Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
669/22.5T8ELV-A.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
DISPENSA
VERDADE OBJECTIVA
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: É de admitir o levantamento do segredo profissional sempre que tal se mostre justificado, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do meio de prova em causa para a descoberta da verdade.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 669/22.5T8ELV-A.E1
Juízo Local Cível de Elvas
Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório
O presente incidente de levantamento do sigilo bancário foi suscitado no âmbito da ação declarativa, com processo comum, que Banco (…), S.A. move contra (…) e (…)[1], através da qual pretende obter a condenação dos réus no pagamento da quantia de € 14.555,60, acrescida de juros vencidos e vincendos, até efetivo e integral pagamento.
A fundamentar a pretensão, alega que concedeu aos réus um empréstimo no montante de € 14.954,55, conforme contrato de concessão de crédito pessoal subscrito em 26-03-2020, a que foi atribuído o número (…), através do qual se comprometeram os réus a reembolsar o aludido montante ao autor, acrescido de juros e encargos, em 84 prestações mensais no valor de € 243,27, obrigação que não cumpriram, o que determinou a resolução do contrato operada, no contexto descrito na petição inicial, pelo autor, com fundamento em cumprimento definitivo imputável aos réus, como tudo melhor consta do indicado articulado.
Citados, os réus afirmam não se recordarem de ter celebrado o contrato invocado pelo autor, defendendo-se, além do mais, por impugnação.
O autor apresentou articulado no qual, além do mais, requereu que, mediante consentimento prévio dos réus, se solicitasse informação à Caixa Geral de Depósitos, S.A. sobre se, em 07-04-2020, foi transferido para a sua conta ali sedeada, com o IBAN PT50 (…), um montante de € 3.459,30 e se os montantes identificados no extrato junto sob doc. n.º 2 com a petição inicial foram debitados na referida conta.
Notificados para o efeito, os réus recusaram conceder autorização para a prestação da pretendida informação bancária.
Em cumprimento de despacho de 06-03-2023, foi a Caixa Geral de Depósitos, S.A. notificada para prestar a informação requerida pelo autor, tendo-lhe sido comunicado que os réus não autorizaram que tal informação fosse prestada.
A instituição bancária recusou prestar a informação solicitada, invocando o dever de sigilo bancário previsto no artigo 78.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (aprovado pelo DL n.º 289/92, de 31-12).
A autora reiterou o seu interesse na prestação da informação solicitada, pugnando pela dispensa do invocado sigilo bancário.
Por despacho de 19-12-2023, considerou-se legítima a recusa, por se ter entendido encontrar-se a informação solicitada abrangida pelo sigilo bancário, e afirmou-se que a obtenção dos elementos em causa se mostra essencial, na sequência do que se suscitou a intervenção deste Tribunal da Relação, através do presente incidente de levantamento de segredo profissional.

2. Pressupostos processuais
Este Tribunal da Relação é o competente para a apreciação e decisão do incidente de levantamento de sigilo bancário.
Não existem nulidades, exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer, nada obstando à apreciação do mérito da causa.

3. Fundamentos
3.1. Fundamentos de facto
Com interesse para a apreciação da questão suscitada, extraem-se dos autos, além dos elementos que constam do relatório supra, ainda os seguintes:
a) por despacho de 12-02-2023 procedeu-se, além do mais, à identificação do objeto do litígio e à enunciação dos temas da prova;
b) o objeto do litígio foi identificado nos termos seguintes:
A) Da existência e (in) validade do negócio alegado pelo Autor na petição inicial.
B) Concluindo-se pela afirmativa, da exigibilidade da quantia peticionada pelo Autor nos presentes autos e da responsabilidade dos Réus pelo seu pagamento.
c) foram enunciados os temas da prova seguintes:
1) Apurar se, em que concretas circunstâncias de tempo, lugar e modo e mediante que condições foi celebrado o negócio alegado na petição inicial, designadamente por que forma os Réus o aceitaram.
2) Apurar se os Réus assinaram, pelo seu próprio punho, o documento junto com a petição inicial sob Doc. n.º 1.
3) Apurar se o Autor facultou aos Réus um exemplar do documento junto com a petição inicial sob Doc. n.º 1.
4) Apurar se os Réus receberam as comunicações juntas sob Doc. n.º 3 e Doc. n.º 4 com a petição inicial e, em caso afirmativo, em que data.

3.2. Fundamentos de direito
Está em causa, no presente incidente, apreciar se deve ser determinado o levantamento do sigilo bancário invocado pela Caixa Geral de Depósitos, S.A., como fundamento da recusa na prestação das informações solicitadas pelo Tribunal de 1.ª instância.
Com a epígrafe Dever de cooperação para a descoberta da verdade, dispõe o n.º 1 do artigo 417.º do Código de Processo Civil o seguinte: Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados. Prevê o n.º 2 do indicado preceito, além do mais, a condenação em multa daqueles que recusem a colaboração devida. Acrescenta o n.º 3, por seu turno, que a recusa é, porém, legítima se a obediência importar, entre outras situações, a prevista na alínea c): a violação do sigilo profissional. Esclarece o n.º 4 que, deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
Como tal, deduzida a escusa com fundamento na violação do sigilo profissional, cumpre atender, por força do estatuído no n.º 4 do citado artigo 417.º, ao disposto no artigo 135.º do Código de Processo Penal, designadamente às normas constantes dos seus n.ºs 2 e 3, com a redação seguinte: 2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. 3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
O Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2008, datado de 13-02-2008 – publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 63 (31-03-2008) –, fixou a seguinte jurisprudência: 1) Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário; 2) Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal; 3) Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.
Extrai-se da análise deste regime, e conforme decorre do citado AUJ, que compete ao tribunal perante o qual a escusa, com fundamento na violação do sigilo profissional, for invocada, apreciar a legitimidade da recusa, averiguando da existência de sigilo. De seguida, caso conclua pela inexistência de sigilo e, assim, pela ilegitimidade da escusa, compete-lhe ordenar a prestação da informação; se, pelo contrário, considerar legítima a recusa, por se encontrar a informação abrangida pelo dever de sigilo, haverá lugar ao incidente de quebra de segredo profissional.
No caso presente, o Tribunal de 1.ª instância considerou legítima a recusa e pronunciou-se no sentido de se mostrar a informação solicitada necessária ao esclarecimento dos factos em discussão nos autos.
Cumpre decidir se deve ser levantado o sigilo bancário.
O Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31-12[2], prevê, nos diversos capítulos do título VI, um conjunto de regras de conduta que devem guiar a atuação das instituições de crédito, seus administradores e empregados nas relações com os clientes. Assim, conforme esclarece o preâmbulo do diploma, enquanto no capítulo I são definidos os deveres gerais da conduta a observar pelas instituições de crédito e seus representantes, nos capítulos seguintes referem-se grupos específicos de normas de conduta, designadamente as relacionadas com o segredo profissional.
Sob a epígrafe Dever de segredo, artigo 78.º (na redação emergente do DL n.º 157/2014, de 24-10) dispõe, no seu n.º 1, que os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços; esclarece o n.º 2 do preceito que estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.
O artigo 79.º, por seu turno, estabelece determinadas exceções ao aludido dever de segredo, assumindo relevo, atenta a natureza cível do caso presente, a estatuída na alínea g) do n.º 2, ao permitir que os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo sejam revelados quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.
Ora, decorre do disposto no citado artigo 135.º do CPP, ao qual cumpre atender por força do n.º 4 no artigo 417.º do CPC, que é de admitir o levantamento do segredo profissional sempre que tal se mostre justificado, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do meio de prova em causa para a descoberta da verdade[3].
Como tal, há que averiguar se, no caso presente, o dever de sigilo bancário prevalece sobre o dever de cooperação das entidades bancárias com os tribunais, no que respeita à prestação de informação sobre se, em 07-04-2020, foi transferido para determinada conta da titularidade dos réus, sedeada na Caixa Geral de Depósitos, S.A., a que corresponde o IBAN PT50 (…), o montante de € 3.459,30, bem como se os montantes identificados no extrato junto sob doc. n.º 2 com a petição inicial foram debitados na referida conta.
No que respeita aos interesses em causa, esclarece o supra citado AUJ que o segredo bancário pretende salvaguardar uma dupla ordem de interesses: “Por um lado, de ordem pública: o regular funcionamento da actividade bancária, baseada num clima generalizado de confiança, sendo o segredo um elemento decisivo para a criação desse clima de confiança, e indirectamente para o bom funcionamento da economia, já que o sistema de crédito, na dupla função de captação de aforro e financiamento do investimento, constitui, segundo o modelo económico adoptado, um pilar do desenvolvimento e do crescimento dos recursos. Por outro lado, o segredo visa também a protecção dos interesses dos clientes da banca, para quem o segredo constitui a defesa da discrição da sua vida privada, tendo em conta a relevância que a utilização de contas bancárias assume na vida moderna, em termos de reflectir aproximadamente a “biografia” de cada sujeito, de forma que o direito ao sigilo bancário se pode ancorar no direito à reserva da intimidade da vida privada, previsto no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa”.
Acrescenta o citado aresto que “esse direito ao sigilo, embora com cobertura constitucional, não é um direito absoluto, até porque, pela sua referência à esfera patrimonial, não se inclui no círculo mais íntimo da vida privada das pessoas, embora com ele possa manter relação estreita. Pode, pois, ter que ceder perante outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, cuja tutela imponha o acesso a informações cobertas pelo segredo bancário”.
Está em causa, na presente ação, averiguar se o contrato bancário identificado nos autos foi outorgado pelas partes e se se verificou a concessão do empréstimo invocado pelo autor, sendo certo que os réus não deram autorização para a prestação dessas informações pela instituição bancária a solicitação do Tribunal.
Considerando que a invocada celebração do contrato e concessão do empréstimo constitui matéria relevante para a apreciação do objeto da presente ação, integradora da respetiva causa de pedir, e tendo em conta que se encontra controvertida, face à defesa por impugnação apresentada, cumpre concluir que as informações solicitadas à entidade bancária se mostram imprescindíveis para a descoberta da verdade, não se vislumbrando outro meio, com força probatória bastante, que permita demonstrar os factos em causa.
Acresce que os elementos solicitados não excedem o estritamente necessário, estando em causa o direito de acesso à justiça e à tutela efetiva que o mesmo pretende acautelar, nos termos consagrados no artigo 20.º, n.º 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
Nesta conformidade, considerando que a informação pretendida pelo autor se mostra necessária e imprescindível ao esclarecimento de factos integradores de causa de pedir da presente ação, verifica-se que o interesse da descoberta da verdade, através da cooperação da aludida entidade bancária com os tribunais, prevalece sobre o dever de sigilo bancário, assim devendo ser determinado o levantamento do sigilo bancário, com vista à prestação pela indicada entidade bancária das informações solicitadas.

4. Decisão
Nestes termos, acorda-se em julgar procedente o incidente, em consequência do que se ordena o levantamento do segredo bancário, devendo a Caixa Geral de Depósitos, S.A. prestar as informações solicitadas pelo Juízo Local Cível de Elvas.
Custas pelo vencido a final.
Notifique.
*

Évora, 25-01-2024
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
(Relatora)
Rui Machado e Moura
(1.º Adjunto)
Anabela Luna de Carvalho
(2.ª Adjunta)
__________________________________________________
[1] O autor, entretanto, desistiu do pedido formulado quanto à ré, desistência que foi homologada por decisão de 19-11-2023
[2] Entretanto alterado pelos diplomas seguintes: DL n.º 246/95, de 14-11, DL n.º 232/96, de 05-12, Rectif. n.º 4-E/97, de 31-01, DL n.º 222/99, de 22-06, DL n.º 250/2000, de 13-10, DL n.º 285/2001, de 03-11, DL n.º 201/2002, de 26-09, DL n.º 319/2002, de 28-12, DL n.º 252/2003, de 17-10, DL n.º 145/2006, de 31-07, DL n.º 104/2007, de 03-04, DL n.º 357-A/2007, de 31-10, Rectif. n.º 117-A/2007, de 28-12, DL n.º 1/2008, de 03-01, DL n.º 126/2008, de 21-07, DL n.º 211-A/2008, de 03-11, Lei n.º 28/2009, de 19-06, DL n.º 162/2009, de 20-07, Lei n.º 94/2009, de 01-09, DL n.º 317/2009, de 30-10, DL n.º 52/2010, de 26-05, DL n.º 71/2010, de 18-06, Lei n.º 36/2010, de 02-09, DL n.º 140-A/2010, de 30-12, Lei n.º 46/2011, de 24-06, DL n.º 88/2011, de 20-07, DL n.º 119/2011, de 26-12, DL n.º 31-A/2012, de 10-02, DL n.º 242/2012, de 07-11, Lei n.º 64/2012, de 20-12, DL n.º 18/2013, de 06-02, DL n.º 63-A/2013, de 10-05, DL n.º 114-A/2014, de 01-08, DL n.º 114-B/2014, de 04-08, DL n.º 157/2014, de 24-10, Lei n.º 16/2015, de 24-02, Lei n.º 23-A/2015, de 26-03, DL n.º 89/2015, de 29-05, Lei n.º 66/2015, de 06-07, DL n.º 140/2015, de 31-07, Lei n.º 118/2015, de 31-08, DL n.º 190/2015, de 10-09, DL n.º 20/2016, de 20-04, Lei n.º 16/2017, de 03-05, Lei n.º 30/2017, de 30-05, DL n.º 107/2017, de 30-08, e Lei n.º 109/2017, de 24-11.
[3] Em anotação ao artigo 417.º do CPC, explicam José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 227) que a revelação dos factos e elementos cobertos pelo dever de segrego bancário no âmbito de um processo civil não está expressamente prevista no artigo 79.º-2, RGICSF, mas a sua permissão resulta da conjugação entre o artigo 79.º-2-f daquele regime (que salvaguarda a existência de “outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo”) e o n.º 4 do preceito anotado.