Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
150/12.0JAFAR.E1
Relator: CLEMENTE LIMA
Descritores: TRÁFICO DE PESSOAS
CO-AUTORIA
TRABALHO AGRÍCOLA
Data do Acordão: 01/20/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Sumário: I - Tendo presente o disposto no artigo 26º do Código Penal, que manda punir como autor quem tomar parte directa na execução do facto, por acordo ou juntamente com outro/s, para verificação de tal execução conjunta não se exige que todos os agentes intervenham em todos os actos delitivos, mais ou menos complexos, organizados ou planeados, destinados a produzir o resultado típico pretendido, bastando que a atividade de cada um dos agentes seja parcela do conjunto da ação, desde que indispensável à produção do fim e do resultado a que o acordo se destina, valendo o princípio da imputação objetiva recíproca, no sentido da imputação da totalidade do facto típico a cada um dos comparticipantes, independentemente da concreta fração do iter delitivo que cada um haja realizado.
II - A circunstância “especial vulnerabilidade da vítima” (artigo 160º, nº 1, al. d), do Código Penal) não pode deixar de ser interpretada no sentido de se estender a todas as situações em que a pessoa visada não tenha outra escolha real nem aceitável senão a de submeter-se ao abuso, conformando-se a ideia de aceitabilidade a um critério de razoabilidade, e ao humanamente aceitável, designadamente em casos de emigração ilegal, podendo a situação de vulnerabilidade verificar-se, menos na aceitação de determinado trabalho, antes durante a execução das tarefas consignadas, designadamente porque decorre da permanência precária ou ilegal num país estrangeiro e culturalmente estranho.
Decisão Texto Integral:




Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I


1 – Nos autos de processo comum em referência, o Ministério Público acusou os arguidos G (…); S (….); R (….); GG (….); EG (…); GC (….); MB (….); PO (…); CC (…); e SVU, NIPC 510 284 604, com sede na (….)

imputando

Ao arguido G, em concurso efectivo: - como coautor material de 1 (um) crime de Tráfico de pessoas, p. e p. pelo art.º 160º, nº 1, alíneas a), b) e d) e nº 3 do Código Penal; - como autor material de 1 (um) crime de Ofensas à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143º, 145º, nº 1, alínea a) e 132º, nº 2, alíneas g); - como coautor material de 1 (um) crime de Ofensas à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143º, 145º, nº 1, alínea a) e 132º, nº 2, alíneas g) e h); - como coautor material de 1 (um) crime de Furto, p. e p. pelo art.º 203º, nº 1 do Código Penal;

Ao arguido S, em concurso efectivo: - como coautor material de 1 (um) crime de Tráfico de pessoas, p. e p. pelo art.º 160º, nº 1, alíneas a), b) e d) e nº 3 do Código Penal; - como coautor material de 1 (um) crime de Ofensas à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143º, 145º, nº 1, alínea a) e 132º, nº 2, alíneas g) e h); - como autor material de 1 (um) crime de Ofensas à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143º, 145º, nº 1, alínea a) e 132º, nº 2, alínea g); - como coautor material de 1 (um) crime de Furto, p. e p. pelo art.º 203º, nº 1 do Código Penal;

Ao arguido R como coautor material de 1 (um) crime de Tráfico de pessoas, p. e p. pelo art.º 160º, nº 1, alíneas a), b) e d) e nº 3 do Código Penal;

Ao arguido GG, em concurso efectivo: - como coautor material de 1 (um) crime de Tráfico de pessoas, p. e p. pelo art.º 160º, nº 1, alíneas a), b) e d) e nº 3 do Código Penal; - como coautor material de 1 (um) crime de Furto, p. e p. pelo art.º 203º, nº 1 do Código Penal;

À arguida EG, em concurso efectivo: - como coautora material de 1 (um) crime de Tráfico de pessoas, p. e p. pelo art.º 160º, nº 1, alíneas a), b) e d) e nº 3 do Código Penal; - como coautora material de 1 (um) crime de Furto, p. e p. pelo art.º 203º, nº 1 do Código Penal;

À arguida GC, em concurso efectivo: - como coautora material de 1 (um) crime de Tráfico de pessoas, p. e p. pelo art.º 160º, nº 1, alíneas a), b) e d) e nº 3 do Código Penal; - como coautora material de 1 (um) crime de Furto, p. e p. pelo art.º 203º, nº 1 do Código Penal;

À arguida MB como coautora material de 1 (um) crime de Tráfico de pessoas, p. e p. pelo art.º 160º, nº 1, alíneas a), b) e d) e nº 3 do Código Penal;

Ao arguido PO, em concurso efectivo: - como coautor material de 1 (um) crime de Tráfico de pessoas, p. e p. pelo art.º 160º, nº 1, alíneas a), b) e d) e nº 3 do Código Penal; - como autor material de 1 (um) crime de Desobediência qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos art.º 547º, alínea a) do Código do Trabalho e o art.º 348º, nº 1 e nº 2 do Código Penal.

Ao arguido CC, em concurso efectivo: - como coautor material de 1 (um) crime de Tráfico de pessoas, p. e p. pelo art.º 160º, nº 1, alíneas a), b) e d) e nº 3 do Código Penal; - como coautor material de 1 (um) crime de Ofensas à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143º, 145º, nº 1, alínea a) e 132º, nº 2, alíneas g) e h).

À arguida SVU, como coautora material de 1 (um) crime de Tráfico de pessoas, p. e p. pelo art.º 160º, nº 1, alíneas a), b) e d) e nº 3 do Código Penal, com referência ao disposto no art.º 11º, nº 2, alínea a) do Código Penal.

2 – A EDP Distribuição – Energia, S.A., formulou pedido de indemnização civil contra os arguidos G, EG, S, GG e GC, relativamente ao crime de furto que lhes é imputado, pedindo a condenação solidária dos mesmos no pagamento da quantia total de €2.303,76 (dois mil, trezentos e três euros e setenta e seis cêntimos), correspondente ao cálculo estimado da energia eléctrica consumida à margem de qualquer contrato de fornecimento no período de Novembro de 2011 a 05 de Fevereiro de 2013.

3 – Os arguidos RG e MB, contestaram a acusação pública, negando terem praticado os factos que ali lhe são imputados, referindo que a casa onde habitavam e que partilhavam com sete outros trabalhadores romenos tinha boas condições de habitabilidade, dormindo todos em camas, confeccionando livremente as suas refeições, sem que alguma vez tenham imposto qualquer limitação à liberdade de cada uma dessas pessoas, quer em termos de trabalho, quer em termos de circulação, convívio, etc, nunca tendo recolhido trabalhadores na dita panificadora, sendo completamente alheios à condição em que se encontravam todos quantos ali habitavam. Pugnam pela absolvição.

4 – Os arguidos G, EG, S, GG e GC, contestaram a acusação pública afirmando terem vindo para Portugal como simples trabalhadores, tendo como entidade patronal a arguida Sorriso Vedeta, cujo único sócio e gerente era o co-arguido PO, responsável pelos contratos de apanha de azeitona e pelo pagamento dos salários de todos os trabalhadores, onde se incluíam os referidos arguidos, sendo os administradores das herdades os responsáveis pelas dificuldades económicas por aquele sentidas, já que se aproveitavam do facto de não dominar o português para o enganarem nos contratos celebrados, mormente em termos do preço a pagar por quilograma de azeitona. Mais invocam que foi a trabalhadora CN a causadora deste processo, influenciando negativamente o grupo de pessoas que foi embora aquando da acção da Polícia Judiciária, de que os arguidos são vítimas, tudo isto por uma paixão não correspondida pelo arguido G. Pugnam igualmente pela absolvição.

5 – Na sessão da audiência de julgamento de 18 de Março de 2014, os arguidos MB e PO requereram (fls. 2851) nos seguintes termos:

«A arguida MB e PO não estiveram representados aquando da produção das declarações para memória futura que decorreram entre 7 e 12 de Dezembro de 2012, porquanto os indicados arguidos apenas foram constituídos arguidos em Março de 2013.

Com efeito, verificou-se a violação do n.º 3 do art. 271.º e da alínea e) do n.º 1 do art. 64.º, o que configura nulidade insanável de conhecimento oficioso a todo o tempo nos termos do art. 119.º alínea c), todos do CPP.

Termos em que se requer a apreciação da invocada nulidade declarando-se a nulidade de todas as declarações para memória futura relativamente a estes dois arguidos.»

6 – Sobre tal requerimento, por despacho proferido na mesma sessão (fls. 2851/2852, complementado a fls. 2898 a 2901), o Mm.º Juiz Presidente do Tribunal Colectivo decidiu nos seguintes termos:

«No que respeita à invocada nulidade insanável e na senda do afirmado pelo Ministério Público, resulta efectivamente do próprio requerimento formulado que à data em que se tomaram as declarações para memória futura os arguidos MB e PO ainda não assumiam essa qualidade nos autos.

Donde, como é óbvio, não poderiam para a mesma ter sido convocados nem se exigia que ali estivessem representados.

Em conclusão, resulta do despacho e das actas de tais diligências que foram cumpridas as formalidades legais quanto à convocação daqueles que na altura assumiam a qualidade de arguido e assegurada a respectiva representação, pelo que improcede a arguida nulidade insanável».

7 – A arguida MB interpôs recurso do despacho referido no § 6.

Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:

«1.ª – Aquando da tomada de declarações para memória futura de 2012-12-07 a 2012-12-12, a Recorrente não foi, ao contrário do que se impunha, representada por defensor.

2.ª – As declarações assim tomadas a 15 testemunhas indicadas não podem ser valoradas relativamente à Recorrente, sendo nulas nos termos do art. 119.º alínea c) do CPP.

3.ª – Trata-se de uma nulidade absoluta, portanto, insanável e de conhecimento oficioso a todo o tempo.

4.ª – Deve ser declarada, relativamente à Recorrente, a nulidade das declarações para memória futura prestadas pelas 15 indicadas testemunhas.

5.ª O despacho recorrido violou o disposto nos arts. 64.º n.º 1 alínea f) e 271.º n.º 3 do CPP e os arts. 13.º, 20.º e 32.º da CRP.»

8 – O arguido PO interpôs recurso do despacho referido no § 6.

Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:

«1 – Aquando da tomada de declarações para memória futura de 15 testemunhas, entre os dias 07 12 de Dezembro de 2012 o ora Recorrente, não havia sido constituído arguido e como tal não se encontrava representado por defensor nas referidas diligências, ao contrário do que se impunha por força do artigo 119.º alínea c) do CPP;

2 – As declarações tomadas das 15 testemunhas, supra indicadas, não podem ser valoradas relativamente ao ora Recorrente, sendo nulas nos termos do art. 119.º, alínea c) do CPP e como tal incusceptíveis de produzirem efeitos em relação a este;

3 – Estamos em face de uma nulidade absoluta, de conhecimento oficioso a todo o tempo, e como tal insanável e incapaz de produzir efeitos para quem à data daquelas declarações ainda não era Arguido;

4 – A nulidade arguida em sede de audiência de discussão e julgamento, e não considerada pelo juiz a quo, deve ser declarada, relativamente ao ora Recorrente, e como tal as declarações para memória futura prestadas pelas 15 identificadas testemunhas, não serem tidas em conta, como prova, quer para a acusação, quer para a decisão da causa no que concerne ao Recorrente;

5 – Caso contrário, o despacho ora em recurso, coloca em causa os direitos constitucionais do Recorrente, violando-se os artigos64.º n.º 1 alínea f) e 271.º n.º 3 do CPP e os arts. 13.º, 20.º e 32.º da CRP.»

9 – Tais recursos foram admitidos, por despacho de 8 de Maio de 2014 (fls. 3315/3316).

10 – O Dg.º Magistrado do Ministério Publico em 1.ª instância respondeu aos recursos, propugnando pela confirmação do julgado e extraindo da respectiva minuta a seguinte conclusão:

«As declarações para memória futura recolhidas nos autos não enfermam de qualquer vício e podem ser utilizadas para efeitos de formação da convicção do Tribunal Colectivo, nomeadamente em relação aos recorrentes.»

11 – Por despacho de 14 de Maio de 2014 (fls. 3364-3369), a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo decidiu nos seguintes termos:

«Nulidades cuja apreciação foi novamente requerida na acta da primeira sessão da audiência de julgamento, por referência aos requerimentos que haviam sido apresentados entre 10-12-2012 e 12-12-2012, e que constam a fls. 715 a 717, 725 a 735 e 749 a 755 (alguns repetidos), agora complementados pelo requerimento refª 807555:

Em bom rigor, sobre as arguidas irregularidades e nulidade(s), já recaiu o despacho de fls. 773, proferido pela Mm.ª Juiz então titular dos autos, que consta do seguinte: «No que concerne às nulidades e irregularidades invocadas as mesmas devem ser arguidas em sede própria, não competindo a este tribunal emitir pronúncia sobre a sua ferrificação».

De tal despacho foi o Il. mandatário notificado, e com o mesmo se conformou.

S.m.o., o mencionado despacho só pode ser interpretado num de dois sentidos:

- que as nulidades e irregularidades devem ser arguidas em sede de recurso; ou

- que as mesmas devem ser invocadas em sede de alegações para que o colectivo, ao valorar as declarações para memória futura, as pondere.

De facto, tendo a Mm.ª Juiz então titular dos autos declinado conhecer de irregularidades e nulidade arguidas relativamente às diligências a que tinha acabado de presidir, não se vê que caiba à agora Juiz titular do processo – a quem sendo Juiz de primeira instância não cabe ajuizar sobre o mérito de despachos proferidos ou opções de direcção da audiência tomadas por colega da mesma instância – conhecer dessas mesmas questões.

Ainda assim, tendo em conta os incidentes que os presentes autos vão sofrendo, e para que não se invoque existir omissão de pronúncia, com a ressalva acima mencionada e sem prejuízo de, em oportuna deliberação, o tribunal colectivo poder entender de outra forma, entende-se decidir que:

a) Quanto ao conhecimento de todas as invocadas irregularidades, designadamente as que se prendem com as pretendidas interrupções para alimentação, mostram-se obviamente e atenta a sua natureza, prejudicadas nesta fase;

b) apenas foram arguidas formalmente duas nulidades:

b1) a prevista no art. 120.º n.º 1 al. c) [e não d), como é referido no requerimento do Il. mandatário a fls. 731] do CPP, decorrente de aos arguidos não ter sido nomeado intérprete em conformidade com o disposto no art. 92.º n.º 3 do CPP.

Quanto a tal questão, o alegado não se encontra confirmado pelo consignado nos autos. Antes aí consta, a fls. 669, um despacho deferindo a nomeação de tal intérprete. E mais consta a fls. 770 um requerimento da Sr.ª intérprete nomeada, dando conta de que foi “chamada para traduzir conversa entre arguidos presos e o sr. Dr. Hugo machado, só que depois de vinte minutos foi dispensada pelo sr. Advogado e como não havia mais nada foi-se embora”. Ora, se o advogado do arguido dispensa a intérprete nomeada, não pode depois utilizar a ausência da mesma para invocar uma eventual nulidade que o próprio terá originado.

Isto para não entrarmos noutra linha de argumentação relativa à necessidade de tal intérprete, sendo certo que alguns dos arguidos (designadamente o arguido S Ilie G, que o mesmo Il. Advogado, na altura, representava), no decurso da audiência, responderam a perguntas antes que fossem traduzidas, demonstrando assim percebê-las em português; e não se têm coibido de fazer reparos quanto à tradução efectuada por uma das intérpretes nomeada, também na parte do português. E não se diga que aprenderam a língua nos últimos meses, já que na audiência têm prestado depoimento diversas testemunhas que referiram que conseguiam comunicar com os arguidos em português/espanhol, antes da sua detenção.

b2) a eventualmente decorrente do facto de, quanto a algumas testemunhas ouvidas em declarações para memória futura, as perguntas por parte do Ministério Público e da defesa terem sido feitas por intermédio da Mm.ª Juiz que presidia à diligência. Anota-se, no entanto, que em parte do requerimento apresentado o Il. mandatário se refere a tal facto como uma nulidade, concluindo a final que se trata de uma irregularidade nos termos do art. 123.º do CPP.

À diligência em causa aplicam-se as regras da audiência, designadamente o disposto no art. 323 al. g), do CPP cabendo ao juiz que preside, no exercício dessa presidência, dirigir e moderar a discussão, proibindo, em especial, todos os expedientes manifestamente impertinentes e dilatórios. Por via desse preceito legal, aliado ao disposto no art. 271.º do mesmo diploma legal (que rege especialmente as declarações para memória futura, e refere que a inquirição é feita pelo juiz, podendo de seguida o Ministério Público e o defensor formular perguntas adicionais) não se vê que o facto de as perguntas terem sido efectuadas por intermédio da Mm.ª Juiz que presidia ao acto seja gerador de qualquer nulidade. Aliás, é exactamente dessa forma que se garante que as perguntas sejam mesmo adicionais, não prevendo a Lei que a inquirição seja feita pelo Juiz e após pelo Ministério público e pelo Defensor – como parece ser a interpretação do Il. mandatário.

c) dado que segundo o disposto no art. 75.º n.º 3 do EOA, o protesto é havido para todos os efeitos como arguição de nulidade, nos termos da lei, cabe igualmente apreciar o mesmo.

Sob a epígrafe “direito de protesto”, preceitua a referida norma […].

Verifica-se contudo que a fls. 671 consta despacho proferido pela Mm.ª Juiz que presidia à diligência, no sentido de os requerimentos e protestos serem efectuados em momento ulterior, para garantir o regular andamento dos trabalhos, e que se ouvissem as testemunhas diariamente convocadas para tal.

Tal despacho enquadra-se no poder de direcção da audiência e não foi objecto de qualquer impugnação, que conste da respectiva acta.

E, na sequência, o Il. Mandatário, em vez de apresentar os requerimentos que pretenderia ditar para a acta no fim da diligência (ou seja após as 23h20), apresentou-os posteriormente por escrito, acompanhados do mencionado “protesto”, que assim ficou registado.

Verificando-se que no mesmo apenas são abordadas as questões já mencionadas em b1) e b2), inexiste outra nulidade a apreciar.

Tudo visto:

Nulidades, insanáveis ou dependentes de arguição, são tão-somente as que se encontram tipificadas nos arts. 119.º e 120.º do CPP e, no que respeita às invocadas nulidades relativas, não se vislumbra a ocorrência das mesmas.

Termos em que vai indeferida a arguição das mencionadas nulidades.»

12 – Os arguidos G, S e GG, interpuseram, conjuntamente (fls. 3528-3536) recurso daquele despacho.

Extraem da correspondente motivação as seguintes conclusões:

«Da falta de intérprete

1ª – Antes da inquirição de DA foi requerida a intervenção de intérprete nos termos e para os efeitos previstos no n.º 3 do art. 92.º do CPP.

2ª – Nenhum intérprete exerceu tais funções ou sequer prestou compromisso (n.º 4 do art. 91.º do CPP).

3ª – O que configura nulidade relativa, dependente de arguição, que foi feita tempestivamente (art. 120.º do CPP).

4ª – Tal nulidade não se sanou (art. 121.º do CPP).

5ª – O despacho recorrido violou o princípio da igualdade (art. 13.º da CRP).

6ª – O despacho recorrido violou o princípio do contraditório (n.º 5 do art. 32.º da CRP).

7ª – O despacho recorrido violou o n.º 3 do art. 92 e a alínea c) do n.º 2 do art. 120.º, ambos do CPP.

Assim,

8ª – Deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que declare a nulidade dos depoimentos de DA, LNM, LCV, DE, TFS, RF, AD, AL e TAM.

Da inquirição das testemunhas por intermédio do juiz

9ª – Desde a inquirição de LCV, e em todas as subsequentes, as perguntas do Ministério Público e do mandatário dos arguidos foram feitas por intermédio da Mª Juiz.

10ª – O que configura irregularidade, dependente de arguição no próprio acto, que foi feita tempestivamente (art. 123.º do CPP).

11ª – Por isso, tal irregularidade não se sanou (art. 123.º do CPP).

12ª – O despacho recorrido violou o princípio do contraditório (n.º 5 do art. 32.º da CRP).

13ª – O despacho recorrido violou o n.º 5 do art. 271.º e o art. 123.º, ambos do CPP.

Assim,

14ª – Deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que declare a invalidade dos depoimentos de LCV, DE, TFS, RF, AD, AL e TAM.»

13 – Tal recurso foi admitido por despacho de 3 de Julho de 2014 (fls. 3614/3615).

14 – O Dg.º Magistrado do Ministério Público em 1.ª instância respondeu ao recurso (fls. 3695-3712), propugnando pela confirmação do decidido.

Extrai da respectiva minuta as seguintes conclusões:

«I – Quanto ao recurso do despacho com a referência processual 2929971:

1.ª – Não foi cometida a nulidade prevista no artigo 120.º n.º 1 al. c), do CPP.

2.ª – Não houve qualquer interferência do tribunal no exercício do direito de escolha de intérprete consagrado no artigo 92.º n.º 3, do CPP.

3.ª – A decisão da Mm.ª Juiz de que as perguntas que o Ministério Público e os Defensores tivessem para colocar às testemunhas que estavam a ser inquiridas para memória futura fossem feitas por seu intermédio transitou em julgado.

II – Quanto ao recurso do despacho que denegou o pedido de audição na audiência de julgamento das declarações para memória futura:

1.ª – Não se vislumbra nos autos qualquer razão lógica, utilidade ou efeito prático, nomeadamente para os direitos processuais dos arguidos, para proceder à audição em sede de julgamento das declarações para memória futura recolhidas na fase de inquérito.

2.ª – A decisão sob recurso, que determina a dispensa dessa audição, não merece, por isso, qualquer censura.»

15 – Por despacho proferido na sessão da audiência de julgamento levada a 14 de Maio de 2014 (fls. 3374-3378), a Mm.ª Juiz presidente proferiu despacho (fls. 3377/3378) nos seguintes termos (na parcela que aqui pertine):

«Vem requerido pela defesa dos arguidos R e MB a audição em audiência de julgamento do registo das declarações para memória futura. Estando tais declarações integralmente gravadas e transcritas nos autos, a sua audição em julgamento consubstancia um acto inútil, sendo que muito recentemente o próprio Tribunal Constitucional se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade desta interpretação (acórdão 367/2014).»

16 – Os arguidos G, SG e GG, interpuseram, conjuntamente, recurso de tal despacho (fls. 3538-3542).

Extraem da respectiva motivação as seguintes conclusões:

«1ª – A leitura/audição das declarações para memória futura em Audiência de Julgamento não é obrigatória apenas quando não tenha sido requerida.

2ª – Tendo tal audição sido requerida pelos arguidos RG e MB, e até pelo Ministério Público, os recorrentes confiaram que a mesma se iria realizar.

3ª – O despacho recorrido violou os princípios do contraditório, da oralidade, da imediação e da publicidade.

4ª – O despacho recorrido violou o art. 32.º da CRP.

5ª – O despacho recorrido violou o art. 271.º e a alínea a) do nº 2 e nº 8 do artigo 356.º, ambos do CPP.

6ª – Não tendo sido permitida a requerida audição em audiência das declarações para memória futura; quando só por força dessa possibilidade se permite que, excepcionalmente, elas sejam valoradas como prova apesar de não terem sido produzidas em Audiência de Julgamento, cremos, s.m.o., que tais declarações para memória futura não podem ser valoradas.

7ª – O despacho recorrido violou o art. 355.º do CPP.

Assim,

8ª – Deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que declare a nulidade de todas as declarações para memória futura ou que ordene o reenvio (art. 426.º do CPP) para que se cumpra a requerida audição das declarações para memória futura.»

17 – O recurso foi admitido, por despacho de 3 de Julho de 2014 (fls. 3614/3615).

18 – O Dg.º Magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso como consta supra [§ 14, II].

19 – Precedendo audiência de julgamento, o Tribunal Colectivo a quo, por acórdão de 5 de Junho de 2014 (fls. 3412-3503), decidiu nos seguintes termos:

«Parte Penal

- Julgar a acusação parcialmente procedente e, em consequência

A-Absolver os arguidos G, S, RLG, GG, EG, GCMB, PO, CC e “SVU, Lda” da prática do crime de tráfico de pessoas agravado, p. e p. pelo art. 160º nº. 1 alíneas a), b), d) e nº.3 do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei 59/2007, de 04 de Setembro;

B-Absolver os arguidos G, S e CC, dos crimes de ofensas à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, 145º nº. 1 a) e 132º nº.2 g) e h);

C-Absolver o arguido PO da prática do crime de desobediência qualificada, p. e p. pelos artigos 547º a) do Código do Trabalho e 348º nºs. 1 e 2 do Código Penal;

D-Condenar o arguido G, em concurso efectivo,

i.Na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art. 160º nº. 1 alíneas a), b), d) do Código Penal;

ii.Na pena de 6 (seis) meses de prisão pela prática, em coautoria, de um crime de furto, p. e p. pelo art. 203º nº.1 do Código Penal;

iii.Em cúmulo jurídico de penas, condenar o arguido G G na pena única de 6 (seis) anos e 9 (nove) meses de prisão.

E-Condenar o arguido S, em concurso efectivo,

i.Na pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art. 160º nº. 1 alíneas a), b), d) do Código Penal;

ii.Na pena de 6 (seis) meses de prisão pela prática, em coautoria, de um crime de furto, p. e p. pelo art. 203º nº.1 do Código Penal;

iii.Em cúmulo jurídico de penas, condenar o arguido Sna pena única de 5 (cinco) anos de prisão, cuja execução se suspende por igual período, acompanhada de regime de prova a elaborar pela DGRSP.

F-Condenar o arguido GG, em concurso efectivo,

i.Na pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art. 160º nº. 1 alíneas a), b), d) do Código Penal;

ii.Na pena de 6 (seis) meses de prisão pela prática, em coautoria, de um crime de furto, p. e p. pelo art. 203º nº.1 do Código Penal;

iii.Em cúmulo jurídico de penas, condenar o arguido GGna pena única de 5 (cinco) anos de prisão, cuja execução se suspende por igual período, acompanhada de regime de prova a elaborar pela DGRSP.

G-Condenar a arguida EG, em concurso efectivo,

i.Na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art. 160º nº. 1 alíneas a), b), d) do Código Penal;

ii.Na pena de 6 (seis) meses de prisão pela prática, em coautoria, de um crime de furto, p. e p. pelo art. 203º nº.1 do Código Penal;

iii.Em cúmulo jurídico de penas, condenar a arguida EG na pena única de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período, acompanhada de regime de prova a elaborar pela DGRSP.

H-Condenar a arguida GC, em concurso efectivo,

i.Na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art. 160º nº. 1 alíneas a), b), d) do Código Penal;

ii.Na pena de 6 (seis) meses de prisão pela prática, em coautoria, de um crime de furto, p. e p. pelo art. 203º nº.1 do Código Penal;

iii.Em cúmulo jurídico de penas, condenar a arguida GC na pena única de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período, acompanhada de regime de prova a elaborar pela DGRSP.

I-Condenar o arguido PO na pena de 5 (cinco) anos de prisão pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art. 160º nº. 1 alíneas a), b), d) do Código Penal, cuja execução se suspende por igual período, acompanhada de regime de prova a elaborar pela DGRSP.

J-Condenar a arguida “SVU, Lda” na pena de dissolução pela prática do crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art. 160º nº. 1 alíneas a), b), d) do Código Penal.

K-Declarar extinta a medida de coacção de prisão preventiva imposta aos arguidos RLG, S e GG, restituindo-se os mesmos de imediato à liberdade, bem como as medidas de coacção a que estão sujeitos os arguidos CC e MB.

[…]

Parte Civil

P-Reconhecer o direito da EDP Distribuição – Energia, S.A. a ser indemnizada pelo prejuízo sofrido, condenando solidariamente os demandados G, S, GG, EGe GCa pagar à demandante a quantia que vier a ser liquidada no competente incidente, com o limite da quantia peticionada de €2.303,76 (dois mil, trezentos e três euros e setenta e seis cêntimos). […]»

20 – Os arguidos EG, G, GG, GC e S interpuseram, conjuntamente, recurso daquele acórdão (fls. 3726-3763/3765-3803).

Extraem da respectiva motivação a s seguintes conclusões:

«1. Os recorrentes mantêm interesse em todos os recursos interlocutórios já apresentados.

2. Da fundamentação de facto resulta que foram valorados 15 depoimentos prestados para memória futura prestados em sede de inquérito.

3. De acordo com os artigos 271º, 355º e 356º do CPP, os depoimentos prestados para memória futura devem ser lidos ou reproduzidos em audiência de julgamento para que possam ser valorados como prova.

4. Neste sentido, os acórdãos do TRP de 22.3.2006 e 4.7.2011 e do STJ de 22.9.2005.

5. Neste sentido também a seguinte doutrina: Paulo Dá Mesquita, os autores do Código de Processo Penal anotado por juízes Conselheiros do STJ em 2014 e o estudo realizado pelo Juiz Desembargador Cruz Bucho do TRG – onde se cita ainda mais doutrina e jurisprudência.

6. Contudo, no decurso da audiência de julgamento, não foram lidos os autos de depoimento para memória futura ou reproduzidas as suas gravações.

7. Não obstante o MP ter requerido e depois prescindido em julgamento.

8. E a defesa logo ter requerido a sua leitura.

9. Indeferida pelo Tribunal.

10. Pelo que não podiam ser usados os autos de depoimento para memória futura, constituindo prova proibida, na modalidade de proibição de valoração.

11. É inconstitucional, por violação das garantias de defesa do arguido, asseguradas pelo artigo 32.º, n.º 1 e n.º5 da Constituição, e contrário ao princípio da imediação, a interpretação conjugada dos artigos 271º n.º6 e n.º 8, 355.º n.º 1 e n.º 2 e 356º n.º1 e n.º 2 a) do Código de Processo Penal, que não exija a leitura em audiência de julgamento de um depoimento prestado para memória futura, quando o MP prescindiu da sua leitura e, ou, a defesa a requereu, para que as mesma possam constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal.

12. A factualidade provada pode não integrar o crime de tráfico de pessoas quanto aos recorrentes S e BS.

13. Não se provou, não obstante o transporte, qualquer acordo prévio ou sucessivo entre estes dois recorrente e G e/ou PO.

14. Pelo que devem ser absolvidos.

15. Da mesma forma, as recorrentes EG e GC não praticaram qualquer crime, não obstante viveram na panificadora e preparem as refeições.

16. Esta atividade não integra qualquer ato de execução do crime de tráfico de pessoas.

17. A que acresce a circunstância de não se ter provado qualquer acordo prévio ou sucessivo, sendo que, mesmo que assim fosse, faltava pelo menos um ato de execução.

18. Pelo que devem ser absolvidas do crime de tráfico de pessoas.

19. Mesmo que assim não se entenda, a função de preparar refeições não podia ultrapassar um auxílio material à prática do crime, pelo que quanto a elas impunha-se a punição como cúmplices.

20. Todos os recorrentes devem ser absolvidos da alínea d) do artigo 160º do CP.

21. Como refere Paulo Pinto de Albuquerque:

a. A “especial vulnerabilidade da vítima” só inclui a vulnerabilidade em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez, por identidade de razão com o artigo 155º, n.º1 al. b), o artigo 158º, n.º2 al. e), e até com o artigo 218º, n.º2, al. c).

22. E nenhuma destas circunstâncias se provou.

23. A matéria de facto dada como provada quanto à alínea a) do artigo 160º não é suficiente para condenar qualquer dos recorrentes.

24. Não se provou quando, onde e a quem foram dirigidas as ameaças graves.

25. Não se provou que expressões ou frase é que consubstanciam o conceito de direito de ameaça grave.

26. Pelo que a factualidade é genérica e abstrata, não sendo suficiente para concretizar a condenação por esta alínea.

27. Mesmo assim, os factos relativos à alínea a) do artigo 160º apenas se referem ao recorrente G, pelo que todos os restantes recorrentes devem ser absolvidos.

28. Não resultou provado qualquer facto de onde resulte que os recorrentes S, B, E e G tenham aceitado, aderido, ou mesmo conhecido os factos que motivaram a ameaça grave

29. Os recorrentes devem ser todos absolvidos da prática do crime de furto.

30. Era necessário ter-se provado, não somente que os recorrentes viviam naquela casa – como também viviam os restantes trabalhadores – como quem, quando e como foi feita a ligação direta ao ramal aéreo da EDP.

31. Não podendo individualizar a conduta, o acórdão recorrido condenou todos.

32. Pelo que se impõem a absolvição de todos os recorrentes.

33. A pena aplicada pelos crimes de tráfico de pessoas e furto é elevada quanto ao recorrente G.

34. Sendo que no caso da pena vier a ficar dentro dos limites do artigo 50º do CP, deve ser suspensa, à semelhança dos restantes arguidos.

35. O recorrente sempre viveu no mesmo local onde estiveram os outros trabalhadores.

36. Veio para Portugal em 2011 e trabalhou na agricultura.

37. A atividade ilícita resumiu-se a 15 pessoas, num universo de mais de 50 e durante 2 meses, num período de mais de 1 ano.

38. É primário.

39. Pretende regressar à Roménia para reorientar a vida e tratar da sua débil saúde.

40. Pelo que as penas parciais e única devem descer, de modo a que esta fique dentro dos 5 anos de prisão e suspensa na sua execução.

Normas jurídicas violadas:

- artigos 27º, 40º, 50º, 71º 160º, 203º do Código Penal;

- Artigos 271º, 355º, 356º do Código de Processo Penal;

- Artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.»

21 – Tal recurso foi admitido, por despacho de 11 de Agosto de 2014 (fls. 3808).

22 – O Dg.º Magistrado do Ministério Publico em 1.ª instância respondeu ao recurso, propugnando pela confirmação do julgado.

Extrai da respectiva minuta as seguintes conclusões:

«1.ª A validade probatória das declarações para memória futura utilizadas no processo de formação da convicção do tribunal colectivo não fica comprometida pelo facto de as mesmas não terem sido lidas nem reproduzidas no decurso da audiência de julgamento.

2.ª Da factualidade provada – e não impugnada – resulta que os recorrentes comparticiparam, como co-autores, no crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo artigo 160.º, n.º 1, als. a), b) e d), do Código Penal e cometeram o crime de furto p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal pelos quais foram condenados.

3.ª As penas parcelares e única impostas ao arguido G moldam-se perfeitamente à sua culpa e aos critérios legais dos artigos 40.º, 70.º, 71.º e 77.º do Código Penal.»

23 – Nesta instância, a Dg.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer ponderando, quanto aos recursos intercalares, muito em síntese, que as declarações para memória futura não enfermam de qualquer vício, podendo ser utilizadas para formação da convicção do Tribunal Colectivo, que a decisão da Mm.ª Juiz no sentido de as questões a colocar às testemunhas que estavam a ser ouvidas para memória futura transitou em julgado, e que, no final de tais inquirições foi dado cumprimento ao disposto nos artigos 352.º n.º 2 e 327.º n.º 7, do CPP, e os arguidos e respectivos Defensores tiveram acesso aos registos fonográficos e às transcrições das declarações para memória futura tomadas às testemunhas, por isso que os recursos intercalares não merecem provimento.

Quanto ao recurso interposto do acórdão, louvando-se na resposta levada em 1.ª instância, a Ex.ma Magistrada é também de parecer que deve ser negado provimento ao recurso.

24 – O objecto do recurso, afora matérias cujo conhecimento se imponha de ofício, é definido e demarcado pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação.

25 – No caso, cumpre fazer exame das seguintes questões:

(A) quanto aos recursos intercalares: (i) da nulidade das declarações para memória futura, relativamente aos arguidos MB e PO, decorrente da omissão de nomeação de defensor, em violação do disposto nos artigos 64.º n.º 1 alínea f) e 271.º n.º 3, do Código de Processo Penal (CPP), e nos artigos 13.º, 20.º e 32.º, da Constituição da República Portuguesa (CRP); (ii) da nulidade de depoimentos de testemunhas, relativamente aos arguidos G, Se GG, decorrente da omissão de nomeação de intérprete, em violação do disposto nos artigos 92.º n.º 3 e 120.º n.º 2 alínea c), do CPP, e nos artigos 13.º e 32.º n.º 5, da CRP; (iii) da invalidade dos depoimentos de testemunhas, por as perguntas do Ministério Público e do Defensor dos arguidos lhes terem sido feitas pela Mm:ª Juiz, em violação do disposto nos artigos 271.º n.º 5 e 123.º, do CPP, e no artigo 32.º n.º 5, da CRP; (iv) da nulidade das declarações para memória futura – ou do reenvio do processo à 1.ª instância – por se ter omitido a requerida leitura/audição de tais declarações em audiência de julgamento, em violação do disposto nos artigos 271.º, 355.º e 356.º n.os 2 alínea a) e 8, do CPP, e no artigo 32.º, da CRP;

(B) quanto ao recurso do acórdão: (i) da invalidade e inconstitucionalidade da utilização como prova de declarações para memória futura não reproduzidas em audiência de julgamento, em violação do disposto nos artigos 271.º n.os 6 e 8 e 355.º n.os 1 e 2 alínea a), do CPP, e no artigo 32.º, da CRP; (ii) do erro de julgamento em matéria de facto – (a) ausência de prova dos factos atinentes à comparticipação dos arguidos S, GG, EG e GC relativamente ao crime de tráfico de pessoas previsto e punível nos termos do disposto no artigo 160.º do Código Penal (CP), (b) ausência de prova dos factos atinentes à vulnerabilidade das vítimas, a que se refere o artigo 160.º n.º 1 alínea d), do CP, (c) insuficiência de concretização dos factos relativos à violência, rapto ou ameaça, a que se reporta o artigo 160.º n.º 1 alínea a), do CP, (d) ausência de prova dos factos concernentes à comunicação desta circunstância aos arguidos S, GG, EG e GC, e (e) ausência de prova de factos atinentes ao crime de furto pelos arguidos G, S, GG, EG e GC; (iii) do erro de julgamento em matéria de direito, em sede de escolha e medida da pena aplicada ao arguido G, por violação do disposto nos artigos 40.º, 50.º e 71.º, do CP.


II

26 – Os arguidos recorrentes acima identificados interpõem recurso das decisões, proferidas no decurso da audiência de julgamento, que afirmaram válidas as declarações para memória futura, arguindo a invalidade das mesmas, sob alegação de que (i) não lhes foi nomeado defensor, (ii) não lhes foi nomeado intérprete, (iii) as perguntas do Ministério Público e da defesa foram feitas pela Juiz, e (iv) tais declarações não foram reproduzidas em audiência de julgamento.

27 – Os arguidos MB e PO, arguiram a nulidade, no que lhes respeita, das declarações para memória futura, alegando que lhes não foi nomeado defensor para o acto, vindo a decidir-se, a respeito, em 1.ª instância, que, à data da tomada de tais declarações, os arguidos recorrentes não haviam ainda sido constituídos arguidos, por isso que não poderiam ter sido convocados nem se exigia que estivessem representados em tal acto.

28 – Adrede, com fundamentação paralela, os arguidos interpuseram recurso desta decisão, insistindo na invalidade de tais declarações, por não terem sido representados no acto.

29 – Ao tempo da tomada de declarações para memória futura a diversas testemunhas, nos termos e para os efeitos prevenidos no artigo 271.º, do CPP, os arguidos recorrentes, MB e PO, (i) não haviam ainda sido constituídos arguidos, e (ii) não foram convocados nem lhes foi nomeado defensor para tal acto processual – cfr. fls. 647/648, 661-664, 668-672, 687/688, 756-759.

32 – Tem-se entendido que tal diligência é admissível ainda que não haja arguido constituído e mesmo quando o autor do crime não tenha sido identificado, quando tal seja imposto por razões de inadiável urgência.

33 – «Deverá então nomear-se defensor ao indiciado autor do crime», defende Eduardo Maia Costa, no «Código de Processo Penal – Comentado», Almedina, 2014, pág. 965, nota 15, ali se fazendo rol das divergências correntes, a respeito, na doutrina e na jurisprudência.

34 – No caso, tendo as declarações para memória futura das testemunhas em referência, sido tomadas no decurso do inquérito, no ponto em que se tratava, designadamente, de vítimas do crime de tráfico de pessoas, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 271.º n.º 1, do CPP, não pode deixar de conceder-se que, em tal momento processual, não recaía ainda sobre os recorrentes a «suspeita fundada» a que se refere o artigo 58.º n.º 1 alínea a), do CPP, nem os mesmos se encontravam «indiciados» pelo cometimento de quaisquer factos delitivos – cfr. fls. 1424 e 1434.

35 – Sem embargo, se, por um lado, como assinala o Dg.º respondente e resulta de fls. 1423 e 1433, tais diligências decorreram na presença de vários, Exm.os Advogados, um dos quais veio a ser constituído mandatário pelos recorrentes, também, por outro lado, os arguidos e, bem assim, o respectivo defensor vieram a ter pleno acesso à gravação e transcrição de tais declarações, tendo ademais a possibilidade de, em audiência, fazer produzir quaisquer provas que afectassem a credibilidade das testemunhas bem como o teor dos respectivos depoimentos.

36 – Daí que a compressão do invocado direito de defesa, traduzido no princípio ou direito fundamental ao contraditório (artigo 32.º n.º 5, da CRP), integrado como princípio ou direito de audiência e inscrito, como elemento integrante do princípio do processo equitativo, no § 1.º do artigo 6.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), se não possa considerar insuportável ou desproporcionada, em face do interesse público na realização da Justiça e na descoberta da verdade – vejam-se, a respeito, por mais significativos, os acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Julho de 2007 (Proc. 07P3630), e de 25 de Março de 2009 (Proc. 09P0486), e, do Tribunal da Relação do Porto, de 13 de Julho de 2005 (Proc. 0540595).

37 – Termos em que, não podendo conceder-se a verificação da pretextada nulidade, o recurso retido, interposto pelos arguidos MB e PO, não pode deixar de improceder.

38 – Os arguidos G, S e GG interpuseram recurso do despacho editado no § 11, supra, insistindo na arguição da nulidade das declarações para memória futura, que aquela decisão recusou, seja sob alegação de que lhes não foi nomeado intérprete, seja com o fundamento de que as perguntas às testemunhas, pretextadas pelo Ministério Público e pela Defesa, foram formuladas pela Mm.ª Juiz.

39 – Importa ter presente o seguinte iter processual: (i) foram nomeadas intérpretes, para as declarações para memória futura, EG e TS (sessões de 7 e 8 de Dezembro de 2012 e de 10, 11 e 12 de Dezembro de 2012, respectivamente; (ii) na sessão de 10 de Dezembro de 2012, o Ex.mo Defensor dos arguidos G, S, GG, RG e CC requereu a nomeação de intérprete diferente (fls. 669), o que veio a ser deferido, com a nomeação de tradutor a indicar pela secção ou de intérprete indicado pelo ilustre Mandatário (fls. 669); (iii) na sessão de 11 de Dezembro de 2012, o Ex.mo Defensor significou que a intérprete nomeada «não domina suficientemente o português» e que o intérprete de que o próprio se fizera acompanhar havia sido expulso da sala de audiências sem prestar juramento (fls. 684-686); (iv) foi nomeado intérprete para todos os interrogatórios a que os arguidos foram submetidos (fls. 125/126, 134/135, 140/141, 616-631, 1426-1428 e 1436/1437).

40 – Verifica-se assim que foi nomeado intérprete aos arguidos, nos termos prevenidos no disposto no artigo 92.º n.º 2, do CPP, por isso que se não verifica, de todo em todo a pretextada nulidade, prevenida no artigo 120.º n.º 1 alínea c), do CPP.

41 – Outra coisa é a possibilidade de escolha de intérprete polo próprio arguido, deferida pelo n.º 3 do mesmo artigo 92.º, do CPP, cuja compressão resultará em não mais do que mera irregularidade – artigos 118.º e 123.º, do CPP.

42 – Sem embargo, no caso, não apenas se verifica deferido o requerimento dos arguido para escolha de intérprete [despacho de 10 de Dezembro de 2012, alínea g)], como são os próprios recorrentes que, rejeitando o intérprete veiculado pela Secção, se apresentam com intérprete próprio, não se verificando dos autos que haja sido tolhido o contacto, através do mesmo, dos arguidos com o respectivo Defensor, ademais se verificando que, como assinala o Dg.º respondente, «o intérprete saiu por sua iniciativa e para ir buscar um casaco re que a Mm.ª Juiz lhe pediu para permanecer nas instalações do Tribunal a aguardar um bocadinho».

43 – Como assim, não pode deixar de concluir-se que, não se verificando qualquer lesão do direito de os arguidos escolherem o intérprete, nem que o mesmo haja sido impedido de traduzir as conversações entre o Ex.mo Defensor e os arguidos, não se verifica, sequer, a irregularidade concedida, nos termos conjugados do disposto nos artigos 92.º n.º 3 e 123.º, do CPP.

44 – Quanto à questão de as perguntas às testemunhas, pretextadas pelo Ministério Público e pela Defesa, haverem sido formuladas pela Mm.ª Juiz, conforme despacho, no proémio da sessão de 12 de Dezembro de 2012, no sentido de as perguntas do Ministério Público e dos Defensores dos arguidos à testemunha LCV, serem colocadas por seu intermédio, há-de conceder-se, desde logo, que mesmo a subsistir a pretextada violação do disposto no artigo 271.º n.º 5, do CPP, e a consequente irregularidade processual, os arguidos não levaram recurso da correspondente decisão, que, assim, transitou em julgado, sendo esta por isso e neste tempo processual, insindicável (cfr., a respeito e com proveito, a lição do Professor José Alberto dos Reis, citada pelo Dg.º respondente, no «Comentário do Código de Processo Civil», Vol. II, pp. 507/508).

45 – Por outro lado, em vista do disposto nos artigos 322.º e 323.º, do CPP, relativos aos poderes de disciplina da audiência e de direcção dos trabalhos, não pode também deixar de ter-se presente, a propósito da «direcção dos trabalhos» que «este poder é, por definição, inerente à função da presidência [da diligência]», sendo que «quem preside a qualquer sessão tem, naturalmente, o direito e o dever de dirigir a actividade que há-se ser exercida por quantos nela intervêm» (José Alberto dos Reis, «Código de Processo Civil, Anotado», Vol. IV, pág. 511).

46 – Assim, não pode conceder-se provimento ao recurso retido interposto pelos arguidos G, S e GG.

47 – Os arguidos G, SG e GG, suscitam a nulidade do despacho editado no § 15, supra, que decidiu no sentido de considerar inútil a audição, em audiência de julgamento, das declarações para memória futura tomadas no decurso do inquérito (ou a leitura da respectiva transcrição).

48 – Reconhecendo-se que se trata de matéria que suscita relevante controvérsia, em vista, maxime, do disposto nos artigos 355.º e 356.º n.os 2 alínea a) e 8, do CPP, figura-se de entender, como no acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Novembro de 2007 (Proc. 07P3630, disponível, como os mais citados sem menção de origem, em www.dgsi.pt) que «[…] não é necessária para o exercício do contraditório, nem a validade da prova para memória futura depende da leitura das declarações em audiência. A prova está validamente produzida e pode ser administrada independentemente da leitura em audiência […]. O princípio da imediação também foi respeitado. A imediação é apreciada pelo conjunto e não elemento a elemento, e pressupõe a conjugação sistémica com todos os elementos de prova processualmente admissíveis e produzidos nas condições da lei, como são as declarações para memória futura», e, de par, no acórdão, do Tribunal Constitucional n.º 230/2014 (Diário da República, 2.ª série, de 27 de Novembro de 2014, pp. 29797 e segs.), que decide não julgar inconstitucional o artigo 271.º n.º 8, do CPP, no segmento segundo o qual não é obrigatória, em audiência de julgamento, a leitura das declarações para memória futura, remetendo-se, por economia e plena adesão, para os respectivos fundamentos.

49 – Como assim, não pode deixar de julgar-se improcedente o recurso retido, interposto pelos arguidos G, SG e GG.

50 – Como acima se deixou editado, os arguidos EG, G, GG, GC e S interpuseram, conjuntamente, recurso do acórdão condenatório, suscitando questões atinentes (i) à invalidade e inconstitucionalidade da utilização como prova de declarações para memória futura não reproduzidas em audiência de julgamento, em violação do disposto nos artigos 271.º n.os 6 e 8 e 355.º n.os 1 e 2 alínea a), do CPP, e no artigo 32.º, da CRP; (ii) ao erro de julgamento em matéria de facto – (a) ausência de prova dos factos atinentes à comparticipação dos arguidos S, GG, EG e GC relativamente ao crime de tráfico de pessoas previsto e punível nos termos do disposto no artigo 160.º do Código Penal (CP), (b) ausência de prova dos factos atinentes à vulnerabilidade das vítimas, a que se refere o artigo 160.º n.º 1 alínea d), do CP, (c) insuficiência de concretização dos factos relativos à violência, rapto ou ameaça, a que se reporta o artigo 160.º n.º 1 alínea a), do CP, (d) ausência de prova dos factos concernentes à comunicação desta circunstância aos arguidos S, GG, EG e GC, e (e) ausência de prova de factos atinentes ao crime de furto pelos arguidos G, S, GG, EG e GC; e (iii) ao erro de julgamento em matéria de direito, em sede de escolha e medida da pena aplicada ao arguido G, por violação do disposto nos artigos 40.º, 50.º e 71.º, do CP.

51 – Quanto à primeira das questões suscitadas, remete-se para quanto acabou de expor-se, nos §§ 47 a 49, supra, figurando-se que, pelos fundamentos ali alinhados, que aqui se têm por reproduzidos, o recurso não pode lograr provimento.

52 – Quanto à questão atinente ao invocado erro do Tribunal a quo no julgamento da matéria de factos, vejamos.

53 – Importa, desde logo, fazer presente a decisão do Tribunal recorrido sobre a matéria de facto.

Tal seja:

«1- Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades constantes das respectivas actas, resultando provados os seguintes factos:

Em Outubro de 2011 os arguidos G, S e PO vieram para Portugal trabalhar na agricultura inseridos num grupo de trabalhadores também de nacionalidade romena.

Inicialmente vieram trabalhar para MR que providenciou por lhes encontrar alojamento, dedicavam-se à apanha da azeitona e recebiam 35,00 € por dia de trabalho.

MR conhecido pela alcunha “ROMEU”, na qualidade de representante de facto da sociedade “VOZ CRISTALINA, UNIPESSOAL, LDA.” e em nome desta sociedade celebrava contratos de prestação de serviços com os proprietários de explorações agrícolas na área desta comarca de Beja e comarcas limítrofes.

Em Novembro de 2011 os arguidos G e S arrendaram as instalações de uma antiga panificadora sita na Rua 5 de Outubro, nº 14, na localidade de Corte Vicente Anes, propriedade de José Manuel Tobias Fialho, pelo preço de uma renda mensal de €300,00 e para ali se deslocaram com o grupo de trabalhadores oriundos da Roménia que consigo trabalhavam.

Entre Novembro de 2011 e Outubro de 2012, os arguidos G e S ausentaram-se algumas vezes para Espanha e/ou Roménia, regressando algum tempo depois.

No dia 29 de Maio de 2012 na Herdade dos Barretos, em Serpa, explorada por FRV trabalhava na apanha de damascos um grupo de cidadãos romenos, entre os quais RIV, a sua mulher MLV e o seu sogro APS.

Tais trabalhadores haviam sido solicitados por FRV ao MR com quem já celebrara contratos de prestação de serviços anteriormente e sem ter tido qualquer problema.

Nesse grupo de trabalhadores estava integrado o arguido SG, que também ali trabalhava.

Entre o arguido S e os supra-identificados três outros trabalhadores existiu um desentendimento por razões não concretamente apuradas.

Durante o ano de 2012 vieram outros trabalhadores romenos entre os quais, em Setembro/Outubro, o arguido GG e a companheira, a arguida GC, o arguido R e a companheira, a arguida MB.

Com os arguidos GG e S, transportando-se em veículos automóveis desde Sevilha, em Espanha, vieram novos grupos de cidadãos romenos.

Os arguidos GG, S e R são filhos do arguido G.

Por forma a poderem contratar directamente as prestações de serviços dos trabalhadores romenos com as explorações agrícolas, os arguidos G e PO decidiram criar uma sociedade por quotas denominada “SVU” da qual PO figura como único sócio e gerente, exercendo o G a gerência de facto da sociedade juntamente com aquele.

A SVU foi constituída em 11 de Junho de 2012.

A sociedade “SVU” celebrou em 12.10.2012 com “OLIVAL DA FONTE DOS FRADES, EXPLORAÇÃO AGRÍCOLA, S.A.”, com sede em Baleizão, um contrato de prestação de serviços para realização de trabalhos de olivicultura na Herdade da Capela, em Ferreira do Alentejo nos termos do qual a segunda pagaria à primeira 38,00 € por dia e por pessoa.

Os serviços contratados foram prestados e a sociedade recebeu o pagamento da Factura nº 004, de 07 de Novembro de 2012, no valor de 12.454,80 €, em data não concretamente apurada, e a Factura nº 006, de 28 de Novembro de 2012, no valor de 9.183,00 €, em 04 de Dezembro de 2012.

A sociedade “SVU” celebrou em 11.10.2012 com “AGRÍCOLA HERDADE DA AGUADALTE, LDA” com sede em Beja, um contrato de prestação de serviços nos termos do qual a segunda pagaria à primeira 37,00 € por cada jornada de apanha de azeitona.

A sociedade “SVU” celebrou em 20.10.2012 com “AGRÍCOLA HERDADE DA AGUADALTE, LDA” com sede em Beja, outro contrato de prestação de serviços nos termos do qual a segunda pagaria à primeira um cêntimo por cada quilograma de azeitona recolhida.

Todos os serviços contratados foram prestados e a sociedade recebeu o pagamento da Factura nº 002, de 02 de Novembro de 2012, no valor de 16.222,03 €, em 07 de Novembro de 2012, da Factura nº 007, de 28 de Novembro de 2012, no valor de 16.446,33 €, em 30 de Novembro de 2012, e da Factura nº 008, de 18 de Dezembro de 2012, no valor de 5.218,63 €, em 30 de Dezembro de 2012.

A sociedade “SVU” celebrou em 20.10.2012 com “IMORIGHT SOCIEDADE IMOBILIÁRIA, LDA” com sede em Beja, um contrato de prestação de serviços nos termos do qual a segunda pagaria à primeira 15,00 € por hectare de limpeza de ervas no olival.

Os serviços contratados foram prestados e a sociedade recebeu o pagamento da Factura nº 001, de 25 de Outubro de 2012, no valor de 1.199,25 €, em 13 de Novembro de 2012.

A sociedade “SVU” celebrou em 29.10.2012 com “FITAGRO GRUPO, S.L..”, com sede em Beja, um contrato de prestação de serviços para realização de trabalhos de olivicultura na Herdade do Sobrado, em Ferreira do Alentejo nos termos do qual a segunda pagaria à primeira 0,10 € por quilograma de azeitona apanhada.

Os serviços contratados foram prestados e a sociedade recebeu o pagamento da Factura nº 003, de 02 de Novembro de 2012, no valor de 3.959,37 €, em 07 de Novembro de 2012.

A sociedade “SVU” celebrou em 7.11.2012 com “HERDADE DO FARROBO, LDA”, com sede em Serpa, um contrato de prestação de serviços para realização de trabalhos de olivicultura nos termos do qual a segunda pagaria à primeira um cêntimo e meio por cada quilograma de azeitona recolhida por um mínimo de dez trabalhadores.

Os serviços contratados foram prestados e a sociedade recebeu o pagamento da Factura nº 013, de 03 de Janeiro de 2013, no valor de 7.236,09 €, no próprio dia da emissão daquela.

A sociedade “SVU” celebrou com JORGE ANTÓNIO VARGAS QUIROGA em 14.11.2012 um contrato de prestação de serviços para realização de trabalhos de olivicultura nos termos do qual a segunda pagaria à primeira sete cêntimos e meio por cada quilograma de azeitona recolhida por um mínimo de dez trabalhadores.

A sociedade “SVU” celebrou em 27.11.2012 com “TECFISA – PRODUTOS AGROPECUÁRIOS, LDA.” com sede em Beja, um contrato de prestação de serviços nos termos do qual a segunda pagaria à primeira um cêntimo por cada quilograma de azeitona recolhida.

Os serviços contratados foram prestados e a sociedade recebeu o pagamento da Factura nº 012, de 31 de Dezembro de 2012, no valor de 2.710,91 €, em 15 de Fevereiro de 2013.

A sociedade “SVU” celebrou em 30.11.2012 com “AGRÍCOLA FONTEDIAGO, LDA” com sede em Beja, um contrato de prestação de serviços nos termos do qual a segunda pagaria à primeira um cêntimo e meio por cada quilograma de azeitona recolhida.

Os serviços contratados foram prestados e a sociedade recebeu o pagamento da Factura nº 014, de 31 de Dezembro de 2012, no valor de 2.502,92 €, no próprio dia da emissão daquela.

Em 14.12.2012 a sociedade “SVU” celebrou com “FITAGRO GRUPO, S.L.”, com sede em Beja, outro contrato de prestação de serviços para realização de trabalhos de olivicultura na Herdade do Sobrado, em Ferreira do Alentejo nos termos do qual a segunda pagaria à primeira 0,10 € por quilograma de azeitona apanhada.

Os serviços contratados foram prestados e a sociedade recebeu o pagamento da Factura nº 011, de 31 de Dezembro de 2012, no valor de 3.049,17 €, em 04 de Janeiro de 2013.

Previamente à celebração de tais contratos e com vista ao cumprimento dos mesmos, o arguido G através de contactos que estabelecia com pessoas suas conhecidas na Roménia, entre as quais VC, mãe do seu filho GG, um indivíduo de nome NP e um outro indivíduo de nome PF, angariava naquele país pessoas que pretendiam vir para Portugal trabalhar na agricultura.

Tal foi o que sucedeu pelo menos em relação aos seguintes cidadãos romenos: 1- DI; 2- DN; 3- CI; 4- CL; 5- SI; 6- SA;7- DA; 8-LNM; 9-LCV; 10-DE; 11-TFS; 12-RF; 13-AD; 14-AL; 15-TM;

Na Roménia foi-lhes prometida a celebração de contratos de trabalho, um salário mensal de 400,00 € ou 500,00 € por 8 horas diárias de trabalho, com descanso ao Domingo, alojamento gratuito, três refeições diárias e transporte gratuitos para os locais de trabalho.

Aquelas pessoas viajaram desde a Roménia até Sevilha, em Espanha, com os bilhetes pagos pelo arguido G, local onde foram depois recolhidos pelos arguidos GG e S, que os transportaram até às instalações da panificadora em Corte Vicente Anes.

O transporte dos trabalhadores do local que habitavam para os locais de trabalho eram realizados pelos arguidos GG e Se por outros indivíduos “encartados” próximos da família G, que para o efeito utilizavam os seguintes veículos:

- veículo automóvel de marca Citroën, modelo Jumpy e matrícula SE-5645-DL, registado a favor de MG;

- veículo automóvel de marca Volkswagen, modelo Kombi L9TD e matrícula SE-7828-CW, registado a favor de ES;

- veículo automóvel de marca Ford, modelo Transit e matrícula PO-9050-AY, registado a favor do Club Naval de Pontevedra mas cuja apólice de seguro é titulada por PG;

- veículo automóvel de marca Mercedes Benz, modelo 208D 30 e matrícula 83-53-IG, adquirido pelo arguido G mas cujo registo se mantém a favor do anterior proprietário.

O veículo automóvel de marca Alfa Romeo, modelo 156 e matrícula SE-8981-DC, registado a favor da arguida EG, era utilizado pelo arguido G nas suas deslocações.

Antes do início da viagem da Roménia para Espanha foram solicitados àqueles trabalhadores os documentos de identificação para efeitos de aquisição do bilhete de autocarro até Espanha.

Após já terem saído da Roménia, o arguido G pediu novamente àqueles trabalhadores os seus documentos de identificação dizendo-lhes que se destinavam à elaboração dos contratos de trabalho, sendo que em relação ao casal C quem lhes solicitou os documentos foi o arguido GG.

Os documentos de identificação daqueles trabalhadores mantiveram-se na posse dos arguidos G e GG respectivamente por tempo não concretamente apurado, que lhes disseram que era para sua própria segurança e para não os perderem nos campos.

Após terem saído de Sevilha em direcção a Portugal é que os arguidos G, GG e SG disseram aos trabalhadores que iriam descontar nos seus salários o preço do bilhete da viagem de autocarro da Roménia para Espanha e o preço do combustível da viagem de automóvel de Espanha até Portugal num total entre €100 e €140, apesar do bilhete de autocarro da Roménia até Espanha ter um custo entre 80,00 € e 90,00 €.

Nas instalações da panificadora em Corte Vicente Anes para onde foram transportados e alojados, os trabalhadores dormiram em colchões no chão, em cima de paletes, trinta a quarenta pessoas numa mesma dependência, sem qualquer privacidade por se tratar de um espaço aberto e sem qualquer móvel onde colocar os seus haveres pessoais, que permaneceram nos sacos de viagem empilhados no chão.

Nos dias de chuva a água entrou por fissuras na cobertura das instalações.

Os buracos na cobertura também deixavam passar o vento e o frio e àqueles trabalhadores não foram fornecidos agasalhos ou roupa de cama que lhes permitisse dormir confortavelmente.

No edifício existe uma casa de banho e um espaço reservado a duche, que era insuficiente para as cerca de quarenta pessoas que chegaram a habitar aquele espaço, o que por vezes originou filas para poderem ser utilizadas.

Existia um termoacumulador que não garantia água quente suficiente para todos, pelo que alguns trabalhadores tomavam banho de água fria ou simplesmente não tomavam banho.

Os arguidos G, GG e S G dormiam em espaços separados da generalidade dos trabalhadores, os dois primeiros com a respectiva esposa ou companheira, EGe GC, sendo que apenas a divisão ocupada pelo arguido GG, companheira e filhos tinha porta, existindo em toda a panificadora somente duas camas, uma onde dormia a arguida EG, outra onde dormia a arguida GC e os filhos.

Os trabalhadores que viveram nestas instalações da antiga panificadora estavam divididos em três equipas de trabalho, correspondentes aos três veículos utilizados, todas chefiadas pelo arguido G. Contudo, cada uma das equipas era liderada por quem normalmente era o condutor do respectivo veículo, sendo uma liderada/conduzida pelo arguido GG, outra pelo arguido Se a terceira por algum dos trabalhadores mais próximo e da confiança dos G.

O arguido R vivia numa outra casa sita na Rua da Liberdade, nº 11, perto da panificadora, na localidade de Corte Vicente Anes, com a esposa, a arguida MB, as duas filhas, e um grupo de trabalhadores que ali dormiam, a saber: 1-VL; 2-NC; 3-MN; 4-DVM; 5-CD; 6-NCA, e 7-VL.

Todos dormiam em camas existentes na habitação, confeccionando as suas refeições, fazendo uso da cozinha.

O arguido R liderava/conduzia este grupo de trabalhadores aos campos agrícolas todas as manhãs.

Para se fazer transportar para o local de trabalho com o pessoal do seu grupo, o arguido R usou exclusivamente o veículo H-6234-T, registado em nome de AG.

Frequentemente os trabalhadores da panificadora transitavam de um grupo de trabalho para outro, sempre chefiados/liderados pelas mesmas pessoas.

Já os trabalhadores que residiam com o arguido R integravam sempre o mesmo grupo.

Nas instalações da panificadora os trabalhadores eram diariamente acordados entre as 05H00 e as 06H00 da manhã para irem trabalhar, chegavam aos campos antes das 08H00, hora a que iniciavam o trabalho até às 17H00/17H30, hora a que iniciavam a viagem de regresso à panificadora, e pelo menos em relação aos supra-identificados 15 trabalhadores não era fornecido qualquer alimento ao pequeno-almoço.

Trabalhavam sete dias por semana, sem dia de descanso, desde que as condições climatéricas o permitissem.

Cada um dos condutores dos veículos levava consigo as fotocópias dos documentos de identificação do grupo de trabalhadores que transportavam nos veículos supra-identificados até aos locais de trabalho.

Antes dos trabalhadores serem transportados para os campos, as arguidas EG e GC entregavam pelo menos àqueles 15 trabalhadores uma sanduiche com apenas uma fatia de mortadela ou fiambre ou uma salsicha para levarem para o campo.

Cerca das 10H00 era concedida aos trabalhadores uma pausa de 15 minutos no trabalho e às 13H00 uma outra pausa de 30 minutos ou 1 hora, consoante a hora de saída, sendo neste período que pelo menos os 15 supra-identificados trabalhadores comiam a sanduiche que haviam trazido consigo e que servia de almoço.

Sem qualquer outro alimento, se um daqueles trabalhadores comesse a sanduiche na pausa das 10H00 já nada tinha para almoçar.

Entre as 08H00 da manhã quando iniciavam o seu dia de trabalho e as 17H00/17H30 quando o terminavam não era fornecido qualquer outro alimento àqueles 15 trabalhadores.

Já nas instalações da panificadora, entre as 19H00 e as 21H00, era servido o jantar, confeccionado pelas arguidas EG e GC pelo menos em relação àqueles 15 trabalhadores, que consistia apenas num prato de sopa ou num prato de massa ou arroz e três fatias de pão para cada um.

Os arguidos G, GG e S compravam alimentos, tais como fruta, carne, peixe, manteiga, bolachas que apenas se destinavam em exclusivo ao seu próprio consumo e das suas esposas ou companheiras e respectivos filhos que comiam as suas refeições à vista de todos os trabalhadores que consigo residiam.

Após chegarem a Portugal e começarem a trabalhar nos campos, os arguidos G, GG e S informaram pelo menos aqueles 15 trabalhadores que lhes iriam ser descontadas as seguintes quantias, para além do já referido custo da viagem de autocarro da Roménia para Espanha:

- 20,00 € de combustível da viagem de automóvel de Espanha para Portugal;

- 50,00 € ou 5 dias de trabalho para a celebração dos contratos de trabalho;

- 40,00 € pela obtenção de cartão de contribuinte.

Os arguidos G, GG e S informaram também aqueles trabalhadores que lhes iriam ser descontadas em cada salário as seguintes quantias:

- 3 dias de salário ou 50,00 € mensais para a renda de casa, que os próprios arguidos não pagavam;

- 2 ou 3 dias de salário mensais para a electricidade, que os próprios arguidos não pagavam;

- 2 ou 3 dias de salário para a água, que os próprios arguidos não pagavam;

- uma quantia indeterminada para o combustível gasto pelos veículos nas deslocações para os locais de trabalho.

Alguns dos identificados trabalhadores receberam do arguido G pequenas quantias, de 5,00 € a 50,00 €, que lhe pediam para comprarem comida ou tabaco e nesses momentos o arguido disse-lhes que tais quantias seriam depois descontadas nos respectivos salários.

Um trabalhador conhecido apenas pelo “BLOND”, colaborador directo dos membros da família G, anotava num caderno a mando do arguido G quantias em dinheiro que este entregava aos trabalhadores, bem como as despesas que cada um fazia quando por vezes os levavam a um supermercado para fazer compras.

Contudo, ao valor das compras realizadas pelo trabalhador, o arguido G inflaccionava o respectivo valor e era esse valor inflaccionado que era transmitido ao “BLOND” para anotar.

Na verdade, nenhum salário foi pago a qualquer um dos referidos trabalhadores e nunca os arguidos ajustaram contas destes valores com os mesmos.

Os próprios trabalhadores anotavam as horas ou dias de trabalho que realizavam e as dívidas que cada um tinha para com os “patrões” mas nenhum sabia ao certo quanto dinheiro tinha a receber como contrapartida do trabalho já realizado.

A quantia em dinheiro recebida dos proprietários/administradores das herdades, que corresponde ao pagamento do trabalho realizado, entre outros, também por aquele grupo de trabalhadores, foi usada pelos arguidos G, PO, S, GG, EG e GC em proveito próprio sem nunca terem pago, pelo menos àquele grupo de 15 trabalhadores, os seus salários.

Só no dia 14 de Dezembro de 2012, nas instalações da Directoria do Sul da Polícia Judiciária, o arguido PO, intitulando-se gerente da “SV”, efectuou pagamentos discriminados na tabela de fls. 806/807, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

Apesar de estar a ser cobrada ou debitada a cada um daqueles 15 trabalhadores uma quantia em dinheiro ou em dias de salário para pagamento da electricidade que gastavam nas instalações que habitavam, a verdade é que a energia eléctrica provinha de uma ligação directa ao ramal aéreo mais próximo, efectuada a partir do interior da panificadora, por ou a mando dos arguidos G, S e GG em data que não foi possível apurar mas certamente próxima da data da celebração do contrato de arrendamento do edifício com JMT, em Novembro de 2011.

Os arguidos G, S, GG, EG e GC conseguiram desse modo ter fornecimento de energia eléctrica sem pagar o respectivo preço desde aquela data indeterminada de Novembro de 2011 e até 5 de Fevereiro de 2013, data em que a EDP, Distribuição - Energia, S.A. cortou a ligação ao ramal aéreo.

O arguido G disse várias vezes e a vários dos supra-identificados trabalhadores que caso fugissem ou se queixassem a alguém, as suas famílias na Roménia sofreriam represálias, tais como serem agredidos ou mortos ou ser posto fogo nas suas casas.

Sempre que um daqueles trabalhadores reclamava das condições de trabalho, da falta de comida ou das más condições da habitação, o arguido G chamava-lhe porco, animal e dizia-lhe:

- Vai para o caralho!;

- Meto o caralho na tua boca e nos teus mortos!;

- Fode-me na tua boca!

Perante tais agressões verbais e promessas de fazerem mal às suas famílias na Roménia, sem dinheiro e sem os documentos de identificação, pelo menos aquele grupo de 15 trabalhadores vivia num clima de terror e não ousavam abandonar as instalações da panificadora que lhes servia de casa, nem do local no campo em que estavam a trabalhar, nem falar com alguém para pedir ajuda.

Todos os trabalhadores supra-identificados desconhecem a língua portuguesa.

Em data não concretamente apurada mas entre os dias 7 de Outubro de 2012 e 28 de Novembro de 2012 AD teve uma desavença no campo e durante o trabalho com o arguido CC, conhecido pela alcunha “POIO”.

Chegado ao interior da panificadora e após o arguido CC ter dado conhecimento do comportamento desse trabalhador ao arguido G, este chamou AD à atenção para que tal situação não se voltasse a repetir.

Na sequência de uma acção de fiscalização realizada pela Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) no dia 16 de Outubro de 2012 na Herdade de Aguadalte, em Brinches o arguido PO, na qualidade de sócio-gerente da sociedade “SVU.” foi notificado para até dia 5 de Novembro de 2012 apresentar nos serviços daquela autoridade os documentos relativos às condições e relações de trabalho de trinta trabalhadores que se encontravam naquela herdade sob as ordens e direcção daquela sociedade.

Da notificação devidamente assinada pelo arguido PO consta a advertência que a não apresentação dos documentos solicitados pela ACT faz incorrer o representante legal da entidade empregadora no crime de Desobediência qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas do art.º 547º, alínea a) do Código do Trabalho e o art.º 348º, nº 1 e nº 2 do Código Penal.

O arguido PO nunca entregou nos serviços da ACT os documentos que lhe foram solicitados porque não os possuía.

Os arguidos G, PO, S, GG, EG, GC em conjugação de esforços e intenções e dividindo tarefas entre si, quiseram e conseguiram, mediante promessas que não pretendiam cumprir, recorrendo a ameaças de morte, ofensas à sua honra e dignidade, privação de alimentos, subtracção de documentos de identificação, fazendo-os sentir-se limitados na sua liberdade pessoal de movimentos e circulação, transportar e alojar pelo menos os supra-identificados 15 cidadãos romenos e sujeitá-los a um trabalho sem direito a qualquer remuneração, o que fizeram de modo livre e consciente, bem sabendo as suas condutas proibidas e punidas por lei.

O arguido PO conhecia a sua qualidade de representante legal e o arguido G conhecia a sua qualidade de gerente de facto da sociedade arguida SVU. e que actuavam em nome e a favor desta.

Os arguidos G, S, GG, EG e GC em conjugação de esforços e intenções, quiseram e conseguiram subtrair energia eléctrica à rede de distribuição de energia da EDP, o que fizeram de modo livre e consciente, bem sabendo as suas condutas proibidas e punidas por lei.

O arguido PO, na qualidade de representante legal da entidade empregadora “SVU” não apresentou à Autoridade para as Condições de Trabalho os documentos por esta solicitados, apesar de devidamente notificado de que tal comportamento o faria incorrer na prática de um crime, o que fez por não possuir a documentação em causa.

(……..)

NÃO SE PROVOU QUE:

Da acusação

O grupo de trabalhadores que se encontravam na Herdade dos Barretos em 29 de Maio de 2012 estivesse sob as ordens do arguido S, que aceitou a realização de tal serviço em virtude de RM não ter trabalhadores disponíveis naquele momento.

O arguido S ficou na Herdade dos Barretos a vigiar o trabalho que realizavam os trabalhadores da sua equipa.

A dado momento o trabalhador RIV disse ao arguido S que o dono da herdade pretendia contratá-lo e aos seus familiares directamente e pediu que lhe entregasse os documentos de identificação, seus e dos seus familiares, por forma a legalizar a sua situação.

Perante tal pedido, o arguido S desferiu diversos socos e pontapés no corpo do R e recusou entregar-lhe os documentos.

Em consequência da conduta do arguido S o R sofreu um ferimento no lábio que lhe causou dores e sangramento.

FRV solicitou também ao arguido S a entrega dos documentos ao que este lhe respondeu negativamente.

FV telefonou então ao MR, com quem havia contactado directamente e pediu-lhe os documentos de identificação daqueles três trabalhadores mas o MR respondeu-lhe que o arguido S lhe havia dito a si que caso aqueles três trabalhadores não regressassem com ele os iria buscar acompanhado de 30 homens e os levaria à força.

O arguido G entregou ao arguido PO metade do capital social de 5.000,00 € para constituição da “Sorriso Vedeta”.

As condições oferecidas na Roménia a cada um daqueles 15 trabalhadores foram posteriormente confirmadas pelos arguidos GG e/ou S G e/ou R G.

Trabalhadores houve que viajaram desde a Roménia até Badajoz e que, em Espanha, tenham sido depois recolhidos pelos arguidos G e/ou R G.

O transporte de algum daqueles 15 trabalhadores, do local que habitavam para os locais de trabalho, era realizado pelo arguido R G.

Os arguidos S G e/ou RG pediram àqueles trabalhadores os seus documentos de identificação e ficaram na posse dos mesmos.

O arguido RG tenha dito a algum dos trabalhadores que iria descontar qualquer quantia nos seus salários.

Nas instalações da panificadora, os trabalhadores dormiram sem lençóis ou almofadas.

Nos vinte colchões existentes no chão dormiram duas ou três pessoas em cada um.

Nos dias de chuva os trabalhadores dormiram nos colchões molhados.

Tal como os colchões também a roupa dos trabalhadores ficou molhada com a chuva e foram trabalhar para o campo com a roupa molhada que secava no próprio corpo.

O edifício da panificadora não tem janelas nem existia qualquer tipo de aquecimento no local onde dormiram.

Os trabalhadores faziam filas ao longo do dia para poderem utilizar a casa de banho.

Os trabalhadores passaram semanas sem tomar banho, dormiram com a roupa com que trabalhavam e viram-se obrigados a urinar e defecar nos campos onde trabalhavam durante o dia.

Os arguidos G, GG e S G dormiam cada um no seu quarto, com portas e camas com edredons e aquecimento, mas apenas aquilo que a este respeito se deu como provado.

O arguido G liderava no campo uma equipa.

Existiam trabalhadores em casa do arguido R que dormiam na garagem e também em colchões no chão.

O arguido R recolhia trabalhadores nas instalações da panificadora.

Durante o período de trabalho no campo, os trabalhadores eram vigiados por um dos arguidos G, GG e S G, RG ou CC que os impediam de falar com os outros trabalhadores de outras nacionalidades, essencialmente portugueses e espanhóis, ou com outros trabalhadores romenos que ali se encontravam.

Muitos dos 15 trabalhadores identificados são analfabetos ou mal sabem ler e escrever.

Nas instalações da panificadora os trabalhadores eram diariamente acordados entre as 04H30/05H00 para irem trabalhar e trabalhavam nos campos das 07H00 às 18H00.

A arguida MB confeccionava as refeições dos trabalhadores que residiam na sua casa e que consistiam também numa sanduiche com apenas uma fatia de mortadela ou fiambre ou uma salsicha para levarem para o campo.

Os arguidos G, GG e S G e respectivas mulheres e filhos consumiam água engarrafada e os trabalhadores consumiam água de um poço existente no quintal da panificadora.

Os arguidos G, GG, S G, EG, GC e CC proibiram os trabalhadores de comer qualquer alimento que lhes pertencesse ou beber da água engarrafada.

Sem dinheiro, sem documentos e com fome, alguns trabalhadores viram-se obrigados a procurar alimentos, roupa e calçado nos caixotes do lixo.

O arguido R tenha referido a algum dos trabalhadores que lhe ia descontar quantias no salário.

Alguns dos trabalhadores receberam dos arguidos GG, S G e RG quantias em dinheiro.

O arguido PO recebeu através da sociedade “SVU, Lda”, a quantia de 80.182,50 € (oitenta mil cento e oitenta e dois euros e cinquenta cêntimos) num período de dois meses, Outubro e Novembro de 2012, mas apenas aquilo que a este respeito se deu como provado.

Os arguidos R e M utilizaram em proveito próprio quantias provenientes do trabalho desenvolvido por algum daqueles 15 trabalhadores.

Aos trabalhadores não era permitido saírem livremente das instalações da panificadora e circular livremente na aldeia de Corte Vicente Anes e apenas o faziam até um poço para irem buscar água ou a um café ou mercearia na aldeia, sendo sempre vigiados por um dos arguidos, G, GG, S G, RG ou CC.

Estes arguidos diziam-lhes que não podiam circular sozinhos na rua porque como não tinham documentos de identificação poderiam ser presos.

Em data não concretamente apurada mas entre os dias 7 e 10 de Outubro de 2012 AD, trabalhador de nacionalidade Romena a residir na antiga panificadora, pediu ao arguido G um pouco de pão com manteiga porque estava com fome e o arguido desferiu-lhe um estalo na cara e disse-lhe que a manteiga era só para os membros da família G.

Em consequência da conduta do arguido G o AD sofreu um ferimento no lábio que lhe causou dores e sangramento.

Na sequência do desentendimento havido no campo entre AD e o arguido CC, o arguido G dirigiu-se ao AD, agarrou-o pelo pescoço, levou-o para o interior de um dos quartos da casa e fechou a porta.

Alguns momentos depois entraram no referido quarto o arguido S G e o arguido CC e, juntamente como o arguido G que já ali se encontrava, desferiram diversos socos, murros, pontapés e pancadas no corpo e na cabeça do AD com um pau, enrolado numa toalha molhada para não deixar marcas no corpo.

Durante quase uma hora, enquanto dois dos referidos três arguidos seguravam os braços do AD o outro desferia-lhe pancadas no corpo e na cabeça.

Em consequência da conduta daqueles arguidos, o AD sofreu um hematoma num dos olhos, dores no corpo e na cabeça e teve dificuldade em respirar durante vários dias.

No entanto, no dia seguinte foi obrigado a ir trabalhar para o campo.

Os arguidos GG, S G e RG dirigiram ofensas verbais ou ameaças a algum daqueles trabalhadores.

Sempre que um trabalhador tentava fugir do campo ou das instalações ou reclamava da falta de salário, das condições de trabalho, alimentação e habitação a que estava sujeito, era agarrado por um ou alguns dos arguidos G, GG, S G, RG e CC, afastado dos restantes trabalhadores e espancado por aqueles.

Os arguidos R G, MB e CC actuaram em conjugação de esforços e intenções e dividindo tarefas com os demais arguidos.

A comprovada actuação dos arguidos G, GG, S G, EG e GC, nos termos dados como provados, era dirigida em relação à generalidade dos trabalhadores que habitavam as instalações da antiga panificadora.

O arguido S G quis e conseguiu molestar o corpo e a saúde de RV, o que fez de modo livre e consciente, bem sabendo a sua conduta proibida e punida por lei.

O arguido G quis e conseguiu molestar o corpo e a saúde de AD, o que fez de modo livre e consciente, bem sabendo a sua conduta proibida e punida por lei.

Os arguidos G, S G e CC actuando em conjugação de esforços e de intenções, quiseram e conseguiram molestar o corpo e a saúde de AD, o que fizeram de modo livre e consciente, bem sabendo as suas condutas proibidas e punidas por lei.

O arguido PO agiu livre e deliberadamente com intenção de desobedecer à notificação regularmente efectuada pela Autoridade para as Condições de Trabalho.

Não deixaram de se provar quaisquer outros factos com interesse para a boa decisão da causa, sendo certo que aqui não importa considerar alegações conclusivas ou de direito, que serão ponderadas em sede própria.

- Do pedido de indemnização civil deduzido pela EDP:

Da actuação dos arguidos G, EG, S, GG e GC resultou um consumo de energia que importou prejuízo para a EDP que ascende a €2.303,76.

- Da contestação dos arguidos G, S, GG e GC:

Os arguidos S, GG e GC vieram para Portugal para trabalhar para a empresa SV;

Passado o primeiro mês de trabalho, perguntaram ao arguido PO pelo seu salário, que respondeu “que lhes poderia adiantar alguma valor, mas que na verdade tinha recebido tão pouco, por tanta azeitona que entregou, que teriam de esperar até que os proprietários dos olivais fizessem novos pagamentos.”

Os arguidos e PO não dominavam e não dominam a língua portuguesa;

As 15 pessoas que no dia 29 de Novembro de 2012 deixaram a panificadora acompanhadas pela Polícia Judiciária fizeram-no por iniciativa e influência da trabalhadora CN, que teria uma paixão não correspondida pelo arguido G.

Não se considerou o alegado em 8º a 21º, 23º a 26º porquanto se trata de reprodução de elementos constantes dos autos e as conclusões a que chegam aqueles arguidos da análise e interpretação que fazem dos mesmos.

- Da Contestação dos arguidos R e MB:

O arguido R era um trabalhador como qualquer outro do seu grupo de trabalho, a quem o arguido PO, como representante da sociedade SV, pagava a remuneração à razão de €30 a €35 por cada jornada de 8 a 9 horas de trabalho efectivo.

Não se considerou o alegado em 1º a 12º, 14º a 18º, 21º, 22º, 24º a 30º, 33º a 47º por consubstanciarem meras conclusões ou a negação de factos constantes da acusação e que o Tribunal considerou acima como não provados.

(….)

54 – Importa, antes do mais, dar nota de que se não verifica qualquer nulidade de que cumpra conhecer e, mesmo ex officio e muito em síntese (ressalvando-se a generalização), sublinhar que, do texto e na economia da decisão revidenda, não se verifica qualquer dos vícios prevenidos no citado artigo 410.º n.º 2, do CPP.

55 – Com efeito, investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundar a solução de direito atingida, não se vê que se tenha deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos julgados provados ou entre estes e os factos julgados não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e, de igual modo, não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras da experiência comum, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário.

56 – Como acima se deixou editado, os recorrentes pretextam que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento em matéria de facto, invocando (a) a ausência de prova dos factos atinentes à comparticipação dos arguidos S, GG, EG e GC relativamente ao crime de tráfico de pessoas previsto e punível nos termos do disposto no artigo 160.º do Código Penal (CP), (b) a ausência de prova dos factos atinentes à vulnerabilidade das vítimas, a que se refere o artigo 160.º n.º 1 alínea d), do CP, (c) a insuficiência de concretização dos factos relativos à violência, rapto ou ameaça, a que se reporta o artigo 160.º n.º 1 alínea a), do CP, (d) a ausência de prova dos factos concernentes à comunicação desta circunstância aos arguidos S, GG, EG e GC, e (e) a ausência de prova de factos atinentes ao crime de furto pelos arguidos G, S, GG, EG e GC.

57 – No que pertine ao alegado erro de julgamento em matéria de facto, importa ter presente que a impugnação do julgamento levado, na instância, sobre a matéria de facto, não conduz a um novo julgamento nem pode supri-lo.

58 – Na verdade, a prova gravada e, em parcelas, transcrita, nunca poderá suprir a abundância de pormenores (a cor e o cheiro) que a oralidade e a imediação proporcionam ao juiz quando aprecia a prova que, pela irrepetível primeira vez, se desenrola no Tribunal – o modo como o arguido, o declarante, como a testemunha depõem, as suas reacções, as suas reticências, a sua mímica, são factores decisivos na formação de uma convicção e não podem ser captados pela frieza asséptica de quaisquer meios mecânicos.

59 – Pode mesmo dizer-se que, na convicção, desempenham papel de relevo não apenas a actividade puramente cognitiva mas também elementos que, racionalmente, não são explicitáveis (em muitos casos, v.g., a credibilidade que se concede a um meio de prova) e mesmo elementos puramente emocionais - cfr. Figueiredo Dias, «Direito Processual Penal», I, Coimbra Editora, 1974, pp. 204/205 e in «Direito Processual Penal», Lições 1988-1989, pp. 135 e segs.

60 – Ensinava o Prof. José Alberto dos Reis que a livre apreciação da prova é indissociável do princípio da oralidade, «entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), e condição indispensável para actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal». Citando Chiovenda, concluía que «ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar» - Código de Processo Civil, Anotado, Vol. IV, pág. 566.

61 – Assim, o juiz que, em 1.ª instância, julga de facto, goza de ampla (conquanto vinculada) liberdade de movimentos ao erigir os meios de que se serve na fixação dos factos provados, de harmonia com o princípio da livre convicção e apreciação da prova.

62 – Nos termos expressamente prevenidos no art. 127.º do CPP, as provas são livremente valoradas pelo juiz sem obediência a regras pré-fixadas.

63 – Ora, há-de conceder-se, essa liberdade de apreciação com base no conjunto do material probatório recolhido pela percepção global, traduzido numa síntese decisória, é insindicável por este Tribunal.

64 – O tribunal de recurso só em casos excepcionais de manifesto erro de apreciação da prova poderá comutar a decisão levada na instância – será, por exemplo e caricatura, o caso de o depoimento de uma testemunha ter um sentido diametralmente oposto ao que foi considerado na sentença recorrida.

65 – Vale dizer que, por força do referido princípio da livre apreciação da prova (não estando em causa, como, no caso, não está, prova tarifada ou legal), o processo de formação da livre convicção do julgador na apreciação da prova não é questionável pelo tribunal de recurso.

66 – A esta instância caberá apenas indagar se tal apreciação e julgamento são contrariados pelas regras da experiência comum ou pela lógica do homem médio (diga-se mesmo, do julgador médio) suposto pela ordem jurídica.

67 – Por outro lado, há que sublinhar, a lei é exigente quanto ao modo de impugnação do recurso em matéria de facto, de harmonia com o disposto no artigo 412.º n.os 3 e 4, do CPP, sendo que a modificabilidade da decisão da 1ª instância apenas ocorre nos termos apontados no artigo 431.º, do CPP, entre os quais a impugnação da matéria de factos nos termos do artigo 412.º n.º 3, do mesmo diploma.

68 – E, aqui devem ser indicados não (apenas) os pontos de facto ou provas dissonantes, mas os concretos pontos de factos e as concretas provas que impõem decisão diversa.

69 – Por isso, o tribunal de 2.ª instância, apesar de ter poderes de cognição em matéria de facto, não pode sem mais, apreciar quais os meios de prova de que se socorreu o tribunal da 1ª instância para ter dado como provados os factos que veio a dar como provado.

70 – Torna-se necessária a indicação expressa dos concretos pontos de facto e concretas provas que, para esses concretos pontos de facto, impõem solução diversa.

71 – No caso, admitindo que os recorrentes especificaram a factualidade que abonou a respectiva condenação e que, no seu entender, não deveria ter sido julgada provada, em face da inexistência ou insuficiência da prova, e que indicaram, como lhes competia, meios de prova que sugeriam decisão diversa da recorrida, certo é que, tendo em conta o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º, do CPP), uma coisa é a valoração da prova efectuada pelo tribunal, e outra o modo da sua impugnação em recurso sobre a matéria de facto, de forma processualmente válida, que não se traduz em mera exposição pelos recorrentes do respectivo entendimento sobre a valoração da prova, sob pena de se limitar o alegado à mera impugnação da convicção do tribunal recorrido.

72 – O que a lei pretende ao vincular o recorrente à indicação das provas que impõem decisão diversa, não é, certamente, que se formule uma outra versão da prova produzida.

73 – Por outro lado, não é suficiente especificar, de forma sectorial, algum ou outro, elemento da prova.

74 – Só a especificação de todos eles, os indicados pelo tribunal e os que se entende não foram tidos em conta, pode impor decisão diversa.

75 – E as provas que impõem essa diversa decisão são as provas relevantes e decisivas que não foram analisadas e apreciadas, ou, as que o tendo sido ponham em causa ou contradigam o entendimento plasmado na decisão recorrida.

76 – Se a tais provas faltam esses pressupostos, não conduzem a outra decisão.

77 – Revertendo ao caso, o Colectivo a quo, pelas razões que especificadamente detalhou, precedendo a análise crítica dos diversos elementos probatórios, adquiriu a convicção positiva sobre os factos atinentes à culpabilidade dos arguidos, com abono expresso nas provas produzidas em audiência de julgamento, e com fundamentada especificação das razões de tal convicção, assegurando, de pleno, e nos termos prevenidos no artigo 205.º n.º 1, da CRP, e nos artigos 97.º n.º 5 e 374.º n.º 2, estes do CPP, a devida transparência do deciso.

78 – Ora, em vista da análise e valoração, neste Tribunal ad quem, das provas produzidas no Tribunal recorrido, a convicção ora formada sobre os factos sob julgamento (seja quanto aos que devem considerar-se como provados, seja no que respeita aos que devem ter-se como não provados) não diverge daquela que o Colectivo a quo alcançou e exprimiu na decisão recorrida.

79 – E assim, precedendo ponderação e convicção autónomas e autonomamente formuladas, nesta instância recursória, e tudo sem embargo dos inultrapassáveis limites de apreciação nesta instância, ditados pela natureza (de remédio), pelo momento de apreciação (de segunda linha e em suporte estático, não sendo caso de renovação de provas), e mesmo pelos termos, modelo e modo de impugnação, inerentes ao recurso sub indice.

80 – Defendem os recorrentes que, na audiência de julgamento levada na instância, não foi produzida prova da comparticipação dos arguidos S, GG, EG e GC, alegando que «não se provou, não obstante o transporte, qualquer acordo prévio ou sucessivo» entre os arguidos S e GG e os co-arguidos G e PO, mais aduzindo que as arguidas EG e GC não praticaram qualquer acto de execução do crime nem aderiram ao plano criminoso dos arguidos G e PO, podendo, quando muito, ser punidas como cúmplices.

81 – Tendo presente o disposto no artigo 26.º, do CP, que manda punir como autor quem tomar parte directa na execução do facto, por acordo ou juntamente com outro/s, importa ressaltar que para verificação de tal execução conjunta não se exige que todos os agentes intervenham em todos os actos delitivos, mais ou menos complexos, organizados ou planeados, destinados a produzir o resultado típico pretendido, bastando que a actividade de cada um dos agentes seja parcela do conjunto da acção, desde que indispensável á produção do fim e do resultado a que o acordo se destina, valendo o princípio da imputação objectiva recíproca, no sentido da imputação da totalidade do facto típico a cada um dos comparticipantes, independentemente da concreta fracção do iter delitivo que cada um haja realizado.

82 – No caso, como resulta da fundamentação da decisão da matéria de facto e como vem sublinhado, com particular acuidade, pelo Dg.º respondente, foi o arguido GG quem, destacadamente, procedeu ao recrutamento dos trabalhadores na Roménia, com falsas promessas de condições condignas de transporte, alimentação, trabalho e alojamento, custeando a viagem dos mesmos até Sevilha, e subjugado-os depois, já em Portugal, fosse pela retenção dos respectivos documentos, fosse através de repetidas ameaças e insultos.

83 – Sem embargo, não pode fazer-se olvido de que, comprovadamente, (i) os co-arguidos S e GG recolheram os trabalhadores em Sevilha, transportando-os para Portugal, aqui os agrupando em equipas de trabalho, que lideravam, sob a supervisão do arguido GG, conduzindo-os aos olivais, (ii) o arguido GG reteve os documentos de identificação dos trabalhadores, (iii) o arguido S, de par com seu pai, tomou de arrendamento as instalações onde os trabalhadores ficaram alojados, (iv) sendo que provém dos mesmos co-arguidos a informação transmitida aos trabalhadores de que seriam descontados nas remunerações determinados montantes alegadamente relacionados com o pagamento de transportes, obtenção de documentos, alimentação e alojamento, (v) enqunto as co-arguidas E, mulher do arguido G, e GR, companheira do arguido G, tratavam da alimentação dos trabalhadores, (vi) todos se locupletando com as remunerações dos mesmos trabalhadores – por isso que, de experiência comum ou por presunção natural, não pode deixar de concluir-se, como se concluiu na instância, pela comunhão dos co-arguidos em um mesmo plano delitivo, improcedendo pois, neste particular, o doutamente alegado pelos recorrentes.

84 – Defendem os recorrentes que se não provaram os factos atinentes à vulnerabilidade das vítimas, circunstância a que se refere o artigo 160.º n.º 1 alínea d), do CP, pretextando que tal circunstância só inclui a vulnerabilidade em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez.

85 – Afigura-se, sem desdouro para o esforço argumentativo dos recorrentes, que tal circunstância não pode deixar de ser interpretada no sentido de se estenter a todas as situações «em que a pessoa visada não tenha outra escolha real nem aceitável senão a de submeter-se ao abuso», conformando-se a ideia de aceitabilidade a um critério de razoabilidade, e ao humanamente aceitável, designadamente em casos de emigração ilegal, podendo a situação de vulnerabilidade verificar-se, menos na aceitação de determinado trabalho, antes durante a execução das tarefas consignadas, «designadamente porque decorre da permanência precária ou ilegal num país estrangeiro e culturalmente estranho» – neste sentido, cfr. M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, em «Código Penal, Parte geral e especial», Almedina, 2014, nota 6, pág. 666, e Pedro Vaz Patto, em «O crime de tráfico de pessoas no Código Penal revisto», Revista do Centro de Estudos Judiciários, n.º 8/2008, pág. 194.

86 – No caso sub inde, sedimentou-se como provado, relativamente aos quinze identificados trabalhadores de nacionalidade romena, (i) que os arguidos retiveram os respectivos documentos de identificação, (ii) providenciando pelo respectivo alojamento, transporte e alimentação, (iii) que os trabalhadores desconheciam a língua portuguesa, (iv) nunca tendo recebido quaisquer salários, e (v) que foram ameaçados por diversas vezes pelos arguidos de que, se fugissem ou se se queixassem, as respectivas famílias, na Roménia, sofreriam represálias – por isso que não pode deixar de concluir-se pela particular situação de vulnerabilidade dos ofendidos, verdadeiramente nas mãos dos arguidos, que os submetiam à sua vontade e cobiça, improcedendo pois, também neste particular, o doutamente alegado pelos recorrentes.

87 – Defendem os recorrentes, por um lado, que se verifica insuficiência de concretização dos factos relativos à violência, rapto ou ameaça grave, a que se reporta o artigo 160.º n.º 1 alínea a), do CP, e, de par, que se não provaram factos concernentes à comunicação desta circunstância aos arguidos S, GG, EG e GC.

88 – Afigura-se, também neste ponto, que é manifesta a sem razão do doutamente alegado.

89 – Desde logo, no ponto em que se mostra sedimentado, como provado que, no concreto contexto da relação estabelecida entre os arguidos e os referenciados trabalhadores, o arguido G, por diversas vezes, disse a vários deles que «caso fugissem ou se queixassem a alguém, as suas famílias na Roménia sofreriam represálias, tal como serem agredidos ou mortos ou ser posto fogo nas suas casas», não se vendo, nem vindo demonstrado, que, em face da prova produzida, a não concretização probatória dos pormenores de tempo e lugar da conduta do arguido, deste conhecidos, haja tolhido as garantias de defesa dos recorrentes, com insuportável lesão do disposto no artigo 32.º n.º 1, da CRP.

90 – Por outro lado, em face dos factos assentes como provados, não pode conceder-se a pretextada exclusão da responsabilidade delitiva dos arguidos S, GG, EG e GC relativamente a tais ameaças, do passo em que se teve por provado que todos os arguidos agiram «em comunhão de esforços e de intenções, dividindo tarefas entre si, e (…) recorrendo a ameaças de morte», vale por dizer que estes arguidos não podem deixar de ser responsabilizados como co-autores, pela totalidade da acção realizada, ainda que o respectivo agir, no plano formal, esteja fora do arco da acção típica – por isso que não pode deixar de improceder, também nesta parcela, quanto doutamente se alega no recurso.

91 – Defendem os recorrentes que se não provaram factos atinentes ao crime de furto de energia eléctrica pelos arguidos G, S, GG, EG e GC, por não se ter provado «quem, quando e como foi feita a ligação directa ao ramal aéreo da EDP».

92 – Afigura-se, ressalvado o devido respeito, que sem razão, na medida em que a materialidade de facto comprovada (e não impugnada), dá nota de que os arguidos G, S, GG, EG e GC, entre meados de Novembro de 2011 e 5 de Fevereiro de 2013, quiseram e conseguiram consumir energia eléctrica sem pagar o respectivo preço, aproveitando para tanto uma ligação clandestina ao ramal da EDP efectuada a partir do interior da panificadora pelos arguidos G, S e GG ou por alguém a seu mando, agindo de modo livre e consciente, bem sabendo as suas condutas proibidas e punidas por lei, não se vendo, também neste particular, qualquer incompletude ou falta de concretização dos factos atinentes ao cometimento, pelos referidos arguidos, do crime de furto por que foram condenados.

93 – Tudo para significar que a prova produzida em audiência não apenas consentia, antes impunha a decisão que o Colectivo recorrido levou, fundamentadamente, sobre a matéria de facto.

94 – Quanto à última questão suscitada, referente ao pretextado excesso de medida na concretização da pena estabelecida, na instância, relativamente ao arguido G, no sentido da mitigação das penas parcelares e da pena única até aos 5 anos de prisão suspensa na sua execução, sob alegação de que o arguido (i) sempre viveu no mesmo local onde estiveram os outros trabalhadores, (ii) veio para Portugal em 2011 e trabalhou na agricultura, (iii) é primário, (iv) pretende regressar à Roménia para reorientar a sua vida e tratar da sua débil saúde, e que (v) a actividade ilícita se resumiu a quinze pessoas num universo de cinquenta e durante dois meses no período de um ano, não pode conceder-se provimento ao doutamente alegado.

95 – Por um lado, na medida em que, tendo sido expressamente ponderada, no acórdão revidendo, a primariedade delitiva do arguido, as mais circunstâncias alegadas não foram sedimentadas como provadas na instância, por isso que não podem ser ponderadas em sede recursiva.

96 – Por outro lado, importa ter presente (faz doutrina e jurisprudência de há muito sedimentadas) que, em sede de escolha e medida da pena, o recurso não deixa de reter o paradigma de remédio jurídico (na expressão de Cunha Rodrigues), no sentido de que a intervenção do tribunal de recurso, (também) neste particular, deve cingir-se à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e normação que definem e demarcam as operações de concretização da pena na moldura abstracta determinada na lei.

97 – Vale por dizer que o exame da concreta medida da pena estabelecida na instância, suscitado pela via recursiva, não deve aproximar-se desta senão quando haja de prevenir-se e emendar-se a fixação de um determinado quantum em derrogação dos princípios e regras pertinentes, cumprindo precaver (desde logo à míngua da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo) qualquer abusiva evicção relativamente a uma concreta pena que ainda se revele congruente e proporcionada.

98 – No caso, não se vê – nem o recorrente demonstra – que o Colectivo a quo haja valorado as circunstâncias apuradas com inadequado peso prudencial, ou que haja desconsiderado o comprovado contexto atenuativo relativo ausência de antecedentes criminais do arguido, por isso que o acórdão revidendo não merece nem suscita, também neste particular, qualquer intervenção ou suprimento reparatório.

99 – O decaimento total nos recursos impõe a condenação dos recorrentes em custas, com a taxa de justiça, individual, fixada nos termos e com os critérios prevenidos nos artigos 513.º n.os 1 a 3 e 514.º n.os 1 e 2, do CPP, e no artigo 8.º n.º 5 e tabela III, do Regulamento das Custas Processuais – ressalvado apoio judiciário e nos estritos termos de tal benefício.


III

100 – Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se: (a) negar provimento aos recursos intercalares interpostos pelos arguidos MB, PO, G, S e GG, G, SG e GG, e ao recurso interposto do acórdão pelos arguidos EG, G, GG, GC e S; (b) condenar os arguidos em custas, com a taxa de justiça, individual, em 6 (seis) unidades de conta, sendo solidários os encargos.

Évora, 20 de Janeiro de 2015

António Manuel Clemente Lima (relator) – Alberto João Borges (adjunto)