certo é que, mensalmente, o sinistrado recebeu sempre esse prémio, embora de montantes variáveis.
Ora, como já se deixou referido, do n.º 3 do artigo 26.º da LAT decorre um conceito lato de retribuição, onde se integram todas as prestações que o empregador satisfazia e em função das quais o trabalhador programava regularmente a sua vida, excepto se tais prestações tivessem uma causa específica e individualizável, diversa da remuneração do trabalho ou da disponibilidade da força de trabalho.
Assim, para efeitos do referido normativo legal, as prestações pagas ao sinistrado a título de prémio de produção eram contrapartida da prestação do trabalho, integrando, por consequência, a retribuição daquele para efeitos de reparação do acidente.
Aqui chegados, só nos resta concluir, também nesta parte, pela improcedência das conclusões das alegações de recurso.

5. Vencida no recurso, deverá a Ré/recorrente suportar o pagamento das custas respectivas (artigo 527.º do Código de Processo Civil).

V. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto por HH, Ldª., e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.

Évora, 26 de Abril de 2018
João Luís Nunes (relator)
Paula do Paço
Moisés Pereira da Silva


[1] Relator: João Nunes; Adjuntos: (1) Paula do Paço; (2) Moisés Silva.

[2] O presente relatório corresponde ao constante do anterior acórdão proferido nos autos, por outro relator em 05-06-2014, até à prolação do mesmo.