Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
81/22.6GBVVC-A.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: ESCUSA DE JUIZ
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O relacionamento, de estrito âmbito profissional e nas instalações do Tribunal, existente entre uma Exª Juíza e um Técnico de Justiça Adjunto a exercer funções nos serviços do Ministério Público desse Tribunal - o qual é assistente num determinado processo/crime, distribuído à Exª juíza para julgamento -, não constitui motivo sério e grave para fundamentar o deferimento do pedido de escusa.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. (…..), Juiz de Direito, a exercer funções no Juízo de Competência Genérica de (…..), vem, ao abrigo do disposto no artigo 43°, n.º 4, com referência ao n.º 1, do Código de Processo Penal, deduzir pedido de escusa, para intervir no Processo Comum (Singular) n.º (…..), no qual é assistente (A), Técnico de Justiça Adjunto, a prestar serviço nos serviços do Ministério Público de (…..).
1.2. Para fundamentar o seu pedido, a requerente alega o seguinte:
«1. A requerente é titular do Juízo de Competência Genérica de (…..);
2. Encontra-se pendente neste Juízo o processo Comum Singular n.º (…..), no qual o Ministério Público deduziu acusação pública contra os arguidos (…..), pela prática de um crime de violação de domicílio, previsto e punido pelo artigo 190.º n.º 1 do Código Penal e (…..), pela prática de um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal e um crime de violação de domicílio, previsto e punido pelo artigo 190.º n.º 1 do Código Penal;
3. (A) é assistente nos autos.
4. A ofendida (B) é esposa do assistente;
5. Os factos que vêm descritos na acusação pública são imputados como tendo ocorrido no domicílio do assistente e da ofendida e contra a pessoa dos mesmos;
6. (A) é Técnico de Justiça Adjunto, a prestar serviço nos serviços do Ministério Público de (...)
7. O Tribunal de (…..) é, como se saberá, de pequena dimensão, tanto estrutural como de pessoal, contando a secção judicial, atualmente, com três funcionários de justiça e a secção do Ministério Público com um funcionário de justiça (o assistente), pelo que se verifica um ambiente de relativa proximidade entre todos.
8. A signatária conhece e convive diariamente, nos espaços comuns, com o assistente aqui nos autos, fruto dos poucos elementos que compõem o Tribunal, tendo, igualmente, tido a oportunidade de conhecer a esposa do assistente, (B).
9. Emergindo a responsabilidade criminal dos arguidos nos autos de processo comum singular n.º (…..) pela prática de factos contra o assistente e a sua esposa, encontra-se a signatária em posição de poder ser colocada em causa a sua imparcialidade, quer intraprocessualmente, quer aos olhos da comunidade.
10. Com efeito, perante as circunstâncias invocadas, o risco de as decisões que a signatária venha a proferir nos mencionados autos de processo comum singular serem mal interpretadas e de a sua imparcialidade não obter reconhecimento público [decorrentes, nomeadamente, da tomada de declarações ao assistente e da sua valoração e, bem assim, da valoração do depoimento da sua esposa enquanto ofendida e testemunha nos autos]»
1.3. A Senhora Juiz requerente instruiu o incidente com certidão das peças processuais pertinentes para a apreciação da solicitada escusa.
1.4. Considerando o teor da certidão das peças processuais com que foi instruído o pedido de escusa, não se revela necessária a produção de outras provas.
1.5. A Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta, tendo vista nos autos, pronunciou-se no sentido do indeferimento do pedido de escusa, porquanto «procedendo ao confronto dos motivos invocados pela Senhora Juíza (...) e que resultam exclusivamente da proximidade funcional do desempenho na referida circunscrição jurisdicional dos indivíduos envolvidos no processo em causa e apesar das características desta circunscrição, somos a concluir que os receios invocados, podendo existir, não se nos apresentam com a seriedade e gravidade adequada a gerar, de forma clara, inquestionável e fundada, a invocada desconfiança sobre a sua imparcialidade quer por parte dos intervenientes processuais, quer da comunidade em geral, à luz da delimitação que vimos de fazer dos critérios em referência.»
1.6. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Do teor da certidão junta aos autos e que instrui o pedido de escusa, resultam assentes os seguintes factos relevantes para a decisão a proferir:
a) A Senhora Juiz, ora requerente, exerce funções no Juízo de Competência Genérica de (…..);
b) Foi distribuído à Senhora Juiz, para julgamento, o Processo Comum (Singular) n.º (…..), no âmbito do qual o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos (…..) e (…..), imputando-lhes a prática de um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo artigo 190º n.º 1, do Código Penal e ao arguido, ainda, a prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153º, n.º 1, do Código Penal.
c) (A) é assistente nesse processo.
d) (A) é Técnico de Justiça Adjunto, a prestar serviço nos serviços do Ministério Público de (…..).
d) Nos referenciados autos é testemunha/ofendida (B), esposa do assistente.
e) Por via do exercício das respetivas suas funções, a Sr.ª Juiz, ora requerente, convive, diariamente, nos espaços comuns do tribunal, com o Sr. (A), assistente nos referenciados autos.

2.2. Está em causa nos presentes autos a apreciação do pedido de escusa apresentado pela Senhora Juiz , ao abrigo do disposto no artigo 43º n.ºs 1 e 4, do Código de Processo Penal, para intervir no Processo Comum (Singular), n.º (…..), em fase de julgamento.
Vejamos:
Dispõe o artigo 43º do Código Penal (sob a epígrafe “recusas e escusas”):
1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2. (…);
3. (…);
4. O juiz não pode declara-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs. 1 e 2.
Fundamento para a recusa ou escusa de um juiz é o facto de a sua intervenção no processo se poder considerar suspeita, por ocorrer motivo sério e grave, suscetível de gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Tribunal.
Estes incidentes distinguem-se dos impedimentos, previstos nos artigos 39º e 40º do CPP. Enquanto nestes, a lei optou por uma indicação expressa e taxativa, em relação aos motivos de suspeição passíveis de poder constituir fundamento de recusa ou de escusa, lançou mão de uma cláusula geral.
Tudo se reconduz, pois, ao motivo grave e sério, apto a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Tribunal.
Conforme se refere no Acórdão do STJ de 26/01/2022[1] «Não definindo a lei o que se considera gravidade e seriedade dos motivos, que geram a desconfiança sobre a sua imparcialidade, será a partir do senso e da experiência comuns que tais circunstâncias deverão ser ajuizadas. Entre o «motivo» e a «desconfiança» terá de existir uma situação relacional lógica que justifique o juízo de imparcialidade, de forma clara e nítida, baseado na seriedade e gravidade do motivo subjacente.»
Esta matéria é um corolário de vários princípios com assento constitucional, designadamente, no artigo 32º da CRP, que tutela as garantias de defesa do arguido, consagrando, no nº. 9, o princípio do juiz natural e no artigo 203º que consagra o princípio da independência dos tribunais.
O princípio do juiz natural segundo o qual intervirá na causa o juiz a quem processo foi distribuído de acordo com as regras legais para tal estabelecidas, só pode ser afastado em situações excecionais, em que se coloquem em causa outros princípios, eventualmente, de igual ou até maior dignidade, como sucede quando a intervenção do juiz natural possa ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade[2].
Através dos mecanismos da recusa e da escusa, pretende-se assegurar a confiança dos sujeitos processuais e do público em geral, na imparcialidade e isenção do juiz.
A propósito do conceito de imparcialidade escreve-se no Acórdão do STJ de 13/02/2013[3]: «A imparcialidade, como exigência específica de uma verdadeira decisão judicial, define-se, por via de regra, como ausência de qualquer prejuízo ou preconceito, em relação à matéria a decidir ou às pessoas afetadas pela decisão.».
Nas palavras dos Prof.s Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão[4], «O princípio da imparcialidade do juiz repudia o exercício de funções judiciais no processo por quem tenha ou se possa objetivamente recear que tenha uma ideia pré-concebida sobre a responsabilidade penal do arguido; bem como por quem não esteja em condições ou se possa objetivamente temer que não esteja em condições de as desempenhar de forma totalmente desinteressada, neutral e isenta.»
O TEDH, tendo em conta o conceito de «tribunal imparcial» empregue no artigo 6º, nº. 1, da CEDH e no artigo 10.º da DUDH, tem vindo a entender que a imparcialidade do tribunal deve ser avaliada sob uma dupla perspetiva, subjetiva e objetiva.
A vertente subjetiva diz respeito à própria pessoa do juiz, ou seja, como se refere no Acórdão do STJ de 06/06/2018[5], «tem a ver com a posição pessoal do juiz, e pressupõe a determinação ou a demonstração sobre aquilo que um juiz, que integre o tribunal, pensa no seu foro interior perante um certo dado ou circunstância, e se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão».
Na vertente objetiva, como assinala Paulo Pinto de Albuquerque[6], há que averiguar se há «alguma razão legítima que faça temer uma falta de imparcialidade», pelos destinatários da decisão e/ou por parte da comunidade.
Vem sendo entendido pelo TEDH que, na vertente subjetiva, a imparcialidade do juiz deve presumir-se até prova em contrário e que, «na imparcialidade objetiva releva essencialmente de considerações formais e que o elevado grau de abstração na formulação de conceito apenas pode ser testado numa base casuística, na análise em concreto das funções e dos atos processuais do juiz.[7]»
Esta posição vem sendo reiteradamente acolhida pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores[8].
Constitui também entendimento jurisprudencial consolidado, que os motivos sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, terão de resultar de objetiva justificação, avaliando-se as circunstâncias invocadas pelo requerente, não pelo convencimento subjetivo deste, mas pela valoração objetiva dessas mesmas circunstâncias, a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se o juiz se insere.
Assim, como se decidiu no Acórdão do STJ, de 07/04/2010[9]: «Para o efeito de apresentação do pedido de escusa, o que importa é determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado, deixe de ser imparcial e, injustamente o prejudique».
Em suma: Para que se considerem verificados os pressupostos legais de um pedido de escusa, na vertente objetiva, impõe-se, como se refere no Acórdão deste TRE de 07/12/2017 , «que os motivos invocados, dada a sua seriedade e gravidade, se revelem de forma objetiva, isto é, de acordo com o juízo do cidadão de formação média, capazes de gerar um sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, de tal forma que façam suspeitar que tais factos influenciarão a decisão a tomar, favorecendo ou prejudicando injustamente o arguido ou qualquer sujeito processual.»
No caso vertente, o fundamento invocado pela Senhora Juiz, ora requerente, para formular o pedido de escusa, assenta no facto de conhecer e conviver diariamente, nos espaços comuns, do Juízo Local de (…..), com o Senhor Funcionário, Técnico de Justiça Principal, sendo este assistente no Processo Comum (Singular) n.º (…..), e conhecer também a esposa do mesmo Sr. Funcionário, sendo a mesma ofendida/testemunha nesse processo, pelo que, na ótica da Sr.ª Juiz, a sua imparcialidade, para realizar o julgamento, nesse processo, poderá ser posta em causa, quer intraprocessualmente, quer aos olhos da comunidade.
Salvo o devido respeito, entendemos que os factos invocados como fundamento do pedido de escusa, fazendo apelo ao critério do homem de formação média inserido na comunidade em que a Senhora Juiz ora requerente exerce as suas funções, não são suficientes para gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade para intervir e realizar o julgamento, no âmbito do processo a que se vem fazendo referência.
Explicitando:
Não está aqui em causa a imparcialidade pessoal da Senhora Juiz (vertente subjetiva, a que supra se aludiu), a qual, aliás, se presume existir e de que é reveladora a sua atitude processual, ao apresentar o pedido de escusa ora em apreciação.
Na vertente objetiva, que, in casu, importa considerar, entendemos que a circunstância de a Senhora Juiz privar com o Senhor Funcionário, do Ministério Público, que se encontra constituído como assistente no processo a que se vem fazendo referência, convivendo com o mesmo, nos espaços comuns do tribunal onde ambos exercem funções, não estando aquele Senhor Funcionário na dependência funcional da Senhora Juiz, o ambiente de “relativa proximidade”, estritamente decorrente de convívio mantido, nesse âmbito, não constitui motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança, no cidadão médio, sobre a imparcialidade da Senhora Juiz, para intervir no aludido processo e no julgamento a realizar no âmbito do mesmo.
Como se refere no Acórdão da RP de 12/04/2012[10] – onde se decidiu sobre um caso algo semelhante aquele que agora nos ocupa –, as razões invocadas pela Senhora Juiz requerente da escusa «São razões comuns a qualquer Magistrado em exercício de funções e, em rigor, fazem parte das meras ocorrências com que os mesmos se deparam no dia a dia do seu exercício profissional. E que não relevam, quer se atente na perspetiva do processo, quer na dos seus sujeitos processuais, de forma insofismável, algum pré-juízo acerca do thema decidendum e, muito menos, que a comunidade olhe para tal participação com suspeição, desconfiança ou dúvida sobre a imparcialidade do julgador e/ou o modo de funcionamento da justiça.»
Nesta conformidade, por se entender que os factos invocados não constituem motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade da Senhora Juiz, aqui requerente, para intervir no processo comum n.º (…..), não existe legítimo fundamento para a escusa requerida, nos termos do artigo 43º, n.ºs 1 e 4, do CPP, pelo que, deve ser indeferida.

3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora, em indeferir o pedido de escusa formulado pela Senhora Juiz (…..), para intervir, no julgamento, a realizar no âmbito do Processo Comum (Singular) n.º (…..).
Sem tributação.

Évora, 23 de janeiro de 2024
Fátima Bernardes
Ana Bacelar
Carlos Campos Lobo


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[1] Proferido no processo n.º 324/14.0TELSB-FK.L1-A.S1, acessível in www.dgsi.pt.
[2] Cf. Cons. Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 90; Cons. Henriques Gaspar, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2ª edição, 2016, pág. 130.
[3] Proferido no proc. 1475/11.8TAMTS.P1-A.S1, acessível in www.dgsi.pt
[4] Sujeitos Processuais Penais, 2015, pág. 12, acessível in https://apps.uc.pt.
[5] Proferido no proc. 324/14.0TELSB-BJ.L1-A.S1, acessível in www.dgsi.pt.
[6] In Comentário do Código de Processo Penal …, 3ª edição, UCE, pág. 128
[7] Cfr. Jorge Figueiredo Dias e Nuno Brandão, in texto e loc. cit..
[8] Cfr., entre outros, Acórdãos do STJ de 13/02/2013, de 21/03/2013, de 10/04/2014, 03/02/2016, de 06/06/2018 e de 26/10/2022, respetivamente, proferidos nos processos nº. 1475/11.8TAMTS.P1-A.S1, nº. 19/13.1YFLSB, nº. 287/12.6JACBR.C1-A.S1, nº. 1289/13.0T3AVR.PL, nº. 324/14.0TELSB-BJ.L1-A.S1 e n.º 193/20.0GBABF.E1-A.S1; Ac. da RE de 07/02/2017, proc. nº. 151/16.0 YREVR; Ac. da RG de 20/02/2018, proc. 28/18.4YRGMR e Ac. da RC de 25/03/2015, proc. nº. 44/15.8YRCBR, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[9] Proferido no proc. n.º 1257/09.TDLSB.L1-A.S1, acessível in www.dgsi.pt.
[10] Proferido no proc. n.º 321/17.3T8PRT-A.P1, ao que julgamos não publicado, cuja relatora é a Sra. Desembargadora, agora 1ª Adjunta, Ana Bacelar.