Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | SÉRGIO CORVACHO | ||
Descritores: | DIFAMAÇÃO REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO ELEMENTO SUBJECTIVO CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE AUJ N.º 1/2015 | ||
Data do Acordão: | 06/26/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
Sumário: | I - A consciência da ilicitude não é elemento constitutivo dos tipos criminais definidos pela lei penal. Pelo contrário, é a inconsciência da ilicitude que, em certas circunstâncias que revelem que a mesma não pode ser censurada ao agente, pode excluir a culpa e, por essa via, a responsabilidade criminal. II. Não deve ser rejeitada a acusação pela circunstância desta não conter a alegação de que o arguido “ «sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal», ou expressão equivalente. | ||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA I. Relatório No inquérito nº 8001/15.8TDLSB, foi deduzida pelo assistente AA acusação particular, para julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, contra o arguido BB, imputando-lhe a prática de dois crimes de difamação com calúnia p. e pelos arts. 180º nº 1 e 183º nº 1 do CP. O processo foi distribuído para julgamento ao Juízo de Competência Genérica de Sesimbra do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, tendo a Exª Juiz desse Juízo proferido, em 2/5/17, um despacho do seguinte teor: «Da acusação particular: Veio o assistente AA deduzir acusação particular contra o arguido BB imputando-lhe a prática de dois crimes de difamação com calúnia, p. e p. pelos artigos 180.º n.º 1 e 183.º n.º 1 alínea b), ambos do Código Penal. De acordo com a acusação deduzida “o arguido agiu livre e conscientemente sabendo que com a sua conduta ofendia o assistente na honra e consideração que lhe são devidas e querendo atingir esse resultado, como efetivamente logrou”. Importa, atento o disposto no art. 311.º n.º 1, 2 alínea a) e 3 aferir se existe algum obstáculo ao prosseguimento dos autos. Nos termos dos referidos preceitos: “1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer. 2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente. 3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) Quando não contenha a identificação do arguido; b) Quando não contenha a narração dos factos; c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) Se os factos não constituírem crime.” De acordo com a escola finalista no âmbito da teoria geral da infração criminal, e que da qual resulta a forma como a nossa lei penal configura o crime, este consubstancia um comportamento humano voluntário, típico, ilícito, culposo e punível. Nesta senda, a ação é definida pela forma como o agente utiliza o seu conhecimento do mundo objetivo, o que não pode dispensar um elemento subjetivo, isto é, a finalidade da prática desta mesma ação que pode ser traduzida na relação entre o agente com o seu facto, objetivamente considerado. A ação penalmente relevante é, assim, a ação típica, nos seus elementos objetivos e subjetivos (art. 1.º n.º 1 do Código Penal). A ilicitude acentua o desvalor da ação, isto é, consubstancia “um juízo valorativo sobre a falta de preparação de uma pessoa para se comportar de acordo com os valores defendidos numa certa ordem jurídica” (Teresa Pizarro Beleza in Direito Penal, Vol II, pág. 81). A culpa tem por escopo um elemento de imputabilidade e de consciência do ilícito, na medida em que se trata de aferir da relação entre o agente e a ilicitude do seu facto e pressupõe a análise de dois elementos: conhecimento quanto à licitude do seu facto e liberdade de determinação de acordo com esse conhecimento. Aqui chegados, os factos apenas constituem crime se reunirem todos os elementos da classificação quadripartida do ilícito criminal e a que supra se aludiu: tipicidade, ilicitude, culpa e punibilidade. A necessidade de descrição de todos os elementos definidos supra definidos na acusação foi já objeto de uniformização de jurisprudência, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1/2015, de 27.01, onde se fixou jurisprudência nos seguintes termos: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente nos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.” Subsumindo a doutrina e jurisprudência à acusação deduzida contra o arguido, constata-se que este articulado é omisso num dos seus elementos estruturantes: a culpa. Não é, em qualquer momento, invocando que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. Os factos descritos não consubstanciam, assim, qualquer ilícito criminal pelo que a acusação é manifestamente infundada. Assim, ao abrigo do disposto no art. 311.º n.º 2 alínea a) e 3 alínea d) do Código de Processo Penal, o tribunal decide rejeitar a acusação particular deduzida pelo assistente contra o arguido. Custas a cargo do assistente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (art. 515.º n.º 1 alínea f) do Código de Processo Penal e 8.º n.º 9 do RCP). * Do pedido de indemnização cível: Considerando a rejeição da acusação, nos termos do despacho que antecede, e atento o disposto no art. 71.º do Código de Processo Penal, o tribunal não admite o pedido de indemnização civil formulado pelo assistente contra o arguido. Custas a cargo do assistente (art. 523.º do Código de Processo Penal e 527.º do Código de Processo Civil). Notifique». Inconformado com o despacho proferido, o assistente AA interpôs dele recurso, devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões: B1. O presente recurso versa o despacho proferido pelo Tribunal a quo que rejeitou a acusação particular deduzida pelo assistente, aqui recorrente, e consequentemente não admitiu o pedido de indemnização civil. B2. Desde logo, na acusação particular foram enunciados todos os factos atinentes quer ao elemento objectivo do tipo – Durante as sessões de julgamento, inopinadamente e sem que nada o fizesse prever, o arguido, dirigindo-se à pessoa do assistente, apelidou-o de “psicopata”. Tal expressão foi proferida em voz alta e na presença de todos os presentes na sala de audiências – designadamente o M.mo Juiz, Digníssimo Senhor Procurador, Ils. Mandatários das partes, Ex.ma Senhora Funcionária, terceiros que se encontram a assistir à audiência e a própria companheira – na entrada do Tribunal e na sala de testemunhas. Tal expressão foi ouvida por todos aqueles que se encontravam na sala de audiências do Tribunal, na entrada do Tribunal e na sala de testemunhas. (…)Durante as sessões de julgamento, inopinadamente e sem que nada o fizesse prever, o aqui arguido, dirigindo-se à pessoa do aqui assistente apelidou-o de “psicopata”. Tal expressão foi proferida em voz alta e na presença de todos os presentes na sala de audiências – designadamente o M.mo Juiz, Digníssimo Senhor Procurador, Ils. Mandatários das partes, Ex.ma Senhora Funcionária, terceiros que se encontram a assistir à audiência e a própria companheira – na entrada do Tribunal e na sala de testemunhas. Tal expressão foi ouvida por todos aqueles que se encontravam na sala de audiências do Tribunal – designadamente o M.mo Juiz, Digníssimo Senhor Procurador, Ils. Mandatários das partes, Ex.ma Senhora Funcionária, terceiros que se encontram a assistir à audiência e a própria companheira –, na entrada do Tribunal e na sala de testemunhas (…) – quer aqueles atinentes ao elemento subjectivo do tipo – o arguido não hesitou em dirigir palavras ofensivas à honra do assistente construindo dela uma imagem absolutamente deturpada e que não corresponde à realidade, como bem sabe.(…) O arguido foi já condenado, por decisão transitada em julgado, pelo menos uma vez, em processo de idêntica natureza a este (Proc. ---/12.2TASSB) Acresce referir que o arguido agiu livre e conscientemente sabendo que com a sua conduta ofendia o assistente na honra e consideração que lhe são devidas e querendo atingir esse resultado, como efectivamente logrou. B3. Ademais, resulta ainda do teor da acusação particular que o arguido tinha perfeita consciência da ilicitude do seu comportamento, até porque já foi condenado em processo de idêntica natureza, em processo que cursou nesta comarca de Setúbal com o n.º ---/12.2TASSB. Ad cautelam B4. No nosso ordenamento jurídico (vide art. 14º e 17º, ambos do CP), o conhecimento da ilicitude não integra o dolo do tipo mas antes a culpa (e, como assente, dolo do tipo e dolo da culpa não se confundem). B5. No caso em apreço estamos perante uma acusação particular que assaca ao arguido a prática de dois crimes de difamação com calúnia p. e p. pelos artigos 180º-1 e 183º-1, b), ambos do CP, B6. Crimes dolosos, para os quais não se exige um qualquer dolo em especial. B7. No que atine aos so called “crimes em si”, tais quais aqueles de difamação e injúrias, a consciência da ilicitude não tem de ser alegada e provada, dado que o comum dos cidadãos não ignora que é proibido imputar, directa ou indirectamente, factos ou juízos desonrosos a outrem (tanto mais que no caso dos autos, o arguido já foi condenado por crime de natureza idêntica). B8. Por outra banda, como já se disse, os os elementos objectivos e subjectivos do tipo em questão estão perfeitamente indicados na acusação particular, pelo que nunca a mesma deveria ter sido rejeitada. B9. Destarte, violou o despacho recorrido o disposto nos artigos 14º CP e 17º ambos do CP e 311º e 71º, ambos do CPP pelo que deve o mesmo ser revogado e substituído por outro que receba a acusação e o pedido de indemnização civil e ordene o prosseguimento dos autos. Termos em que na procedência do presente recurso, deve a decisão recorrida ser revogada com as legais consequências. O recurso interposto foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, e efeito devolutivo. O MP e o arguido BB responderam, em peças separadas, à motivação do recorrente, formulando, cada um, as seguintes conclusões: MP 1.ª- O recurso interposto pelo assistente/recorrente não tem fundamento e deve ser negado provimento ao mesmo. 2.ª- É inquestionável que, no articulado que o assistente apresentou nos autos como acusação particular, não foi expressa, nem claramente, invocado que “o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal”, pelo que, nitidamente, a acusação particular deduzida pelo assistente foi omissa num dos seus elementos estruturantes: a culpa. 3.ª- O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015, de 20 de Novembro de 2014, (DR 18, série I, de 27 de Janeiro de 2015) fixou a seguinte jurisprudência: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal». 4.ª- O acórdão de fixação de jurisprudência considerou que o tribunal de julgamento não pode deduzir por extrapolação dos factos relativos ao tipo objectivo os factos pertinentes para o preenchimento do tipo subjectivo, se omissos na acusação. Tão pouco pode integrá-los com recurso ao mecanismo do artigo 358º do CPP, dado a adição de factos constitutivos do crime não constitui uma alteração não substancial da acusação. 5.ª- Igualmente não pode aditá-los com recurso ao mecanismo do artigo 359º do CPP, pois sendo tais factos omissos, não se trata da imputação de um crime diverso mas da imputação de um crime onde antes não o havia. 6.ª- Como tal, a acusação deve conter a descrição precisa dos factos da vida real que correspondem aos elementos constitutivos do tipo, tanto os do tipo objectivo como os do tipo subjectivo de ilícito. 7.ª- Os primeiros definem o conteúdo ou objecto da acção típica; os segundos a relação psicológica do agente com essa acção. Os elementos subjectivos – continua o acórdão de fixação de jurisprudência – são o dolo ou a negligência, isto é, o conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito, que contêm um elemento intelectual – o conhecimento: previsão ou representação – e um elemento volitivo – vontade de actuação livre (querendo realizar o facto), consciente (representando as circunstâncias do facto) e ciente da proibição (consciência da ilicitude). 8.ª- Ou seja, faltando a indicação de um destes elementos na acusação particular a mesma deverá considerar-se omissa e deverá ser rejeitada por não conter a indicação de todos os factos constitutivos do crime. 9.ª- Pelo exposto, deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo assistente, Fazendo-se assim… Justiça. BB I. O presente Recurso visa apurar se a Acusação Particular é ou não omissa quanto à descrição dos factos que permitam integrar os elementos subjetivos do crime de difamação, pois uma vez que o Douto Despacho do Tribunal "a quo " considerou que se verifica tal omissão, concluiu pela rejeição da acusação por manifestamente infundada, ao abrigo da alínea a) do n.º 2 e alínea d) do n.º 3 do artigo 311.º do Código do Processo Penal, doravante CPP. II. A Acusação Particular limita-se a referir que "o arguido agiu livre e conscientemente sabendo que com a sua conduta ofendia o assistente na honre e consideração que lhe são devidas e querendo atingir esse resultado, como efetivamente logrou". III. Entende o Recorrido que o Douto Despacho proferido pelo Tribunal "a quo" não merece qualquer censura, pois a argumentação de que lançou mão se revela clara, inequívoca e conforme a melhor interpretação legal, uma vez que o ora Recorrente não indicou a existência por parte do arguido de um eventual elemento de ciência e vontade nas condutas que lhe são imputadas que fosse contrário à lei penal e punido por esta. IV. O Recorrente ~ além de assumir que não fez menção expressa na sua Acusação a esse elemento de ciência e vontade - limita-se a assentar a sua argumentação na suposta materialidade da conduta, para o qual bastaria a mera narração dos factos materiais para fazer presumir que o arguido sabia da pretensa ilicitude e punibilidade da conduta. V. O entendimento do Recorrente traduz-se numa presunção de dolo que é hoje inadmissível, como bem decidiu o Acórdâo do Tribunal da Relação de Évora de 01/03/2005 (processo 2/05-1; Relator: F. Ribeiro Cardoso; in dgsi.pt): "7. A ideia de um «dolus in re ipse», que sem mais resultaria da simples materialidade da infracção, é hoje indefensável no direito penal. A moderna tendência para a personalização do direito penal não se compadece com uma estrita indagação da culpa dentro dos férreos moldes das antigas presunções de dolo - cf Prof Figueiredo Dias, Revista de Legislação e Jurisprudência, 105, p. 142". VI. Estamos perante um alegado crime de difamação, pelo que se trata de um crime doloso, não sendo punível a título de negligência; sendo certo que a noção de dolo que nos é dada pelo n.º 1 do artigo 14.º do Código Penal, nos diz que age com dolo quem., representando um facto que preenche um tipo de crime, actua com intenção de o realizar; constando a vontade dolosa de dois momentos segundo o Prof. Germano Marques da Silva: "a) a representação ou visão antecipada do facto que preenche um tipo de crime (elemento intelectual ou cognoscitivo); e b) a resolução, seguida de um esforço do querer no sentido à realização do facto representado (elemento volitivo). Ainda segundo o mesmo Prof., na obra citada, não basta o conhecimento de que o facto preenche um tipo de crime, sendo necessária a própria consciência da ilicitude, pois nos expressos termos do art. 16.º, a falta de consciência da ilicitude exclui o dolo. No mesmo sentido aponta o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, tomo 1, págs. 332 e 333. "(Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19/10/2005 - Processo 0541390; Relator Pinto Monteiro; in dgsi.pt). VII. Logo, faltando a alegação daqueles elementos a acusação, a Jurisprudência tem sido clara nas suas decisões, seguindo o Douto Despacho do Tribunal "a quo" o bom umo dos seguintes Acórdãos: Tribunal da Relação do Porto de 19/10/2005 já citado (processo 0541390; Relator Pinto Monteiro); Tribunal da Relação do Porto de 10/01/2007 (Processo 0645768; Relator Pinto Monteiro), Tribunal da Relação do Porto, também de 10/01/2007 (Processo 0645369; Relator Jorge Jacob), Tribunal da Relação do Porto de 10/07/2013 (processo 327/10.3PGVNG.P1 Relatora: Maria Leonor Esteves), todos em dgsi.pt. VITI. Cabe aqui destacar um que acompanhamos de muito perto, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/06/2017 (Processo 430/15.3GEG0,IR.Gl; Relator Jorge Bispo; in dgsi.pt), em que de forma inequivocamente clara se diz que a alegação de que a pretensa conduta do Arguido era proibida e punida pela lei penal não é um mero pró-forma, não é inócua, nem desnecessária, traduz - isso sim - a descrição de um dos elementos do tipo subjectivo, o "dolo da culpa, o qual, de acordo com as modernas conceções dogmáticas da teoria do crime, defendidas entre nós por Figueiredo Dias, constitui uma categoria autónoma, relativamente ao dolo do tipo", pelo que, faltando a alegação dos elementos integrantes da consciência da ilicitude, a acusação particular deduzida não contém a descrição dos factos integrantes da totalidade dos elementos subjetivos do tipo, necessária à verificação do crime imputado. IX. E uma vez que tais elementos em falta não poderão vir a ser aditados em julgamento (vide Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal dc Justiça nº 1/2015 (Diário da República, nº 18/2015, Série I de 2015-01-27), não restava outra solução a Meritíssima Juiz do Tribunal "a quo" que não fosse considerar a acusação particular manifestamente infundada e rejeitá-la, como fez e bem. Nestes termos e nos mais de Direito se requer, com os fundamentos constantes das Conclusões formuladas, a improcedência do presente Recurso e, consequentemente, seja o Douto Despacho do Tribunal "a quo" integralmente mantido, fazendo-se sã, serena e objectiva JUSTIÇA. Pelo Digno Procurador-Geral Adjunto em funções junto desta Relação foi emitido parecer sobre o mérito recurso, pugnando pela respectiva improcedência. O parecer emitido foi notificado aos sujeitos processuais, a fim de se pronunciarem, os quais não fizeram uso desse direito. Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência. II. Fundamentação Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra. A sindicância da decisão recorrida, que transparece das conclusões da recorrente, centra-se na reversão do juízo de rejeição que recaiu sobre a acusação particular o despacho impugnado, com base, sinteticamente, nas seguintes asserções: a) Resulta do teor da acusação particular que o arguido tinha perfeita consciência da ilicitude do seu comportamento; b) A alegação do facto integrador da consciência da ilicitude não é requisito essencial ao recebimento do libelo acusatório, tendo em atenção o tipo de crimes imputados. Alega o recorrente que o despacho em crise violou as disposições dos arts. 14º e 17º do CP e dos arts. 311º e 71º do CPP. O art. 14º do CP define as diferentes modalidades do dolo, para efeitos criminais: 1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar. 2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta. 3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização. O art. 17º do CP dispõe sobre a relevância do erro sobre a ilicitude: 1 - Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável. 2 - Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada. O art. 311º do CPP mostra-se integralmente transcrito no texto do despacho sob recurso, o qual, por sua vez, transcrevemos no relatório do presente acórdão, pelo que nos limitaremos, por economia de exposição, a dá-lo por totalmente reproduzido. Finalmente, o art. 71º do CP consagra o princípio da adesão à acção penal do pedido de indemnização civil por danos emergentes da prática de crimes e foi referido no despacho recorrido apenas para tornar extensivos ao pedido indemnizatório deduzido pelo assistente, em conexão com a acusação particular, os efeitos da rejeição desta, pelo que é irrelevante para a questão que agora nos cumpre dirimir. Para melhor compreensão, passamos a reproduzir os factos descritos na acusação particular, rejeitada pelo despacho recorrido: «Porquanto, indiciam suficientemente os autos que: No dia 19 de Junho de 2015, pelas 14:30, no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Sesimbra, Instância Local, Secção de Competência Genérica, sito na Rua Navegador Rodrigues Soromenho, Ed. Falésia 81 K. na cidade de Sesimbra, teve lugar o início da audiência de discussão e julgamento no âmbito do processo crime n.º ---/12.2TASSB. A referida diligência prolongou-se por várias sessões, designadamente nos dias 03.07.2015, 02.09.2015 e 22.09.2015. Nos referidos autos era arguido o aqui arguido e assistente CC. A predita CC é companheiro do aqui assistente. O assistente foi arrolado nos referidos autos como testemunha. Durante as sessões de julgamento, inopinadamente e sem que nada o fizesse prever, o arguido, dirigindo-se à pessoa do assistente, apelidou-o de "psicopata" . Tal expressão foi proferida em voz alta e na presença de todos os presentes na sala de audiências - designadamente o M.mo Juiz, Digníssimo Senhor Procurador, Ils. Mandatários das partes, Ex.ma Senhora Funcionária, terceiros que se encontram a assistir à audiência e a própria companheira - na entrada do Tribunal e na sala de testemunhas. Tal expressão foi ouvida por todos aqueles que se encontravam na sala de audiências do Tribunal, na entrada do Tribunal e na sala de testemunhas. Por outro lado, No dia 30 de Setembro de 2015, pelas 14:30, no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Maia, Instância Local, Secção Criminal, J1, sito na Praça Dr José Vieira de Carvalho, na cidade da Maia, teve lugar o início da audiência de discussão e julgamento no âmbito do processo-crime n.º ---/13.8TACBR. A referida diligência prolongou-se por várias sessões, designadamente nos dias 16.10.2015 e 23.10.2015. Nos referidos autos era arguido o aqui assistente e assistentes o aqui arguido e a sociedade comercial por quotas "EE. Durante as sessões de julgamento, inopinadamente e sem que nada o fizesse prever, o aqui arguido, dirigindo-se à pessoa do aqui assistente apelidou-o de “psicopata". Tal expressão foi proferida em voz alta e na presença de todos os presentes na sala de audiências - designadamente o M.mo Juiz, Digníssimo Senhor Procurador, 115. Mandatários das partes. Ex.ma Senhora Funcionária, terceiros que se encontram a assistir à audiência e a própria companheira - na entrada do Tribunal e na sala de testemunhas. Tal expressão foi ouvida por todos aqueles que se encontravam na sala de audiências do Tribunal- designadamente o M.mo Juiz, Digníssimo Senhor Procurador, IIs. Mandatários das partes, Exmª Senhora Funcionária, terceiros que se encontram a assistir à audiência e a própria companheira -, na entrada do Tribunal e na sala de testemunhas. Como é patente das condutas supra explanadas, o arguido não hesitou em dirigir palavras ofensivas à honra do assistente construindo dela uma imagem absolutamente deturpada e que não corresponde à realidade, como bem sabe. Tais expressões em muito chocaram e chocam o assistente, o qual sempre pautou o seu comportamento social por valores como a integridade e a honradez. Mais a mais porque proferidas no âmbito de processos públicos, perante os Senhores Magistrados, Advogados, funcionários judiciais, público e, nomeadamente, a sua companheira. O arguido foi já condenado, por decisão transitada em julgado, pelo menos uma vez, em processo de idêntica natureza a este (proc. ---/12.2TASSB) Acresce referir que o arguido agiu livre e conscientemente sabendo que com a sua conduta ofendia o assistente na honra e consideração que lhe são devidas e querendo atingir esse resultado, como efectivamente logrou. Com as referidas atitudes, mostra-se o arguido incurso na comissão de dois crimes de difamação com calúnia p. e p. no art. 180º, n.º 1 e 183°, n.º 1, al. b), ambos do C.P. Seguidamente, transcrevemos as normas do CP que tipificam e agravam qualificativamente os crimes imputados ao arguido pelo libelo acusatório particular: - Nº 1 do art. 180º Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias. - Nº 1 do art. 183º Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 182.º: a) (…); ou, b) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação; as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo. O despacho sob recurso rejeitou a acusação deduzida pelo assistente com o único fundamento de a mesma ser omissa quanto um dos elementos estruturantes dos crimes imputados, a saber a culpa, por não conter alegação de que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal, sendo certo que, de acordo com a jurisprudência consagrada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015, os elementos em falta não poderão ser supridos por meio do mecanismo previsto no art. 358º do CPP. Confrontado o teor do libelo acusatório, verifica-se que o mesmo não contém a alegação do facto integrador da chamada consciência da ilicitude, concretizado o mais das vezes na afirmação de que o arguido «sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal», não podendo ter-se por equivalente, conforme pretendido pelo assistente em sede de recurso, a referência feita a que o arguido foi já condenado, por sentença transitada em julgado, pelo menos uma vez, em processo de natureza idêntica à deste. O despacho sob recurso assenta numa orientação interpretativa, que vem sendo consagrada em alguma jurisprudência dos Tribunais da Relação, mormente nos Acórdãos citados nos pontos VI, VII e VIII das conclusões da resposta do arguido à motivação do recorrente, e que entende a consciência da ilicitude como um pressuposto subjectivo da responsabilidade criminal, consubstanciando o chamado «dolo da culpa», que constitui uma categoria autónoma em relação ao «dolo do tipo». Contudo, o Colectivo de Juízes que subscreve o presente acórdão tem sufragado uma interpretação que entendemos mais próxima da letra do normativo do art. 17º do CP e que não contraria, quanto a nós, o seu espírito, como sucedeu, por exemplo no Acórdão desta Relação de Évora, datado de 10/1/2017 e proferido no processo nº 20/16.3PTFAR.E1 (disponível em www.dgsi.pt). Segundo a orientação por nós perfilhada, a consciência da ilicitude não é elemento constitutivo dos tipos criminais definidos pela lei penal, perante o normativo interpretando. Pelo contrário, é a inconsciência da ilicitude que, em certas circunstâncias que revelem que a mesma não pode ser censurada ao agente, pode excluir a culpa e, por essa via, a responsabilidade criminal. Por conseguinte, para que o agente fique livre de punição, ao abrigo do disposto no art. 17º do CP, não basta que não fique provado o facto integrador da consciência da ilicitude, mas antes se torna necessária a prova afirmativa do facto que integre a inconsciência desta realidade jurídica. De todo o modo, tendo em atenção o contexto processual em ocorreu a prolação da decisão recorrida, isto é um despacho proferido nos termos do art. 311º do CPP, a receber ou a rejeitar a acusação, somos de entender que não se justifica proceder no presente acórdão a uma discussão aprofundada dos méritos e deméritos das duas orientações interpretativas em confronto, aquela em se baseou o despacho em crise e a que vem sendo adoptada por este Colectivo. Socorremo-nos aqui também da posição por nós assumida no Acórdão da Relação de Évora de 18/11/2014, proferido no processo nº 596/07.6TASTB-A.E1 e subscrito pelo mesmo Colectivo de Juízes (igualmente disponível em www.dgsi.pt), cuja fundamentação iremos seguir de perto. O agora identificado Aresto recaiu igualmente sobre um recurso interposto de um despacho judicial que, nos termos do art. 311º nºs 2 al. a) e 3 al. d) do CPP, rejeitou (no caso, parcialmente) a acusação, com fundamento em que os factos nela descritos não constituem crime. Na fundamentação do mesmo Acórdão, exprimimos o entendimento segundo o qual o Juiz, a quem incumba proferir o despacho de recebimento ou rejeição da acusação, apenas deve lançar mão do aludido poder de rejeição nas situações em que seja patente a inaptidão dos factos descritos nesta peça processual para preencher a tipicidade da norma incriminadora, em qualquer interpretação plausível desta, pois só nessa hipótese a sujeição do arguido a julgamento público seria susceptível de redundar num vexame inútil sem sentido. Nos casos que se afigurem duvidosos ou «de fronteira», o Juiz deve optar por viabilizar o prosseguimento dos termos do processo, quanto mais não seja porque o ulterior debate sobre a vertente jurídica da causa poderá proporcionar um melhor enfoque da questão ou mesmo a deliberação do Tribunal Colectivo, quando o julgamento tenha que decorrer perante um órgão judicial com essa composição, o que não sucede no caso presente, já para não falar da eventualidade de o Magistrado, a quem couber decidir do recebimento ou rejeição da acusação, vir a ser colocado em minoria, dentro do Colectivo de Juízes. Dado que não é líquida a questão, que esteve na origem da rejeição da acusação pelo despacho recorrido, deveria a Exª Juiz «a quo», de acordo com o critério que adoptámos, ter proferido decisão de recebimento do libelo acusatório, porquanto os factos nele descritos são idóneos a preencher não só os elementos objectivos da tipicidade dos crimes imputados, mas também os da sua tipicidade subjectiva, relativos àquilo que os seguidores da orientação subjacente ao despacho em crise denominam «dolo do tipo». Assim sendo, terá o recurso de proceder. III. Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e revogar o despacho recorrido, determinando a sua substituição por outro que decida: a) Receber a acusação particular deduzida a fls. 292 e seguintes, pelo assistente AA contra o arguido BB, pelos factos nela descritos e com a qualificação jurídica dela constante, acompanhada pelo MP a fls. 370, quanto aos factos e parcialmente quanto à qualificação jurídica; b) Determinar o normal prosseguimento dos termos da acção penal e do pedido de indemnização civil a ela associado. Sem custas. Notifique. Évora, 26/6/18 (processado e revisto pelo relator) (Sérgio Bruno Povoas Corvacho) (João Manuel Monteiro Amaro) |