Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3017/14.4T8LSB-A.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: SIGILO PROFISSIONAL
DOMICÍLIO CONTRATUAL
Data do Acordão: 05/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Se a correspondência entre o advogado e a parte contrária, não obstante junta aos autos, não tiver qualquer relevância para a decisão final, é inútil decidir o recurso interlocutório para aquilatar se ocorre violação ou não do dever de sigilo profissional a que alude o art. 87.º, n.º 1, al. e), do EOA, e, portanto, se o documento é ou não admissível como meio de prova.
II - O julgamento de mérito ou de fundo no despacho saneador só pode ocorrer quando o processo fornece já os elementos suficientes para que o litígio em causa possa ser decidido com segurança, ou seja, quando não existe prova a produzir quanto a factos essenciais para a decisão da causa.
III - Existindo domicílio convencionado para as comunicações entre as partes que outorgaram o contrato, e tendo a exequente procedido à junção aos autos do aviso de recepção relativo à carta expedida para interpelação da subscritora e dos avalistas, o qual se mostra assinado com o nome de um dos executados, e cabendo aos executados o ónus da prova da falta de interpelação, não basta para que se conclua pela sua não verificação a afirmação genérica por estes da falta de recepção da interpelação, razão por que, não existe factualidade a apurar que demande o prosseguimento dos autos.
IV - Cabe aos embargantes (executados) - e não ao embargado (exequente) - o ónus de alegação e prova de que a quantia exequenda não respeita o acordo que esteve na base do preenchimento das livranças dadas à execução, portanto, do preenchimento abusivo, enquanto facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, não bastando para tanto a mera invocação de que desconhecem como foi o título preenchido.
Decisão Texto Integral:




Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]:

I – Relatório
1. AA, Lda., AA e CC deduziram embargos à execução contra si instaurada pelo BANCO, S.A., pedindo que a mesma seja julgada procedente, com as legais consequências.
Para o efeito invocou, em síntese:
a) a ilegitimidade do exequente;
b) a incompetência territorial do tribunal;
c) não deverem a quantia exequenda cujo valor impugnaram, não o reconhecendo, nem terem sido interpelados quer pela exequente quer pelo DD, S.A. para o respectivo pagamento.;
d) não lhes ter sido dado conhecimento do preenchimento das livranças, não entendendo o modo como o exequente alcançou os diversos valores que totalizaram a quantia exequenda e que estão apostos nas mesmas;
e) ser indevida a penhora por o imóvel penhorado ter um valor comercial cerca de duas vezes superior ao da quantia exequenda;
f) o segundo e terceiro executados não renunciaram ao benefício da excussão prévia.

2. Notificado o Exequente, apresentou contestação pugnando pela respectiva improcedência, e juntando para prova da interpelação documentos subscritos pela Ilustre Mandatária dos embargantes, cópias de cartas com aviso de recepção e documentos com os cálculos das quantias alegadamente devidas.

3. Por requerimento apresentado em 01/06/2015, os Executados responderam quanto aos documentos, invocando a violação do disposto no artigo 87.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, não terem recebido as indicadas cartas, e aduzindo que os documentos referentes aos cálculos são meros documentos internos.

4. Foi seguidamente proferido despacho saneador, o qual tem o valor de sentença, julgando improcedentes a invocação da violação do sigilo profissional, as excepções apresentadas e os embargos deduzidos.

5. Inconformados com esta decisão, os executados interpuseram o presente recurso de apelação que terminaram com as seguintes conclusões:
«A - Não podem os ora Recorrentes conformar-se com a decisão proferida nos autos.
B - foi uma decisão apressada, pois julgou questões que só deveria apreciar com o prosseguimento dos autos, em audiência de julgamento, não tendo matéria para antecipação da decisão.
C- Também pecou porque errou na apreciação da prova junta, e deu por assente matéria impugnada.
D – A decisão é ainda nula e violadora da lei.
E –A decisão de admissibilidade da matéria alegada nos artigos 16º e 17º da contestação foi a errada, por claro erro de fundamentação.
F - Os embargantes alegaram que a matéria constante dos antigos 16º e 17º da contestação dos embargos, e o documento junto com o nº 1, porque se referem a conversações entre a mandatária dos executados e o DD, de quem a exequente se arroga “continuadora”, estão cobertos pelo sigilo profissional, nos termos do artigo 87º do EOA.
G - A decisão é incorrecta e violadora do artigo 87º do EOA.
H - A obrigação de segredo profissional reveste para a advocacia um carácter verdadeiramente basilar. Sem o segredo profissional em regra de ouro, não existe, nem pode existir advocacia e a sua dispensa ou o entendimento de que não existe, têm carácter excepcional.
I - Quer o documento junto, que as alegações da exequente, plasmam as negociações encetadas entra a signatária e o BES.
J - Não há dúvida, que ambas as coisas caiem directamente no âmbito da alínea e) do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
K - Tal decorre, desde logo, da simples interpretação literal da norma em causa, já que o artigo 87º, nº 1, alínea e) refere os factos que a parte contrária do cliente tenha dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo, mas também é a consequência lógica da tal relação de confiança que se estabelece com a “parte contrária” quando com ela se contacta e negoceia.
L - Foi decidido também, que a questão arguida pelos embargantes e referente à incompetência territorial do Tribunal, estava ultrapassada, uma vez que esta decidida e transitada em julgado.
M - O Tribunal “a quo” decidiu mal e violou manifestamente o artigo 3º do CPC.
N - Aos recorrentes não lhes foi dado do suposto despacho de fls 87-88, declarando o tribunal da Comarca de Setúbal, como o competente.
O - Não foi dada a possibilidade de usarem o direito ao contraditório.
P - A omissão verificada gera uma nulidade, o que determina a anulação da sentença.
Q - Na arguida questão da ilegitimidade, a decisão que de considerar legítima a exequente, com o plasmado, acabou por não conhecer a questão.
R - Sendo a decisão nula, nos termos do artigo 615º, nº 1,alínea d), do CPC.
S - Para além de ainda hoje ninguém saber ao certo o que ficou no DD e que foi “entregue” ao Banco, quer a constituição quer o objecto deste Banco estão impugnados.
T - Existem várias acções registadas tendo por objecto a declaração de nulidade e extinção da exequente, a nulidade ou anulação da deliberação que a constituiu, a anulação ou declaração de nulidade da transferência dos activos e passivos do DD, S.A. para a exequente e a nulidade ou anulação dos actos decorrentes dos impugnados.
U - Estando em causa a própria existência da exequente, como tal, a sua legitimidade para nos presentes autos ou outros, executar qualquer eventual passivo do DD. S.A.
V - Pelo menos até que as referidas acções registadas tenham desfecho contrário às pretensões, e transitem em julgado.
X- Também o elenco dos factos provados peca por erro.
W - Em primeiro lugar facto nº 1 fala no primitivo exequente e isso é não é verdade. Os presentes autos têm um e um só exequente, não existe primitivo.
Z - A formulação do artigo 1 dos factos assentes está errada.
AA - Também os factos 6, 7 e 8 não podem ser considerados provados uma vez que todos os documentos referentes às comunicações entre a exequente e os executados foram impugnados, e só melhor prova, decorrente de julgamento, poderia levar à sua consideração como provados.
BB - Também, as comunicações em causa não partem da exequente, mas sim duma entidade diferente.
CC- No que concerne às questões da falta de interpelação e preenchimento abusivo das livranças, arguido pelos embargante, e dada a impugnação dos documentos juntos pela exequente, só a continuação dos autos e melhor prova feita em audiência também, poderia levar o Tribunal “a quo “ a decidir em consciência.
Nestes termos e nos melhores de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida».

6. Pelo Recorrido foram apresentadas contra-alegações, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

7. Observados os vistos, cumpre decidir.

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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[2], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, vistos os autos, cumpre apreciar as questões colocadas no presente recurso, por ordem lógica:
a) a admissibilidade dos documentos relativamente aos quais foi invocado o sigilo profissional;
b) a competência territorial do tribunal;
c) a legitimidade do exequente;
d) se o tribunal podia conhecer do mérito da causa quanto ao montante pelo qual foram preenchimentos os títulos, atentos os fundamentos da oposição dos executados.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto:
Na decisão recorrida foi expresso a este respeito que: «com base nos elementos documentais constantes dos autos que não foram impugnados, considerando ainda a posição assumida pelas partes nos respectivos articulados, dão-se por provados os seguintes factos:
1. A execução de que os presentes autos são apensos foi instaurada em 13.10.2014 com base em duas livranças, emitidas pelo primitivo Exequente, subscritas por AA Lda., preenchida além do mais com data de 02.06.2012, vencimento 03.10.2014 e importância € 337.249,02 e 16.578,22 (cfr. fls. 81 e 82 da execução).
2. No verso dos referidos documentos foi aposta a menção “Por aval à firma subscritora”, seguida das assinaturas do 2º e 3º executado (cfr. fls. 81 e 82 da execução).
3. No requerimento executivo o Exequente alegou, além do mais, que os executados CC e BB assumiram a posição de avalista (cfr. fls. 2 da execução).
4. CC e BB, na qualidade de outorgantes e avalistas, apuseram a sua assinatura no documento junto aos autos principais, denominado “Contrato de Abertura de Crédito a Prazo Fixo”, datado de 30.08.2006, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (cfr. fls. 9-15 da execução).
5. CC e BB, apuseram também a sua assinatura nos denominados “Aditamento a contrato de Abertura de Crédito a prazo fixo” datado de 09.06.2009, “Financiamento nº 001612000039402” referente ao empréstimo 0770/15164 e “Financiamento nº FEC 3525/09” referente ao empréstimo 770/32729 datados de 09.06.2009 e 02.06.2012 cujo teor se dá aqui por reproduzido (cfr. fls. 20 a 42 da execução).
6. O Exequente enviou a AA Lda., CC e BB, que receberam, cartas juntas a fls. 43-48 datadas de 08.03.2014, na qual, em síntese, com referência ao denominado contrato nº 60011801227 declarou resolver o contrato por incumprimento das cláusulas contratuais respectivas, considerar imediatamente vencida toda a dívida decorrente do mesmo.
7. O Exequente enviou a AA Lda., CC e BB, que receberam, cartas juntas a fls. 49-51 datadas de 11.09.2014, nas quais, com referência ao denominado contrato nº 0770051542 considerou imediatamente vencida toda a dívida decorrente do mesmo no montante de € 318.690,04 de capital e € 20.394,64 – € 1.835,66 de juros, mora e encargos legais, e ter preenchido a livrança subscrita pela executada e avalizada pelos destinatários, pelo montante de € 337.249,02, com vencimento para 03.10.2014.
8. O Exequente enviou a AA Lda., CC e BB, que receberam, cartas juntas a fls. 51-54 datadas de 11.09.2014, nas quais, com referência ao denominado contrato nº 0770051543 considerou imediatamente vencida toda a dívida decorrente do mesmo no montante de € 15.018,91 de capital e € 1.559,31 de juros, mora e encargos legais, e ter preenchido a livrança subscrita pela executada e avalizada pelos destinatários, pelo montante de € 16.578,22 com vencimento para 03.10.2014».
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III.2. – O mérito do recurso
III.2.1. - Da admissibilidade dos documentos relativamente aos quais foi invocado o sigilo profissional
Invocaram os executados, no requerimento de resposta à contestação da exequente, a violação do disposto no artigo 87.º do Estatuto da Ordem dos Advogados[3], porquanto os documentos 1 e 6 juntos à contestação espelham negociações entre a signatária e o BES, de quem o Banco exequente se diz “continuador”, considerando que tais documentos se enquadram na alínea e) do n.º 1 do artigo 87.º do EOA, pelo que a sua junção aos autos constitui violação do dever de sigilo profissional, e não podem fazer prova em juízo.
A este respeito decidiu a primeira instância que «Está em causa no presente caso um pedido dos executados para reestruturação da dívida feita pela sua Ilustre Advogada e a correspondente resposta (denegatória) do exequente. Não se vê de que forma esse facto poderia ou deveria esse facto estar sujeito a sigilo profissional. Trata-se do objecto da acção, sendo que os próprios Executados nunca deixaram de
reconhecer a existência da dívida exequenda. A impugnação do montante em dívida, no referido contexto, não apenas não corresponde a facto que possa estar sujeito a sigilo, como nem sequer se mostra susceptível de ser interpretado como susceptível de integrar negociação ou princípio de negociação com eventual utilidade para a presente execução, uma vez que nem sequer chegou a haver negociação.
Indefere-se assim o incidente de inadmissibilidade da matéria alegada nos artigos 16º e 17º da contestação».
O escrito em causa corresponde a correspondência remetida pela Ilustre Advogada dos executados ao BES onde, para além do mais, escreveu que efectuava o contacto na qualidade de mandatária da AA, com a finalidade de encontrar uma solução consensual para a situação de incumprimento para com o Banco, mais revelando que a situação da empresa não é das melhores mas que está a tentar reestruturar-se o que passa naturalmente por resolver a questão com o Banco, propondo termos para a mesma – a concessão de um período de carência até pagamento dos atrasos em prestações mensais, iguais e sucessivas de mil euros, retomando-se depois o contrato.
Este escrito foi junto aos autos pelo Banco depois da alegação efectuada no artigo 17.º do requerimento de embargos pelos ora recorrentes, com o seguinte teor: “os executados estavam em negociações com o DD, SA, a fim de reformularem os contratos celebrados com aquela entidade, quando mercê das vicissitudes acontecidas com aquele Banco, tais negociações ficaram paradas”.
Porém, conforme salientado nas contra-alegações do recorrido, o escrito em causa não foi relevante na decisão recorrida, que não deu como assente qualquer facto atinente ao mesmo, nem por qualquer outra forma se socorreu do seu conteúdo para fundamentar a sentença recorrida.
Ora, nos termos do artigo 660.º do CPC, as decisões interlocutórias proferidas pelo tribunal de primeira instância podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto da decisão final, mas o tribunal da Relação só dá provimento ao recurso quando a infracção cometida possa modificar aquela decisão ou quando, independentemente dela, o provimento tenha interesse para o recorrente.
Conforme vimos, a missiva em questão não teve qualquer reflexo na decisão recorrida, sendo que, eventual infracção cometida não pode modificar aquela decisão. De facto, mesmo que este Tribunal viesse a considerar que a junção da mesma viola o sigilo profissional, o mais que podia acontecer era não a considerar como meio de prova. Ora, como se disse, a referida carta não foi por qualquer forma considerada na decisão recorrida, pelo que a sua não consideração pela Relação nunca poderia influenciá-la.
Acresce que, também não se vê em que ponto o conhecimento da mesma tenha interesse objectivo para os recorrentes. Se o respectivo interesse é a comunicação à Ordem dos Advogados da conduta da parte contrária, o mesmo pode sempre ser actuado directamente pelos recorrentes, não se vislumbrando que o mesmo atinja “o nível ajustado à integração do pressuposto processual do interesse em agir que também está presente em sede de matéria recursória.
Efectivamente, apenas faz sentido conceder provimento à impugnação de qualquer decisão interlocutória se tal interferir na decisão final ou se, em alternativa, for visível um interesse processual autónomo no provimento que não se confunde com um mero interesse subjectivo, de ordem moral ou académica”[4].
Pelo exposto, considerando o previsto no referido artigo 660.º, e ainda os princípios da instrumentalidade do processo e dos actos processuais e o da limitação dos actos, ínsitos nos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, aplicável ex vi do 663.º, n.º 2, todos do CPC, não se conhece da questão relativa à admissibilidade do referido documento como meio de prova.
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III.2.2. - Da competência territorial do tribunal
Pretendem os Recorrentes que, por a decisão proferida no processo executivo que determinou a remessa ao tribunal não lhes ter sido notificada, se verificou a violação do princípio do contraditório, com a consequente nulidade da decisão recorrida que considerou estar a questão decidida com trânsito em julgado.
Por não constarem nestes autos todos os elementos para a decisão da questão suscitada, nos termos do artigo 652.º, n.º 1, alínea d), do CPC, a ora relatora solicitou os mesmos, determinando a respectiva junção aos autos.
Assim, verifica-se que a decisão relativa à incompetência territorial da Comarca de Lisboa foi proferida oficiosamente, em 11/12/2014, e notificada ao Exequente, ao Ministério Público e ao Agente de Execução, em 12/12/2014, portanto, anteriormente à citação dos executados.
Como assim, nunca poderia verificar-se a alegada violação do princípio do contraditório que, por natureza, só cumpre actuar quando ambas as partes já se encontram em juízo, e tal não era ainda o caso.
Não obstante, sempre se dirá que conforme se refere na decisão que declarou a incompetência territorial do tribunal de Lisboa, apesar de o contrato celebrado entre as partes estabelecer a competência da Comarca de Lisboa, em face do disposto no artigo 89.º, n.º 2, do CPC, que estabelece a competência do tribunal da situação dos bens onerados quando a execução for por dívida com garantia real, e do previsto no artigo 95.º, n.º 1, do CPC, que não permite o afastamento da regra competência territorial, o foro eleito pelas partes nunca poderia ser aplicável.
Por conseguinte, e sem necessidade de maiores considerações, não se mostra violado o princípio do contraditório não se verificando a nulidade da decisão proferida que considerou estar a questão resolvida por via do referido despacho que declarou competente o Tribunal da Comarca, local da situação dos bens onerados, para apreciação da acção.
Improcedem, pois, as conclusões do recurso a este respeito.
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III.2.3. - Da legitimidade do exequente.
Pretendem os ora Recorrentes que o Banco exequente não é parte legítima na execução porquanto quer a constituição quer o objecto deste Banco estão impugnados, estando em causa a própria existência da exequente, como tal, a sua legitimidade para nos presentes autos ou outros, executar qualquer eventual passivo do DD S.A., pelo menos até que as referidas acções registadas tenham desfecho contrário às pretensões, e transitem em julgado.
No despacho saneador-sentença recorrido considerou-se a este respeito que o ora Exequente é parte legítima por se ter operado uma substituição legal do DD, S.A., pelo BANCO, S.A. por força da deliberação tomada pelo Banco de Portugal - vd. artº 145-G/5 do RGICSF aprovado pelo DL 298/92 de 31.12.
Conforme decorre do disposto no artigo 55.º do CPC, na acção executiva, a legitimidade é definida pelo próprio título resultando do disposto no artigo 53.º, n.º 1, que dispõe de legitimidade, como exequente, quem no título figure como credor e, como executado, quem no título tenha a posição de devedor (nº 1).
Acontece, porém, que o n.º 2 do artigo 53.º contém norma específica para as situações em que o título seja ao portador, caso em que a legitimidade activa cabe ao respectivo portador.
Ora, a execução de que os presentes autos constituem apenso funda-se em duas livranças das quais o Exequente é o respectivo portador, tendo consequentemente legitimidade activa para instaurar a respectiva execução.
Efectivamente, o processo de execução de que estes autos constituem um apenso tem como título executivo as referidas livranças, que cumprem os requisitos de conteúdo assinalados no artigo 75.º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças[5], pelo que, apresentando-se o Exequente como portador do título, o mesmo sempre seria parte legítima nos presentes autos.
Ex abundanti, e para a eventualidade de os executados pretenderem desta forma pôr em causa ser o Banco o «legítimo portador» dos títulos executivos, como das respectivas alegações parece resultar, dir-se-á que no caso em apreço, concordamos inteiramente com o expendido a este respeito pelo Banco Exequente que data venia, reproduzimos:
«A constituição do Banco, SA, para administração dos ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão transferidos do DD, e o desenvolvimento das actividades transferidas, tendo em vista as finalidades enunciadas no artigo 145.º-A do GGICSF, por força da deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal, tomada em reunião extraordinária de 03/08/2014, nos termos do artigo 145.º-G/5 do RGICSF, aprovado pelo Dec. Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro, é do conhecimento público/facto notório e não carece de prova, nem de alegação (art. 412.º do CPC).
O actual titular do crédito relacionado/peticionado, no âmbito do processo supra mencionado, é, assim, o Banco, SA, pois que, em consequência da referida transferência de activos, o mesmo passou a integrar a esfera jurídica patrimonial do Banco, SA.(…)
A substituição do DD, SA, pelo Banco, SA, opera de imediato, de pleno direito, tendo, por isso, o Banco, SA, a posição jurídica do DD, SA (cfr. arts. 145.º-H/9 do RGICSF)».
Em face do exposto, não pode deixar de concluir-se que o Novo Banco é o legítimo portador das livranças dadas à execução e, por tal, parte legítima, improcedendo também nesta parte as alegações de recurso.
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III.2.4. – Do conhecimento do mérito da causa
III.2.4.1. – Da matéria de facto
Pretendem os recorrentes que a matéria de facto dependia de melhor prova, porquanto a formulação do artigo 1 dos factos assentes está errada, uma vez que fala no primitivo exequente e isso é não é verdade. Os presentes autos têm um e um só exequente, não existe primitivo.
Da decisão relativa à invocada excepção de ilegitimidade do exequente Banco SA, pode desde já concluir-se que não assiste razão para a pretendida alteração, tratando-se, no caso, de um preciosismo de linguagem sem qualquer reflexo na decisão da causa.
É evidente que ao referir-se ao primitivo exequente, a decisão recorrida se refere ao DD, uma vez que o mesmo foi substituído pelo Banco, mas as livranças e os contratos de financiamento foram subscritas quando este ainda não existia. O exequente é, como vimos, o Banco, devendo aquela expressão entender-se nos termos sobreditos e não havendo qualquer necessidade de proceder à alteração do ponto 1 da matéria de facto, por irrelevante para a decisão do pleito.
Invocam ainda os recorrentes que também os factos 6, 7 e 8 não podem ser considerados provados uma vez que todos os documentos referentes às comunicações entre a exequente e os executados foram impugnados, e só melhor prova, decorrente de julgamento, poderia levar à sua consideração como provados, e também, as comunicações em causa não partem da exequente, mas sim duma entidade diferente.
Quanto ao último segmento da invocação dos recorrentes, vale o que acabou de dizer-se. É evidente que as comunicações partem duma entidade diferente porquanto a actual não existia ao tempo da mesma, tendo-lhe sucedido.
Os pontos impugnados são os relativos às comunicações efectuadas pelo DD aos executados com vista à respectiva interpelação para pagamento e que estes no artigo 14.º dos embargos impugnaram, dizendo apenas não os terem recebido. Por isso, pretendem os recorrentes que não podiam ter sido considerados provados, carecendo os autos de melhor prova.
Efectivamente, na sentença em apreço, foram dados como provados factos essenciais que os executados genericamente impugnaram nos termos sobreditos, mormente aqueles que tangem à prova da interpelação para pagamento.
Ora, o julgamento de mérito ou de fundo no despacho saneador só pode ocorrer quando o processo fornece já os elementos suficientes para que o litígio em causa possa ser decidido com segurança, ou seja, quando não existe prova a produzir quanto a factos essenciais para a decisão da causa.
De facto, atenta a formulação legal do artigo 595.º, n.º 1 alínea b), do CPC, o despacho saneador destina-se a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
Ponto é, pois, que o estado do processo o permita, sem necessidade de mais provas para além das já processualmente adquiridas.
Volvendo ao caso dos autos, com pertinência para a presente questão verificamos que se mostram juntos aos autos pelo Banco exequente os documentos referentes às indicadas comunicações, bem como os avisos de recepção, dos quais consta terem sido recebidos por CC. Note-se que o executado não arguiu a falsidade da respectiva assinatura. Acresce que os mesmos foram remetidos para a morada indicada no contrato para efeitos de comunicações entre as partes.
Ora, podemos desde logo efectuar um paralelismo com as regras da citação em que, nos termos do disposto no artigo 229.º do Código de Processo Civil, aplicável para efeitos de citação nas acções para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato reduzido a escrito em que as partes tenham convencionado o local onde se têm por domiciliadas, com todas as consequências processuais que tal implica, existindo domicílio convencionado a mesma é feita para este local através de carta registada com aviso de recepção e presume-se efectuada mesmo que o citando recuse a assinatura do aviso.
Por maioria de razão, no caso dos autos houve convenção de domicílio, e existiu remessa das cartas registadas com aviso de recepção, tendo as mesmas sido assinadas pelo executado CC.
De acordo com o disposto no artigo 224.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, a declaração negocial receptícia considera-se eficaz quer quando chega ao poder do destinatário quer quando só por sua culpa exclusiva não foi oportunamente recebida.
Como vimos, nos autos existe a referida prova de que as comunicações foram remetidas para os executados para a morada convencionada e por carta registada com aviso de recepção. Assim, não bastava aos mesmos dizerem genericamente que as não receberam, incumbindo-lhes invocar factos dos quais fosse possível concluir que tal tinha acontecido. E, salvo o devido respeito, não se pode considerar que sejam factos com virtualidade para este efeito referir que os códigos de barras estavam manipulados, quando desde logo no aviso consta que os mesmos podem ser colocados por números, e não se impugnou a assinatura do executado constante dos mesmos.
Acresce que, “era ao opoente que cabia o ónus da alegação e prova da inexistência de interpelação, e não tendo ele deixado alegada factualidade tendente a demonstrar tal ausência/omissão de interpelação, deve concluir-se que a dúvida nesta matéria sempre teria de jogar contra si, não podendo considerar-se verificada a ausência de interpelação.
Também não deve concluir-se pela necessidade de indagação subsequente – com o prosseguimento, para tanto, dos autos – quanto à eventual ausência de interpelação, pois que, como dito, não alegou o opoente sequer, como lhe competia, factualidade, a sujeitar ao fogo da prova, que permitisse concluir pela inexistência de interpelação ao avalista”[6].
Assim sendo, conclui-se que também quanto aos pontos 6, 7 e 8, nada há a alterar à matéria de facto considerada assente.
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III.2.4.2. – Do preenchimento dos títulos
Relativamente à questão de saber se o tribunal podia conhecer do mérito da causa quanto ao montante pelo qual foram preenchidos os títulos, atentos os fundamentos da oposição dos executados, desde já afirmamos que, no caso vertente, tal podia efectivamente ter ocorrido.
Na verdade, a execução de que os presentes autos constituem apenso foi instaurada com base em duas livranças que os executados assumem ter assinado (artigo 18.º do requerimento inicial).
Ora, a livrança integra-se na categoria dos títulos de crédito, sendo um documento com uma função constitutiva, necessário para exercitar o direito literal e autónomo nele mencionado. Tem, portanto, uma posição característica e única em face do direito a que se refere: dir-se-á que é a titularidade do documento que decide da titularidade do direito nele mencionado; o documento é o principal, sendo o direito seu acessório. Por isso se fala da incorporação da obrigação no título e se designa o direito referido no título como “direito cartular”[7].
O direito cartular pressupõe uma relação jurídica prévia – a relação subjacente ou fundamental - e tem normalmente o mesmo conteúdo económico de um dos direitos que decorrem dessa relação jurídica.
Porém, “o título de crédito em confronto com a relação fundamental apresenta-se com uma feição unilateral: refere-se exclusivamente aos direitos de uma só das partes. A razão de ser desta feição unilateral alcança-se facilmente se tivermos presente que o título de crédito é um instrumento para a circulação de direitos; para a circulação do direito de uma das partes num contrato bilateral, é esse direito considerado isoladamente dos direitos da parte contrária”[8].
Por isso se afirma que, para além da referida característica da incorporação, os títulos de crédito se revestem das características da literalidade, autonomia e abstracção.
De facto, o direito incorporado no título é um direito literal, porquanto a letra do título traduz o direito que o mesmo incorpora, pela mesma se determinando o conteúdo e extensão do direito que contém. “Pelo conceito de literalidade põe-se em relevo que a existência, validade e persistência da obrigação cambiária não podem ser contestadas com o auxílio de elementos estranhos ao título; e que o conteúdo, extensão e modalidades da obrigação cartular são os que a declaração objectivamente defina e revele”[9].
É ainda um direito autónomo e abstracto, significando isso que o possuidor do título adquire o direito que este anuncia de um modo originário, não lhe sendo oponíveis os vícios que porventura existissem numa titularidade anterior; a relação subjacente, a causa ou relação fundamental que em regra é concomitante da convenção executiva, é separada do negócio cambiário porquanto decorre não dele próprio mas da convenção extra-cartular. Daí que, estando a causa fora da obrigação cambiária (abstracção), esta seja vinculante para os obrigados cambiários independentemente dos possíveis vícios da sua causa e por isso se tornem inoponíveis ao portador mediato e de boa fé as excepções causais: falta, nulidade ou ilicitude da relação fundamental, exceptio inadimpleti contractus, etc., porque decorrem de uma convenção extra-cartular, exterior ao negócio cambiário[10].
Servem as precedentes considerações para definir o terreno em que nos movemos e afirmar que a extensão e a qualidade da especial tutela de que gozam os títulos de crédito no confronto com a função normal de outro documento, assenta no propósito legal de os tornar instrumentos adequados a facilitar e incentivar a circulação dos próprios créditos, tutelando desta forma os interesses de terceiros de boa fé que, por via da natural circulação dos mesmos, os venham a adquirir.
Sendo a livrança um título de crédito formal com as sobreditas características, ao contrário da letra, a mesma não contém uma ordem de pagamento, mas a promessa pura e simples de pagar uma quantia determinada (artigo 75.º, n.º 2, da LULL). Trata-se de um título à ordem, sujeito às formalidades ínsitas no referido preceito legal, por via do qual uma pessoa se compromete para com outra a pagar-lhe determinada importância em certa data[11]. Por isso, as pessoas que inicialmente figuram na livrança não são três, como na letra, mas apenas duas: o subscritor e o tomador[12].
No caso dos autos, a execução foi instaurada em 13.10.2014 com base em duas livranças, emitidas pelo DD, SA, subscritas por AA Lda., preenchida além do mais com data de 02.06.2012, vencimento 03.10.2014 e importância € 337.249,02 e 16.578,22.
No verso dos referidos documentos foi aposta a menção “Por aval à firma subscritora”, seguida das assinaturas dos 2.º e 3.º executado.
Temos, portanto, que tendo os executados assumido terem assinado os indicados títulos de crédito, na qualidade de subscritora (a primeira) e avalistas das livranças dadas à execução (os segundo e terceiro), tal tem desde logo consequências em face das sobreditas características dos títulos executivos em questão.
Assim, da livrança decorre desde logo que a sociedade comercial AA, Ld.ª, sendo a subscritora da livrança é a primeira obrigada no cumprimento da promessa de pagamento da quantia aposta na mesma.
Porém, este pagamento pode ser no todo ou parte garantido por aval, conforme decorre do artigo 30.º § 1.º da LULL, aplicável ex vi do disposto no artigo 77.º. Trata-se de uma garantia das obrigações do devedor que não vem prevista no Código Civil e se mostra expressamente consagrada no regime especial decorrente da LULL.
Ora, conforme também se mostra assente, no verso da livrança em causa nos presentes autos, depois dos dizeres “Por aval à firma subscritora” constam as assinaturas dos 2.º e 3.º executados.
Significa esta menção que os 2.º e 3.º embargantes deram o seu aval, ao assinar as livranças como avalistas da firma subscritora, porquanto o aval resulta da simples assinatura do dador (artigo 31.º, § 3.º), exprimindo-se pelas palavras “bom para aval” ou por qualquer fórmula equivalente escrita na própria livrança (artigo 31.º, § 1.º e 2.º), como é seguramente a expressão “por aval à firma subscritora”.
Assim, nos termos do artigo 30.º § 2.º da LULL, os referidos embargantes, ao assinarem a livrança depois dos indicados dizeres garantem no todo ou em parte, o respectivo pagamento por parte da sua subscritora e obrigada cambiária.
O aval é, assim, o acto pelo qual um terceiro ou um signatário da livrança garante o pagamento dela por parte de um dos subscritores. Por isso, a obrigação do avalista é uma obrigação de garantia da obrigação do avalizado, cuja função específica é garantir ou caucionar a obrigação do subscritor cambiário, inserindo-se ao lado da obrigação deste, cobrindo-a e caucionando-a[13].
Prestada esta garantia, e atenta a sua função específica de caucionar ou assegurar o prometido pagamento, o avalista, enquanto dador da garantia, não tem uma responsabilidade secundária relativamente ao obrigado principal. O avalista tem, perante o beneficiário do aval que é o portador da livrança, uma responsabilidade primária, não gozando de qualquer benefício de excussão prévia como o que se encontra previsto para a fiança no artigo 638.º do Código Civil[14].
O mesmo é dizer que o dador do aval responsabiliza-se directamente pelo pagamento da livrança, não estando o beneficiário do aval obrigado a exigir o pagamento, em primeiro lugar, ao subscritor. O avalista é solidariamente responsável com o subscritor e, como tal, pode ser accionado individual ou conjuntamente com os demais obrigados e sem necessidade de observância da ordem por que estes se obrigaram (artigo 47.º da LULL).
Na verdade, o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa afiançada (artigo 32.º § 1.º da LULL), o que significa que a medida da responsabilidade do avalista é a do avalizado.
De facto, o aval, sendo uma garantia do pagamento da livrança, não tem carácter subsidiário em relação à obrigação de pagamento desta, mas antes cumulativo; ou seja, embora o aval seja acessório da obrigação principal do subscritor da livrança, a obrigação do avalista é originada por uma obrigação autónoma: a obrigação cambiária por si assumida ao subscrever a livrança nessa qualidade.
Por isso, o artigo 32.º da LULL constitui uma expressa afirmação legal da força que a livrança assume enquanto título de crédito. Efectivamente, o aval é um acto cambiário que origina também ele uma obrigação autónoma independente, cujos limites são aferidos pelo próprio título[15].
E, sendo um título circulante, a lei assegura-se que o portador (que pode não ser o tomador inicial) possa saber com toda a segurança, por simples inspecção do título que se lhe apresenta e sem necessidade de ter em conta quaisquer outros elementos exteriores, quais os direitos que lhe assistem e contra quem os pode accionar, isto é, quem são os respectivos signatários e em que qualidade se constituíram em obrigados cambiários. Daí que, em decorrência da sobredita característica da abstracção do título, por força do disposto no artigo 32.º § 2.º da LULL, a obrigação do avalista se mantenha mesmo que a obrigação que ele garantiu seja nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.
“Trata-se de uma obrigação materialmente autónoma, embora dependente desta última quanto ao aspecto formal. De facto – e como já vimos – a lei estabelece o princípio de que a obrigação do avalista se mantém, ainda que a obrigação seja nula – e abre uma única excepção a este princípio para o caso de a nulidade desta segunda obrigação provir de “um vício de forma”[16].
De facto, a obrigação assumida pelo avalista decorre cristalinamente do preceituado no artigo 30.º § 1.º da LULL: ao dar o seu aval, garante o pagamento da livrança; garante o pagamento da obrigação cambiária e não da obrigação subjacente.
Por isso, a obrigação a que alude o 2.º § do artigo 32.º não é a obrigação subjacente mas sim a obrigação cartular. O que aqui está em causa é a validade formal da obrigação cartular que não se confunde com a forma do negócio subjacente[17].
“Esta fórmula é aqui manifestamente empregada no seu sentido jurídico comum, importando referência às condições de forma externa do acto de onde emerge a obrigação cambiária garantida, isto é, aos requisitos de validade extrínseca desta obrigação.
Como todas as menções essenciais da declaração da vontade da pessoa que cria ou emite a letra – o sacador – são requisitos desta, condições de que depende a existência da própria letra, não é possível conceber, quanto à obrigação do sacador, nulidade por vício de forma que não comprometa ao mesmo tempo a eficácia cambiária do título. Por isso, quanto ao aval dado ao sacador, não é possível figurar um caso de nulidade do mesmo aval em virtude de nulidade por vício de forma da obrigação garantida”[18].
Ou, dito de outra forma, “quando resulte que a obrigação do avalizado é nula por vício de forma, porque se comprova um impedimento objectivo e absoluto de a sua operação formar qualquer valor patrimonial para a letra, não são responsáveis em qualquer medida, quer o avalizado quer o avalista, não se podendo manter, portanto, as suas obrigações.
A não existência da obrigação do avalista na hipótese de aplicação ao artigo 32.º, II, 2.ª parte, não é uma consequência directa da nulidade ou inexistência da obrigação do avalizado, que se fundamentaria na acessoriedade concreta daquela obrigação em relação a esta. (…) A inexistência da obrigação do avalista e da do avalizado quando esta é nula por vício de forma, é o resultado, necessariamente cumulativo, da não verificação da acessoriedade típica do aval em relação à operação avalizada”[19].
Destes ensinamentos decorre cristalinamente que a única nulidade por vício de forma que se repercute na obrigação do avalista é a nulidade por tal vício do próprio título cambiário e não do negócio subjacente, a não ser que este tivesse tido intervenção no mesmo, ou seja, que se encontrasse no domínio das relações imediatas[20].
Ora, no caso dos autos, subjacente às livranças em causa, esteve um denominado “Contrato de Abertura de Crédito a Prazo Fixo”, datado de 30.08.2006, e um denominado “Aditamento a contrato de Abertura de Crédito a prazo fixo” datado de 09.06.2009, “Financiamento nº 001612000039402” referente ao empréstimo 0770/15164 e “Financiamento nº FEC 3525/09” referente ao empréstimo 770/32729 datados de 09.06.2009 e 02.06.2012, nos quais CC e BB, apuseram também a sua assinatura, o mesmo acontecendo com a sociedade subscritora.
Por assim ser, no caso em apreço, os executados encontram-se no domínio das relações imediatas, âmbito em que é entendimento pacífico que os princípios da autonomia do direito cartular relativamente ao negócio subjacente e o da abstracção, não vigoram no domínio das relações imediatas, podendo a subscritora e os avalistas da livrança ora embargantes opor ao embargado as excepções decorrentes das convenções extracartulares.
Efectivamente, a livrança deve ser completada de harmonia com os acordos realizados (convenção de preenchimento). Caso existisse um preenchimento abusivo por parte do banco exequente, porque estamos no domínio das relações imediatas, seria possível ao subscritor e avalistas, ora recorrentes opor a excepção[21].
É também entendimento pacífico que «no âmbito das relações imediatas, compete ao subscritor de uma livrança, accionado pelo seu portador, que se pretende defender contra o mesmo com a excepção do preenchimento abusivo, o respectivo ónus da prova, sob pena de o facto impeditivo do efeito jurídico dos factos articulados pelo exequente, em que se consubstancia o preenchimento abusivo do título, não se ter produzido, e de dever aceitar que o mesmo foi efectuado, correctamente, sem violentar a vontade do seu subscritor»[22].
Na verdade, o facto de o preenchimento das livranças não ter provindo do punho dos embargantes, que apenas o assinaram, não afecta, por si só, a eficácia do título cambiário. O que as poderia afectar, designadamente o quantum respectivo, era a prova pelos embargantes de que o exequente não efectuou o preenchimento de acordo com o clausulado no contrato para o caso de incumprimento das obrigações assumidas.
De facto, ao contrário do que parecem entender os recorrentes, não é ao embargado, portador das livranças, que compete demonstrar que a quantia exequenda respeita o acordo que esteve na base do preenchimento das mesmas nos moldes em que foram dadas à execução. Ao invés, tal ónus de alegação e prova impende antes sobre os embargantes[23].
Ora, na oposição deduzida os executados não alegaram e consequentemente não poderiam nunca provar, quaisquer factos de onde decorresse algum vício de forma da obrigação causal ou um incorrecto preenchimento das livranças.
De facto, os embargantes apenas alegaram que impugnam a dívida exequenda, não a reconhecendo (artigo 16.º); que não lhes foi dado conhecimento do preenchimento das livranças (artigo 19.º); e que não conseguem entender o modo como a exequente alcançou os diversos valores que totalizam a quantia exequenda e estão apostos nas livranças (artigo 20.º). Como é bom de ver, estas alegações não constituem factos concretos que os embargantes pudessem vir a provar, daí ter sido possível proferir, sem mais prova, decisão de mérito.
Efectivamente, não tendo os embargantes cumprido o ónus de alegação que sobre os mesmos impendia, nos termos previstos mo artigo 5.º, n.º 1, do CPC, não poderiam nunca cumprir o ónus da prova do preenchimento abusivo que cabe aos obrigados cambiários, enquanto facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil.
Consequentemente, permanecem válidos e eficazes as obrigações cambiárias assumidas pela subscritora da livrança e pelos avalistas, que não alegaram factos dos quais se pudesse vir a concluir pelo preenchimento abusivo das livranças, sendo que, pelo contrário, os factos comprovam que a livrança exequenda, quando apresentada a pagamento, continha todos os elementos essenciais para poder valer como tal, não podendo alegar-se que a mesma padece de um qualquer vício de forma[24].
Pelo exposto, improcedem ou mostram-se deslocadas todas as conclusões do recurso.
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III.3. Síntese conclusiva:
I - Se a correspondência entre o advogado e a parte contrária, não obstante junta aos autos, não tiver qualquer relevância para a decisão final, é inútil decidir o recurso interlocutório para aquilatar se ocorre violação ou não do dever de sigilo profissional a que alude o art. 87.º, n.º 1, al. e), do EOA, e, portanto, se o documento é ou não admissível como meio de prova.
II - O julgamento de mérito ou de fundo no despacho saneador só pode ocorrer quando o processo fornece já os elementos suficientes para que o litígio em causa possa ser decidido com segurança, ou seja, quando não existe prova a produzir quanto a factos essenciais para a decisão da causa.
III - Existindo domicílio convencionado para as comunicações entre as partes que outorgaram o contrato, e tendo a exequente procedido à junção aos autos do aviso de recepção relativo à carta expedida para interpelação da subscritora e dos avalistas, o qual se mostra assinado com o nome de um dos executados, e cabendo aos executados o ónus da prova da falta de interpelação, não basta para que se conclua pela sua não verificação a afirmação genérica por estes da falta de recepção da interpelação, razão por que, não existe factualidade a apurar que demande o prosseguimento dos autos.
IV - Cabe aos embargantes (executados) - e não ao embargado (exequente) - o ónus de alegação e prova de que a quantia exequenda não respeita o acordo que esteve na base do preenchimento das livranças dadas à execução, portanto, do preenchimento abusivo, enquanto facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, não bastando para tanto a mera invocação de que desconhecem como foi o título preenchido.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, mantendo-se o despacho saneador-sentença recorrido.
Custas pelos recorrentes.
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Évora, 5 de Maio de 2016


Albertina Pedroso [25]


Elisabete Valente


Bernardo Domingos








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[1] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Elisabete Valente;
2.º Adjunto: Bernardo Domingos.

[2] Doravante abreviadamente designado CPC.
[3] Doravante abreviadamente designado EOA.
[4] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina 2013, págs. 218 e 219.
[5] Doravante abreviadamente designada LULL, resultante das Convenções de Genebra de 7 de Junho de 1930, aprovadas pelo Decreto n.º 23721, de 29 de Março de 1934 e publicadas em 21 de Junho, as quais estão em vigor como direito interno português desde 8 de Setembro do mesmo ano, conforme declarado no Decreto 26556, de 30 de Abril de 1936, publicado na sequência de dúvidas que então se suscitaram sobre a respectiva vigência.
[6] Cfr. em caso semelhante, Acórdão do TRL de 08.11.2012, processo 5930/10.9TCLRS-A.L1-6, disponível em www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Ferrer Correia, in Lições de Direito Comercial, Letra de Câmbio, vol. III, Universidade de Coimbra, 1966, págs. 3 a 5, 38 e 39.
[8] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, pág. 8.
[9] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, pág. 40.
[10] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, págs. 47, 48 e 65.
[11] Cfr. Abel Delgado, in Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, Anotada, 6.ª Edição, Livraria Petrony, Lisboa 1990, pág. 362; e Ferrer Correia, obra citada, pág. 22.
[12] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, pág. 23.
[13] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, págs. 21 e 196, e Acórdão STJ de 16-03-2011, Revista n.º 4918/03.0TVLSB-A.L1.S1 - 7.ª Secção, com sumário disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[14] Cfr. neste sentido, Ac. STJ de 12-01-2012, Revista n.º 5629/07.3TBCSC-A.L1.S1 - 2.ª Secção, com sumário disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[15] Cfr. Ac. STJ de 22-02-2011, processo n.º 31/05.4TBVVD-B.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[16] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, págs. 204 e 205.
[17] Cfr. neste sentido, Ac. STJ de 19-06-2007, processo n.º 1811/07, disponível em www.dgsi.pt.
[18] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, pág. 205, seguindo de perto a exposição de Pinto Coelho.
[19] Cfr. Paulo Melero Sendin, in Letra de Câmbio, L.U. de Genebra, vol. II, Obrigações Cambiárias, págs. 783 e 784.
[20] Cfr. neste sentido, Ac. STJ de 24-01-2012, proferido no processo n.º 1379/09.4TBGRD-A.C1.S1, e disponível em www.dgsi.pt.
[21] Cfr. Acórdão STJ de 13-01-2015, processo n.º 4813/11.0YYLSB.L1.S1 - 1.ª Secção, disponível em sumários de acórdãos www.stj.pt.
[22] Cfr. a título exemplificativo, o Acórdão do STJ de 10-01-2012, processo n.º 5664/06.9YYPRT-A.P1.S1 - 1.ª Secção, disponível em sumários de acórdãos www.stj.pt.
[23] Cfr. Acórdão do STJ de 27-01-2011, Processo n.º 15-A/2001.L1.S1 - 2.ª Secção, disponível em sumários de acórdãos www.stj.pt.
[24] Cfr. Acórdão do STJ de 29-10-2013, Processo n.º 2923/10.0T2AGD-A.C1.S1 - 7.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[25] Texto elaborado e revisto pela Relatora.