Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1841/16.2T8BJA.E1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
CADUCIDADE
DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 05/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
A norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação da paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante, viola as disposições conjugadas dos artigos 36.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição.
Decisão Texto Integral:

Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. BB instaurou acção declarativa com processo comum, para investigação de paternidade, ao abrigo do disposto no artigo 1869º do Código Civil, contra CC, pedindo que seja declarado que a autora é filha do réu e ordenado o averbamento da filiação e da correspondente avoenga paterna ao seu assento de nascimento.

2. Para tanto, invocou, em síntese, que a sua mãe manteve com o réu relações de cópula completa durante os primeiros 120 dias precedentes ao seu nascimento, tendo sido na sequência de uma dessas relações sexuais que a mãe da autora veio a engravidar, e dessa gravidez veio a nascer a ora autora.
Com o articulado inicial juntou cópia do seu assento de nascimento.

3. Regularmente citado, o réu contestou, defendendo-se por excepção – invocando o caso julgado e a caducidade do direito de acção – e por impugnação.

4. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, no âmbito do qual se decidiu julgar improcedente a excepção do caso julgado e a excepção da caducidade, recusando-se a aplicação da norma do artigo 1817º do Código Civil, por violação dos artigos 26º, n.º 1, 36º, n.º 1, e 18º, n.º 1, da Constituição.
Identificado o objecto do litígio e fixados os temas de prova, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, após o que veio a ser proferida sentença que, julgando a acção procedente:
A) Declarou que BB é filha de CC;
B) Determinou o averbamento da filiação acabada de estabelecer e da correspondente avoenga paterna no assento de nascimento da autora.

5. Inconformado recorreu o R., nos termos e com os fundamentos seguintes [segue transcrição das conclusões do recurso]:
1.ª Esteve mal o Tribunal a quo ao decidir como decidiu.
2.ª O apelante, em sede de contestação invocou, para além de outras questões, a excepção peremptória da caducidade do direito da A. propor a presente acção.
3.ª Foi proferido despacho saneador, em 11 de Setembro de 2017, que declarou a instância totalmente regular, estado em que se mantém, tendo julgado improcedente a excepção de caducidade suscitada, organizada a matéria factual com interesse para a decisão da causa, instruído o processo e realizada a audiência de julgamento.
4.ª Pretende o apelante recorrer da decisão que apreciou a excepção de caducidade do direito de propor a acção, julgando-a improcedente, sendo as questões decidendas a aferição da nulidade da sentença por excesso de pronúncia, já que se conhece de questão de que não podia tomar conhecimento (2.ª parte da al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C.), configurando uma nulidade relacionada com a 2.ª parte do n.º 2 do art.º 608.º do C.P.C, porquanto no despacho saneador é decidida uma excepção sem que tivesse sido assegurado o exercício do contraditório relativamente à mesma, razão pela qual não poderia ter sido proferida tal decisão;
5.ª Bem como, a apreciação da inconstitucionalidade ou não do disposto no artigo 1817.º, nº 1 ex vi 1873.º, ambos do C.C., e por decorrência, da verificação ou não da excepção da caducidade da presente acção.
6.ª Quanto à primeira das questões, deveria ter-se dado a oportunidade para o exercício do contraditório da A., a qual se daria com a audiência prévia, já que não havia lugar a articulado de réplica, nos termos do art.º 584.º, n.º 1, do C.P.C.
7.ª No que respeita à audiência prévia, a regra que emerge do art.º 591.º, n.º 1 (com as excepções ou com as faculdades que emergem dos arts. 592.º, 593.º e 597.º) aponta precisamente no sentido da sua obrigatoriedade, servindo, além do mais, para que seja facultado o exercício do contraditório relativamente a excepções eventualmente deduzidas no último articulado admissível, nos termos do 3.º, n.º 4, do C.P.C.
8.ª No caso concreto, a M.ª Juiz a quo não determinou a notificação da A. para responder avulsamente à excepção de caducidade, nem convocou a audiência prévia, optando pela elaboração imediata do despacho saneador no qual apreciou e julgou procedente a excepção de caducidade, configurando este ato uma nulidade processual traduzida na omissão de um ato que a lei prescreve, mas que se comunica ao despacho saneador, de modo que a reacção passa pela interposição de recurso da decisão proferida em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art.º 615º, n.º 1, al. d), in fine, do C.P.C., conforme é defendido por diversos autores, e fundamentado nos arestos melhor identificados nas alegações.
9.ª A douta sentença recorrida violou os Princípios do Contraditório, Cooperação e Igualdade das Partes, bem como os artigos 20.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, 3.º n.º 3, 4.º e 7.º do Código de Processo Civil.
10.ª Quanto à segunda questão decidenda, entende o apelante, conforme aliás tem vindo a ser a orientação da jurisprudência, que o artigo 1817.º, n.º 1, do C.C., na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante, não se afigura desproporcional, não violando os direitos constitucionais ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respectivo vínculo jurídico, abrangidos pelo direitos fundamentais à identidade pessoal, previsto no artigo 26.º, n.º 1, e o direito a constituir família, previsto no artigo 36.º, n.º 1, ambos da Constituição.
11.ª Entende assim o apelante que foram violados os artigos 1817.º, n.º 1, do C.C., 26.º, n.º 1 e 36.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
12.ª Pelo exposto, a excepção peremptória de caducidade do direito da A. propor a presente acção, deverá ser julgada procedente por provada e em consequência ser o apelante absolvido, totalmente, do pedido, revogando-se a sentença proferida pelo Tribunal a quo.
Contando sempre com o mui douto suprimento de V.ª Excias, atento o supra exposto, deverá ser julgada procedente por provada a:
a) Nulidade da sentença por excesso de pronúncia, já que se conhece de questão de que não podia tomar conhecimento (2.ª parte da al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C.), configurando uma nulidade relacionada com a 2.ª parte do n.º 2 do art.º 608.º do C.P.C, porquanto no despacho saneador é decidida uma excepção sem que tivesse sido assegurado o exercício do contraditório relativamente à mesma, razão pela qual não poderia ter sido proferida tal decisão;
b) Bem como a excepção peremptória de caducidade do direito da A. propor a presente acção, porquanto a norma do artigo 1817.º, n.º 1 do C.C. não é inconstitucional, e em consequência ser o apelante absolvido, totalmente, do pedido, revogando-se a sentença proferida pelo Tribunal a quo.

6. Contra-alegou a A. pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo da decisão recorrida.
Cumpre apreciar e decidir.
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II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:
(i) Da invocada nulidade;
(ii) Da excepção da caducidade do direito de acção;
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III – Fundamentação
A) - Os Factos
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. Em 19 de Abril de 1952, nasceu, na freguesia de Santana da Serra, concelho de Ourique, BB, cujo assento de nascimento com o número 168/1952 foi lavrado na Conservatória do Registo Civil de Ourique, nele se omitindo a paternidade e mencionando que a criança é filha de DD [em destaque a rectificação abaixo efectuada].
2. BB é filha biológica do réu, CC, resultando de relação de cópula que este manteve com a progenitora daquela nos primeiros cento e vinte dias dos 300 que precederam o seu nascimento.
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B) – O Direito
1. Rectificação de lapso material
Previamente à apreciação do recurso importa proceder à rectificação do ponto 1 dos factos provados, que se baseou no teor do assento de nascimento junto a fls. 12/13, porquanto na sentença, por lapso manifesto, omitiu-se o nome da A., à qual se reporta a referida factualidade.
Assim, no ponto 1 dos factos provados passará a constar o nome da A., como se indica no ponto 1 dos factos provados acima transcrito e ali já rectificado.

2. Da nulidade da sentença
2.1. No recurso interposto da decisão final vem o recorrente invocar a nulidade da sentença prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, por excesso de pronúncia, alegando que no despacho saneador se apreciou a excepção peremptória da caducidade do direito de acção sem o cumprimento do contraditório, em violação do disposto no n.º 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil.
Entende o recorrente que tendo a excepção sido invocada pelo R. na contestação, e não podendo a A. responder na réplica, porque, em face do que se dispõe no n.º 1 do artigo 484º do Código de Processo Civil, a réplica serve apenas para responder à matéria da reconvenção, deveria ter sido convocada a audiência prévia, o que não sucedeu.
Assim, e não tendo a parte sido notificada para se pronunciar sobre a referida excepção, conclui que foi cometida nulidade processual, a qual sendo revelada pelo próprio despacho recorrido (no caso o despacho saneador), o modo de reacção passa pela interposição de recurso da decisão proferida em cujos fundamentos se integra a arguição da nulidade por excesso de pronúncia.

2.2. Assiste razão ao recorrente quando refere que o despacho saneador, em que se conheceu da matéria da excepção, foi proferido com dispensa da audiência prévia, invocando-se como fundamento a simplicidade da causa, e que em relação à A. não foi cumprido o contraditório quanto à matéria da excepção.
A ter ocorrido nulidade, por omissão de acto processual relevante, no caso a dispensa da audiência prévia fora dos casos legalmente previstos (cf. artigo 592º e 593º do Código de Processo Civil), e não ter sido cumprido o contraditório, o qual se impunha, nos termos do n.º 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil, a mesma é susceptível de constituir nulidade processual, sancionada nos termos do artigo 195º do Código de Processo Civil.
Independentemente da questão de saber se a dita nulidade processual está sujeita ao regime geral previsto nos artigos 195º e 199º do Código de Processo Civil, tendo que ser arguida no prazo de 10 dias após o seu conhecimento, ou, se reportando-se a omissão a acto imputável ao julgador, revelado pela decisão recorrida, pode/deve ser invocada como fundamento do recurso desta decisão, a qual enfermará de nulidade por excesso de pronúncia, por ter apreciado questão de que ainda não se podia conhecer, certo é que, no caso concreto, o recorrente não tem legitimidade para arguir a dita nulidade.
Efectivamente, fora dos casos referidos no artigo 196º do Código de Processo Civil, onde não se inclui o presente, “… a nulidade só pode ser invocada pelo interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do acto”, como decorre do n.º 1 do artigo 197º do Código de Processo Civil.
Ora, no caso concreto, tendo a excepção sido invocada pelo R. na contestação, onde teve oportunidade de aduzir as razões que no seu entendimento justificavam a procedência da excepção, a preterição do acto de audição das partes em momento prévio à decisão, seja por via da convocação da audiência prévia, seja por via de notificação expressa em cumprimento do contraditório, apenas era susceptível de prejudicar a A., que, não podendo apresentar réplica, não pôde pronunciar-se sobre a matéria da excepção.
Deste modo, apenas a A., poderia ser considerada interessada na observância da formalidade, e com legitimidade para invocar a nulidade em causa, nunca o R., que não foi prejudicado pela falta de audição da A..
Acresce que para que a violação do contraditório, por omissão da audição da A., que é o que o recorrente invoca, constituísse nulidade, necessário era que tal irregularidade pudesse influir no exame ou na decisão da causa (cf. n.º 1 do artigo 195º do Código de Processo Civil), o que não sucede, pois a falta de audição da A. não impediu que a decisão da matéria da excepção lhe fosse favorável.

2.3. Em face do exposto é manifesta a improcedência da arguida nulidade.

3. Da Caducidade
3.1. A A. instaurou a presente acção com vista a ver estabelecida a sua filiação em declaração ao R., pedindo que seja declarado que é filha do réu e que seja ordenado o averbamento da filiação e da correspondente avoenga paterna ao seu assento de nascimento.
Estamos, pois, em presença de uma acção de investigação de paternidade, prevista no artigo 1869º do Código Civil, a qual, nos termos do n.º 1 do artigo 1817º, aplicável por força do disposto no artigo 1873º, do mesmo código, “… só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.”
Tendo em conta que à data da instauração da acção já havia decorrido o prazo de 10 anos referido no preceito, visto que a A. nasceu em 19 de Abril de 1952 e a acção só foi instaurada em 11 de Novembro de 2016, o R. invocou a caducidade, sustentando a não inconstitucionalidade daquela norma.
A excepção foi apreciada no despacho saneador, de que agora se recorre, tendo o tribunal a quo concluído pela inconstitucionalidade da norma do artigo 1817º do Código Civil, recusando a sua aplicação, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26º, n.º 1, 36º, n.º 1, e 18º, n.º 1, da Constituição, e, em consequência, julgado improcedente a excepção.
O recorrente discorda deste entendimento, sustentando a não inconstitucionalidade do preceito, ancorado em pertinente jurisprudência e doutrina que cita.
Vejamos se lhe assiste razão.

3.2. Como nota prévia importa referir que os presentes autos têm a particularidade de já ter sido proferida sentença final, em que se apurou que o investigado é efectivamente o pai da A., e de ainda não estar definitivamente decidida a questão da caducidade do direito de acção que foi apreciada no saneador, posto, que o despacho saneador que julgou improcedente a dita excepção não tinha recurso imediato, por não se enquadrar no n.º 1 do artigo 644º do Código de Processo Civil, nem em nenhum dos casos elencados no n.º 2 do mesmo artigo, e porque nem o R. nem o Ministério Público recorreram directamente para o Tribunal Constitucional, com fundamento na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), para o que tinham legitimidade, nos termos do n.º 1 e 3 do artigo 72º da mesma Lei.

3.3. Passando à apreciação do objecto do recurso, reportada à questão da (in)constitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 1817º do Código Civil, aplicável às acções de investigação de paternidade por força do artigo 1873º, importa referir que o Tribunal Constitucional, pelo acórdão n.º 23/2006 (disponível, como os demais citados, sem outra referência em www.tribunalconstitucional.pt), declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, desta norma, na sua redacção original, na medida em que previa, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Na sequência deste aresto, a Lei 14/2009, de 1 de Abril, alterou o artigo 1817º do Código de Processo Civil, no sentido do estabelecimento de um regime muito menos restritivo em matéria de prazos para a propositura da acção, relativamente àquele que o Tribunal Constitucional declarara inconstitucional.
Mas, como se salienta no despacho recorrido, as alterações introduzidas pela Lei n.º 14/2009 não resolveram definitivamente a questão, continuando a discutir-se a conformidade do actual regime do artigo 1817º com a Constituição, com posições divergentes nos nossos Tribunais Superiores e mesmo no seio do Tribunal Constitucional, como resulta do acórdão n.º 401/2011, e dos votos de vencido neles apostos.
É certo que neste aresto o Tribunal Constitucional, em sessão plenária, decidiu por maioria “não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante.
Porém, no recente acórdão n.º 488/2018, o Tribunal Constitucional, decidiu: «Julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação da paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.»
Neste aresto o Tribunal Constitucional ponderou a necessidade de reapreciação da constitucionalidade da norma contida no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, fundamentando-a nos seguintes termos:
«A norma agora questionada foi o resultado de um processo legislativo, que teve lugar em 2009, no qual se aderiu a uma solução de compromisso, em que o legislador ainda deu relevo a alguns dos argumentos obstaculizantes da investigação da paternidade, tendo, por isso, limitado a sua decisão ao alargamento dos prazos de caducidade, sem aderir ao princípio da imprescritibilidade das acções da investigação da paternidade.
Contudo, após esta alteração, a problemática da caducidade das acções de investigação de paternidade continua a ser largamente debatida, na doutrina e na jurisprudência, que continua dividida, e está ainda hoje longe de ser pacífica. A atestar esta falta de consenso e a necessidade social de uma posterior reponderação, surgem nos tribunais comuns, com frequência, acções de investigação da paternidade intentadas por pessoas nascidas antes da Reforma de 1977, época em que vigorava na ordem jurídica o princípio da proibição da investigação da paternidade e em que os filhos nascidos fora do casamento sofriam uma forte discriminação social e patrimonial. Esta realidade sociológica continua presente na sociedade portuguesa, com os filhos a interpor as acções de investigação da paternidade, fora do prazo legal, muitas vezes apenas após a morte da mãe, a fim de a proteger contra a devassa da sua vida privada normalmente implicada nestes processos, tendo em conta que até meados da década de noventa do século XX o uso de exames científicos se revelou ser muito restrito e de eficácia probatória reduzida (cf. Helena Machado, Moralizar para identificar, Cenários da Investigação Judicial da Paternidade, Centro de Estudos Sociais, Porto, 2007, pp. 22 e 158-163).
Recentemente, o Acórdão n.º 225/2018 alterou a jurisprudência deste Tribunal no que diz respeito ao direito da pessoa concebida por PMA conhecer as suas origens e a identidade civil do dador de gâmetas, tendo sido declarado inconstitucional o princípio-regra do anonimato, visto como «uma afectação indubitavelmente gravosa dos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, consagrados no artigo 26.º, n.º 1, da CRP». Também no domínio do direito positivo, o direito a conhecer as origens sofreu uma maior valorização com a Lei n.º 143/2015, de 8 de Setembro, que reconhece às pessoas adoptadas o direito de a partir dos 16 anos solicitarem ao organismo de segurança social a identidade dos seus pais biológicos (artigo 6.º, n.º 1, da citada lei e artigo 1990.º-A do Código Civil).
Estas alterações normativas e jurisprudenciais, pese embora a diferença, também assinalada no Acórdão n.º 225/18, entre a acção da investigação da paternidade e o conhecimento da identidade civil do dador, não deixam incólume o equilíbrio de interesses e direitos, constitucionalmente protegidos, empurrando-o claramente em favor do direito de conhecer a paternidade.
É certo que o objecto da acção de investigação da paternidade dirige-se, não só ao conhecimento da identidade do progenitor biológico, mas também ao reconhecimento judicial do vínculo da paternidade com os respectivos efeitos jurídicos, tendo, portanto, implicações para terceiros (os herdeiros do pretenso pai) e para o investigado que estão ausentes na revelação da identidade do dador. Todavia, o estabelecimento da paternidade constitui um elemento relacionado com um aspecto da personalidade e da identidade pessoal de muito maior relevo (individual e de ordem pública) do que o mero conhecimento da identidade de um dador de gâmetas. A filiação fixa o lugar da pessoa no sistema de parentesco e confere-lhe um estatuto jurídico pessoal – o estado da pessoa. Por maioria de razão, perdem, assim, peso os argumentos para negar ao filho, autor da acção de investigação da paternidade, os seus direitos à identidade pessoal e ao reconhecimento da paternidade. Não por se tratar da procura da verdade biológica, pois esta não corresponde a qualquer imperativo constitucional autónomo nem exige uma tutela absolutizada, de nível máximo, mas por estar em causa um contexto situacional, em que a determinação da progenitura biológica consiste numa componente central da identidade pessoal e relacional do indivíduo, bem como da sua inserção na família e na sociedade, em termos que não têm qualquer paralelo com o conhecimento da identidade de um dador de gâmetas.
De acordo com a orientação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 101/2009, «A identidade pessoa é um conceito referido à pessoa que se constrói ao longo da vida em vista das relações que nela se estabelecem, sendo que os vínculos biológicos são apenas um aspecto dessa realidade» (…) «Assim sendo, as posições jurídicas contidas no direito à identidade pessoal, como seja o direito ao conhecimento das origens genéticas, não têm necessariamente uma força jurídico-constitucional uniforme e totalmente independente dos diferentes contextos em que efectivamente se desenvolve essa identidade pessoal».
Ora, a relevância do contexto permite atribuir maior relevo ao conhecimento da identidade do progenitor biológico no âmbito da investigação da paternidade – em que está em causa, não apenas um contributo genético, mas o estado familiar da pessoa e, portanto, a sua vida de relação com os outros – do que na PMA heteróloga, em que o dador não assume o estatuto de pai. É que, como também se afirma no Acórdão n.º 101/2009, «A imagem da pessoa que a Constituição supõe não é apenas a de um indivíduo vivendo isoladamente possuidor de um determinado código genético; a Constituição supõe uma imagem mais ampla da pessoa, supõe a pessoa integrada na realidade efectiva das suas relações familiares e humano-sociais».
À luz destes valores jurídico-constitucionais é questionável que os argumentos que pesaram a favor da fixação de prazos de caducidade possam ainda hoje ser válidos, estando esvaziado ou, pelo menos, manifestamente reduzido o alcance axiológico dos argumentos da segurança jurídica e da protecção da reserva da intimidade da vida privada do investigado.
Neste novo contexto, está verificada a necessidade de a questão da constitucionalidade da norma constante do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil (na redacção da Lei n.º 14/2009) ser revista por uma diferente composição do Tribunal Constitucional, ponderando-se agora, pela primeira vez, a questão mais geral da legitimidade constitucional de um prazo para o exercício da acção.
Torna-se, assim, claro que o regime fixado na lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, que manteve a fixação de um prazo geral de caducidade, não encontrou o seu «ponto de cristalização e de estabilização» (cf. Joaquim de Sousa Ribeiro, «A inconstitucionalidade da limitação temporal ao exercício do direito à investigação da paternidade», RLJ, Ano 147.º, N.º 4009, Março-Abril, 2018) p. 238), sendo necessário «um novo olhar» sobre a constitucionalidade da existência de um prazo de caducidade para as acções de investigação da paternidade, em face do crescente valor dos bens jurídicos pessoalíssimos sacrificados pela caducidade, e cuja necessidade de compressão cada vez menos se reconhece, quer na ordem jurídico-constitucional, quer na consciência colectiva. No mesmo sentido milita a preocupação crescente com a verdade e a transparência nas relações familiares e nas relações entre o Estado e os cidadãos.»

3.4. Neste contexto, no citado aresto, o Tribunal Constitucional, após análise da evolução da jurisprudência do Tribunal e da doutrina, bem como do direito comparado e da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, procedeu à reanálise dos argumentos do Acórdão n.º 401/2011 – o argumento caça fortunas; o argumento da segurança jurídica, na dupla vertente objectiva e subjectiva; os argumentos da vida privada do pretenso pai e da protecção da paz familiar –, à luz dos princípios constitucionais convocados, designadamente da proporcionalidade da restrição dos direitos fundamentais sacrificados pela norma questionada, concluindo que:
«À luz das normas constitucionais que consagram os direitos fundamentais à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da sua personalidade, ao conhecimento da paternidade/maternidade, bem como ao estabelecimento das correspondentes relações de filiação (artigos 26.º, n.º 1 e 36.º, n.ºs 1 e 4, ambos da Constituição), conclui-se, assim, pela inconstitucionalidade da existência de um prazo de caducidade para propor uma acção de investigação da paternidade (e da maternidade).
A limitação temporal do direito a interpor uma acção de investigação da paternidade, consagrada no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, não pode ser considerada constitucionalmente admissível, quer no plano da sua justificação, quer no plano dos seus efeitos, por violação do artigo 18.º, n.º 2, da CRP. É que, por comparação com a tutela que recebem no ordenamento jurídico os credores de direitos patrimoniais (para cujo exercício judicial a lei fixa um prazo geral de prescrição de 20 anos, nos termos do artigo 309.º do Código Civil), a ponderação de valores expressa na solução legal consagrada no artigo 1817.º, n.º 1 constitui apreciação “manifestamente incorrecta”, na expressão do Acórdão n.º 23/2006, dos interesses ou valores em presença, em particular, quanto à intensidade e à natureza das consequências que esse regime produz para o investigante e para o investigado: o investigante, com a perda, aos vinte e oito anos de idade (ou qualquer outro limite temporal), do direito a saber quem é o pai, sofre prejuízos não patrimoniais, que afectam o cerne da sua personalidade, liberdade, estado pessoal e identidade, claramente desproporcionados em relação às desvantagens eventualmente resultantes, para o investigado e sua família, da acção de investigação e dos seus efeitos. Os direitos pessoais do investigado não ganham com o decurso do tempo uma força tão acrescida que justifique a sua prevalência sobre os direitos do filho e que o pretenso pai ganhe o direito à não sujeição ao reconhecimento da paternidade, assim se subtraindo ao vínculo familiar correspondente. Inversamente, os direitos do filho não perdem, com a passagem do tempo, intensidade valorativa nem diminui o seu grau de merecimento de tutela.
A norma que estipula um prazo de caducidade constitui, assim, uma restrição desproporcionada dos direitos fundamentais a constituir família, à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade, bem como do direito a conhecer a ascendência biológica e a ver estabelecidos os correspondentes vínculos jurídicos de filiação, por violação das disposições conjugadas dos artigos 36.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1, da CRP, e do princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP. Destas normas constitucionais, interpretadas à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, decorre que as acções de investigação da paternidade devem poder ser instauradas a todo o tempo, sendo constitucionalmente ilegítima qualquer limitação temporal para o exercício destes direitos. Fica assim prejudicado o conhecimento da questão da constitucionalidade da concreta duração do prazo fixado no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil.»

3.5. Assim, e aderindo-se aos fundamentos deste aresto (o acórdão n.º 488/2018), com os quais se concorda, considera-se inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação da paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 36.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, recusando-se a sua aplicação nos termos do artigo 204º da Constituição.

4. Em face do exposto, confirma-se o despacho saneador no que se reporta à questão da inconstitucionalidade da norma em apreço, improcedendo a invocada excepção da caducidade, mantendo-se, em consequência, a sentença recorrida que conheceu do mérito da causa.
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C) – Sumário [artigo 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil]
A norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação da paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante, viola as disposições conjugadas dos artigos 36.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição.
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IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência:
a) Confirmar o despacho saneador, que julgou improcedente a excepção da caducidade do direito de propor a acção; e
b) Manter a sentença recorrida.
Custas a cargo do apelante.
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Évora, 2 de Maio de 2019

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(Francisco Xavier)

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(Maria João Sousa e Faro)

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(Elisabete Valente)