Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2428/17.8T8FAR.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: ACÇÃO DE DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO DO OUTRO CÔNJUGE
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAMENTO (CE) Nº 2201/2003
Data do Acordão: 03/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - Mostrando-se adquirido nos autos que autor e ré, ambos de nacionalidade francesa, viviam em França no mês de Outubro de 2016, quando o autor instaurou a ação de divórcio no Juízo de Família e Menores de Faro, em 11.08.2017, não se mostrava preenchido nenhum dos requisitos de atribuição de competência ao tribunal português para julgar a ação, os quais se encontram previstos no nº 1 do artigo 3º do Regulamento (CE) nº 2201/2003 de 27 de Novembro, nomeadamente ter o autor residido em Portugal pelo menos no ano imediatamente anterior à data do pedido.
II - Ao propor a ação de divórcio em Portugal indicando como residência da ré uma morada que o autor sabia não corresponder à morada daquela, o mesmo inviabilizou a citação da ré, pelo que face ao disposto no artigo 16º, nº 1, do Regulamento (CE) nº 2201/2003, não pode considerar-se instaurada na data da sua apresentação a ação de divórcio no tribunal português. Situação diferente ocorre com a ação de divórcio instaurada pela recorrida no tribunal francês em 19.09.2017, onde o réu foi devidamente citado, pelo que esta ação sempre teria de considerar-se instaurada em primeiro lugar.
III – Neste circunstancialismo, caberia ao tribunal português suspender oficiosamente a instância até que fosse estabelecida a competência do tribunal francês, mas tendo este tribunal estabelecido já a sua competência para o processo de divórcio, só restava ao tribunal português declarar-se incompetente a favor daquele (artigo 19º, nº 1 e nº 3, do Regulamento (CE) nº 2201/2003).
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
BB, de nacionalidade francesa, instaurou a presente ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, contra CC, também de nacionalidade francesa.
Como questões prévias suscitou o autor[1] a competência internacional dos Tribunais Portugueses, afirmando ser residente em Portugal; a competência territorial do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, por residir em Vilamoura; e ser a lei portuguesa a aplicável, por ambas as partes residirem em Portugal, ou pelo menos, por o último domicílio comum do casal ter sido em Portugal.
Como fundamento da ação alegou a violação por parte da ré dos deveres de respeito e coabitação, impedindo o autor de aceder à casa de morada de família, que constitui um bem próprio do autor, obrigando este a ter ir de viver noutra casa.
Termina pedindo que lhe seja atribuída a casa de morada de família e o decretamento do divórcio entre autor e ré.
Foi designada o dia 15.01.2018 para realização da tentativa de conciliação, à qual não compareceu a ré por não se ter logrado a sua citação. No decurso de tal diligência, o mandatário do autor informou ter este tido conhecimento que a ré abandonou a casa de morada de família, tendo fixado residência em França na morada que indicou, esclarecendo que tal informação “decorre da instauração (posterior) de ação de divórcio no Tribunal em França, da qual o seu constituinte já foi citado, encontrando-se os advogados franceses a tratar de informar os referidos autos com vista a que seja julgada a litispendência dos mesmos” (cfr. ata de fls. 38).
Posteriormente, em 21.05.2018, a ré juntou aos autos o Acórdão de 12 de Abril de 2018, proferido pelo Tribunal de Grande Instance D’Aix en Provence no processo de divórcio que aquela instaurou contra o autor em França, e a respetiva tradução, do qual resulta que o tribunal francês julgou improcedente a exceção de incompetência e declarou-se competente para conhecer da ação de divórcio instaurada pela ré contra o autor.
Notificado, o autor nada disse.
Em 03.10.2018 foi proferido o seguinte despacho:
«O Autor BB, de nacionalidade francesa, residente m Portugal, intentou a competente ação de divórcio contra a Ré CC, de nacionalidade francesa e a residir em França.
Entretanto a aqui Ré também instaurou junto dos Tribunais franceses uma ação de divórcio contra o aqui Autor.
O Tribunal Francês julgou-se competente internacionalmente para apreciar o pedido de divórcio. O Autor foi notificado da cópia desse despacho e silenciou.
Assim, encontrando-se pendente em França outro processo de divórcio, relativamente a dois cidadãos franceses, para o qual o Estado francês se julgou internacionalmente competente para o apreciar, julgo verificada a exceção da incompetência internacional deste Tribunal.»
Inconformado, o autor apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com as conclusões que a seguir se transcrevem:
«1. A douta decisão recorrida não contém qualquer fundamentação, nem enuncia qualquer dos elementos que a tanto estava obrigada, nos termos do disposto no art.º 607, em particular nºs 2, 3 e 4 do CPC.
2. Em particular, não enuncia uma única norma jurídica ou raciocínio logico-jurídico, de onde seja possível extrair o processo lógico e argumentativo, bem como a base legal, do decisório;
3. A simples indicação de existência de uma decisão de Tribunal Francês, que se terá declarado internacionalmente competente, não constitui qualquer fundamentação legal.
4. Nem motivo para a declaração de incompetência internacional do Tribunal Português.
5. Ao assim fazer, o M.º Tribunal a quo violou também as disposições contidas nos art.º 205, n.º 1. CRP.
6. Ao contrário do doutamente decidido, o Tribunal Português, em que o recorrente intentou a acção (Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Família e Menores de Faro) sempre seria internacionalmente competente para a acção, como resulta das disposições conjugadas dos arts 72º e 62º, al. a) do CPC.
7. Ao decidir do modo como fez, o M.º Tribunal a quo violou as referidas normas, que não aplicou, devendo fazê-lo.
8. A presente acção foi intentada pelo recorrente (ali A.) contra a recorrida (ali R.) em momento anterior ao da acção de divórcio intentada por esta contra aquele no Tribunal Francês. Ou seja,
9. A acção de divórcio corrente em Portugal é anterior àquela que corre, para o mesmo fim, e entre as mesmas partes, em França.
10. A competência internacional dos Tribunais Portugueses, resultaria ainda, e em qualquer caso, do disposto no art.º 3º do Regulamento (CE) 2201/2003 de 27 de Novembro (na sua redacção actual).
11. Ao decidir da forma como fez, o M.º Tribunal a quo violou as referidas disposições que não aplicou.
12. O M.º Tribunal a quo ao decidir da forma como fez, violou ainda o disposto no art.º 19, n.º 1 do supra referido Regulamento Comunitário, que dispõe que: “Quando os processos de divórcio, separação ou anulação do casamento entre as mesmas partes são instaurados em tribunais de Estados-Membros diferentes, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar”.
13. Deveria pois o M.º Tribunal a quo ter decidido que era o Tribunal Francês obrigado a suspender oficiosamente a instância até que fosse estabelecida a competência do Tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar.
14. Ao não o fazer, violou o Tribunal a quo a referida norma, não fazendo dela aplicação, a que estava obrigado.
15. Deve a douta decisão recorrida ser integralmente declarada nula e revogada, e substituída por outra que:
a) Declare o Tribunal Português (Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Família e Menores de Faro) competente internacionalmente para apreciar o pedido de divórcio formulado pelo recorrente contra a recorrida; e,
b) Determine, nos termos e ao abrigo do disposto no art.º 19º, n.º 1 do Regulamento CE 2201/2003, na sua actual versão, o dever da Justiça Francesa de suspender oficiosamente a instância aí pendente entre os mesmos sujeitos processuais, que corre termos no Tribunal de “Aix-em-Provence”, França, até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar, ou seja, Portugal;
NESTES TERMOS, E NOS MELHORES DE DIREITO, DEVERÃO POIS VOSSAS EXCELENCIAS, VENERANDOS JUÍZES DESEMBARGADORES, DECLARAR NULA E REVOGAR INTEGRALMENTE A DOUTA DECISÃO RECORRIDA, SUBSTITUINDO-A POR UMA OUTRA QUE:
a) Declare o Tribunal Português (Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Família e Menores de Faro) competente internacionalmente para apreciar o pedido de divórcio formulado pelo recorrente contra a recorrida; e,
b) Determine, nos termos e ao abrigo do disposto no art.º 19º, n.º 1 do Regulamento CE 2201/2003, na sua actual versão, o dever da Justiça Francesa de suspender oficiosamente a instância aí pendente entre os mesmos sujeitos processuais, que corre termos no Tribunal de “Aix-en-Provence” até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar, ou seja, Portugal;
Assim fazendo nos alumiarão Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, o caminho da JUSTIÇA, com a candeia da Vossa Sabedoria.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Já depois dos autos terem subido a esta Relação, a 1ª instância remeteu o expediente aí entregue pela ré, respeitante ao acórdão proferido pela COURS D’APPEL DE AIX EN PROVENCE em 20.09.2018, que confirmou o Acórdão de 12.04.2018, proferido pelo Tribunal de Grande Instance D’Aix en Provence.
Notificado o autor/recorrente, nada disse.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), são as seguintes as questões a decidir:
- se é nula a decisão recorrida;
- se deve declarar-se o Tribunal Português (Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Família e Menores de Faro), competente internacionalmente para apreciar a presente ação.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos e a dinâmica processual que relevam na decisão do recurso são os que constam do antecedente relatório, havendo ainda a considerar a seguinte factualidade[2]:
1 - No dia 21.10.2016, o autor, ora recorrente, requereu o divórcio perante o Juiz de Família do Tribunal de Grande Instância de Aix-en-Provence, declarando ser domiciliado em …, La Moliére – … Route de G… AIX-EN-PROVENCE.
2 - No dia 21.12.2016, os cônjuges foram convocados para a audiência de tentativa de conciliação designada para 28.02.2017.
3 – Esta audiência foi adiada para 05.09.2017.
4 – Em 10.08.2017, o recorrente desistiu do processo instaurado em 21.10.2016.
5 – No dia 11.08.2017, o recorrente instaurou a presente ação de divórcio no Tribunal Judicial de Faro (Juízo de Família e Menores de Faro).
6 – No dia 19.09.2017, a ré, ora recorrida, requereu o divórcio perante o Juiz da Família do Tribunal de Grande Instância de Aix-en-Provence.
7 - Os cônjuges foram convocados para a audiência de tentativa de conciliação do dia 15.01.2018, adiada para 22.03.2018.
8 – Durante esta audiência, o autor/recorrente invocou a incompetência territorial do Tribunal de Grande Instância de Aix-en-Provence.
9 – Em 12.04.2018, o Juiz de Família daquele Tribunal decidiu:
- com fundamento nos artigos 3, 14 e 15 do Regulamento (CE) nº 2201/2003, do Conselho, de 27.11.2003, julgar improcedente a exceção de incompetência suscitada pelo aqui autor/recorrente;
- declarar o Tribunal de Grande Instância de Aix-en-Provence competente para conhecer da ação de divórcio instaurada pela ré;
- reenviar as partes para a audiência de tentativa de conciliação de 28.05.2018.
10 – Por carta de 25.03.2017, o autor/recorrente comunicou à ré/recorrida que tinha deixado o seu domicílio situado em …, Soalheira …, Loulé, Portugal.

O DIREITO
Da nulidade da decisão recorrida.
A sentença, como ato jurisdicional, pode atentar contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é decretada, e então torna-se passível de nulidade, nos termos do art. 615º do CPC.
Nas conclusões 1ª a 4ª, sustenta o recorrente que a decisão recorrida enferma de nulidade, por não conter qualquer fundamentação, nem enunciar qualquer dos elementos que a tanto estava obrigada, nomeadamente não indica uma única norma jurídica ou raciocínio logico-jurídico, de onde seja possível extrair o processo lógico e argumentativo, bem como a base legal, do decisório, não constituindo qualquer fundamentação legal a mera indicação de existência de uma decisão de Tribunal Francês que se declarou internacionalmente competente.
No art. 615º, nº 1, al. b), do CPC prevê-se a sanção para o desrespeito ao disposto no art. 607º, nº 3, do CPC que manda que o juiz especifique os fundamentos de facto e de direito da sentença.
E, como já referia Alberto dos Reis[3], a necessidade de fundamentação da sentença assenta numa razão substancial e em razões práticas. Por um lado, porque a sentença deve representar a adaptação da vontade abstrata da lei ao caso particular submetido ao juiz e, por outro lado, porque a parte vencida tem direito a saber a razão pela qual a sentença lhe foi desfavorável, para efeitos de recurso. E, em caso de recurso, a fundamentação de facto e de direito é também absolutamente necessária para que o tribunal superior aprecie as razões determinantes da decisão.
Às decisões judiciais aplica-se o princípio geral decorrente do artigo 205º, nº 1, da Constituição, no qual se dispõe que «as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei».
A Constituição não cuida, pois, da concretização do alcance de dever de fundamentação, antes determina que as decisões «são fundamentadas nos termos definidos na lei», pelo que deve buscar-se a delimitação do dever de fundamentação na lei ordinária.
O artigo 154º do CPC ocupa-se da densificação desse dever estatuindo, desde logo, que o mesmo se estende a todos os pedidos controvertidos e a todas as dúvidas suscitadas no processo (nº 1), não podendo a justificação consistir na mera adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição (nº 2).
Esta fundamentação, suscitada pela controvérsia e de dúvida, deve, em consequência, incidir sobre a explicitação dos motivos que levaram o julgador a dirimir a controvérsia no sentido em que o fez.
A fundamentação, expressão da legitimidade de exercício jurisdicional, deve satisfazer este requisito ou seja, deve ser a necessária a explicitar as razões da decisão enquanto escolha suficiente a que essas razões resultem patentes para os intervenientes processuais e para a sociedade.
Ou seja, não impõe uma enumeração exaustiva de todas as soluções possíveis mas antes se basta com indicação das soluções determinantes que a fundam e que simultaneamente arredam outras possibilidades.
Ora, no caso concreto, tendo consistido a fundamentação de direito apenas e unicamente em expressões conceituais, como as que constam da decisão, sem nenhuma indicação de qualquer e concreta norma jurídica violada, como é que - e só para referir algumas das consequências práticas - o recorrente poderá cumprir o ónus conclusivo que lhe é imposto pelas alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 639º do CPC?
Perante esta omissão da decisão recorrida, não resta outra alternativa que não declará-la nula, não deixando, porém, este Tribunal da Relação de conhecer do objeto da apelação, em conformidade com a regra da substituição ao tribunal recorrido, nos termos do nº 1 do artigo 665º do CPC.

Da (in)competência internacional do Tribunal português.
Nas conclusões 5ª e seguintes sustenta o recorrente que o Juízo de Família e Menores de Faro é o competente internacionalmente para dirimir o divórcio entre ele e a recorrida, afirmando que isso resulta das disposições conjugadas dos artigos 72º e 62º, al. a) do CPC, 3º do Regulamento (CE) nº 2201/2003 de 27 de Novembro[4], imputando ainda à decisão recorrida a violação do artigo 19º daquele Regulamento.
Vejamos, pois, se lhe assiste razão.
Prescreve o nº 1 do artigo 3º do Regulamento, que são competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento, os tribunais do Estado-Membro:
a) Em cujo território se situe:
- a residência habitual dos cônjuges, ou
- a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida, ou
- a residência habitual do requerido, ou
- em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges, ou
- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, no ano imediatamente anterior à data do pedido, ou
- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional do Estado-Membro em questão quer, no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu “domicílio”;
b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, do “domicílio” comum.
Antes de mais importa salientar, como decorre do primado do direito comunitário, da sua prevalência sobre o direito português e da sua aplicação direta na ordem interna que, à luz do Regulamento, não cabe aferir da eventual aplicação do disposto em normas de direito nacional, como as vertidas no Código de Processo Civil, nomeadamente as dos artigos 72º e 62º, al. a).
Isto mesmo decorre do Regulamento onde se estabelece que as regras de competência são diretamente aplicáveis nos Estados-Membros, em conformidade com o Tratado que institui a Comunidade Europeia - cfr. art. 72º do Regulamento.
Assim, tendo o recorrente e a recorrida nacionalidade francesa, mas residindo ambos em Portugal, de acordo com o que foi alegado pelo autor na petição inicial, nada obstaria à instauração da presente ação de divórcio em Portugal.
Todavia, a factualidade apurada no processo de divórcio instaurado em França pela recorrida, não confirma de modo algum que ambas as partes tenham residência em Portugal, de modo a poder afirmar-se em termos inequívocos a competência dos tribunais portugueses.
A este propósito, com inteira pertinência para o caso, escreveu-se no Acórdão de 12 de Abril de 2018 proferido pelo Tribunal de Grande Instância de Aix en Provence:
«(…), no caso em apreço consta dos debates que os esposos viveram durante certo tempo em Portugal, posto que o réu apresenta o certificado de inscrição no registo dos franceses estabelecidos fora do território francês. Contudo, notar-se-á que o referido certificado foi lavrado no mês de Junho de 2016 e que depois, o Senhor BB tem iniciado um processo de divórcio em França por meio de pedido apresentado na Secretaria no dia 21 de Outubro de 2016 no qual ambos os esposos aparecem com domicílio em França e no território da competência do juiz de família do Tribunal de Grande Instância de Aixe n Provence. Por outra parte, tiveram lugar numerosas trocas entre os advogados das partes como consta dos seus escritos.
Contudo, o Senhor BB desistiu deste procedimento, e no dia 1 de Agosto de 2017 submeteu o caso ao juiz português. O acórdão de aceitação da desistência do juiz francês é de 5 de Setembro de 2017.
Em face da desistência de seu esposo, a Senhora submeteu o assunto ao juiz francês por pedido apresentado pela própria no dia 18 de Setembro de 2017, desconhecendo obviamente que o Senhor tinha recorrido ao juiz português.
Assim, o réu que mantém hoje que só o juiz português seria competente para conhecer do pedido de divórcio, recorreu primeiro ao juiz francês. Não é correto em consequência manter hoje o contrário quando os critérios de competência são os mesmos, e o mesmo nunca concluiu pela incompetência do presente tribunal no quadro do seu primeiro processo. Faz assim manifesta prova de má-fé, sem dúvida orientada por motivos fiscais ou financeiros vantajosos para os seus interesses pessoais, mas que não podem ser aceites por este tribunal que não pode ser interessado e desinteressado conforme os interesses dos particulares.
Finalmente, se o Senhor BB deseja outra vez viver sozinho e instalar-se definitivamente em Portugal (também por motivos fiscais que lhe concernem a ele só) isto não tem consequências sobre o presente procedimento.
Permanece constante que os esposos viviam ambos em França no mês de Outubro de 2016, que por este motivo a sua residência habitual era situada em França ao menos desde um ano antes do pedido da Senhora e que um dos esposos ao menos continua a residir em França, que ainda ambos são de nacionalidade francesa.
Assim, o único juiz competente é o juiz francês deste tribunal.
Em consequência, a exceção de incompetência será julgada improcedente e as partes citadas para uma tentativa de conciliação».
Ora, mostrando-se adquirido no processo que recorrente e recorrida viviam ambos em França no mês de Outubro de 2016, quando o recorrente instaurou a ação de divórcio no Juízo de Família e Menores de Faro em 11.08.2017, não se mostrava preenchido nenhum dos requisitos de atribuição de competência ao tribunal português para julgar a ação, nomeadamente ter o recorrente residido em Portugal pelo menos no ano imediatamente anterior à data do pedido.
Tanto bastaria, pois, para claudicar a pretensão do recorrente de ver atribuída a competência ao Juízo de Família e Menores de Faro para julgar a ação de divórcio que aí instaurou contra a recorrida.

Da litispendência.
Ainda que fosse competente o tribunal português - o que não se concede e apenas se admite em termos meramente hipotéticos -, a factualidade apurada nos autos, resultante em grande medida dos autos de divórcio instaurados pela recorrida no tribunal francês, afastaria a exceção de litispendência invocada pelo recorrente. Senão vejamos.
Dispõe o nº 1 do artigo 19º do Regulamento:
«Quando os processos de divórcio, separação ou anulação do casamento entre as mesmas partes são instaurados em tribunais de Estados-Membros diferentes, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar».
Considerando-se, nos termos do artigo 16º, nº 1, alínea a) do mesmo Regulamento, que o processo foi instaurado na data de apresentação ao tribunal do ato introdutório da instância, ou ato equivalente, desde que o requerente não tenha posteriormente deixado de tomar as medidas que lhe incumbem para que seja feita a citação ou a notificação ao requerido.
Vejamos a este respeito a factualidade apurada.
O recorrente requereu o divórcio no tribunal francês em 21.12.2016 e desistiu da instância em 10.08.2017, tendo no dia seguinte, ou seja, em 11.08.2017, instaurado a presente ação de divórcio no Juízo de Família e Menores de Faro.
Por sua vez, a recorrida requereu o divórcio no tribunal francês em 19.09.2017.
Por conseguinte, não sofre dúvidas que o pedido de divórcio apresentado pela recorrida é posterior ao apresentado pelo recorrente junto do tribunal português.
Sucede, porém, que face ao disposto no artigo 16º, nº 1, al. a) do Regulamento, o recorrente não justifica a realização das diligências aí previstas.
Com efeito, quando o recorrente instaurou a ação de divórcio no tribunal francês (21.1.2016) declarou que tanto ele como a recorrida tinham domicílio em França, no território da competência do Juiz de Família do Tribunal de Grande Instância de Aix en Provence, e foi aí que correu seus termos o processo até desistência da instância pelo recorrente.
Ora, ao propor a ação de divórcio em Portugal, indicando uma morada que sabia não corresponder à residência da recorrida – fosse pelos intuitos assinalados no Acórdão do Tribunal de Grande Instância de Aix en Provence acima parcialmente transcrito, fosse por outras razões que se desconhecem -, o recorrente inviabilizou a citação da recorrida.
Apenas no decurso da diligência de tentativa de conciliação do dia 15.01.2018, à qual faltou a ré por não se encontrar citada, veio o mandatário do autor/recorrente informar ter este tido conhecimento que a ré abandonou a casa de morada de família, tendo fixado residência em França na morada que indicou, esclarecendo que tal informação “decorre da instauração (posterior) de ação de divórcio no Tribunal em França, da qual o seu constituinte já foi citado, encontrando-se os advogados franceses a tratar de informar os referidos autos com vista a que seja julgada a litispendência dos mesmos” (cfr. ata de fls. 38).
Assim, face ao disposto no artigo 16º, nº 1, do Regulamento, não pode considerar-se que a ação de divórcio instaurada pelo recorrente no tribunal português o foi na data da sua apresentação.
Situação diferente ocorre com a ação de divórcio instaurada pela recorrida no tribunal francês, onde o réu foi devidamente citado, pelo que esta ação sempre teria de considerar-se instaurada em primeiro lugar.
Como bem se concluiu no citado Acórdão da COUR D’APPEL DE AIX EN PROVENCE de 20.09.2018, “(…), as jurisdições portuguesas não foram requeridas no sentido do direito europeu”.
Ademais, importa ainda considerar o disposto no nº 3 do artigo 19º do Regulamento onde se estatui que «[q]uando estiver estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar declara-se incompetente a favor daquele».
Ora, pelas razões assinaladas supra, a ação de divórcio instaurada no tribunal francês tem de considerar-se instaurada em primeiro lugar, pelo que tendo aquele tribunal estabelecido a sua competência, sempre se impunha ao tribunal português que se declarasse incompetente a favor do tribunal francês.
Por conseguinte, improcede o recurso, sendo de manter a decisão recorrida que julgou verificada a exceção de incompetência do Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Família e Menores de Faro.
Vencido no recurso, o apelante suportará as custas respetivas (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).

Sumário:
I - Mostrando-se adquirido nos autos que autor e ré, ambos de nacionalidade francesa, viviam em França no mês de Outubro de 2016, quando o autor instaurou a ação de divórcio no Juízo de Família e Menores de Faro, em 11.08.2017, não se mostrava preenchido nenhum dos requisitos de atribuição de competência ao tribunal português para julgar a ação, os quais se encontram previstos no nº 1 do artigo 3º do Regulamento (CE) nº 2201/2003 de 27 de Novembro, nomeadamente ter o autor residido em Portugal pelo menos no ano imediatamente anterior à data do pedido.
II - Ao propor a ação de divórcio em Portugal indicando como residência da ré uma morada que o autor sabia não corresponder à morada daquela, o mesmo inviabilizou a citação da ré, pelo que face ao disposto no artigo 16º, nº 1, do Regulamento (CE) nº 2201/2003, não pode considerar-se instaurada na data da sua apresentação a ação de divórcio no tribunal português. Situação diferente ocorre com a ação de divórcio instaurada pela recorrida no tribunal francês em 19.09.2017, onde o réu foi devidamente citado, pelo que esta ação sempre teria de considerar-se instaurada em primeiro lugar.
III – Neste circunstancialismo, caberia ao tribunal português suspender oficiosamente a instância até que fosse estabelecida a competência do tribunal francês, mas tendo este tribunal estabelecido já a sua competência para o processo de divórcio, só restava ao tribunal português declarar-se incompetente a favor daquele (artigo 19º, nº 1 e nº 3, do Regulamento (CE) nº 2201/2003).

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
*
Évora, 28 de Março de 2019
Manuel Bargado
Albertina Pedroso
Tomé Ramião

__________________________________________________
[1] Em nova petição aperfeiçoada.
[2] Resultante do referido Acórdão da Cours D’Appel de Aix en Provence (e respetiva tradução), proferido em 20.09.2018.
[3] CPC Anotado, vol. V, reimpressão (1981), p. 139.
[4] Doravante Regulamento.