Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3342/18.5T8LLE.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
EXEQUIBILIDADE
TRANSACÇÃO JUDICIAL
Data do Acordão: 06/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
1 - Uma sentença homologatória de transação e de confissão constitui título executivo, desde que seja condenatória.
2 - Mesmo admitindo-se “condenações implícitas”, a sentença, para constituir título executivo, tem de ser suficiente para a constituição da obrigação.
3 - Por força do disposto no art. 54.º, n.º 1 do D/L n.º 291/2007, de 21.08, o Fundo de Garantia Automóvel adquire, na medida da satisfação dada ao direito do lesado, os poderes que a este competiam, ou seja, satisfeita a indemnização pelo Fundo de Garantia Automóvel nasce automaticamente, por força da lei, na esfera jurídica do lesante, ou da sua seguradora, a obrigação de pagamento ao FGA do valor que ele pagou ao lesado e ainda das demais quantias previstas naquele normativo.
4 - Nos termos do referido art. 54.º, n.º 1, para que haja sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel nos direitos do lesado não basta a transação celebrada e homologada judicialmente, sendo também necessário o pagamento pelo Fundo de Garantia Automóvel da indemnização ao lesado.
5 - Não sendo o pagamento da indemnização anterior nem contemporâneo da formação do título executivo, ocorrendo, nos termos do acordado, num momento posterior àquela, o referido pagamento não está abrangido pelo caso julgado da sentença homologatória dada à execução a qual, por isso, não é exequível.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
O Fundo de Garantia Automóvel, exequente na ação executiva que moveu contra BB, interpôs recurso do despacho proferido pelo Juízo de Execução de Loulé, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o qual indeferiu liminarmente a execução por inexistência de título executivo.

O despacho sob recurso tem o seguinte teor:
«O Fundo de Garantia Automóvel instaurou a presente execução contra BB, com os sinais de identificação dos autos, pedindo a cobrança coerciva da quantia de € 95.461,92, que lhe são devidos pelo executado.
Apresentou, para o efeito, como título executivo, a sentença homologatória de transação celebrada nos autos, entre o ora exequente, Fundo de Garantia Automóvel, e o executado, BB, ali na qualidade de réus, e CC, na qualidade de autor, tendo por objeto o pagamento, por aqueles a este, da quantia de € 80.000,00.
Convidado a esclarecer a incongruência detetada entre os limites do título executivo e o pedido formulado; pois que aquele não encerra uma qualquer ordem de pagamento do executado ao exequente, mas antes determina a condenação de ambos, exequente e executado, ao pagamento de uma quantia pecuniária a um terceiro, o exequente alegar a sub-rogação no direito do réu/executado, BB.
Face ao exposto, é manifesto que inexiste título executivo; pois, sabendo-se que este contém os limites e fim da execução (cfr. artigos 10.0, n.º 4, e 53.°, do CPC), verifica-se que a douta sentença homologatória dada à execução não contém uma decisão de condenação do ora executado ao pagamento de uma quantia ao exequente; contendo; antes, uma decisão de condenação de ambos ao pagamento de uma quantia a um terceiro estranho a esta lide. Faltará ao exequente uma decisão que aprecie a existência de um eventual direito de regresso/sub-rogação contra o ora executado e que, condenando este ao pagamento de uma importância pecuniária, possa vir a constituir título executivo.
Por ora, é manifesto que inexiste título executivo, o que acarreta o indeferimento liminar da execução, que se determina (cfr. artigo 726.º, n. ° 1 e 2, aI. a), do CPC).
Custas pelo exequente (cfr. artigo 527.° do CPC). Registe e notifique.
Dê-se conhecimento de imediato ao agente de execução.»

I.2.
O recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«A) Em suma, o Mm.º Juiz "a quo", Indeferiu Liminarmente a Execução, por falta de título executivo, uma vez que deveria ter sido apreciada a existência de um eventual direito de sub-rogação pecuniária que pudesse vir a constituir titulo executivo;
B) Estamos em crer que terá andado menos bem, o Mm.º Juiz "ad quo", porquanto o FGA adquire o seu direito de sub-rogação automaticamente após o pagamento da indemnização.
Cfr. Art.º 54 DL 291/2007 de 21.08 e Art.º 592º do CC;
C) O FGA é apenas um mero garante na satisfação das indemnizações ás vítimas de acidentes de viação, quando o responsável não beneficie de seguro válido ou eficaz e não um responsável próprio senso.
D) E, Satisfeita a indemnização, o Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado.
E) A douta sentença recorrida violou, assim, o disposto no art. 54º do DL 291/2007 de 21.08 e Art.º 592º do cc».

I.3.
Não houve resposta às alegações de recurso.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no art. 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (art. 608.º, n.º 2 e art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (arts. 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
OS FACTOS
Resulta dos autos que:
1 - No âmbito do incidente de liquidação movido por CC contra o Fundo de Garantia Automóvel e BB, todos eles apresentaram nos autos respetivos um requerimento com o seguinte teor:
«CC, Autor, Fundo de Garantia Automóvel, Réu, BB, Réu, todos nos autos em epígrafe, vêm pôr termo ao presente incidente de Liquidação, transigindo, o que fazem nos seguintes termos:
1. O Autor reduz o pedido para o valor global, ilíquido, de 80.000,00 € (oitenta mil euros);
2. Os réus aceitam a redução do pedido e confessam-se solidariamente devedores da quantia referida em 1., supra;
3. A quantia referida no ponto 1., supra, será paga pelo réu Fundo de Garantia Automóvel ao autor no prazo de 8 (oito) dias úteis a contar da presente data, pagamento que efetuará para o IBAN: PT50 …0381;
4. As custas processuais que ainda sejam devidas serão suportadas em partes iguais por autor e réus, todos prescindindo de custas de parte;
5. Autor e réus prescindem do decurso do prazo de trânsito em julgado, requerendo a V. Exa. A imediata homologação do presente acordo, dando-se consequentemente sem efeito a audiência final.»
2 – No seguimento do requerimento supra descrito, o Tribunal proferiu a seguinte decisão:
«Fls. 774:
No presente incidente de liquidação que CC intentou contra Fundo de Garantia Automóvel e BB, todos com os demais sinais identificadores constantes dos autos, julgo válida e relevante, quer pela qualidade das partes, quer pelo seu objeto, a transação efetuada, a qual homologo pela presente sentença, nos termos do disposto nos arts. 283.º, n.º 2, 284.º, 289.º, n.º 1 a contrario e 290.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil e, consequentemente, condeno as partes a cumpri-la nos seus precisos termos.
Em consequência declaro extinta a instância (art. 277.º, al. d), do Código de Processo Civil).
Custas conforme acordado (art. 537.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
[...]»

II.3.
A única questão suscitada no presente recurso consiste em saber se a sentença homologatória com o teor supra descrito constitui título executivo que permita ao exequente/recorrente substituir-se nos direitos do lesado (Manuel Ribeiro Serra) e assim obter do executado/recorrido o valor que pagou ao primeiro.
Defende o recorrente que «é irrelevante que a douta sentença homologatória do acordo na ação declarativa contemplasse o direito de regresso/sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel pois tal direito adquire-se automaticamente com o pagamento da indemnização ao terceiro lesado». Invoca o art. 54.º, n.º 1, do D/L n.º 291/2007, de 21.08, o qual dispõe o seguinte:
«Satisfeita a indemnização, o Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a instrução e regularização dos processos de sinistro e de reembolso».
Liminarmente se dirá que não lhe assiste razão.
O título dado à execução consiste numa sentença homologatória de uma transação e de uma confissão firmadas no âmbito de um incidente de liquidação movido por CC contra o Fundo de Garantia Automóvel e BB, mediante a qual o tribunal, após homologar o acordo, condenou as partes a cumpri-lo «nos seus precisos termos».
De acordo com o disposto no art. 10.º, n.º 5, do CPC, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva.
O título executivo confere ao direito exequendo o grau de segurança que o sistema considera suficiente para a admissibilidade da ação executiva, através dele se determinando o tipo de ação, o seu objeto, a legitimidade ativa e passiva para a execução, sendo também através dele que se verifica se a obrigação é certa, líquida e exigível[1].
As sentenças condenatórias, isto é, as decisões com valor de caso julgado material proferidas num processo contraditório pelas quais um tribunal impõe um comando de cumprimento de uma obrigação ao réu, são títulos executivos, conforme art. 703.º, n.º 1, al. a), do CPC. Nelas incluem-se as sentenças homologatórias de confissão de pedido e de transação, desde que sejam condenatórias[2].
No caso vertente, através da presente execução, o recorrente Fundo de Garantia Automóvel pretende efetivar a sub-rogação que se encontra prevista no art. 54.º, n.º 1 do D/L n.º 291/2007, de 21.08. Este normativo em causa é expressão de uma sub-rogação legal (cfr. art. 592.º, do Código Civil), mediante a qual o Fundo de Garantia Automóvel adquire, na medida da satisfação dado ao direito do lesado, os poderes que a este competiam. Ou seja, satisfeita a indemnização pelo Fundo de Garantia Automóvel, nasce automaticamente, por força da lei, na esfera jurídica do recorrido a obrigação de pagamento ao FGA do valor que ele pagou ao lesado (e ainda das demais quantias previstas no normativo em análise).
Como referimos supra, a sentença, para constituir título executivo, tem de impor um comando de cumprimento de uma obrigação ao réu.
No caso sub judicie a sentença homologatória (condenatória) da transação e da confissão apresentada à execução não se pronuncia expressamente sobre a constituição, na esfera jurídica do executado/recorrido, da obrigação de reembolsar o exequente/recorrente do montante que este se obrigou a pagar ao lesado, no prazo de 8 dias a contar da data da data do acordo/confissão. Ou seja, não condena expressamente o recorrido no cumprimento da prestação pecuniária que a recorrente reclama por via da presente execução.
Não se ignora haver quem defenda que a fórmula condenatória não precisa de ser explícita e que a expressão “sentenças condenatórias” utilizada na legislação processual civil abrange todas as sentenças em que o juiz expressa ou tacitamente impõe a alguém determinada responsabilidade, designadamente, certas sentenças constitutivas[3].
Mas, mesmo admitindo-se “condenações implícitas” a sentença, para constituir título executivo, tem de ser suficiente para a constituição da obrigação. Como defende Lebre de Freitas, ob. cit., em nota de rodapé, p. 50, «[…] a ideia da condenação implícita é aceitável quando pela sentença haja sido constituída uma obrigação cuja existência não dependa de qualquer outro pressuposto».
Resulta do art. 54.º, n.º 1, do D/L n.º 291/2007, de 21.08 que aquele que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor/lesado quando for satisfeita a indemnização. Isto é, para que haja sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel nos direitos do lesado não basta a transação celebrada (e homologada judicialmente) é necessário também o pagamento pelo Fundo de Garantia Automóvel da indemnização ao lesado.
Pagamento que, no caso vertente, não é anterior nem contemporâneo da formação do título executivo (cfr. cláusula 3.ª), não estando, por isso, abrangido pelo caso julgado da sentença homologatória dada à execução. E, por isso mesmo, daquela sentença nunca se poderia retirar uma condenação implícita do recorrido na obrigação de pagamento ao FGA do valor que este pagou ao lesado. Refira-se, aliás, que o próprio recorrente reconhece nas suas alegações a falta de exequibilidade do título dado à execução ao concluir que «[…] todas os elementos da causa de pedir estão judicialmente apreciados, com exceção do pagamento ao lesado, cuja prova conferirá exequibilidade ao título executivo» (negrito nosso).
De acordo com o disposto no art. 726.º, n.º 2, al. a), do CPC, o juiz indefere liminarmente o requerimento executivo quando seja manifesta a falta ou insuficiência do título. É o caso.
Em face do exposto, a decisão sob recurso não merece censura, impondo-se a sua confirmação e, consequentemente, a improcedência da presente apelação.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Sem custas na presente instância recursiva porquanto o pagamento da taxa de justiça corresponde ao impulso processual e, não tendo o recorrido apresentado resposta às alegações de recurso, não há lugar ao pagamento de custas de parte por parte da recorrente.
Notifique.
Évora, 12 de junho de 2019,
Cristina Dá Mesquita
Silva Rato
Mata Ribeiro

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[1] Lebre de Freitas, A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª edição, GestLegal, pp. 39 e ss..
[2] No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.04.2015, proferido na revista n.º 312-H/2002.P1.S1 (relator Tomé Gomes), publicado em www.dgsi.pt., considerou-se que as sentenças homologatórias que contenham, explícita ou implicitamente, a condenação do devedor numa determinada prestação patrimonial, como ocorre nos casos de sentença homologatória de transação, incluem-se na categoria de “sentenças condenatórias” prevista no art. 703.º, n.º 1, al. a), do CPC.
[3] Com efeito, tem-se discutido se, além de sentenças condenatórias, se podem executar também obrigações que se teriam constituído na esfera jurídica do réu como resultado da procedência do pedido declaratório – vd., por todos, Rui Pinto, A Ação Executiva, 2019, Reimpressão, pp. 153 e ss.
Assim, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume 1, 3.ª edição, p. 27.