Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2397/11.8TBSTB.E2
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE PARTILHA
MEAÇÃO
Data do Acordão: 11/19/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A validade do contrato promessa de partilha dos bens comuns do casal, outorgado pelos cônjuges na vigência do seu casamento, condicionado à dissolução deste, não pode deixar de passar pelo respeito no contrato da participação ideal de cada cônjuge no património comum, estabelecida imperativamente no art. 1730º, nº 1, do Cód. Civil, impondo-se, por isso, uma solução restritiva, no sentido da proibição de toda e qualquer estipulação contrária à regra da metade que o legislador consagrou na citada norma.
Sumário do Relator
Decisão Texto Integral: P.2397/11.8TBSTB.E2

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

(…) intentou contra (…) a presente acção declarativa, sob a forma ordinária, alegando, em resumo, terem A. e R. celebrado um contrato promessa de partilha após divórcio, sendo que, decretado o divórcio entre A. e R., este não cumpriu com o que havia ficado acordado entre as partes. Assim, pretende a A. que se exija ao R. o cumprimento do contrato definitivo e que seja proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial da outra parte.
Deste modo, peticiona a A. que se julgue a acção procedente, por provada, e por conseguinte:
a) Ser conferido ao R. o direito de propriedade das acções ao portador representativas de 20% do capital social da empresa (…), S.A. ordenando-se o respectivo registo junto da respectiva Conservatória do Registo Comercial;
b) Ser o R. condenado a ceder à A. a sua posição contratual no contrato leasing com o Banco (…), cujo objecto é o automóvel (…);
c) Ser o R. condenado, ao pagamento de € 4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros) a título de tornas;
d) Ser o R. condenado, ao pagamento de € 10,00 (dez euros) por dia, a título de sanção pecuniária compulsória, nos termos do disposto no nº 1 do artº. 829º-A do CC até integral cumprimento das suas obrigações.
Requereu ainda a A. a citação, na qualidade de interessado, do Banco (…) para que se pudesse pronunciar sobre a alínea b) do petitório.
Devidamente citado para o efeito veio o R. contestar, excepcionando, nomeadamente, a nulidade / anulabilidade do contrato promessa de partilha celebrado com a A.
Esta deduziu réplica na qual, no essencial, concluiu como na petição inicial.
De seguida pela M.ma Juiz “a quo” veio a ser proferido saneador-sentença, no qual foi declarado o Tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer da presente causa, nos termos dos arts. 81º, alínea c), da LOTJ e 101º do anterior C.P.C. e, em consequência, foi o R. absolvido da instância, nos termos do art. 105º do mesmo diploma.

Inconformada com tal decisão dela apelou a A. para esta Relação, a qual revogou o referido saneador-sentença e, em consequência, determinou que os autos prosseguissem os seus ulteriores termos no tribunal recorrido – Vara Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – por ser o competente materialmente para dirimir o pleito.
Os autos prosseguiram no tribunal “a quo” e, em sede de tentativa de conciliação, informaram as partes que já foram entregues (pelo R. à A.) os documentos atinentes ao veículo automóvel, motivo pelo qual foi determinada a inutilidade parcial de tal pedido, tendo sido identificado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.
Oportunamente, veio a ser realizada a audiência de julgamento, com observância das formalidades legais e, de seguida, foi proferida sentença que julgou a presente acção totalmente improcedente, absolvendo-se o R. do pedido.

Inconformada com tal decisão dela apelou a A. tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
a) Entende a recorrente que da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, deveriam ter sido dados como provados outros factos com interesse para a boa decisão da causa, o que não aconteceu;
b) Designadamente reveste primordial importância a factualidade dada como provada, respeitante à verba 2 dos bens activos do casal, constante da relação de bens, designadamente: “Acções ao portador, representativas de 20% do capital social da empresa (…), S.A., no valor de € 16.500,00 (dezasseis mil e quinhentos euros).”
c) A este respeito a testemunha Exma. Senhora Dra. (…), à data da assinatura do contrato promessa a advogada do então casal, a qual, conforme refere a apesar de tudo, douta sentença proferida, prestou um depoimento espontâneo, objectivo e credível, prestou depoimento no sentido de permitir dar como provado que a parte activa em todo o processo negocial da promessa de partilha acordada foi o aqui recorrido e não a recorrente, representando essa mesma partilha a sua vontade, plenamente esclarecida e consciente;
d) Pelo que, salvo o devido respeito, deveria ter sido dado como provado que: A partilha acordada foi delineada e decidida pelo réu, sendo a mesma a manifestação da sua vontade.
e) Verificamos ainda do depoimento que as aludidas acções, representativas de um valor nominal de € 16.500,00, tinham um valor real bastante acima daquele declarado na relação de bens;
f) Tendo ficado demonstrado que os rendimentos e o nível de vida da recorrente e recorrido, enquanto casal advinham dos rendimentos auferidos pelo casal por conta das acções da referida sociedade.
g) Porquanto a recorrente, apesar de sempre ter trabalhado, teve sempre rendimentos a rondar o salário mínimo;
h) Sendo forçoso concluir que na realidade, ao recorrido foi adjudicado o activo mais valioso da relação de bens, a participação na sociedade!
i) Sobre estes factos prestou ainda depoimento a aludida testemunha Exma. Senhora Dra. (…), permitindo ao tribunal dar como provado que o contrato promessa de partilha celebrado entre as partes, foi elaborado em conformidade e em total convergência com os interesses do marido, aqui recorrido, o qual sabendo o real valor dos bens a partilhar pelo casal sempre quis a partilha nos termos e moldes propostos por si próprio;
j) De referir que o valor das acções foi considerado não apenas em termos do valor real para venda, como ainda pelo valor potencial das referidas acções, as quais permitiam a fonte de rendimentos ao agregado familiar que lhes proporcionava o nível de vida e de conforto acima da média;
k) Acresce ainda que, para continuar a proporcionar às suas filhas esse mesmo conforto, o recorrido sempre pretendeu que as mesmas permanecessem no imóvel arrolado na relação de bens, o que apenas seria possível se este assumisse uma maior percentagem do pagamento do crédito hipotecário, dados os parcos recursos da aqui recorrente;
l) Conscientemente assumir 2/3 do valor representativo do empréstimo hipotecário sobre o imóvel, sem que com tal assunção de responsabilidades existisse qualquer desigualdade na partilha dos bens do casal;
m) Mais foi provado que o referido empréstimo hipotecário, tinha tido como finalidade não só o imóvel, como também o pagamento da aquisição das acções da sociedade.
n) Acrescendo ainda do referido depoimento da então mandatária das partes que nunca foi intenção destas que se procedesse à venda e partilha do imóvel, o qual pretendeu assegurar que até à maioridade das filhas do casal, o imóvel se mantenha impartilhável, e após essa data vendido a terceiros e dividido o lucro;
o) A “diferença” na assunção das responsabilidades sobre este passivo não representou qualquer desigualdade, mas sim uma prestação de “alimentos” para as filhas do casal, adicional aquela fixada no âmbito da regulação das responsabilidades parentais acordadas, e ainda o pagamento da parte do crédito hipotecário referente ao valor para aquisição das acções da sociedade (…), SA., que lhe foram adjudicadas;
p) Sendo que na realidade não existiu qualquer situação de desigualdade na partilha a efectuar pelo casal;
q) De especial relevo foram ainda os depoimentos das testemunhas D. (…), e D. (…), as quais provaram que os rendimentos do aqui recorrido eram superiores aos da recorrente, os quais advinham exclusivamente do seu cargo de sócio gerente na firma (…), S.A. e forçam a conclusão que as acções tinha um valor real bastante superior aquele que lhe estava aposto, o qual era apenas o valor nominal;
r) Razões pelas quais assumiu o recorrido, voluntariamente, uma maior percentagem do passivo, ou seja com a finalidade de as suas filhas, que ficaram a residir com a mãe, pudessem continuar na casa morada de família;
s) Em consequência, deveria o Meritíssimo Juiz a quo ter dado como provado que: O réu pretendeu, voluntaria e conscientemente, assumir 2/3 da prestação relativa ao crédito hipotecário enquanto acréscimo de prestação de alimentos para as suas filhas menores, a fim de que as mesmas permanecessem a residir no imóvel casa morada de família.
t) Que: Existia uma divergência de rendimentos entre autora e réu na data de celebração do contrato, sendo os do réu substancialmente mais elevados do que os da autora.
u) Que: Os rendimentos do autor, à data da celebração do contrato promessa de partilha, tinham origem directa nas acções da sociedade que, nos termos da partilha acordada, ficariam para o recorrido.
v) E ainda que: No crédito hipotecário estava incluído o valor do empréstimo para aquisição das acções da sociedade (…), SA., a qual foi adjudicada ao aqui recorrido.
w) Em consequência da factualidade que deveria ter sido dada como provada, verifica-se que mal esteve o tribunal a quo em julgar procedente a excepção peremptória da nulidade do contrato promessa, porquanto não respeitaria a “regra de metade” prevista no art. 1730.º CC, porquanto na realidade não existiu qualquer violação desta regra;
x) Uma vez que a “diferença” que foi considerada advém simultaneamente do facto de ao recorrido ter sido adjudicada a participação social na sociedade, bem como da compensação da pensão de alimentos das filhas do casal, com a finalidade que a aqui recorrente permanecesse com as mesmas no imóvel, anterior casa morada de família, e ainda pelo facto de nessa dívida estar incluída a dívida referente à compra das aludidas acções;
y) Pelo que o disposto na cláusula sexta do contrato promessa de partilha não deverá ser tido em linha de conta para efeitos da apreciação da “regra da metade”;
z) Esta cláusula trata apenas de um acordo inter-partes referente ao pagamento de uma dívida comum, e sendo que a recorrente apenas peticionou tornas pelo que foi efectivamente partilhado;
aa) Acresce que é apanágio e principio do direito civil Português o livre exercício dos direitos das partes, ao abrigo do princípio da liberdade contratual (art.º 405.º do CC), pelo que o contrato celebrado deverá ser honrado (pacta sunt servanta – art.º 406.º, n.º 1, do CC);
bb) Por último, entende ainda a recorrente que em face da factualidade provada e também daquela que deveria ter sido dada como provada, a conduta processual do recorrido consubstanciou clara e inequivocamente uma situação de abuso de direito, na sua modalidade de venire contra factum proprium, nos termos e para os efeitos do art. 334.º CC, porquanto o recorrido delineou e preparou o contrato promessa de partilha, o qual vem ora incumprir e arguir a sua nulidade!
cc) Pelo que deverão V. Exas. revogar a douta sentença proferida, substituindo-a por outra, em convergência com tudo o supra alegado;
dd) E sempre decidindo o que mais tiverem por conveniente na circunstância, sempre em Doutíssimo Suprimento. Assim se fazendo a mais inteira Justiça.
Pelo R. não foram apresentadas contra alegações de recurso.
Atenta a não complexidade das questões a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.

Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável à recorrente (art. 635º, nº 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo art. 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela A., ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação das seguintes questões:
1º) Saber se foi incorrectamente valorada pelo tribunal “a quo” a prova (testemunhal e documental) carreada para os autos, devendo, por isso, serem aditados novos factos à factualidade que foi dada como provada;
2º) Saber se o contrato promessa de partilha celebrado entre A. e R. não é nulo e, como tal, deve ser pontualmente cumprido, determinando-se a sua execução específica;
3º) Saber se a conduta do R. integra uma situação de abuso de direito, na sua modalidade de venire contra factum proprium (cfr. art. 334º do Cód. Civil).

Antes de mais importa ter presente qual a factualidade que veio a ser apurada no tribunal “a quo”, a qual, de imediato, passamos a transcrever:
1) A. e R. contraíram matrimónio no dia 22.08.1992, sem convenção antenupcial;
2) Em 30.09.2009, foi decretado o divórcio entre A. e R.;
3) Na sequência do divórcio, A. e R. elaboraram relação de bens, em resultado de acordo quanto à constituição do acervo patrimonial comum, nos seguintes termos:
RELAÇÃO DE BENS
ACTIVO
BENS IMÓVEIS
Verba Única
Prédio urbano destinado a habitação, composto por moradia e logradouro, sito no Loteamento da Quinta da (…), Lote 102, Alto da (…), freguesia de (…), concelho de Setúbal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Setúbal (2.ª) sob a ficha n.º (…) da referida freguesia e inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo (…), com o valor de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros);
BENS MÓVEIS
Verba Um
Viatura automóvel de marca (…), modelo (…), com a matrícula (…), no valor de € 11.000,00 (onze mil euros);
Verba Dois
Acções ao portador, representativas de 20% do capital social da empresa (…), S.A., no valor de € 16.500,00 (dezasseis mil e quinhentos euros);
PASSIVO
Verba 1
Hipoteca legal a favor da (…) de aquisição do prédio identificado na verba 1 dos Imóveis no montante de € 207.500,00 (duzentos e sete mil e quinhentos euros);
Verba 2
Leasing ao Banco (…) no montante de € 10.000,00 (dez mil euros);
4) Em 02.07.2009, A. e R. celebraram contrato denominado «contrato promessa de partilha», com o seguinte teor:
CONTRATO PROMESSA DE PARTILHA
-----ENTRE:
----- (…), casada, cont. fiscal (…), residente na Urbanização Quinta da (…), Rua das (…), Lote 102, (…), adiante designado Primeira Contraente,
E,
(…), casado, portador do B.I. nº (…) de 11/01/2208 de Setúbal, cont. fiscal (…), residente na Urbanização Quinta da (…), Rua das (…), Lote 102, (…), adiante designado Segundo Contraente,
-----Estabelecem e reciprocamente celebram entre si o presente Contrato Promessa de Partilha dos bens que integram o acervo patrimonial do casal, nos termos e pelas cláusulas seguintes:
PRIMEIRA
1. Pelo presente contrato os Contraentes reciprocamente prometem celebrar Escritura de partilha extrajudicial das acções da sociedade (…), S.A., após o divórcio e logo que para tal notifique o Segundo a Primeira.
2. O Segundo Contraente mais promete assinar toda a documentação necessária para a transmissão da propriedade da viatura automóvel a favor da cônjuge mulher, no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do Divórcio.
SEGUNDA
O acervo patrimonial do casal é constituído pelos seguintes bens:
A - Prédio urbano destinado a habitação, composto por moradia e logradouro, sito no Loteamento da Quinta da (…), Lote 102, (…), freguesia de (…), Concelho de Setúbal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Setúbal (2.ª) sob a ficha (…) da referida freguesia e inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo (…), com o valor de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros);
B - Viatura automóvel de marca (…), modelo (…), com a matrícula (…), no valor de € 11.000,00 (onze mil euros);
C - Acções ao portador, representativas de 20% do capital social da empresa (…), S.A., no valor de € 16.500,00 (dezasseis mil e quinhentos euros);
TERCEIRA
1. Sobre os bens de identificados nas Alíneas A) e B) da cláusula Segunda existe um passivo constituído por:
a) Hipoteca legal constituída a favor da (…) para aquisição do prédio identificado na verba 1 dos Imóveis, no montante de € 207.500,00;
b) Leasing ao Banco (…), no montante de € 10.000,00;
2. O pagamento das prestações mensais referentes à Hipoteca legal identificado no ponto 1 da presente cláusula são da responsabilidade de ambos, na proporção de 1/3 para a Primeira e 2/3 para o segundo, desde a data da assinatura do presente contrato, até ocorrer qualquer uma das situações previstas na cláusula sexta do presente contrato – sublinhado nosso.
3. O pagamento das prestações respeitantes ao leasing referido na al. b) do ponto 1 da presente cláusula é da responsabilidade da Primeira.
QUARTA
À Primeira Contraente será adjudicado o bem identificado na al. B).
QUINTA
Ao Segundo Contraente será adjudicado na Escritura de Partilha prometida celebrar as acções da sociedade.
SEXTA
1. O bem imóvel identificado em A da cláusula Segunda manter-se-á em compropriedade entre os Contraentes até à maioridade das filhas do casal, sendo nessa altura vendido a terceiros, dividindo entre ambos o lucro, deduzido a quantia respeitante a reforço de empréstimo para aquisição das acções da sociedade (…), S.A., caso ambos os contraentes cumpram o acordado no ponto 2 da cláusula segunda – sublinhado nosso.
2. Em caso de a Primeira passar a habitar a casa com um terceiro como casal, tem aquela, preferência na compra do edifício identificado em A da Cláusula Segunda, celebrando Escritura de Partilha Extrajudicial no prazo de 6 meses a contar do início da coabitação com o terceiro.
SÉTIMA
1. A totalidade dos bens a partilhar, composto pelos bens móveis do casal, é de € 27.500,00, cabendo a cada um dos Contraentes o quinhão de € 13.750,00, havendo que descontar de imediato o valor do leasing por tal pagamento ser da responsabilidade da Primeira a partir da assinatura do presente contrato.
2. A Primeira Contraente leva de bens € 11.000,00, pagando dívida de € 10.000,00.
3. O Segundo Contraente leva de bens € 16.500,00.
4. Leva assim a (…) valor negativo de € 7.250,00, devendo o Segundo pagar de tornas € 4.500,00.
SÉTIMA
1. Os bens móveis (electrodomésticos, móveis, tapetes, cortinados e demais objectos de decoração) existentes em casa são adjudicados à Primeira.
2. Os bens móveis musicais, já na posse do Segundo, são-lhe adjudicados.
OITAVA
Há lugar à Execução Específica do presente contrato, nos termos do Artigo 830.º do CC.
NONA
O presente contrato será aplicado e cumprido pelos contraentes.
-----O presente contrato é constituído por quatro folhas de papel, que vão ser assinadas notarialmente e rubricadas pelos ora Contraentes.
Setúbal, 02 de Julho de 2009
5) A. e R. celebraram acordo denominado «acordo de casa de morada de família» com o seguinte teor:
(…), casada, portadora do B.I. n.º (…), de 11/01/2008 de Setúbal, cont. fiscal (…), residente na Urbanização Quinta da (…), Rua das (…), Lote 102, (…)
E,
(…), casado, portador do BI n.º (…), de 11/01/2208 de Setúbal, cont. fiscal (…), com domicílio na Urbanização Quinta da (…), Rua das (…), Lote 102, (…),
Acordam o uso da casa de morada de família nos termos seguintes:
1.º O direito de habitação da casa de morada de família, sito na Urbanização Quinta da (…), Rua das (…), Lote 102, (…), é atribuído à Requerente mulher.
2.º Não há lugar ao pagamento de qualquer quantia a título de renda pela Requerente mulher ao Requerente marido.
3.º O Requerente marido procederá à transferência bancária de quantia respeitante a 2/3 da prestação mensal hipotecária para a conta do empréstimo bancário da moradia, na (…), até ao dia 5 de cada mês.
6) A divisão entre A. e R. do lucro obtido com a venda do imóvel objecto do contrato referido em 4), nos termos da sua Cláusula SEXTA, n.º 1, seria em proporções idênticas – sublinhado nosso.

Apreciando, de imediato, a primeira questão suscitada pela recorrente – relativa à incorrecta valoração da prova pelo tribunal “a quo” e consequente aditamento de novos factos – importa desde já dizer a tal respeito que os novos factos que a A. pretende sejam aditados à factualidade dada como provada pelo tribunal “a quo” (constantes das alíneas d), s), t), u) e v) das suas conclusões de recurso) não foram pela mesma alegados nos articulados que apresentou no processo (quer na petição inicial, quer na réplica), sendo certo que tais factos eram factos essenciais para que a A. pudesse, eventualmente, fazer prova nos autos de que a partilha com o R. dos bens do dissolvido casal era o mais equitativa possível.
Todavia, uma vez que a A. não cumpriu com o ónus de alegação a que, expressamente, alude o art. 5º, nº 1, do C.P.C., resulta claro que tais factos não podem ser apreciados, ou sequer questionados, neste Tribunal Superior, em sede de impugnação da matéria de facto pela via recursiva.
Além disso, sempre se dirá que o art. 1730º, nº 1, do Cód. Civil contém uma norma imperativa segundo a qual “os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso, isto é, mesmo que a vontade das partes seja a de fazer um contrato promessa de partilha de bens em que a regra da metade seja afastada – por razões que, objectivamente, só aos ex-cônjuges dizem respeito – sempre tal partilha será nula, com base no referido normativo legal, se qualquer das partes invocar a dita nulidade e provar que o contrato promessa de partilha lhe reservou uma quota inferior a metade – sublinhado nosso.
Por isso, mesmo que, por hipótese, se entendesse que os factos novos que a A. pretende fossem aditados aos já apurados no tribunal “a quo”, tinham resultado provados (com base na prova testemunhal produzida em audiência de julgamento), sempre os mesmos seriam – de todo – inócuos para demonstrar que a partilha entre A. e R. dos bens do dissolvido casal era o mais equitativa possível, por força da dita regra imperativa constante do nº 1 do citado art. 1730º, já que consta expressamente da factualidade apurada nos autos que o pagamento das prestações mensais referentes à hipoteca legal sobre o imóvel identificado nos autos são da responsabilidade de A. e R., na proporção de 1/3 para aquela e 2/3 para este (cfr. cláusula 3ª, nº 2, do contrato promessa de partilha celebrado entre as partes, constante do ponto 4 dos factos provados) e que a divisão entre A. e R. do lucro obtido com a venda de tal imóvel (nos termos da cláusula 6ª, nº 1, do referido contrato) seria em proporções idênticas (cfr. ponto 6 dos factos provados), pelo que tal contrato de partilha terá, inexoravelmente, de ser considerado nulo – como veremos adiante – por violação manifesta da regra da metade estipulada na norma legal supra citada (sublinhado nosso).
Assim sendo, forçoso é concluir que não há que proceder a qualquer alteração ou aditamento à factualidade que foi dada provada no tribunal “a quo”.

Analisando agora a segunda questão levantada pela recorrente – saber se o contrato promessa de partilha celebrado entre A. e R. não é nulo e, como tal, deve ser pontualmente cumprido, determinando-se a sua execução específica – haverá que referir a tal propósito que, ao contrário do sustentado pela A., inexistem quaisquer razões válidas que permitam afastar, “in casu”, a regra imperativa da metade consagrada pelo legislador no nº 1 do art. 1730º do Cód. Civil.
Com efeito, face à imperatividade da norma em causa, não é possível sustentar um desvio a tal regra da metade, no contrato promessa de partilha de bens celebrado entre as partes – ou seja, o R. pagar 2/3 do passivo relativa ao imóvel que constituiu a casa de morada de família e a A. apenas 1/3 – pois, segundo a A., a base justificativa para tal desvio era uma forma dissimulada do R. “pagar” uma prestação de “alimentos” para as filhas do casal, adicional aquela que foi fixada no âmbito da regulação das responsabilidades parentais acordadas, ou era uma forma de “compensação”, uma vez que os rendimentos auferidos pelo R. eram “substancialmente mais elevados” do que os da A.

Nesse sentido, aliás, se tem pronunciado, de forma unânime, a jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal, citando-se, entre outros, o Ac. do STJ de 5/3/2013, disponível in www.dgsi.pt, onde é afirmado o seguinte:
- (…) O n.º1 do artigo 1730.º do Código Civil dispõe que:
- Os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso.
Em anotação a este artigo, escreveram Pires de Lima e A. Varela:
- “Quando, por conseguinte, no artigo 1730.º se prescreve que os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, tem-se especialmente em vista fixar a quota parte a que cada um deles terá direito no momento da dissolução e partilha do património comum…”
No ato de partilha subsequente à dissolução, há-de, pois, imperativamente, atribuir-se a cada um dos cônjuges metade do ativo e metade do passivo.
Não tolera a lei atribuição diferente.
A redacção da primeira parte do n.º 1 mostra claramente que a lei se preocupou em que cada um dos cônjuges participe forçosamente por metade (Cfr. Pires de Lima e A. Varela, ob. e loc. citados, início do ponto 4.º), de sorte que se deve entender que a censura legal incide não só nos casos em que se violou essa regra da metade, como naqueles em que do contrato não constam elementos que permitam ajuizar sobre a observação desta.
No contrato-promessa que autor e ré celebraram e que está junto a folhas 9 e seguintes, referiram que “existe um bem comum pertencente ao casal” que será adjudicado à “Segunda Contraente, tendo o Primeiro Contraente recebido já o valor de tornas que lhe é devido”.
Está aqui um comprometimento de partilha em que não se pode determinar se cada um dos ex-cônjuges iria participar ou não participar por metade no activo da comunhão. À contraente foi adjudicado o imóvel contante desta, mas não se sabe se o autor, de tornas, recebeu metade do valor dele. A expressão “valor de tornas que lhe é devido”, não permite qualquer conclusão sobre a igualização da partilha.
Por força do n.º 1 do artigo 410.º ao contrato-promessa são aplicáveis as disposições relativas ao contrato-prometido, com ressalvas que aqui não importam.
É, pois, aquele nulo se este o for.
O mencionado n.º 1 do artigo 1730.º, não só retira da disponibilidade das partes o conteúdo do acordo de partilhas no que respeita à não igualização, como fere de nulidade a sua violação.
Nem outra coisa se pode retirar da expressão “sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso.”
A terminologia do Código Civil é clara e categórica, no sentido da classificação das invalidades do ato jurídico, levada a cabo, mormente, nos artigos 285.º e seguintes. Onde se lê “nulidade” não suporta a lei outra interpretação que não seja a de que, efetivamente, de nulidade se trata.
A nulidade – diz o artigo 286.º – pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal. Existindo, pois, no processo, factualidade suficiente, o tribunal, independentemente da posição das partes, deve declarar a nulidade e decidir a causa em conformidade.
Não há qualquer intromissão, mas antes o cumprimento do que a lei lhe impõe.

Em sentido idêntico ao aresto anterior veja-se o Ac. do STJ de 15/12/2011, disponível in www.dgsi.pt, no qual se escreveu que:
- (…) A questão essencial posta no recurso, também criteriosamente abordada pela Relação, é a de saber se o que está estatuído no n.º 1 do art.º 1730.º do C. Civil obsta a que os cônjuges possam validamente subscrever delineado contrato-promessa de partilha de bens comuns do casal em que a um deles seja atribuído menos de metade do seu valor.
I. Dispõe assim o artigo 1730.º do Código Civil (participação dos cônjuges no património comum):
1. Os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso.
2. A regra da metade não impede que cada um dos cônjuges faça em favor de terceiro doações ou deixas por conta da sua meação nos bens comuns, nos termos permitidos por lei.
Interpretar a lei é tarefa que tem por objectivo a descoberta do seu exacto e preciso sentido, partindo-se do elemento literal para se ajuizar da "mens legislatoris" e tendo-se sempre em conta que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9.º n.º 3 do C.Civil): a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação.
O texto funciona também como limite de busca do espírito.]
Pode, porém, acontecer que o intérprete se aperceba de que o legislador foi infeliz no modo como se exprimiu, que o seu pensamento foi atraiçoado pelos termos utilizados na redacção da lei, dizendo menos do que pretendia. Quando tal ocorrência acontecer ter-se-á de alargar o seu conteúdo até onde o legislador desejava ter querido chegar.
O intérprete concluirá assim fazendo recurso aos elementos racional ou lógico e teleológico (ratio legis – a razão de ser da norma).
O elemento filológico de interpretação tirado do sentido das palavras que integram o texto do preceituado no n.º 1 do artigo 1730.º do C.Civil., leva o intérprete a concluir que está ferida de invalidade a estipulação contratual que os cônjuges subscrevam em desrespeito pela regra da metade do seu património comum no casamento.
Igualmente, a "ratio" que superintendeu na descrição daquele normativo aponta com a mesma força e pontualidade para este mesmo preciso entendimento: nele se tem especialmente em vista fixar a quota-parte a que cada um deles terá direito no momento da dissolução da partilha do património comum.
Lembremos ainda a este propósito que, conforme se descreve no n.º 1 do art.º 1764.º do C.Civil, as doações entre cônjuges só são legalmente consentidas no caso de terem por objeto bens próprios do doador.
Quer tudo isto dizer que, através do disposto no n.º 1 do art.º 1730.º do C. Civil, estão proibidas todas as estipulações ou cláusulas contrárias à regra da metade, quer as estipulações entre os próprios cônjuges, quer as que constem de liberalidades a terceiros.
Através do contrato-promessa as partes que o subscreveram obrigam-se a, dentro de determinado prazo ou logo que certos pressupostos se verifiquem, celebrar determinado contrato, mais precisamente comprometem-se a emitir declaração de vontade correspondente ao contrato cuja realização projectaram ajustar (contrato prometido).
Com o contrato-promessa as partes não se obrigam simplesmente a prosseguir as negociações antes encetadas e com vista a definir pontos de vistas que ainda não obtiveram consenso e sem prejuízo de se manterem definitivos os acordos já alcançados, mas obrigam-se, sem mais, a concluir um contrato com um certo conteúdo (Enzo Roppo, O contrato, pág. 102).
"O contrato-promessa é um acordo preliminar que gera uma obrigação de prestação de facto consistente na emissão de uma declaração negocial (Prof. Galvão Teles, Obrigações, pág. 76).
Ora, tendo na devida conta que a divisão acordada no contrato-promessa de partilha atribui ao autor e à ré prestações “manifestamente desproporcionais”, como bem anotaram as instâncias, segue-se que, porque foi claramente profanada a regra da metade consagrada no artigo 1730.º, n.º 1, do Código Civil, é nulo o contrato-promessa de partilha negociado entre ambos os cônjuges.
Argumenta o recorrente em seu benefício que a legalidade do contrato-promessa celebrado só poderia ser posto em causa por qualquer uma das circunstâncias referidas na lei civil (por simulação, falta de consciência da declaração, erro na declaração, sobre os motivos, sobre o objecto, coacção, dolo, incapacidade) e que a regra da metade consagrada no artigo 1730.º do C. Civil não pode impedir que os cônjuges procedam à partilha do que sobrar contentando-se um deles com menos de metade.
Não lhe assiste, porém, razão.
Está conferido aos cônjuges o direito de poderem celebrar entre si detalhado contrato-promessa em que se ponderem especificadamente as circunstâncias particulares de cada um deles; e não se lhe detectando ocorrências que o invalidem, ele estará sujeito à execução específica tal e qual se prevê no art.º 830.º do C. Civil.
Neste contexto jurídico-substantivo podemos dizer que, se é certo que o contrato-promessa assim congeminado é inválido se ficarem demonstrados os requisitos propostos para simulação, falta de consciência da declaração, erro na declaração, sobre os motivos, sobre o objecto, coacção, dolo, incapacidade, a que se referem os artigos 240.°, 244.°, 246.°, 251.°, 252.°, 253.° e 257.°, todos do Código Civil, também é verdade que é nulo o contrato-promessa pactuado pelos cônjuges em contradição com o princípio da metade na comunhão prescrito no art.º 1730.º, n.º 1, do C. Civil.
Recordemos que é neste sentido a doutrina dominante – ao impor a regra da metade a ambos os cônjuges, o legislador deve ter querido evitar que um deles tentasse obter do outro um acordo injusto de uma partilha desigual, usando algum ascendente psicológico sobre o outro; e a determinação da participação de cada um dos cônjuges na comunhão tem especialmente em vista o momento da dissolução e partilha do património comum e não a fixação do objecto do direito de cada um deles na vigência da sociedade conjugal.
Também é esta a jurisprudência unânime deste Supremo Tribunal – sendo válido o contrato-promessa de partilha, em tese geral, o mesmo estará sujeito à execução específica, no condicionalismo do art. 830.º do C. Civil; só assim não será se for violada a regra da metade prevista no art. 1730.º, 1, do C. Civil pois, se assim acontecer, ocorrerá a nulidade prevista nessa norma.

No mesmo sentido, pode ver-se ainda o Ac. do STJ de 22/2/2007, também disponível in www.dgsi.pt, no qual se afirmou o seguinte:
- O contrato promessa de partilha de bens, celebrado pelos cônjuges, no decurso da acção de divórcio, subordinado à condição suspensiva do decretamento do divórcio, é válido.
No entanto, o mesmo estará ferido de nulidade se violar a “regra da metade”, por atribuir a um dos cônjuges quotas de bens manifestamente desproporcionais relativamente ao outro.

Em sentido similar aos arestos transcritos supra também se pronunciou o Ac. do STJ de 5/5/2005, disponível in www.dgsi.pt, onde é afirmado que:
- (…) O contrato-promessa de partilha dos bens comuns, celebrado pelos esposos na constância do matrimónio, não altera as regras que valem acerca da propriedade dos bens dentro do seu casamento, nem modifica as normas aplicáveis à comunhão, em violação do n.º 1 do artigo 1714º do Código Civil, tão-pouco modificando o estatuto de qualquer bem concreto, contra o n.º 2 do mesmo artigo e contra um entendimento amplo do princípio da imutabilidade.
Nestas condições, nem os esposos, nem os credores comuns, ou os credores pessoais do cônjuge quiçá «mais fraco» em razão de eventual ascendente psicológico do outro, correm o risco da mudança do regime de bens ou da alteração do estatuto de bens concretos, que poderia justificar a aplicação das normas de protecção de uns e outros, consubstanciadas nos n.os 1 e 2 do artigo 1714º;
Os possíveis prejuízos derivados do modo em que a partilha se apresenta concretamente projectada, não merecem um específico controlo de parte da ordem jurídico-matrimonial, estando o contrato-promessa, porém, sujeito, como qualquer negócio, aos mecanismos gerais de defesa de um dos contraentes contra o outro, eventualmente conducentes à sua anulação, verificados os respectivos pressupostos, por coacção, erro, estado de necessidade;
Diferente será o caso de um dos cônjuges sair avantajado, mercê, por exemplo, de promessa de divisão do património comum em partes desiguais, hipótese em que o contrato-promessa seria nulo por ofensa da «regra da metade» plasmada na norma de protecção do artigo 1730º, n.º 1, do Código Civil.

Por último, e no mesmo sentido dos anteriores, veja-se ainda o recente Ac. do STJ de 8/1/2015, também disponível in www.dgsi.pt, onde se afirmou o seguinte:
- (…) Suscitou todavia a autora a violação da regra de metade, de natureza imperativa, que consta do artigo 1730.º do Código Civil. A estipulação ou cláusula que desrespeite essa regra implica nulidade. Por isso, dado o seu conhecimento oficioso, a questão nova suscitada podia ser atendida pelo Tribunal (artigo 608.º do C.P.C.). Os factos integrativos dessa questão foram alegados – outorga da escritura em que o valor declarado dos imóveis era inferior ao seu valor real de 600 mil euros – embora visando um diverso enquadramento jurídico do litígio, o que não obsta ao seu conhecimento (artigo 5.º/3 do C.P.C. 2013).
Prescreve o artigo 1730.º/1 do Código Civil que "os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso"; esta regra vale para a outorga de convenção antenupcial, mas vale igualmente para quaisquer cláusulas que constem de contratos que visem a partilha do património do casal (contrato-promessa de partilha) e também para a própria escritura de partilha do património do casal dissolvido. Refere, a este propósito, Antunes Varela que "quando, por conseguinte, no artigo 1730.º se prescreve que os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, tem-se especialmente em vista fixar a quota-parte a que cada um deles terá direito no momento da dissolução e partilha do património comum" (Código Civil Anotado, Vol. IV, 2.ª edição, pág. 437).
Não há dúvida, face aos factos provados, que os outorgantes atribuíram aos imóveis a partilhar o seu valor tributário que é manifestamente inferior ao valor real, estipulando que os imóveis seriam adjudicados por aquele valor ao ex-cônjuge marido. O valor dos imóveis é de 412.870,00 €, cabendo à autora receber metade, ou seja, 206.435,00 € à qual se deve deduzir o valor que recebeu de 59.888,19 €, perfazendo-se, assim, a quantia de 146.546,81 €.
A observância da regra da metade não vale apenas para a estipulação que decorra de convenção antenupcial, mas impõe-se, como se disse, na fixação concreta da quota parte que a cada um dos cônjuges deva caber no momento da dissolução sem o que ficaria desprovida de utilidade real. Este tem sido o entendimento da jurisprudência como decorre dos Ac. do S.T.J. de 5-5-2005, rel. Lucas Coelho, P. 0003/2003, de 15-12-2011 (rel. Silva Gonçalves) na C.J.,3, pág. 149, P. 2049/06.0TBVCT.G1.S1, de 5-3-2013, rel. João Bernardo, P. 839/11.1TBVNG.P1.S1; ver também o Ac. da Relação do Porto de 29-11-1999, (rel. Fonseca Ramos), B.M.J. n.º 491-328 e o Ac. da Relação de Lisboa de 3-7-2008, rel. João Gomes, C.J. 3, pág. 119.

Ora, da transcrição feita dos acórdãos acima identificados, resulta claro que, no caso em apreço, a validade do contrato promessa de partilha celebrado entre A e R., tinha de passar pelo respeito integral da regra imperativa estabelecida no art. 1730º, nº 1, do Cód. Civil e, por isso, impunha-se uma solução restritiva, no sentido da proibição de toda e qualquer estipulação contrária à regra da metade que no normativo em referência se consagra.
Porém, como vimos, tal regra foi totalmente desrespeitada quando se determinou, no referido contrato promessa de partilha, que o pagamento das prestações mensais referentes à hipoteca legal sobre o imóvel identificado nos autos são da responsabilidade de A. e R., na proporção de 1/3 para aquela e 2/3 para este, mas já a divisão entre A. e R. do lucro obtido com a venda de tal imóvel seria em proporções idênticas (cfr. cláusulas 3ª, nº 2 e 6ª, nº 1 do contrato promessa de partilha celebrado entre as partes e pontos 4 e 6 dos factos provados), pelo que, forçoso é concluir, que tal contrato é nulo – o que se reitera – por violação da regra da metade imposta no nº 1 do art. 1730º do Cód. Civil.
Por isso, estamos com o Julgador “a quo” quando este, a dado passo, afirma o seguinte na decisão sob censura:
- (…) considerando a globalidade do património comum e, bem assim a responsabilização das partes no que tange ao passivo, resulta evidente que o contrato promessa de partilha celebrado entre A. e R. responsabiliza este último, pelo passivo comum, de uma forma que se tem por manifestamente desproporcional, mostrando-se, destarte, claramente violada a «regra da metade» legalmente imposta, por via do disposto no Art.º 1730.º do CC.
Importa assim julgar procedente a excepção peremptória da nulidade do contrato promessa de partilha celebrado entre A. e R. no dia 02.07.2009.

Finalmente, apreciando a terceira questão suscitada pela recorrente – saber se a conduta do R. integra uma situação de abuso de direito, na sua modalidade de venire contra factum proprium (cfr. art. 334º do Cód. Civil) – importa dizer, a tal respeito, que, muito embora a A. não tenha levantado tal questão nos seus articulados (constituindo uma questão nova – cfr. art. 608º, nº 2, do C.P.C.), a verdade é que a excepção de abuso do direito é de conhecimento oficioso, pelo que este Tribunal Superior pode e deve conhecer dela – cfr., nesse sentido, entre outros, o Ac. do STJ de 4/4/2002, disponível in www.dgsi.pt.
Assim sendo, o abuso do direito, como resulta da norma do art. 334º do Cód. Civil, ocorre quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Todavia, no caso em apreço, não resultou provado nos autos qualquer conduta do R. que possa integrar a figura de abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium, sendo certo que, nos termos do disposto no nº 2 do art. 342º do Cód. Civil, era à A., que invocou o abuso do direito pela parte contrária, que incumbia demonstrar os factos em que venha a assentar a conclusão de que existiu uma actuação manifestamente violadora dos princípios da boa fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito.
Com efeito, apenas se apurou que o R. assinou, juntamente com a A., o contrato promessa de partilha celebrado entre ambos, contrato esse que, como vimos, desrespeitou totalmente a regra imperativa da metade imposta no art. 1730º, nº 1, do Cód. Civil.
Por isso, ao ser peticionada pela A. a execução específica do referido contrato, o R. não está impedido de excepcionar a nulidade de tal contrato, com base na violação do supra citado normativo legal, não integrando tal comportamento – de todo – a figura de abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium.

A este propósito, afirma Guilherme Oliveira que se o contrato promessa servir para projectar uma partilha de tal modo que um dos cônjuges venha a receber um valor maior do que o outro, esse contrato seria nulo por força do art. 1730º, nº 1, do Cód. Civil.
(…) Sendo tal contrato nulo, o cônjuge prejudicado tem o direito de invocar a nulidade a todo o tempo e apenas tem o ónus de provar, nos termos gerias, que o contrato promessa de partilha lhe reservou uma quota inferior a metade – cfr. RLJ, Ano 129, págs.285/286 (sublinhado nosso).

Nestes termos, dado que o recurso em análise não versa outras questões entendemos que a sentença recorrida não merece qualquer censura ou reparo, sendo, por isso, de manter integralmente. Em consequência, improcedem, “in totum”, as conclusões de recurso formuladas pela A., ora apelante, não tendo sido violados os preceitos legais por ela indicados (v.g. arts. 405º e 406º do Cód. Civil).
***
Por fim, atento o estipulado no nº 7 do art. 663º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
- Não cumprindo a A. com o ónus de alegação a que, expressamente, alude o art. 5º, nº 1, do C.P.C., resulta claro que os factos que pretende sejam aditados à factualidade apurada no tribunal “a quo” não podem ser apreciados, ou sequer questionados, neste Tribunal Superior, em sede de impugnação da matéria de facto pela via recursiva.
- A validade do contrato promessa de partilha dos bens comuns do casal, outorgado pelos cônjuges na vigência do seu casamento, condicionado à dissolução deste, não pode deixar de passar pelo respeito no contrato da participação ideal de cada cônjuge no património comum, estabelecida imperativamente no art. 1730º, nº 1, do Cód. Civil, impondo-se, por isso, uma solução restritiva, no sentido da proibição de toda e qualquer estipulação contrária à regra da metade que o legislador consagrou na citada norma.
- A excepção de abuso do direito é do conhecimento oficioso e pode ser levantada ex novo perante a Relação em sede de recurso de apelação.
***
Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação, confirmando-se integralmente a sentença proferida pelo tribunal “a quo”.
Custas pela A., ora apelante (sem prejuízo do apoio judiciário de que é beneficiária).
Évora, 29/11/2015
Rui Manuel Machado e Moura
Maria da Conceição Ferreira
Mário António Mendes Serrano
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[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).