Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
309/23.5PAVRS.E1
Relator: MARGARIDA BACELAR
Descritores: AUTO DE NOTÍCIA
TESTEMUNHA
IMPEDIMENTO
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Sendo verdade que o art.º 8º do Dec. Lei nº 243/2015, de 19 de Outubro determina a aplicação aos agentes da PSP, enquanto órgão de polícia criminal, do regime de impedimentos, recusas e escusas do CPP, é também verdade que não deixa de o fazer, com as devidas adaptações.
Ora, se no nº 3 do art.º 39º do CPP se proíbe o exercício de funções, a qualquer título, no mesmo processo, de juízes que sejam entre si cônjuges, esta proibição restringe-se ao exercício da função judicial, qua tale.

Revertendo para a função policial, o impedimento subsiste limitado ao exercício desta mesma função, e nela não se inclui a qualidade de testemunha pois que, qualquer cidadão, polícia ou não, a pode exercer.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
No Processo nº309/23.5PAVRS.E1 do Tribunal Judicial da Comarca de … - Juízo de Competência Genérica de … - Juiz … foi proferido o seguinte despacho (transcrição):

«Veio o arguido AA invocar nulidade insanável do auto de notícia e do presente procedimento. Alega, em suma, que o acto de fiscalização realizado em patrulha pelos dois agentes da Polícia de Segurança Pública, como órgãos de polícia criminal, na qualidade de autuante e de testemunha, por serem casados entre si, implicam a nulidade do auto de notícia e dos subsequentes trâmites processuais.

Mais refere que, sendo cônjuges entre si os agentes policiais participantes (autuante e testemunha) na fiscalização em causa e indicados no mesmo auto de noticia, estamos perante uma situação indubitável de impedimento legal por parte dos mesmos agentes, que invalida o acto praticado e consequentemente implica uma nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do processo.

Em sede de resposta, veio o Digno Magistrado do Ministério Público dizer que não assiste razão ao arguido. Primeiramente, porque quando é elaborado um auto de notícia, ainda não existe um processo, o qual apenas se inicia depois de o Ministério Público despachar aquele e determinar que o mesmo dá origem a um determinado tipo de processo.

Mais refere que apenas foi mandada comparecer a julgamento a autuante, motivo pelo qual não será indicado como testemunha o marido da mesma, sendo que, no entanto, não existe nenhuma previsão legal que impeça um casal de prestar depoimento no mesmo processo, sendo tal situação até frequente.

Termina dizendo que a situação em causa não prejudica a imparcialidade e a justeza e justiça da decisão a proferir no caso, já que a actuação se circunscreveu a terem assistido à prática de um crime, e não está, seja de que forma for prejudicada a necessária defesa do arguido, tanto mais quanto o mesmo admitiu ter praticado os actos relatados no auto de notícia.

Cumpre apreciar e decidir.

Compulsados os autos, verifica-se que o auto de notícia junto aos presentes autos foi elaborado pela agente da Polícia de Segurança Publica BB, com a matrícula n.º … e nele foi indicada a testemunha, também agente da mesma força policial, CC, com a matrícula n.º … (cfr. fls. 4 e 5).

É do conhecimento público nesta localidade que os dois agentes da Polícia de Segurança Publica são casados entre si.

A questão suscitada nos presentes autos, envolvendo exactamente os mesmos agentes policiais, foi já, recentemente, analisada pelo Tribunal da Relação de Évora num outro processo penal, tendo dado origem ao acórdão de 25.05.2023, com o Proc. N.º 463/22.3PAVRS.E1, cuja decisão se acompanha na íntegra.

Conforme se extrai do referido acórdão, «tratando-se de notícia de um crime é indubitavelmente aplicável o nº 2 do art.º 8º do DL n.º 243/2015, de 19 de Outubro, que estatui que “O regime de impedimentos, recusas e escusas previsto no Código de Processo Penal é aplicável, com as devidas adaptações, aos polícias enquanto órgão de polícia criminal, (…)”.

Como nenhum dos agentes envolvidos no auto de notícia suscitou o seu impedimento para o acto, passada se mostra a possibilidade de ter sido deduzido o impedimento, tornou-se inaplicável o disposto no n.º 3, que naturalmente supõe a existência de uma declaração de impedimento.

Inexistente esta declaração de impedimento, a expressão contida no n.º 2 do preceito, «sem prejuízo do disposto no número seguinte», deixa de ser aplicável por inexistência de objecto, isto é, nada há a conhecer pelo Director Nacional da PSP.

Integrando-se a existência do auto de notícia num processo penal passa o mesmo – e o impedimento invocado - a ser regido pelo CPP, quer por aplicação subsidiária do regime de impedimento dos juízes, quer por aplicação do regime de invalidades processuais nele previstos.

O art.º 39º, n.º 3 do CPP, relativo ao regime de impedimentos, recusas e escusas, é cristalino quando estatui que «Não podem exercer funções, a qualquer título, no mesmo processo juízes que sejam entre si cônjuges, parentes ou afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges».

Demonstrado nos autos que o agente autuante e a testemunha indicada no mesmo auto são cônjuges, demonstrada está a existência de impedimento.

Inexistindo declaração de impedimento – o que pode ser suscitado pelo arguido (n.º 2 do preceito) -passa a reger a situação o disposto no art.º 41.º do CPP que, no seu número 3 determina que «Os actos praticados por juiz impedido são nulos, salvo se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo» (Cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25.05.2023, Proc. N.º 463/22.3PAVRS.E1, in www.dgsi.pt).

Ora, verificando-se que o acto processual em causa – o auto de noticia – não pode ser repetido utilmente e considerando, contrariamente ao que refere o Ministério Público, que a violação da norma que obriga a declarar o impedimento constitui uma violação das garantias de imparcialidade, o que necessariamente afecta de forma grave a justiça da decisão por violação das garantias de imparcialidade, impõe-se julgar inválido o mesmo.

Tal invalidade constitui, como já decidiu o Tribunal da Relação de Évora, no acórdão supra referido, uma nulidade insanável, prevista no art.º 119º, do CPP, a ser «oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais” e face à impossibilidade de repetição do acto nulo».

Parece ser totalmente irrelevante que o acto invalido tenha sido elaborado numa fase em que o Ministério Público não tenha tido ainda qualquer intervenção, já que o que dá origem ao presente processo penal e justifica a intervenção do Ministério Público, é precisamente o auto de notícia, que se mostra viciado.

Face ao exposto, pelas razões supra explanadas, o Tribunal declara nulo o auto de notícia elaborado nos presentes autos, o que implica a invalidade dos demais praticados subsequentemente, bem como como a absolvição do arguido, nos termos do art.º 119º e art.º 122º, n.º 1, ambos do CPP.

Notifique.

*

Face ao supra decidido, dá-se sem efeito a audiência de julgamento designada para o dia de hoje.

Desconvoque.»

***

Por não se conformar com o assim decidido, interpôs o Ministério Público o presente recurso que, na sua motivação, traz formuladas as seguintes conclusões que se transcrevem:

«1. A sentença recorrida considerou que o auto de notícia que deu origem ao processo se encontra ferido de nulidade porque a autuante indicou no mesmo como testemunha o seu marido, o que determinou a nulidade subsequente dos ulteriores actos praticados nos autos.

2. Tal nulidade, em seu entender, encontra-se prevista no art.º 41º do CPP, por referência aos artºs 8º, nº 2 do D.L. nº 243/2015, de 19.10 e 39º, nº 3 do C. P. P.

3. Ora, o marido da autuante não praticou nenhum acto no processo, porquanto não subscreveu o auto de notícia, nem qualquer outro documento ou peça processual, nem sequer foi indicado como testemunha na acusação deduzida, como também não o foi pelo arguido.

4. Assim, não exerceu nos autos qualquer função ou acto de que se encontrasse impedido, motivo pelo qual não deveria ter sido considerada a existência da aludida nulidade.

5. A decisão recorrida violou os dispositivos legais citados em 2.

6. Deve, assim, ser substituída por outra que declare que não se verifica quer no auto de notícia, quer nos actos ulteriores do processo, qualquer nulidade e determine a devolução dos autos ao Ministério Público para que sejam tramitados sob outra forma processual por se ter esgotado o prazo do processo sumário, assim se fazendo JUSTIÇA.»

Remetidos os autos a esta Relação, nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pugnando pela improcedência do recurso.

O arguido, notificado nos termos e para os efeitos previstos no art.º 417º, nº 2 do CPP, quedou-se pelo silêncio, nada tendo vindo alegar.

Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência prevista no art.º 419º do CPP, cumpre agora apreciar e decidir.

*

Em jeito de questão prévia:

Suscita o Emº Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer duas distintas questões a saber:

– Inexistência jurídica da sentença por constar dos autos o seu depósito e o não apuramento factual da relação de família existente entre a autuante e o agente indicado como testemunha e a consequente declaração de nulidade do auto de notícia e posterior processado.

A – Conhecendo da 1º questão

Resulta inequivocamente da leitura da decisão recorrida que a mesma assumiu a forma de despacho, tal como a lei o define no art.º 97º, nº1, al. b) do C.P.P.

E tanto assim é que, como resulta da parte final do dito despacho, nem sequer houve lugar a audiência de julgamento, posto que foi ordenada a desconvocação dos respectivos intervenientes.

Sendo verdade que existe nos autos um termo de depósito, o mesmo não foi lavrado pela Mmª Juíza a quo tudo levando a supor tratar-se de um lapso.

Não há, pois, que considerar qualquer inexistência de sentença.

B - Conhecendo da 2º questão

A Mmª Juiz a quo suportou a nulidade insanável por si declarada na circunstância de a autuante e o agente indicado como testemunha serem casados entre si.

Entende o Exmº Procurador-Geral Adjunto que a convicção da Mmª Juiz se formou com base na “vox populi”, e não na consulta da base de dados do registo civil ou em certidão casamento, inexistindo, pois, prova deste, assim tendo sido cometido erro de facto com a consequente nulidade da decisão recorrida.

Decidindo:

Contrariamente ao que parece ser o entendimento do Exmº Procurador-Geral Adjunto e sempre com ressalva do respeito devido, entendemos que, no caso sub judice, a prova do casamento em causa não tinha necessariamente de ser feita por qualquer das duas vias documentais referidas.

Com efeito, e como refere o Exmº Procurador-Geral Adjunto, se tivesse sido aberta a audiência de julgamento e nela tivesse sido perguntada a existência de tal relação familiar à autuante e à testemunha, se ambas a confirmassem, nenhuma razão juridicamente válida existiria para não considerar provada a existência do casamento, sem recurso a qualquer daqueles documentos.

Nestes termos, concluímos que não existe qualquer nulidade que afecte a decisão recorrida fundada na ausência de prova documental do casamento.

***

Do mérito do recurso:

Vejamos:

Analisados os autos é possível concluir que, o auto de notícia junto aos mesmos foi elaborado pela agente da Polícia de Segurança Publica BB, com a matrícula n.º … e nele foi indicada a testemunha, também agente da mesma força policial, CC, com a matrícula n.º ….

Por facilidade de exposição e raciocínio, consideremos que os identificados agentes da PSP são casados entre si.

Diz a recorrente que o marido da autuante não praticou nenhum acto no processo, porquanto não subscreveu o auto de notícia, nem qualquer outro documento ou peça processual, nem sequer foi indicado como testemunha na acusação deduzida, como também não o foi pelo arguido.

Assim sendo, não exerceu nos autos qualquer função ou acto de que se encontrasse impedido, motivo pelo qual não deveria ter sido considerada a existência da aludida nulidade.

Sempre o devido respeito por diversa opinião, entendemos que assiste razão ao Recorrente.

Dispõe o art.º 8, nº 2 do D.L. nº 243/ 2015 DE 19 DE Outubro que:

“1 - Os polícias estão sujeitos ao regime geral de incompatibilidades, impedimentos, acumulações de funções públicas e privadas e proibições específicas aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.

2 - O regime de impedimentos, recusas e escusas previsto no Código de Processo Penal é aplicável, com as devidas adaptações, aos polícias enquanto órgão de polícia criminal, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

3 - A declaração de impedimento e o seu requerimento, bem como o requerimento de recusa e o pedido de escusa, são dirigidos ao diretor nacional.”

Por seu turno prescreve o art.º 39º, nº3 co C.P.P. que:

“(…)

3 - Não podem exercer funções, a qualquer título, no mesmo processo juízes que sejam entre si cônjuges, parentes ou afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges.”

E ainda o art.º 41.º, nº3 do C. P. P. que:

“ (…)

3 - Os actos praticados por juiz impedido são nulos, salvo se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo.”

A decisão recorrida, suportada no Acórdão desta Relação de 25.05.2023 proferida no Proc.nº463/22.3PAVRS.E1 entendeu que em situação idêntica à dos referidos autos existia in casu uma situação de impedimento o que determinou que o auto de notícia elaborado nos presentes autos fosse declarado nulo e implicou a declaração de invalidade dos demais praticados subsequentemente.

Pois bem.

Sendo verdade que o transcrito art.º 8º do Dec. Lei nº 243/2015, de 19 de Outubro determina a aplicação aos agentes da PSP, enquanto órgão de polícia criminal, o regime de impedimentos, recusas e escusas do CPP, é também verdade que não deixa de o fazer, com as devidas adaptações.

Ora, se no nº 3 do art.º 39º do CPP se proíbe o exercício de funções, a qualquer título, no mesmo processo, de juízes que sejam entre si cônjuges, esta proibição restringe-se ao exercício da função judicial, qua tale.

Revertendo para a função policial, o impedimento subsiste limitado ao exercício desta mesma função, e nela não se inclui a qualidade de testemunha pois que, qualquer cidadão, polícia ou não, a pode exercer.

Aceitemos, porém, e por comodidade de raciocínio, que a testemunha indicada estaria impedida de depor por ter presenciado os factos que, eventualmente, presenciou na qualidade de agente da P.S.P. no exercício de funções.

Cumpre dizer, em primeiro lugar, que não chegou a testemunhar em qualquer acto do processo, designadamente, na audiência de julgamento e, por isso, inexiste depoimento que possa ou deva ser declarado nulo.

Em segundo lugar, cumpre notar que, mesmo que se entenda que a indicação da testemunha nessa qualidade no auto de notícia implica o dito impedimento, no limite, o que poderá estar ferido de nulidade, com base no disposto no art.º 41º, nº 3 do CPP, é a indicação da testemunha enquanto tal, mas não a parte sobrante do auto de notícia.

Assim, a reconhecer-se a nulidade da indicação da testemunha nessa qualidade, o que, em nosso entender, se impunha, era efectuar a sua declaração com o consequente aproveitamento do auto de notícia na parte subsistente na audiência de julgamento.

Aliás, o art.º 243º do C.P.P. não enuncia causas específicas de nulidade do auto de notícia, e a evidenciação probatória do crime objecto dos autos é essencialmente feita mediante prova quase pericial – resultado do exame de pesquisa de álcool no ar expirado, através de alcoolímetro quantitativo ou exame de sangue – o que torna a indicada prova testemunhal, eventualmente nula, despicienda.

Em conclusão, deve ser revogada a decisão recorrida e determinado o prosseguimento dos autos com os limites apontados (nulidade da indicação da testemunha).

Eis por que o presente recurso irá proceder.

DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se o prosseguimento dos autos com os limites apontados (nulidade da indicação da testemunha).

Sem Tributação

Évora, 06/02/2024