Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3/17.6 GASLV.E1
Relator: MARIA FILOMENA SOARES
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
ARGUIDO ESTRANGEIRO
MANDADO DE BUSCA
TRADUÇÃO
INTÉRPRETE
DEFENSOR
NULIDADE
INEXISTÊNCIA JURÍDICA
Data do Acordão: 02/26/2019
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – Em buscas domiciliárias judicialmente decretadas em que os suspeitos visados são cidadãos estrangeiros e que não compreendem ou dominam a língua portuguesa, não se verifica a exigência legal da presença de intérprete, nem de defensor.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal (1ª Subsecção) do Tribunal da Relação de Évora:

I
No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, nº 3/17.6 GASLV, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central Criminal de Portimão, mediante pronúncia, precedendo contestação [na qual, em síntese, os arguidos negam o cometimento dos factos e arguiram nulidades], foram submetidos a julgamento os arguidos LL e TT, (devidamente identificados nos autos), e por acórdão proferido e depositado em 05.11.2018 foi decidido:

“(…)
condenar cada um dos arguidos LL e TT, pela prática de um crime de tráfico, previsto e punido pelo artigo 21º nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93 de 22 de Janeiro, na pena de 7 (sete) anos e 8 (oito) meses de prisão.
*
Pelos motivos supra expostos, e nos termos do art. 212º nº 1 al. b) do Código de Processo Penal, o Tribunal decide ainda manter a medida de coacção de prisão preventiva a que os arguidos estão sujeitos.
*
O Tribunal condena os arguidos ao pagamento das custas do processo, fixando a taxa de justiça em 4 UC (art. 8º do Regulamento das Custas Processuais, com referência à Tabela III do mesmo diploma).
*
Por fim, o Tribunal manda restituir, declara perdidos a favor do Estado, e destina os objectos apreendidos à ordem destes autos nos precisos termos vertidos supra na fundamentação de direito do presente acórdão, sem prejuízo dos direitos de terceiros de boa fé a que alude o art. 36º-A do Decreto-Lei nº 15/93.
(…)”.
Inconformados com esta decisão, dela recorreram os arguidos, extraindo da respectiva motivação de recurso as seguintes conclusões:

1. Por acórdão datado de 05-01-2018 foram os arguidos condenados pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes na pena de sete anos e oito meses de prisão.

2. Os arguidos não se conformam com o acórdão recorrido e consideram que foram incorretamente julgados e apreciados pelo tribunal “a quo” os factos provados n.º 4, 5, 6, 7, 12, 13, 14, 15 e 16.

3. Os depoimentos prestados pelos assistentes FF desde o minuto 00:00 a 19:27 e da assistente MM ao minuto 00:00 a 10:39 impõem decisão diversa da ora recorrida.

4. Desde logo deveriam estes ter sido valorizados uma vez que resulta que estes não conhecem os arguidos, nunca os viram.

5. Encontram-se ainda incorretamente julgados os factos n.º 9,10 e 11 porquanto os autos de busca e apreensão se encontram feridos de nulidade e como tal tais factos nunca poderiam ter sido dados como provados.

6. Resultando ainda do depoimento prestado pelas testemunhas RP ao minuto 00:00 ao 29:34 e da testemunha AB ao minuto 00:00 a 16:02 que os arguidos/visados não foram devidamente informados e assistidos por interprete e por defensor conforme é legalmente obrigatório.

7. Assim e de toda a prova supra elencada deverá a matéria de facto impugnada ser dada como não provada.

8. Os factos impugnados impõem decisão diversa da ora recorrida e mostram-se em contradição com a decisão proferida.

9. Mais se refere que deverá existir um acrescento à matéria de facto dada como provada e da mesma deverá constar que as chaves dos imóveis sitos na Gateira encontravam-se em cima de um frigorífico e acessíveis a todos.

10. Termos em que deverá o acórdão recorrido ser revogado e em consequência deverão as provas supra indicadas serem renovadas, conforme estatui o artigo 412º, n.º 3, al. c) e 430º do C.P.P.

11. Da matéria de facto dada como provada consta que os arguidos encontravam-se em Portugal desde janeiro de 2017 e foram detidos em 7 de março de 2017, resultando das regras da experiencia comum que são precisos mais do que 1 mês ou dois meses para produzir uma plantação de cannabis, o que significa que tais culturas a terem ocorrido são anteriores à chegada dos arguidos a Portugal.

12. Por outro lado os arguidos não arrendaram nenhuma das casas e os próprios militares da GNR vieram prestar depoimentos contraditórios, tais factos à luz das regras da experiencia comum e à lógica normal da vida não poderiam ter sido dados como provados, pois mostram-se desde logo não verificados.

13. O que faz com que estejamos perante um erro notório da apreciação da prova, devendo o acórdão recorrido ser revogado.

14. Resulta ainda que a matéria de facto dada como provada em 6, 7 e 12 se encontra em manifesta contradição com a matéria de facto dada como não provada na alínea b) e i), pois não pode resultar provado que os arguidos tenham agido com o propósito de venderem as substância psicotrópicas e de auferirem lucros se resulta não provado que os arguidos agiram com o propósito de, pessoalmente, venderem tais substâncias no mercado.

15. Motivo pelo qual deverá o acórdão recorrido ser anulado por a matéria de facto dada como provada se encontrar em manifesta contradição com a matéria de facto dada como não provada, nos termos do disposto no artigo 410º, n.º 2, al. c) do C.P.P.

16. O erro em questão, quando resulta da decisão recorrida, constitui vício que implica a anulação daquela e o reenvio do processo para novo julgamento (artigo 410.º, n.º 2, alínea c), 426.º e 436.º todos do Código de Processo Penal. (Acórdão do STJ de 98.11.18, Proc.º n.º 615/98).

17. Mostra-se ainda violado o princípio da presunção na inocência e “In Dúbio Pro Reo”, devendo a decisão recorrida ser anulada e deverá ser proferida outra que absolva os arguidos nos termos do artigo 32.º, n.º 2 da nossa Constituição.

18. Os arguidos, ora Recorrentes invocaram a nulidade do auto de busca de fls. 69 a 75, 115 a 116, e 122 a 127 e dos demais actos subsequentes em virtude de o mesmo estar assinado por arguido que não entende, nem compreende a língua portuguesa, tendo assim sido preteridos os direitos, liberdades e garantias consagrados no artigo 120.º do Código de Processo Penal e constitucionalmente no seu artigo 32.º, n.º1 e 5 da CRP.

19. Tendo o tribunal “a quo” entendido que quando estamos perante a realização de buscas ordenadas judicialmente, não se verifica a exigência de estar presente um intérprete ou mesmo um defensor, pois que a diligência deverá ser realizada independentemente da prévia autorização ou consentimento do visado.

20. De facto tal é verdade as buscas autorizadas judicialmente ocorreram quer o visado queira ou não.

21. Porém olvida-se o douto tribunal “a quo” que numa busca, acto que é de extrema violência para o visado e para terceiros, tal como ocorreu no caso concreto em que houve destruição de várias portas e que temos uma situação de grande stress em que o visado é colocado.

22. A acrescentar temos dois arguidos que não entendem, nem falam português, a lei exige, quanto a nós no seu artigo 12.º, n.º 2, alínea c) do CPP a nomeação de interprete no caso em que temos o arguido a assinar, a comprovar um facto descrito num determinado documento e como aliás resulta também do artigo 92.º do CPP.

23. E dispõe o artigo 64.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Penal que é obrigatória a assistência de defensor em qualquer acto processual, à excepção da constituição de arguido, sempre que o arguido for desconhecedor da língua portuguesa.

24. Ora, in casu temos que para além de uma total ausência de intérprete durante a busca, certo é que os arguidos, desconhecedores da língua portuguesa não foram assistidos por nenhum defensor, o que consubstancia uma nulidade insanável nos termos do disposto no artigo 119.º, alínea c) do Código de Processo Penal.

25. Sem prescindir, sempre se dirá que caso assim não se entenda estamos perante uma nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal, pois constitui nulidade dependente de arguição a falta de nomeação de intérprete nos casos em que a lei considerar obrigatória, nulidade essa que o ora recorrente só tomou conhecimento em sede de audiência de discussão e julgamento e aquando da inquirição dos OPC’s, tendo de imediato arguido a nulidade, logo quando teve conhecimento da mesma, considerando-se assim que se estava em tempo para arguir a nulidade, devendo a mesma ser declarada procedente.

26. Veja-se a este propósito aquele que tem sido o entendimento dominante da nossa jurisprudência, nomeadamente o vertido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 256/16.7PAPVZ-B.P1, datado de 29-03-2017.

27. Assim o tribunal “a quo” violou o disposto no artigo 92.º n.º 2 do Código de Processo Penal, uma vez que, apesar de resultar dos autos que os recorridos não conhecem, e muito menos dominam a língua portuguesa, não lhe foi nomeado intérprete aquando da realização de busca, quer a domiciliária, quer a do armazém.

28. A inobservância da regra de nomeação de interprete, consubstância uma nulidade prevista no artigo 120.º n.º 2 alínea c) do Código de Processo Penal.

29. Apesar de constar dos autos que os arguidos são cidadãos de nacionalidade britânica, e não são conhecedores, e muito menos dominam a língua portuguesa foi também violado o disposto no artigo 64.º alínea d) do Código de Processo Penal, aquando da autorização e da realização da busca domiciliária, os recorrentes não estavam representados por defensor.

30. Tal situação constitui uma nulidade insanável prevista no artigo 119.º alínea c) do Código de Processo Penal, embora se admita que possa ter sido atabalhoadamente alegado pela defesa a verdade é que o facto de os arguidos/visados desconhecerem a língua portuguesa, não se encontrarem acompanhados de intérprete e de defensor irá acarretar forçosamente a nulidade de todos os demais actos subsequentes, pois estamos a falar de autos que fazem e valem como prova pré-constituída. Não podemos considerar que os arguidos são sujeitos passivos e que não necessitam de ver os seus direitos assegurados e bem assim os actos traduzidos para língua que compreendam.

31. Mais se refere que o auto de apreensão não poderá valer como prova, pois o OPC que apreendeu a droga não foi ouvido, nem foi indicado como testemunha, motivo pelo qual não poderá o auto de apreensão servir de prova pré-constituída.

32. Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 122.º do Código de Processo Penal, as nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem, pelo que, é manifesto que as buscas, quer domiciliárias, quer não domiciliárias, e as apreensões efetuadas são inválidas.

33. Devendo o tribunal “ad quem” declarar a nulidade da busca de fls. 69 a 75, 115 a 116, e 122 a 127 e dos demais actos subsequentes.

34. O acórdão recorrido viola ainda o vertido no artigo 13.º da nossa Constituição.

35. E é omisso quanto à ponderação da Lei n.º 33/2018 que Regula a utilização da planta, substâncias e preparações de canábis para fins medicinais e da alteração do bem jurídico protegido.

36. E que a pena deverá ser valorada em função do bem jurídico protegido pelo tipo de ilícito, que in casu é a saúde pública.

37. Sem prescindir, do que supra se referiu e defendeu temos in casu que os arguidos foram condenados numa pena de 7 anos e 8 meses e tais penas violam desde logo os princípios orientadores da teoria dos fins das penas.

38. As penas têm de ser absolutamente justas em função da culpa, como dispõe o artigo 40.º do Código Penal.

39. Sendo certo que um dos princípios basilares do nosso código penal reside na compreensão de que toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta.

40. Pelo que, consideramos que o tribunal “a quo” não teve em consideração o supra mencionado artigo do nosso Código Penal, relativamente à determinação da medida da pena de prisão aplicada.

41. Salvo o devido respeito, o tribunal “a quo” violou esses mesmos princípios orientadores da teoria dos fins das penas, é que a pena tem como primeira referência a culpa depois e num segundo momento, mas ao mesmo nível, a prevenção geral e especial.

42. No caso dos autos, as medidas da pena aplicadas são manifestamente elevadas.

43. Como supra se referiu deveria ter sido equacionado o artigo 40.º do Código Penal sobre os fins das penas, a não aplicação daquele dispositivo legal provoca um erro de determinação da pena aplicável in casu.

44. Termos em que e sem prescindir deve ser revogado o douto acórdão devendo ser proferido novo acórdão que tenha como base a aplicação da teoria dos fins das penas existente no nosso sistema penal, e optar-se pela absolvição dos arguidos, ora recorrentes, ou caso assim não se entenda sempre se dirá que devemos optar por uma pena de prisão inferior a cinco anos, sempre suspensa na sua execução.

Nestes termos e nos melhores de direito deverá V. Exa. dar provimento ao presente recurso e revogar o acórdão recorrido e em consequência deverão os arguidos, ora Recorrentes, serem absolvidos, assim se fazendo JUSTIÇA.”.

Admitido o recurso e notificados os devidos sujeitos processuais, o Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância, respondeu ao recurso interposto pelos arguidos, concluindo nos termos seguintes:

1- O âmbito do recurso retira-se das respectivas conclusões as quais por seu turno são extraídas da motivação da referida peça legal, veja-se por favor a título de exemplo o sumário do douto Acórdão do STJ de 15-4-2010, in www.dgsi.pt,Proc.18/05.7IDSTR.E1.S1.

2- “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso.

3- São assim, as conclusões quem fixam o objecto do recurso, artigo 417º, nº3, do Código de Processo Penal.

4- Não contém o Douto Acórdão impugnado qualquer erro de julgamento da matéria de facto, ou outro vício que o inquine.

5- A matéria constante na fundamentação do Douto Acórdão provou-se de modo inequívoco, não se justificando qualquer alteração.

6- As provas produzidas e analisadas em audiência de julgamento foram avaliadas pelo Tribunal “a quo” no seu todo e segundo o que preceituam os arts.124º a 127º, do Código de Processo Penal, entre outros preceitos legais.

7- Não têm os arguidos antecedentes criminais.

8- O "erro notório na apreciação da prova”, invocado pelos recorrentes, vem sendo entendimento unânime da doutrina e jurisprudência que ele apenas se terá como verificado em apertadas circunstâncias”. Erro notório na apreciação da prova é aquele que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta (Simas Santos e Leal Henriques, C.P.P. Anotado, I, 554) e traduz uma desconformidade do facto apurado com a prova.

9- Trata-se de emanação do princípio que vigora no nosso sistema processual penal, o princípio da livre apreciação da prova ou da livre convicção, consagrado no art. 127º, do C.P.P., de acordo com o qual e, ressalvados os casos em que a lei dispuser diferentemente, "a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente".

10- Os recorrentes não desconhecerão que o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório" (Prof. Cavaleiro Ferreira, em Curso de Processo Penal, 1986, 1.º vol., fls. 211).

11- O Tribunal “a quo” fez um exame crítico da prova, explicando de modo detalhado as provas que considerou, como e porquê as valorou, não procedendo os argumentos do recorrente.

12- Aludir a determinados depoimentos e deduzir e afirmar que determinados factos dados como provados no Douto Acórdão não deveriam ter sido considerados provados, ou que deveriam ter sido dados como provados outros, é compreensível, mas é argumento que se inclina perante o acervo de provas legais que existem nos autos e apontam sem margem de dúvida, para o cometimento pelos recorrentes do crime pelo qual foram condenados, embora o Douto Acórdão ainda não tenha transitado em julgado.

13- O Tribunal “a quo” teve em consideração para além das provas testemunhais que se descrevem e avaliam no Douto Acórdão, outras provas, tais como relatórios de vigilância, reportagens fotográficas, autos de busca e apreensão e outras informações elencadas no mencionado aresto, as quais em conjunto apontam de modo inequívoco os recorrentes como autores do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no artigo 21°, nº 1, do D.L. 15/93, de 22/1.

14- Não violou o Douto Acórdão que os arguidos impugnam, qualquer preceito da Constituição da República Portuguesa ou de direito criminal, tendo os arguidos sido condenados com base em provas legalmente produzidas, bastantes e adequadas, embora o Douto Acórdão ainda não tenha transitado em julgado e esteja a ser impugnado, tudo em conformidade com as normas legais em vigor.

15- No que respeita ao princípio do “in dubio pro reo”, não tinha o Tribunal “a quo” de o aplicar, uma vez que não se suscitaram dúvidas fundadas, sérias, relevantes, no que concerne à prática pelos arguidos dos factos dados como provados. Sabe-se que o aludido princípio se situa ao nível da apreciação da prova e valoração da matéria de facto e é corolário do princípio da presunção da inocência e só a dúvida sobre a realidade de um facto é que deve ser decidida a favor do arguido.

16- Diz a este propósito o Supremo Tribunal de Justiça: ”O princípio “in dubio pro reo”, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontrem na decisão ou na factualidade descrita e revelada nos autos. É, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.” (in www.dgsi.pt, acórdão do STJ., de 12/07/2005, 05P2315,JSTJ000).

17- Mais, “ - O «in dubio pro reo é um princípio geral do processo penal, pelo que a sua violação conforma uma autêntica questão-de-direito que cabe, como tal, na cognição do STJ. Nem contra isto está o facto de dever ser considerado como princípio de prova: mesmo que assente na lógica e na experiência (e por isso mesmo), conforma ele um daqueles princípios que (…) devem ter a sua revisibilidade assegurada, mesmo perante o entendimento mais estrito e ultrapassado do que seja uma «questão-de-direito» para efeito do recurso de revista» – Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.ª ed. (1974), Reimpressão, Coimbra Editora, 2004, págs. 217-218; cf., ainda, Cristina Líbano Monteiro, In Dubio Pro Reo, Coimbra, 1997, e Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 437.

18- Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.

19- Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo, em www.dgsi.pt, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-3- 2009”.

20- Não teve o Tribunal “a quo” dúvidas sobre a ocorrência dos factos dados como provados, e por isso não tinha de aplicar o princípio do “in dubio pro reo”.

21- Os arguidos impugnam a medida da pena e diz a propósito da medida da pena: o Prof. Germano Marques da Silva [Direito Penal Português, 3, pág. 130], que a pena será estabelecida com base na intensidade ou grau de culpabilidade (...). Mas, para além da função repressiva medida pela culpabilidade, a pena deverá também cumprir finalidades preventivas de protecção do bem jurídico e de integração do agente na sociedade. Vale dizer que a pena deverá desencorajar ou intimidar aqueles que pretendem iniciar-se na prática delituosa e deverá ressocializar o delinquente”.

22- Ou ainda, como se diz no Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:” II - Culpa e prevenção constituem o binómio que preside à determinação da medida da pena, art. 71.º, n.º 1, do CP. A culpa como expressão da responsabilidade individual do agente pelo facto, fundada na existência de liberdade de decisão do ser humano e na vinculação da pessoa aos valores juridicamente protegidos (dever de observância da norma jurídica), é o fundamento ético da pena e, como tal, seu limite inultrapassável – art. 40.º, n.º 2, do CP. III - Dentro deste limite, a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, in www.dgsi.pt, Proc. nº 315/11.2JELSB.E1.S1, 1-7-2015.

23- Da análise do Douto Acórdão extrai-se que foram ponderadas todas as circunstâncias que pesavam a favor e contra os arguidos e que o Tribunal “a quo” teve em consideração para a escolha e medida das penas aplicadas aos arguidos todos os critérios referidos nos arts.40º, 50º, 70º e 71º do Código Penal, conjugados com os factos que se provaram em audiência de julgamento, mostrando-se as penas de 7 anos e 8 meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, em sintonia com a culpa dos arguidos, e sem ter olvidado as suas ressocializações, devendo manter-se nos precisos termos que constam do Douto Acórdão.

24- Não padece o Douto Acórdão de nenhum vício ou nulidade, dos previstos no artigo 410º, nº2, do Código de Processo Penal ou em outros preceitos, tendo sido respeitados os preceitos legais aplicáveis de Direito Europeu Constitucional e Criminal.

25- Deve manter-se na íntegra o Douto Acórdão recorrido.

Negando provimento aos recursos ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA.”.

Remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no âmbito do qual sufraga, nos seus precisos termos, a resposta apresentada na instância pelo Digno Magistrado do Ministério Público, concluindo, em consequência, que o recurso deve ser julgado improcedente.

Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido feito uso do direito de resposta.

Foi efectuado o exame preliminar.
Foi realizada a Conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II
Como é sabido, o âmbito do recurso – seu objecto e poderes de cognição – afere-se e delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas no artigo 410º, nº 2, do aludido diploma, as cominadas como nulidade da sentença (cfr. artigo 379º, nºs 1 e 2, do mesmo Código) e as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal; a este propósito v.g. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28.12.1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242, de 03.02.1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e de 12.09.2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).

Acresce que, no âmbito dos poderes de cognição do Tribunal, este “não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, como claramente decorre do preceituado no artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º, do Código de Processo Penal.

Por outro lado, importa não olvidar que se o recorrente não retoma nas conclusões da respectiva motivação as questões que desenvolveu no corpo da motivação, porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso, o Tribunal ad quem só conhecerá das questões que constam das conclusões.

Porque assim, vistas as conclusões do recurso em apreço, verificamos que as questões suscitadas são as seguintes (agora ordenadas segundo um critério de lógica e cronologia preclusivas):

(i) - Se a decisão recorrida padece de nulidade, nos termos do estatuído no artigo 379º, nº 1, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal, porquanto valorou meio de obtenção de prova nulo [alegando os recorrentes que as buscas efectuadas são nulas porque, aquando da sua realização, os arguidos, de nacionalidade estrangeira, que não compreendem, nem se fazem compreender, a língua portuguesa, não foram assistidos nem por intérprete, nem por profissional forense, em violação do preceituado nos artigos 64º, nº 1, alínea d) e 92º, ambos do citado compêndio legal] e omitiu pronúncia sobre a Lei nº 33/2018, de 18.07 [que regula a utilização de medicamentos, preparações e substâncias à base da planta da canábis, para fins medicinais];

(ii) - Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto nos termos prevenidos no artigo 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, violando o princípio in dubio pro reo e o estatuído no artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa [reclamando os recorrentes que foram incorrectamente julgados os factos dados como provados na decisão recorrida constantes dos pontos sob os números “4.”, “5.”, “6.”, “7.”, “12.”, “13.”, “14.”, “15.”, e “16.” e bem assim os constantes sob os números “9.”, “10.”, e “11.”, porque fundados em meio de obtenção de prova nulo – as buscas, requerendo ainda o aditamento de um facto (a saber “as chaves dos imóveis sitos na Gateira encontravam-se em cima de um frigorífico e acessíveis a todos” porquanto, em sua opinião, a prova produzido na instância assim o impor];

(iii) - Se a decisão recorrida padece dos vícios a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, designadamente dos vícios mencionados nas alíneas b) e c), do mesmo preceito legal, de contradição insanável da fundamentação [entre os factos dados como provados nos pontos sob os números 6., 7., e 12. e os dados como não provados sob as alíneas b) e i) da decisão recorrida] e de erro notório na apreciação da prova;

(iv) - Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de direito no que respeita à medida da pena aplicada a cada um dos arguidos, violando o preceituado no artigo 40º, do Código Penal [pugnando pela sua comutação in melius por a considerarem “manifestamente elevada”].

III
Com vista à apreciação das suscitadas questões, o acórdão recorrido encontra-se fundamentado nos seguintes termos, a cuja transcrição se procede:
“(…)
* * *
Questões prévias
Invalidades processuais e de meios de prova

A Defesa arguiu a invalidade[1] dos seguintes meios de prova e de obtenção de prova:

a) Imagens de fls. 25, 26, 27 e 28, onde estão retratados os arguidos (contestação, e requerimento de 19/09/2018);

b) Documentos de fls. 106 e 144 (testes rápidos);

c) Auto de apreensão (de um telefone) de fls. 272 (requerimento de 19/09/2018);

d) Documento (Caixa Geral de Depósitos/Pagamentos ao Estado) bancário de fls. 257 (requerimento de 19/09/2018, e requerimento feito na sessão de 20/09/2018 da audiência de julgamento);

e) Relatórios de leitura e extracção de computadores portáteis, telemóveis e iphones;
*
f) Relatórios de diligência externa de fls. 7 e 11 (requerimento de 19/09/2018);

g) Imagens de fls. 15 a 24, e 29 (requerimento de 19/09/2018);

h)Diligências de busca e apreensão (requerimento feito na sessão de 20/09/2018 da audiência de julgamento).

Antes de se passar ao mais que importa cumpre desde já assinalar que, quanto a alguns dos aludidos elementos processuais, a Defesa parece laborar em equívoco;

Com efeito, os elementos supra elencados em a) a e) (documentos de fls. 25, 26, 27 e 28; auto de apreensão de fls. 272, documento bancário de fls. 257 e “Relatórios de leitura e extracção de computadores portáteis, telemóveis e iphones”) não foram indicados como prova no despacho que pronunciou o arguido. Por outro lado, o objecto apreendido a fls. 272 (ou o seu conteúdo) também não foi oferecido ou admitido como prova nos autos. Por fim, nenhuma das provas efectivamente oferecidas ou produzidas em audiência depende (sequer remotamente, e assim na sua obtenção tal como na sua valoração), de qualquer dos mencionados elementos a que se apontam invalidades. Pelo que é (além de estranho ao objecto do processo) totalmente inconsequente apreciar nos presentes autos qualquer eventual invalidade processual respeitante a tais elementos (arts. 4º do Código de Processo Penal e 130º do Código de Processo Civil).

Vejamos se quanto ao mais (pontos f) a g) supra elencados) se verifica alguma invalidade.
* * *
De acordo com a arguição da Defesa os relatórios de diligências externas de fls. 7 e 11 e as respectivas imagens não podem servir de prova nos autos (sendo que apenas foram indicadas como prova no despacho de pronúncia as de fls. 15 a 24, e 29; As restantes fotos daqueles relatórios não o foram). E assim porque a recolha das imagens dos relatórios não foi precedida de despacho judicial autorizativo, ao contrário do que impõe o art. 6º nº 2 da Lei nº 5/2002 de 11 de Janeiro, o que fere de nulidade tais meios de prova. Além disso, os relatórios mais não são do que textos escritos pelos órgãos de polícia criminal, não sendo admissíveis testemunhos prestados por escrito.

O Ministério Público manifestou o entendimento de que os referidos meios de prova não padecem de qualquer invalidade.

Entende o Tribunal que não assiste razão à Defesa.

Por um lado, afigura-se-nos patente a admissibilidade dos relatórios propriamente ditos, que mais não são do que autos onde se documenta com detalhe as averiguações e percepções dos órgãos de polícia criminal, que mais resumidamente ficaram vertidos no auto de notícia de fls. 3 (art. 243º do Código de Processo Penal, CPP). É pois manifesta a admissibilidade de tal meio de prova documental (cfr. desde logo a previsão expressa do art. 356º nº 1 al. b) do CPP).

Por outro lado, as imagens de fls. 15 a 24 e 29 apenas retratam locais, nelas não figurando qualquer pessoa. Ora, a recolha de imagens de locais não está sujeita a qualquer autorização especial uma vez que é, sem mais, perfeitamente lícita (art. 125º do CPP[2]). Pelo que a tais imagens é inaplicável o art. 6º nº 2 da Lei nº 5/2002, que regimenta tão-somente a recolha de imagens sujeitas a consentimento dos visados (cfr. nº 1 do referido artigo).
* * *
A Defesa arguiu ainda, durante a audiência de discussão e julgamento (requerimento feito na sessão de 20/09/2018), a nulidade das diligências de busca e apreensão que tiveram lugar no inquérito (fls. 69 a 75, 115 a 116, e 122 a 127), por os respectivos mandados não terem sido traduzidos para a língua materna dos arguidos nem lhes ter sido nomeado intérprete, e por os arguidos não terem tido, durante as buscas, assistência de defensor.

Fundamentou a sua posição nos arts. 92º nos 1 e 2, e 64º nº 1 al. d), todos do CPP, e concluiu que tais invalidades constituem nulidades nos termos dos arts. 120º nº 2 al. c) do CPP (falta de nomeação de intérprete, quando obrigatória) e 119º al. c) do CPP (ausência de defensor quando a sua presença seja obrigatória).

Antes do mais, diga-se que do próprio teor do requerimento apresentado pela Defesa resulta que a arguição da nulidade respeitante à falta de nomeação de intérprete (e tradução dos mandados de busca emitidos pelo juiz de instrução) é patentemente extemporânea. Com efeito, da disposição conjugada das normas do art. 120º nº 2 al. c) e nº 3 al. c)[3] do CPP resulta que se esgotou o prazo de arguição de tal nulidade quando ocorreu o encerramento do debate instrutório, momento em que ficou precludido o direito de a invocar. Sem prejuízo da intempestividade apontada, por si suficiente para indeferir o requerido na parte respeitante à falta de nomeação de intérprete, vejamos se os actos em causa padecem de alguma invalidade.
*
Com pertinência para o que agora se decide, dos autos decorre que:

. Em 14/02/2017 a juíza de instrução autorizou a realização de buscas domiciliárias, visando os então suspeitos e agora arguidos LL e TT, a decorrer numa moradia da Galé e numa quinta sita nas Gateiras em Tunes, tendo em 16/02/2017 sido emitidos os respectivos mandados (fls. 44 e 67);

. Em 09/02/2017 o Procurador-Adjunto que então presidia ao inquérito ordenou a realização de busca, que também visava os mesmos suspeitos/arguidos, a ser levada a cabo num veículo automóvel Ford Mondeo, tendo em sido emitidos os respectivos mandados em 20/02/2017 (fls. 40 e 114);

. Em 07/03/2017 foram levadas a cabo as três diligências de busca supra mencionadas (respectivamente, autos de busca e apreensão de fls. 69 a 75, 122 a 127, e 115 a 116);

. Os arguidos falam inglês e não falam, ou percebem pouco, a língua portuguesa (testemunhos ouvidos em audiência de julgamento, designadamente RP, AB e JV);

. Durante as buscas as trocas de palavras entre os suspeitos/arguidos e os militares que levaram a cabo as diligências, de teor não apurado, ocorreram em inglês, uma vez que pelo menos alguns dos militares falam algum inglês, embora não dominem perfeitamente a língua (testemunhos ouvidos em audiência de julgamento, designadamente RP e AB).
*
As normas do CPP invocadas pela Defesa para sustentar a sua posição têm o seguinte teor:

Artigo 92.º
Língua dos actos e nomeação de intérprete

1 - Nos actos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa, sob pena de nulidade.

2 - Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada.
(...)
(...)

Artigo 64.º
Obrigatoriedade de assistência

1 - É obrigatória a assistência do defensor:
(...)
d) Em qualquer acto processual, à excepção da constituição de arguido, sempre que o arguido for cego, surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída;
(...)
(...)
Artigo 119.º
Nulidades insanáveis
Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
(...)
c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;
(...)
(...)
Artigo 120.º
Nulidades dependentes de arguição
(...)
2 - Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:
(...)
c) A falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória;
(...).
*
Posto o que antecede, é manifesto as invalidades apontadas pela Defesa não ocorreram in casu.

Desde logo, inexiste norma que imponha a tradução para língua estrangeira dos mandados de busca emitidos (e, fazendo nossa a posição vertida no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 01-04-2008[4]: não existe tutela legal para pedidos genéricos de tradução para língua estrangeira de todos actos praticados no processo). Para além de inexistir fundamento normativo para tal tradução para língua estrangeira, não se vislumbra igualmente norma que atribuísse qualquer consequência específica a tal omissão. Pelo que a haver alguma invalidade (que, repita-se, não se detecta), há muito a mesma estaria sanada, nos termos dos arts. 121º e 123º do CPP.

No que toca à nomeação de intérprete não pode haver equívoco: decorre expressamente do art. 120º nº 2 al. c) do CPP que só há nulidade quando falte nomeação de intérprete nos casos em que a lei a considerar obrigatória. Ora, nos termos do art. 92º nº 2 do CPP só se nomeia intérprete quando o arguido, desconhecedor da língua portuguesa, houver de intervir no processo. Pois bem, evidentemente que na realização de buscas e apreensões realizadas em cumprimento de mandados do juiz de instrução e de magistrado do Ministério Público o arguido não tem qualquer intervenção, nem tem de ter intervenção. As buscas fundadas em mandados de magistrado realizam-se, naturalmente, à revelia e independentemente de qualquer vontade, declaração, acto ou intervenção do arguido. E, em decorrência, não é obrigatória a nomeação de qualquer intérprete.

Posto isto, logo se conclui que o caso dos autos é diametralmente oposto ao que estava sub iudice no aresto que a Defesa invocou em abono da sua tese (acórdão da Relação do Porto de 29-03-2017 tirado no processo 256/16.7PAPVZ-B.P1 e publicado em www.dgsi.pt): nesses outros autos estava em causa uma busca fundada no consentimento voluntário, e a busca aí invalidada teve por base uma declaração feita em português[5] de um emitente (o aí arguido) que não conhecia bem nem dominava a língua portuguesa, pelo que, assim se disse no aludido acórdão, essa intervenção processual do arguido (a prestação de consentimento para a busca) deveria ter sido acompanhada de intérprete.

O que se disse supra vale, mutatis mutandis, para a obrigatoriedade de assistência por defensor durante as buscas realizadas. E assim porque a norma do art. 64º nº 1 al. d) do CPP —É obrigatória a assistência do defensor (...) em qualquer acto processual (...) sempre que o arguido for (...) desconhecedor da língua portuguesa (...)— só pode ser interpretada no sentido de que a assistência de defensor ao arguido que não fala português é obrigatória nos actos processuais em que o arguido deva ter intervenção[6]. Uma vez que, como se disse já, as buscas sustentadas em mandados são actos processuais independentes de qualquer intervenção do visado ou do arguido (antes se realizam à sua revelia e independentemente da sua vontade ou qualquer participação), evidentemente que inexiste qualquer obrigatoriedade processual de, no seu decurso, haver assistência por defensor.

E contra o que acaba de dizer-se não convence o disposto no art. 176º do CPP (formalidades da busca), quando dispõe que antes de se proceder a busca é entregue, a quem tiver a disponibilidade do lugar em que a diligência se realiza, cópia do despacho que a determinou, na qual se faz menção de que pode assistir à diligência e fazer-se acompanhar ou substituir por pessoa da sua confiança e que se apresente sem delonga. Desde logo, aquela norma não impõe a obrigatoriedade de comparência de defensor (exigência que é conditio sine qua non da nulidade prevista no art. 119º al. c) do CPP). Mas, mais relevante, a norma do art. 176º do CPP não tem como visado o arguido ou sequer o suspeito, ela tem como destinatário toda e qualquer pessoa que tenha a disponibilidade do lugar onde se realizará a diligência. Motivo pelo qual a pessoa que pode acompanhar a diligência (e assim mesmo que seja advogado e mesmo admitindo que já houve constituição de arguido) não estará na veste de defensor; processualmente o seu papel é, tão-somente, o de pessoa da confiança de quem tem a disponibilidade do local.

Em remate, bem se entende que a lei processual não faça depender a validade das diligências de busca fundadas em mandados na presença de intérprete ou defensor: para contornar toda e qualquer investigação bastaria nesse caso atribuir a guarda de um local a alguém que só falasse uma língua exótica, e a partir desse momento mão mais se realizaria uma busca enquanto não se encontrasse outro falante do idioma remoto. Estaria encontrada a maneira de, na prática, suprimir a acção da justiça em todo e qualquer local reservado que se desejasse, solução aberrante e que contenderia directamente com a celeridade da realização da diligência expressamente prevista na norma do art. 176 do CPP.

Pelos motivos expostos, não se verifica qualquer das apontadas nulidades.
* * *
Posto o que antecede, a instância mantém os pressupostos de validade e regularidade que antes lhe foram reconhecidos, não sendo conhecidas quaisquer outras excepções, nulidades ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

II. Fundamentos
Factos
Factos provados
Com interesse para a decisão resultaram provados os seguintes factos:

da pronúncia
1. Os arguidos, LL e TT, são de nacionalidade inglesa e encontram-se em Portugal desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde de Janeiro de 2017.

2. Fixaram residência numa moradia sita na Estrada …, na localidade da Galé, do concelho de Albufeira.

3. Pelo menos desde essa altura, pese embora anteriormente tenham tido actividades profissionais, os arguidos LL e TT não mais se dedicaram, com o mínimo de regularidade, ao exercício de qualquer outra actividade profissional.

4. Pelo menos desde Janeiro de 2017, os arguidos LL e TT passaram a dedicar-se à projecção, criação, execução e desenvolvimento de estufas para produção de produtos estupefacientes, mais concretamente de canabis e haxixe,

5. O que fizeram na moradia que habitavam com carácter permanente, sobretudo na parte das duas garagens, e ainda nuns anexos e nos quartos que compunham uma habitação em construção implantada numa quinta sita no lugar de Gateiras, da freguesia de Tunes, concelho de Silves, de que é proprietário FF.

6. Os arguidos projectaram, conceberam, executaram, construíram, e mantiveram, nesses dois locais, pelo menos seis estufas para produção de plantas

7. E com o propósito de que tais substâncias estupefacientes fossem vendidas no mercado, e auferirem lucros.

8. Os arguidos LL e TT, faziam-se deslocar no veículo de matrícula ---EYM, marca “Ford”, modelo “Mondeo”, cor azul marinho.

9. No dia 7 de Março de 2017, pelas 7 horas da manhã, na habitação dos arguidos LL e TT, sita na Estrada de Vale Rabelho, ---, Galé, Albufeira, aqueles tinham os seguintes objectos:

No corredor/hall de entrada da residência R/C, designado pela letra A:
A1 – Uma Pasta de cor azul contendo vários documentos relacionados com contas de água/electricidade;

A2 – Um envelope contendo no seu interior documentação bancária em nome de Mrs. K.J.Cornwell;
*
Na cozinha, designada pela letra B:
1.No interior do congelador do frigorífico:
B1 – Um saco de cor cinzento contendo no seu interior cerca de 280 gramas de canabis seco/congelado;
B2 – Um saco de cor azul contendo no seu interior cerca de 200 gramas de canabis seco/congelado;

2.Em cima da bancada da cozinha:
B3 – Uma balança digital sem marca, modelo ou número de série, de cor cinzento;

3. No interior do armário da cozinha:
B4 – Uma plastificadora (utilizada para selar e embalar sacos), de cor branca, marca “QUIGG”;

4. Na dispensa, designada pela letra C:
C1 – Um envelope contendo no seu interior 5 embalagens de sementes de canabis (vazias);
*
Na sala da residência, designada pela letra D:
1.Em cima da mesa da sala:
D1 – Uma balança digital sem marca e modelo, com o número de série MAG-1000, de cor cinzenta;
D2 – Um saco em plástico com as inscrições “Apolónia”, contendo no seu interior cerca de 680 gramas de cabeças de canabis seco;
D3 – Um livro “Marijuana” – Manual sobre cultivo de plantas de canabis;
D4 – Uma máquina/prensa, para produção de Haxixe, a partir da planta de canabis;
D5 – Uma plastificadora (utilizada para selar e embalar sacos), de cor branca, marca “FOOD SAVER”, modelo V3040;
D6 – Uma máquina fotográfica digital, marca “COOLPIX-P900”, com o número de série 4002447, com 2 cartões de memória, (um na máquina) e respectiva bolsa de transporte;
D9 – Dois rolos de sacos para embalagem de canabis e um Rolo de papel vegetal;

2. No chão, debaixo da mesa da sala:
D7 – Um saco em plástico de cor preto, contendo no seu interior cerca de 1100 gramas de canabis seco;
D8 – Um saco em plástico de cor verde, contendo no seu interior cerca de 800 gramas de canabis seco;

3. No sofá da sala:
D10 – Cerca de 2,1 gramas de Haxixe;

4. No canto da sala:
D11 – Uma TV LCD, marca “Samsung”, modelo UE55F66 70SBXXU, com o número de série ZAY43SCF300116P, com o respectivo comando;

5. Em cima de uma mesa em vidro:
D12 – Três rolos de fita adesiva para embalamento;
D13 – Conjunto de uma peneira e respectiva aparador com resíduos de Haxixe, (serve para peneirar a planta de canabis após seca e seguidamente produzir Haxixe);
D14 – Um rolo de película almofadada para embalamento, acondicionamento e transporte;
D15 – Conjunto de uma peneira e respectiva aparador, (serve para peneirar a planta de canabis após seca e seguidamente produzir Haxixe), ainda com cerca de 460 gramas de canabis seco;
D16 – Uma caixa em cartão contendo no seu interior cerca de 1100 gramas de canabis seco;
D17 – Uma caixa em cartão contendo no seu interior cerca de 600 gramas de canabis seco;
D18 – Um saco em plástico transparente, contendo no seu interior cerca de 1600 gramas de canabis seco;

6. No chão da sala, junto à mesa em vidro:
D19 – Seis caixas em cartão ainda por montar, para embalamento de canabis;
*
No quarto (não utilizado), designado pela letra E:
E1 – Vários sacos em alumínio utilizado em estufas para revestimento de paredes;
*
Quarto de LL, designado pela letra G:
1. Em cima da mesa-de-cabeceira:
G1 – Um telemóvel de marca “Samsung”, com o IMEI 354 333 072 ----;
2.No interior da gaveta da mesa-de-cabeceira:
G2 – 350 euros em dinheiro;
G6 – Um caderno quadriculado com esquemas para edificação de estufas de canabis;

4. Em cima da cama:
G3 – Um telemóvel de marca “APPLE”, modelo iPhone 6, com o código de bloqueio de ecrã 808808, com o IMEI 355 405 073----;

5. Em cima de uma mesa:
G4 – Uma TV LCD, marca “Sony”, modelo KDL-50W656A, com o número de série 6312481 e respectivo comando;

6. No interior da gaveta da mesa:
G5 – Um computador portátil de marca “APPLE MAC BOOK AIR”, modelo A1465EMC2631, com o número de série C02N9H7GG083, de cor prateado;
*
No quarto de TT no 1º andar, designado pela letra N:
N1 – Uma TV LCD, marca “GOODMANS”, modelo LD3265D, com o número de série 6256494700172;
N2 – 385 euros em dinheiro;
*
Garagem, designada pela letra P:
P1 – Um filtro de carvão, (serve para suprimir odores);
P2 – Manga para circulação de ar, e diminuição de ruído, (utilizado em estufas de canabis);
P3 – Uma caixa em cartão, contendo no seu interior 6 sacos de canabis seco e prensado (embalado), com o peso de cerca 4.000 gramas;
P4 – Um saco contendo no seu interior diversos envelopes almofadados para embalamento de canabis;
P5 – Diverso material eléctrico utilizado na edificação de estufas: - 1 Transformador, - 1 Temporizador e 12 tomadas eléctricas;
P6 – Máquina de musculação, diversos alteres e acessórios;
*
Estufa 1, edificada no piso da garagem, designada pela letra Q:
Q1 – Diversos ramos de planta de canabis em fase de secagem, com o peso de cerca de 8.120 gramas;
- 190 vasos (onde estiveram plantadas as plantas mencionadas na linha anterior);
- Vinte lâmpadas de alta pressão com respectivo reflector;
- Diversos tubos de ventilação;
- Seis tubos em forma de (T) de derivação das mangas de ar;
- Treze ventoinhas;
- Três extractores de ar;
- Dois filtros de carvão para suprimirem cheiros;
- Um desumidificador;
- Vinte e um transformadores/estabilizadores de corrente/tensão eléctrica;
- Dois filtros de carvão em forma cúbica;
- Dois ar condicionados de marca “DAIKIN” e respectiva unidade exterior multi split;
- Um quadro eléctrico;
- Diversos tubos de rega;
- Diversos cabos eléctricos;
- Diversas calhas metálicas utilizadas para distribuição de cabos eléctricos;
- Armação metálica suspensa no tecto para suporte de equipamento;
- Trinta e sete vasos utilizados na plantação de plantas de canabis;
*
Estufa 2, edificada no piso da garagem, designada pela letra S:
S1 – Diversos ramos de planta de canabis em fase de secagem, com o peso de cerca de 4.680 gramas;

- 137 vasos (onde estiveram plantadas as plantas mencionadas na linha anterior);
- Uma ventoinha;
- Um desumidificador;
- Três extractores de ar;
- Diversos tubos de ventilação;
- Um filtro de carvão para suprimir cheiros;
- Um filtro de carvão em forma cúbica;
- Um ar condicionado móvel de marca “EOLUS35”;
- Dois medidores de humidade de marca “VDL”;
- Onze lâmpadas de alta pressão com respectivo reflector;
- Doze transformadores/estabilizadores de corrente/tensão eléctrica;
- Uma bomba de água com capacidade 60 l/m marca “WATER MASTER ACO-004”;
- Uma mini estufa de produção de cogumelos alucinogénios;
- Dois ar condicionados de marca “DAIKIN” e respectiva unidade exterior multi split;
- Uma electrobomba de marca “MADER GARDEN 800W”, modelo JGP-JH-8006;
- Dois depósitos de água com capacidade de 1000 litros cada;
- Diversos tubos de rega;
- Armação metálica suspensa no tecto para suporte de equipamento;
- Um quadro eléctrico;
- Diversos cabos eléctricos;
- Seis bancadas para produção de canabis em aço Inox;
*
No alpendre, designado pela letra U:
- U1 – No interior de uma arca congeladora, um saco plástico de cor preto contendo no seu interior 1660 gramas de canabis seco / congelado.

10. No dia 7 de Março de 2017, pelas 8h40, na quinta sita nas Gateiras, freguesia de Tunes, concelho de Silves, os arguidos tinham os seguintes objectos:

No Anexo 1, identificado com o alfanumérico A:
Constituído por um pré-fabricado, estufa em fase de construção composta por 12 vasos em plástico, 19 apliques para lâmpadas de alta pressão, 1 filtro de carvão em forma cilíndrica, 6 ventiladores, 7 terminais/ligação metálicos, 1 filtro de carvão em forma cubica, diversos metros de manga em alumínio e calhas metálicas de suporte e 1 vaso quadrado com uma lâmpada de alta pressão no seu interior;

- (A1) Na parede do anexo 1
- 1 Catana;
- (A2) No exterior junto ao anexo 1
(01) Uma bomba de puxar agua;
(01) Um relógio programador;
(01) Um doseador automático;
(05) Cinco Medidores de PH;
Vários frascos com fertilizantes;
*
No Anexo 2, identificado com o alfanumérico B:
Constituído por um pré-fabricado, estufa já edificada pronta a ser utilizada composta por, 22 apliques de lâmpadas de alta pressão, 4 ventoinhas, 8 ventiladores/extractores, 2 filtros de carvão em forma cubica, 1 filtro de carvão em forma cilíndrica, 1 lâmpada de alta pressão, 4 ar condicionados portáteis, 78 vasos em plástico, 8 calhas metálicas de suporte e 2 ar condicionados de parede fixos de marca LG;
*
No Contentor identificado com o alfanumérico C:
No seu interior:
(02) Dois filtros de carvão em forma cilíndrica;
(01) Um rolo de tubo PVC para rega medida 16X1/4;
(01) Um aspirador;
(01) Um ventilador;
(09) Nove vasos em plástico;
(01) Um gerador de Ozone;
(04) Quatro couverts, para germinação;
(01) Uma lâmpada de alta densidade;
(01) Uma resistência de calor marca HOT BOX;
(48) Quarenta e oito caixas metálicas, para produção de transformadores;

(C1) No exterior junto ao contentor
(18) Dezoito terminais/ligação metálicos;
*
Na Habitação, identificada com o alfanumérico D:

Quarto identificado com o alfanumérico (DA):
-Usado como estufa em pleno funcionamento contendo 107 pés de plantas canabis em fase de floração, 2 apliques para lâmpadas de alta pressão, 2 transformadores, 1 programador de energia e 1 ventoinha;
*
Quarto identificado com o alfanumérico (DB):
-Também usado como estufa em pleno funcionamento contendo 46 pés de plantas canabis em fase de floração, 4 apliques para lâmpadas de alta pressão, 2 transformadores,2 pacotes de fertilizante de marca TNC e 1 ventoinha;
*
Casa de Banho identificado com o alfanumérico (DC)
(06) Seis frascos de adubo líquido;
(02) Dois sacos de adubo granulado;
(03) Três medidores de PH;
*
Cozinha identificado com o alfanumérico (DD)
- Junto à porta do quarto ao qual foi atribuído o alfanumérico (DD1)
(01) Um ar condicionado portátil;
(01) Um aparelho para secagem de canabis;
(01) Uma resistência de calor;
(07) Sete couverts para germinação;
(03) Três filtros de carvão forma cilíndrica (1 grande e 2 pequenos);
(04) Quatro apliques para lâmpadas de alta pressão;
(01) Um candeeiro com lâmpada fluorescente;

- Armário da cozinha no lado esquerdo da bancada, ao qual foi atribuído o alfanumérico (DD2)

(01) Uma caixa de papelão contendo no seu interior 3 saquetas de regulador de PH;
(07) Sete frascos de fertilizante;
(01) Um aparelho medidor de PH;
(01) Uma seringa;
(01) Uma lâmpada de alta pressão;
(01) Um transformador;
(02) Duas agendas com diversos apontamentos;
(01) Um rolo de plástico para embalamento em vácuo;

- Armário da cozinha no lado direito da bancada, ao qual foi atribuído o alfanumérico (DD3)

(01) Um forno de secagem para plantas canabis;
(01) Um compressor para alimentação do forno de secagem;

- Armário da cozinha debaixo da bancada lado direito, ao qual foi atribuído o alfanumérico (DD4)

(01) Uma máquina de selagem usada para o embalamento;
(01) Uma balança digital de marca Gorge Home, modelo EK9325;

- Parte superior do armário da cozinha lado direito, ao qual foi atribuído o alfanumérico (DD5)

(01) Um filtro de carvão em forma cilíndrica;
(01) Um extractor;
(01) Uma manga em alumínio;

- Na cozinha ao lado do sofá, ao qual foi atribuído o alfanumérico (DD6)
(04) Quatro caixas de papelão contendo no seu interior canabis seco;
(01) Um saco em papel contendo no seu interior canabis seco;
(01) Um saco de plástico preto contendo no seu interior canabis seco; (O peso total aproximado de canabis seco apreendido neste alfanumérico foi de 6,250 kg);
(01) Um pulverizador;

- Na cozinha junto à janela, ao qual foi atribuído o alfanumérico (DD7)

(01) Um garrafão de fertilizante de 10 litros;
(01) Um ar condicionado portátil marca TRONIC, código produto 0151100047;
(03) Três extractores;
(01) Uma ventoinha;
(01) Um aquecedor a gás;
(01) Um terminal/ligação metálica;
(01) Um cesto de compras contendo no seu interior vários sacos pretos utilizados para plantação de plantas de canabis;
(255) Duzentos e cinquenta e cinco vasos em plástico de diversos tamanhos;
(01) Um vaso em plástico contendo no seu interior várias embalagens de fertilizantes;

- Na cozinha junto à porta de saída / armário, ao qual foi atribuído o alfanumérico (DD8)

(03) Três bidons de fertilizante de 25 litros;
(01) Um bidon de fertilizante de 25Kg;
(01) Um bidon de fertilizante de 12kg;
(01) Um bidon de fertilizante de 10 litros;
(02) Dois bidons de fertilizante de 5 litros;
(01) Um frasco de fertilizante 1 litro;
(01) Um garrafão de água de 5 litros contendo no seu interior fertilizante;
(01) Uma resistência de calor marca HOT BOX;
(02) Dois extractores;
(01) Uma lâmpada de alta pressão de 400W;
(01) Uma caixa em esferovite com uma encomenda postal de saquetas de fertilizante em gel;
(01) Um saco de compras contendo no seu interior diversos sacos para embalamento de canabis;
(01) Um rolo de fita metálica utilizado para a produção de braçadeiras;
(05) Cinco frascos de fertilizante;
(01) Uma balança digital de marca CIATRONIC;
(01) Um regulador de potência de energia;
(06) Seis temporizadores;
(01) Um medidor de temperatura;
Diversas braçadeiras metálicas;

- Por cima da janela da cozinha, ao qual foi atribuído o alfanumérico (DD9)
(01) Um ar condicionado de parede fixo de marca HICE.

11. Nas circunstâncias descritas, os arguidos detinham, assim:
a. 1,512 gramas (peso líquido) de canabis (resina), com um grau de pureza de 37,3% de THC, suficientes para 11 doses para consumo individual;

b. 10,671 gramas (peso líquido) de cogumelos com psilocina/psilocibina;

c. 18,6527 quilogramas (peso líquido) de canabis (folhas ou sumidades floridas), com um grau de pureza de 14,4% de THC, suficiente para 53.719 doses para consumo individual;

d. 5,8009 quilogramas (peso líquido) de canabis (folhas ou sumidades floridas), com um grau de pureza de 5,8% de THC, suficiente para 6.729 doses para consumo individual;

e. 2,8066 quilogramas (peso líquido) de canabis (folhas ou sumidades floridas), com um grau de pureza de 1,4% de THC, suficiente para 785 doses para consumo individual.

12. Os arguidos conheciam a natureza e características de tais substâncias, e por isso é que as escondiam, e destinavam as mesmas à venda a terceiros mediante uma contrapartida monetária.

13. Os arguidos agiram sempre de forma conjunta e concertada, por forma a melhor prosseguiram os seus intentos.

14. Agiram igualmente de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que tais condutas não lhes eram permitidas, e que as mesmas eram punidas por lei.

15. Os materiais supra descritos foram utilizados pelos arguidos na construção e na manutenção das estufas, o veículo em que se faziam deslocar era utilizado nas deslocações que efectuavam entre os dois locais indicados.

16. À data dos factos os arguidos não desenvolviam qualquer outra actividade remunerada.

da contestação
17. Nunca alguém comprou qualquer produto estupefaciente descrito no despacho de pronúncia.

da audiência
18. Os arguidos não registam antecedentes criminais.

Factos não provados
Com relevância para a decisão ficaram por provar os demais factos da pronúncia e da contestação.

Ficou, designadamente, por provar:

da pronúncia
a) Quais as concretas actividades profissionais que os arguidos já tiveram;
b) Que os arguidos agiram com o propósito de, pessoalmente, venderem tais substâncias estupefacientes no mercado;
c) Que com os ganhos obtidos com venda de estupefacientes os arguidos LL e TT faziam face às suas despesas correntes, de alimentação, vestuário, gás, electricidade, água, combustível, renda da casa, etc, e ainda obtinham um substancial para aforro e investimento;
d) Que as quantias monetárias que foram encontradas na posse dos arguidos, os telemóveis e os LCDs, eram utilizadas pelos arguidos na sua actividade ilícita e eram provenientes dos lucros obtidos com tal actividade.

E da contestação[7]
e) Os arguidos chegaram a Portugal no fim de Janeiro de 2017.

f) Quando os arguidos chegaram a Portugal todos os aparelhos, materiais e plantas descritos em P1 a P6 do facto provado 9, já se encontravam nessa divisória da casa; Assim como tudo o que se encontra descrito em Q1, S1, U1 do facto provado 9.

g) Quanto a tudo quanto se encontra descrito e relacionado relativamente ao Anexo 1 identificado com o alfanumérico A, bem como no Anexo 2 com o alfanumérico B, assim como em relação ao contentor identificado com o alfanumérico C, na habitação identificada com o alfanumérico D (DA, DB, DC, DD – DD1 a DD9), tudo do facto provado 10, já se encontrava tudo exactamente assim no final de 2016.

h) Nada disso foi para aí transportado ou colocado ou montado ou plantado pelos arguidos.

i) A maturação e crescimento das plantas encontradas nos locais alvo de busca não ocorreu no período de 1 mês e 7 dias.

j) Não foi levado para a casa da Galé, pelos arguidos, os objectos e produtos enumerados em A1, A2, B1, B2, B3, C1, D1, D2, D3, D4, D7, D8, D9, D11, D12, D13, D14, D15, D16, D17, D18, D19, E1, G6, G4 e N1 do facto provado 9. Já aí se encontravam quando os Arguidos foram viver para essa casa temporariamente e a convite de um amigo chamado Matthew.

k) Os arguidos tinham trazido do Reino Unido o haxixe referido em D10 do facto provado 9 e destinavam-no exclusivamente ao seu consumo.

l) Os arguidos eram consumidores de haxixe.

m) Os arguidos vieram passar férias ao Algarve a convite de amigos.

n) Os arguidos não arrendaram qualquer casa nem pagaram qualquer renda a quem quer que fosse.

o) Os amigos que convidaram os arguidos a passar férias no Algarve pediram-lhes como contrapartida que alimentassem e desse água a dois cães que se encontravam naquilo que julgavam ser uma mera exploração agrícola.

p) Para tomarem conta da casa da Galé e da propriedade e cães do sítio das Gateiras foi prometido aos arguidos € 350 semanais para cada um do seu amigo Matthew.

q) Os arguidos e receberam efectivamente € 350 semanais.

r) Os arguidos não tiveram de pagar água, electricidade ou renda. Os Arguidos foram convidados em Liverpool para passarem umas férias pagas e cuidarem e vigiarem duas propriedades, sitas em Tunes (Lugar de Gateiras) e na Estrada de Vale de Rabelho, e dois cães pelo amigo M.J. Cornwell,

s) Recebiam em numerário de M.J. Cornwell € 350 euros semanais em numerário, mais o equivalente a renda, água e luz que não tinham de pagar enquanto desempenhassem as suas funções.
*
Não nos pronunciamos quanto ao restante articulado na pronúncia e contestação uma vez que se reporta questões de direito, não tem relevância criminal ou circunstancial, encerra teor conclusivo ou demasiado vago, ou constitui mera repetição de outros factos já elencados, e por tais motivos não tem pertinência para a presente decisão.

Motivação da decisão quanto aos factos
Para a formação da convicção quanto aos factos provados, o Tribunal baseou-se na apreciação crítica da prova produzida em audiência de julgamento ponderada, à luz das regras da experiência comum, em conjunto com a prova documental constante dos autos. Os meios de prova pesados foram os seguintes.

Documentos:
. Auto de notícia de fls. 3 a 6 (descrição geral de diligências policiais levadas a cabo de 30 de Janeiro de 2017 a 7 de Fevereiro de 2017);
. Autos de fls. 7 a 10, 11 a 14 e 266 a 268 (relatórios de diligências externas levadas a cabo, respectivamente, em 2 de Fevereiro, 7 e 8 de Fevereiro, 6 e 7 de Março de 2017);
. Fotografias de fls. 15 a 24 e 29;
. Auto de busca e apreensão de fls. 69 a 75, relatório planimétrico a fls. 76 a 79 e relatório fotográfico de fls. 80 a 103 (moradia da Estrada de Vale Rabelho, …, Galé, Albufeira);
. Auto de busca e apreensão de fls. 115 a 116 e relatório fotográfico de fls. 117 a 119 (veículo Ford Mondeo com a matrícula MK---EYM);
. Auto de busca e apreensão de fls. 122 a 127 e relatório fotográfico de fls. 128 a 141 (propriedade sita em Gateiras, Tunes);
. Relatórios de criminalística e relatórios fotográficos de fls. 310 a 312, 315 a 317 e 327 a 331;
. Certificados do registo criminal de fls. 1143 e 1144;

Prova pericial:
. Relatórios periciais de toxicologia de fls. 345 a 347 e fls. 348 a 349.
Testemunhas:
. RP (militar da Guarda Nacional Republicana),
. JC (militar da GNR),
. NA (militar da GNR),
. JG (militar da GNR),
. LC (militar da GNR),
. FC (militar da GNR),
. AB (militar da GNR),
. BL (militar da GNR),
. JV (comercial, amigo dos arguidos),
. AM (Directora do Laboratório de Polícia Cientifica da Polícia Judiciária);

Declarações:
. FF e MM (respectivamente empresário da construção civil e cozinheira, senhorios da moradia da Estrada de Vale Rabelho…, Galé, e da propriedade sita em Gateiras, Tunes).
*
Concretizando.

Em geral, os testemunhos ouvidos foram merecedores de juízos positivos quanto à sua credibilidade, sendo igualmente favoráveis os juízos de fiabilidade sobre o conteúdo dos relatos na parte em que versaram sobre factos do seu conhecimento directo. Ficou-se com a impressão que as testemunhas depuseram de forma muito credível, por não terem qualquer interesse particular no desfecho do processo ou ligação pessoal a qualquer dos envolvidos na causa. Além disso, e em especial no que toca aos militares da GNR ouvidos, foi patente que os seus relatos eram dotados de isenção e que nada os movia contra os arguidos, tendo vários dos militares caracterizado a actuação destes, nos momentos em que tiveram contactos, como correcta. Estes depoimentos foram ainda todos concordantes e coerentes entre si e com a demais prova, o que mais sedimentou o juízo positivo quanto à sua solidez. Por fim, assinale-se que mesmo a (única) discrepância que se detectou entre o testemunho de um dos guardas e um documento dos autos (depoimento de BL, que referiu terem sido, na respectiva busca, encontradas plantas nas estufas dos pré-fabricados da quinta das Gateiras, em contraponto ao que se respiga no auto de busca de fls. 122) acaba por sublinhar, afinal, a efectiva espontaneidade[8] da testemunha: quisesse o militar mentir ao Tribunal e com enorme probabilidade teria “afinado” o seu depoimento pelos documentos constantes do processo, repetindo verbalmente o seu teor.

No que respeita ao teor dos documentos constantes dos autos, nenhuma dúvida se suscitou sobre a sua origem ou genuinidade, nem quanto à boa fé com que foi incorporada a informação deles constante. Em particular, foram merecedores de dose elevada de fiabilidade os autos onde ficaram plasmadas as percepções directas dos agentes policiais que tiveram intervenção na investigação e nos actos de inquérito. Porque foram elaborados em momentos temporalmente muito próximos dos eventos percepcionados, porque o seu teor se mostra bastante detalhado, porque ficou assente a credibilidade dos seus autores nos termos supra referidos, e porque se reportam a factos de que os militares tomaram conhecimento directo, tais documentos foram merecedores de dose muito elevada de confiança quanto ao rigor da informação neles incorporada.

Quanto à prova pericial, não se suscitou qualquer motivo para duvidar das conclusões dos peritos.
*
A prova produzida em audiência, toda ela convergente no mesmo sentido, não permitiu qualquer dúvida razoável sobre a grande maioria dos factos descritos no despacho de pronúncia. Designadamente, dos documentos e testemunhos pesados resultou absolutamente inequívoco que os arguidos passaram, a partir de dada altura a dedicar-se ao cultivo de canabis, o que faziam em dois locais distintos, uma casa na estrada de Vale Rabelho, na Galé, e uma propriedade rústica, no sítio das Gateiras, em Tunes. Na casa da Galé, onde pernoitavam normalmente, mantinham duas estufas de tamanho e sofisticação assinaláveis; Na quinta das Gateiras mantinham duas estufas mais pequenas, em quartos da casa ali existente, e procuravam expandir a sua actividade de cultivo montando em dois pré-fabricados duas novas grandes estufas de produção de canabis.

O cenário onde os arguidos levavam a cabo tais actividades decorre dos autos de busca e apreensão, autos, relatórios, fotografias, e bem assim dos testemunhos dos militares da GNR que participaram em tais operações.

Do auto de busca e apreensão de fls. 69, relatório planimétrico a fls. 76, relatório fotográfico de fls. 80, e relatórios periciais de toxicologia de fls. 345 e 348, resulta inequívoco que, em 07/03/2017, na moradia da Estrada de Vale Rabelho na Galé estavam montadas, em duas divisões adjacentes à garagem interior da “cave” da moradia, duas estufas de canabis de grandes dimensões (cfr. em particular as fotos nº 122 a 134, fls.100 a 102, e relatórios de toxicologia de fls. 345 e 348) construídas exclusivamente para o efeito com equipamento bastante sofisticado (o cultivo dos vasos de canabis aí existentes era levado a cabo com tubos de rega, lâmpadas de alta pressão com reflectores, tubos de ventilação, tubos de derivação das mangas de ar, ventoinhas, extractores de ar, filtros de carvão para suprimir cheiros, desumidificador, transformadores/estabilizadores de corrente/tensão eléctrica, aparelhos de ar condicionado, cabos eléctricos distribuídos em calhas metálicas, etc). Mais decorre que em várias divisões da moradia foram encontrados (além de canabis espalhado pelas divisões, na sala, cozinha, garagem, e num alpendre exterior), instrumentos, materiais e parafernália destinados à produção de estupefaciente: peneiras (uma das quais repleta de canabis) e aparadores, balanças, uma prensa, máquinas — assinale-se o plural— plastificadoras para embalamento, rolos de sacos para embalamento, um rolo de película almofadada para embalamento e acondicionamento, caixas de cartão para transporte, um manual de cultivo de plantas de canabis, um caderno que tinha desenhado um esquema de uma estufa de canabis, etc.

Por seu lado, do auto de busca e apreensão de fls. 122, relatório fotográfico de fls. 128, e relatórios periciais de toxicologia de fls. 345 e 348 conclui-se que na quinta do sítio das Gateiras havia:

. Dentro da casa aí existente, montadas em divisões da casa, duas estufas de canabis mais pequenas e com equipamento mais rudimentar do que as da moradia da Galé (cfr. em particular fotos nº 45 a 51, fls. 135 e 136), onde se encontravam plantas com dimensões pequenas;

. E em dois em pré-fabricados exteriores, duas grandes estufas, uma ainda em fase de construção (anexo 1, alfanumérico A, cfr. fotos nos 6 a 16, fls. 129 e 130) e outra pronta a entrar em funcionamento (anexo 2, alfanumérico B, cfr. fotos nos 17 a 35, fls. 131 e 134), ambas construídas com equipamento de sofisticação comparável às estufas da vivenda da Galé. Aqui estavam montadas lâmpadas de alta pressão, ventoinhas, ventiladores e extractores de ar, filtros de carvão, diversos metros de mangas em alumínio e calhas metálicas de suporte, uma bomba de puxar água, doseadores, um relógio programador, fertilizantes, medidores de PH, etc. E num contentor próximo (contentor, alfanumérico C, cfr. fotos nos 36 a 42, fls.134 e 135) estava ainda guardado vário material para o cultivo: filtros, um rolo de tubo de rega, ventilador, gerador, etc.

O estupefaciente apreendido nos dois locais, nas estufas e em várias partes distintas das casas da Galé e do sítio das Gateiras, ascendeu a mais de 27 quilogramas de canabis, ao qual acresceu uma muito pequena (10 gramas), por comparação, quantidade de cogumelos alucinogénios. As concretas características, pesos, natureza e concentrações químicas dos produtos estupefacientes que os arguidos tinham em sua posse e que levámos à matéria provada assentam, especificamente, no teor dos relatórios periciais de fls.346 e 349.

No que toca às concretas actividades dos arguidos, a prova não permitiu também dúvida que foram aqueles quem montou pelo menos parte das estufas, e levou a cabo o cultivo e preparação para consumo do estupefaciente encontrado nas buscas realizadas. Assinale-se que esta conclusão já seria fortemente sustentada na mera análise do teor geral das percepções dos militares da GNR vertidas nos autos de fls. 7 e 11, de onde resulta a ligação presencial de ambos os arguidos a ambos os locais onde era cultivado o estupefaciente, coincidência que, logo o dizem as regras da experiência comum, parece ser demasiado grande caso não tivessem o domínio sobre aqueles locais ou estivessem comprometidos com o cultivo que aí ocorria. Porém, a análise do concreto teor, bastante detalhado, daqueles autos, ainda dos autos de fls. 69 e 122, e dos testemunhos de RP, JC, e JG, que os confirmaram em todos os pontos essenciais (embora de forma menos detalhada do que nos referidos autos, naturalmente, atendendo ao intervalo temporal decorrido), tornou absolutamente incontroverso que os arguidos tiveram intervenção directa na concepção e montagem das estufas, pelo menos no sítio das Gateiras, e levaram a cabo o cultivo e produção do estupefaciente apreendido.

Com efeito, os arguidos eram os únicos ocupantes da moradia da Galé (onde tinham os seus pertences pessoais nos dois quartos ocupados da moradia, como resulta do auto de busca de fls. 69 e relatório fotográfico de fls. 80), habitação que tinha, em praticamente todas as divisões, sinais absolutamente evidentes da actividade de cultivo e preparação de drogas. Atente-se por exemplo no material que estava em cima do sofá e junto das mesas da sala de estar do rés-do-chão da moradia, perfeitamente à vista de quem aí entrasse: numa das mesas, vários sacos com canabis, uma balança digital, uma prensa, uma máquina de embalagem a plástico (cfr. fotos nos 48 a 62 de fls. 88 a 90); Na outra mesa, uma caixa de cartão e um saco ambos com canabis dentro, peneiras, uma das quais cheia com canabis (cfr. fotos nos 63, 68 a 76 de fls. 90 a 92). Ou atente-se no caderno que tinha esquematizada a concepção de uma estufa, depositado numa gaveta no quarto do arguido LL no 1º andar da moradia (fotos nos 93 a 95, fls. 95 e 96). Ou no manual de cultivo que se encontrava na sala de estar (fotos nos 48 e 53, fls. 88 e 89). Ou no estupefaciente guardado no congelador do frigorífico na cozinha (fotos nos 35 a 38, fls. 86). Ou ainda na curiosa forma como se dissimulou umas das saídas de ventilação de uma das estufas com uma casota de cão (fotos nos 24 a 27, fls. 84). E se um tal cenário seria perfeitamente evidente para toda e qualquer pessoa que entrasse na casa, acresce que, como relataram as testemunhas RP, JC, e JG, na moradia da Galé era mesmo audível o funcionamento dos motores de extracção de ar das estufas da cave, cujas entradas dissimuladas não estavam sequer escondidas de forma particularmente eficaz (aliás, qualquer habitante da moradia perceberia, pela forma do edifício, que junto da garagem teria de haver mais duas divisões adjacentes, cfr. a foto nº 4 de fls. 80, a foto nº 12 de fls. 82 e os relatórios planimétricos de fls. 76 a 79). Tudo isto, pois, cabalmente demonstrativo de que eram os arguidos, os ocupantes da moradia, quem cuidava das estufas e cultivava o estupefaciente apreendido.

Além disso, se necessário fosse corroborar ainda mais tal conclusão, dos autos de fls. 7 e 11 decorre que os dois arguidos praticaram diversos actos que denunciam directamente serem eles quem preparou as estufas e cuidava do estupefaciente em cultivo. Com efeito, de tal documentação (cujo teor foi, como se disse, corroborado pelos referidos testemunhos) resulta que, na quinta do sítio das Gateiras, ambos carregaram objectos da casa aí existente (onde o cultivo também seria evidente para qualquer pessoa que aí entrasse) para o Ford Mondeo onde se transportavam, e ambos carregaram objectos do carro para a casa; Ambos entraram num pré-fabricado onde estava uma das estufas; O arguido TT levou para dentro da estufa um jerricã e um ventilador; O arguido LL levou para a estufa uma estrutura em madeira. Mais resulta que, naquele momento, no interior do Ford Mondeo havia partes de ventoinhas, plástico em rolo industrial, fita adesiva, partes de aparelhos de medição de humidade e temperatura. E no dia 07/02/2017 ambos os arguidos entraram numa estufa; E o arguido TT, várias vezes, levou objectos do porta-bagagens do Ford Mondeo para dentro da casa; Entrou no pré-fabricado que tinha uma das estufas; Transportou caixas de cartão para dentro da casa e do pré-fabricado; etc. Tudo actividades patentemente evidenciadoras do domínio sobre os locais e do labor de cultivo de drogas que aí faziam.

Quanto ao destino daquelas drogas, as circunstâncias objectivas que a prova — documentos e testemunhos supra referidos— sustenta à saciedade não permitem igualmente qualquer dúvida: a produção de estupefaciente levada a cabo com os meios, os equipamentos extremamente sofisticados, e o nível de organização[9] documentados nos autos carece de investimento inicial assinalável e permite colheitas abundantes. Pelo que só o destino da venda do estupefaciente a terceiros, tendo em vista ganhos pecuniários, explica a “linha de produção” onde os arguidos laboravam.
* * *
No que toca à restante factualidade, provada e não provada, o Tribunal formou convicção nos termos seguintes.

Sobre o facto de os arguidos não desempenharem outras actividades profissionais por altura dos factos atendeu-se ao circunstancialismo global demonstrado pela conjugação da prova. Estavam em Portugal há vários meses (desde data não apurada em concreto, mas pelo menos final de Janeiro a início de Março, como decorre dos autos de fls. 7 e 11) e não falam português, não lhes é conhecida qualquer actividade profissional (note-se que em Fevereiro de 2017 foram documentadas as suas actividades em dias de semana e não se evidenciou que tivessem empregos, apenas que levavam a cabo actividades na moradia da Galé e na quinta das Gateiras) e o labor necessário para atender às várias estufas em causa nos autos (ao cultivo na Galé e nas Gateiras, e ao transporte e materiais e montagem das estufas dos pré-fabricados) é empresa que parece necessariamente desempenhada “a tempo inteiro” ou muito próximo disso.

Os factos provados atinentes ao tipo subjectivo do ilícito (ou seja, os conhecimentos pessoais dos arguidos, as suas convicções interiores, e a sua vontade sobre os actos que levaram a cabo) decorrem da ponderação dos demais factos assentes à luz no que é o normal acontecer. Ficámos convencidos da sua verdade porque, em circunstâncias normais, o conhecimento do que faziam e a contrariedade à lei da sua actuação seriam conhecidos de todos, e por isso eram conhecidos também dos arguidos. Conclusões corroboradas, assinale-se, pela dissimulação das estufas da moradia da Galé.

O facto provado da contestação assenta, por decorrência lógica, nos meios de prova já elencados: se o estupefaciente foi apreendido, então não foi introduzido no circuito comercial.

A ausência de antecedentes criminais dos arguidos assenta no teor dos CRCS de fls. 1143 e 1144.
*
A não prova dos factos constantes da pronúncia que redundaram não provados decorre da ausência de provas que os sustentassem.

Sublinhe-se que apesar de não se ter ficado com nenhuma dúvida sobre o destino final do estupefaciente em questão (a sua comercialização no mercado), e bem assim que a actividade dos arguidos era feita com vista a obter ganhos financeiros, as provas produzidas não foram de molde a demonstrar que seriam os arguidos, eles mesmos, a proceder directamente às transacções e vendas, seja com os consumidores finais seja com intermediários distribuidores. Com efeito, face à sofisticação com que era feita a produção do estupefaciente e ao grau de organização que dimana dos factos provados, admite-se como perfeitamente possível que a intervenção directa dos arguidos cessasse com a expedição das drogas, em conluio com algum terceiro (ou até mesmo sob sua orientação), que depois as faria chegar ao mercado e trataria da parte “comercial” do tráfico. Assim sendo, quedou-se por provar o facto b).

Quanto aos restantes factos não provados da pronúncia, foi total a ausência de provas capazes de demonstrar a sua verdade.
*
A não prova da matéria não provada da contestação decorre da prova de factos opostos (designadamente, os actos respeitantes à montagem das estufas e à posse e cultivo dos estupefacientes) e, no mais, da total ausência de provas que a sustentasse.

Duas notas quanto ao período que na contestação se dizia não poder ser suficiente para crescimento e maturação das plantas apreendidas. Desde logo ficou por provar, por ausência de meios de prova suficientes, o facto negativo alegado na contestação. Mas assinale-se que mesmo que tal facto se tivesse demonstrado, nenhuma ilação relevante daí se retiraria (designadamente a conclusão que retira a contestação: ou seja, é impossível que tais plantas tivessem sido plantadas pelos arguidos). E assim porque não se apurou em que data os arguidos vieram para Portugal. A prova apenas demonstra que em final de Janeiro de 2017 seguramente estavam no país; Todavia absolutamente nenhum elemento de prova exclui que aqui estivessem ininterruptamente desde muito antes, ou que tivessem feito deslocações anteriores ao país com regressos pontuais ao estrangeiro de intermédio.
*
Refira-se, por fim, que as declarações de FO e MM foram de pouca valia instrutória. No essencial, ambos confirmaram que as propriedades da Galé e do sítio das Gateiras foram arrendadas (primeiro a moradia da Galé, uns tempos depois a quinta das Gateiras, nesta última somente a casa e dois armazéns) a um cidadão estrangeiro chamado Matthew, pessoa que não conhecem senão dos contactos para estabelecer os arrendamentos. Confirmaram ainda o estado físico dos locais após as diligências de busca levadas a cabo. Não se suscitou motivo para duvidar do essencial que contaram, pese embora se tenha ficado com a impressão que têm algum interesse pessoal quanto a eventos relevantes para a causa (ainda que não quanto ao seu concreto desfecho) e que algumas das suas afirmações sobre certos detalhes não eram muito concordantes com as regras de experiência comum[10].

Direito

Prática de um crime de tráfico (art. 21º do Decreto-Lei 15/93)

A incriminação do tráfico de estupefacientes protege primariamente o bem jurídico da saúde pública e, em segundo plano, protege diversos bens jurídicos pessoais como a integridade física e a vida dos consumidores do produto estupefaciente. Como se disse no acórdão do Tribunal Constitucional nº 426/91[11]o escopo do legislador é evitar a degradação e a destruição de seres humanos, provocadas pelo consumo de estupefacientes, que o respectivo tráfico indiscutivelmente potencia. Assim, o tráfico põe em causa uma pluralidade de bens jurídicos: a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores de estupefacientes; e, demais, afecta a vida em sociedade, na medida em que dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos”. O crime de tráfico é classificado como um crime de perigo abstracto, considerando-se que nas actividades descritas no tipo de crime há já um perigo de lesão daquele bem jurídico[12].
*
Aos arguidos vem imputada a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro (Legislação de Combate à Droga, ou LCD), por referência às tabelas I-C e II-A anexas ao referido diploma legal. Lê-se no referido art. 21º nº 1 o seguinte:

Artigo 21.º
Tráfico e outras actividades ilícitas
1 - Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.

Partindo dos factos objecto da presente acção, e ensaiando um recorte dos pressupostos de preenchimento do ilícito imputado aos arguidos, temos pois que para que se verifique o imputado crime de tráfico do art. 21º da LCD é necessário concluir que aqueles, fora dos casos do art. 40º, e sem para tal se encontrarem autorizados:

. cultivaram, produziram, fabricaram, extraíram, prepararam, ou

. ofereceram, puserem à venda, venderam, distribuíram, compraram, cederam ou por qualquer título receberam, proporcionaram a outrem, transportaram, importaram, exportaram, fizeram transitar, ou

. ilicitamente detiveram;

Alguma ou algumas das substâncias compreendidas nas tabelas I a III da LCD (art. 21º da LCD).

No plano subjectivo, o ilícito de tráfico é exclusivamente doloso (arts. 13º e 14º do Código Penal).
*
Tendo em conta a matéria fáctica apurada, é patente que o crime de tráfico foi praticado pelos arguidos.

Com efeito, dos factos apurados resulta que o tipo objectivo matricial previsto no art. 21º da LCD está verificado: sem terem qualquer autorização para o efeito os arguidos cultivaram, produziram, prepararam e detiveram substâncias constantes das tabelas I-C (mais de 27 quilogramas de canabis, na forma de folhas ou sumidades floridas) e II-A (cerca de 10 gramas de cogumelos psilocina/psilocibina) da LCD.

Dos factos enunciados resulta ainda que os arguidos agiram fora dos casos previstos no artigo 40º da LCD; Este último normativo desde logo não contempla o cultivo nem a produção, restringindo-se o seu perímetro à mera detenção do produto estupefaciente.

O tipo subjectivo do ilícito está igualmente preenchido, uma vez que os arguidos sabiam o que faziam e, ainda assim, quiseram agir da forma como actuaram. Tendo agido de acordo com o que era a sua vontade, conhecendo o quadro fáctico (incluindo a natureza das substâncias ilícitas) e jurídico da sua actuação, conclui-se que actuaram com dolo directo de primeiro grau (art. 14º nº 1 do Código Penal).

Uma primeira conclusão: mostra-se integralmente preenchido, tanto na vertente objectiva como na subjectiva, o ilícito-típico do art. 21º nº 1 da LCD.
*
Posto o que antecede, pode perguntar-se se no caso se evidencia uma diminuição importante da ilicitude dos factos tendo em conta, designadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade da substância em causa, devendo nesse caso a conduta integrar-se na previsão normativa do tráfico de menor gravidade previsto no art. 25º da LCD.

A resposta é claramente negativa, apontando a matéria apurada muito fortemente para a conclusão oposta.

Com efeito, a grande quantidade de canabis cultivado, a sofisticação dos meios e equipamentos usados, o número de locais de cultivo (nada menos que seis estufas, em duas localidades distintas), tudo sedimenta o juízo de que a ilicitude da conduta dos arguidos foi extremamente elevada, violadora em muito larga medida dos comandos éticos sob a tutela penal do art. 21º da LCD.
*
Indiciada a ilicitude da conduta pelo preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do ilícito-típico, não se indiciaram quaisquer factos que a justificassem.

A conduta dos arguidos é merecedora de censura, não havendo causas que a desculpem.

Preenchidas que estão a tipicidade e ilicitude da conduta, e havendo culpa dos arguidos, conclui-se que cometeram ambos um crime de tráfico, ilícito previsto e punido pelo art. 21º nº 1 do Decreto-Lei 15/93.

Consequências jurídicas do crime

Medida das penas
O crime de tráfico praticado pelos arguidos é punido, de acordo com o art. 21º nº 1 da LCD, com pena de prisão de 4 a 12 anos.

Caberá pois apurar a dosimetria justa das penas a aplicar.

Da norma do artigo 40º do Código Penal decorre que a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo em caso algum a pena ultrapassar a medida da culpa.

Nos termos do artigo 71º nº 2 do CP, a medida da pena é determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo ainda considerar-se todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo legal de crime deponham a favor ou contra o arguido.

A determinação da pena concreta de fazer-se, seguindo a doutrina do Professor Figueiredo Dias, dentro da chamada "moldura de prevenção geral positiva"[13], entre o seu limite inferior, que corresponde às exigências mínimas da prevenção geral (ou seja, o restabelecimento da confiança da comunidade na vigência efectiva dos valores sociais e éticos subjacentes à criminalização do comportamento ilícito) abaixo do qual fica comprometida a paz social e a confiança no dever-ser jurídico e o limite superior, que traduz o ponto óptimo de tutela das expectativas comunitárias. A concretização da medida da pena deve fazer-se, dentro daqueles limites, atendendo a considerações de prevenção especial de socialização (ou seja, a reintegração do agente do crime na sociedade e a prevenção da reincidência), com vista criar as —ou não destruir as existentes— condições necessárias para que o agente possa viver a sua vida sem cometer novos crimes.

A culpa estabelece o máximo de pena aplicável ao arguido, não podendo em caso algum a medida concreta da pena ultrapassar a da culpa, já que para além desta não existe qualquer exigência de prevenção, geral ou especial, atendível.

As circunstâncias do crime relevam em qualquer dos momentos valorativos indicados, concretizando a ponderação sobre culpa e prevenção que o caso reclama.
*
No caso dos autos, face à imagem global do ilícito concreto —que é de gravidade muito assinalável— as exigências de prevenção geral são muito elevadas.

Com efeito, o tráfico de estupefacientes é um mal social que flagela todo o país, e particularmente o Algarve, por ser destino turístico muito procurado, sendo forte a necessidade de reprimir tais condutas. Face aos traços concretos do crime dos autos é patente a necessidade de, através de punição resoluta, restituir a confiança da comunidade na vigência e respeito pela norma violada.

Em algum contraponto, favorecendo a posição dos arguidos, no caso assume relevância o facto de o estupefaciente maioritariamente cultivado pelos arguidos — canabis— ser uma das chamadas “drogas leves”, com baixo potencial de causação de danos na saúde e criação de dependência. Tal natureza menos danosa (tanto pessoal como socialmente), por comparação com substâncias proibidas de outra natureza, mitiga de forma não despicienda os cuidados de prevenção geral e especial reclamados pela conduta, e bem assim a culpa dos arguidos.

Todavia, em face do circunstancialismo apurado tal consideração acaba por se mitigar em larga medida, pela gravidade muito evidente da forma como o ilícito foi levado a cabo. Com efeito, o cultivo e produção do estupefaciente era feito pelos arguidos num contexto que se pode chamar de semi-industrial, atendendo às quantidades cultivadas (e apreendidas), aos múltiplos locais em que desenvolviam actividade, e ao facto de que a parafernália que tinham lhes permitia dar conta de todas as fases da cadeia produtiva do estupefaciente em questão até à sua introdução no mercado (desde o cultivo, passando pela colheita, peneiragem, secagem, prensagem, até à embalagem e expedição final do canabis, em blocos acondicionados em caixotes).

Os arguidos, na moradia da Galé, atendiam a duas estufas de dimensão assinalável que se encontravam em pleno funcionamento; Ao que acresciam, no sítio das Gateiras em Tunes, as outras duas grandes estufas montadas (uma das quais ainda em fase de finalização) em pré-fabricados que, pese embora não contivessem no momento interruptivo do ilícito (a busca aí realizada) cultivo de canabis seguramente se destinavam a essa finalidade, e provavelmente permitiriam, quando em funcionamento, uma produção ainda superior às estufas da Galé. Além das mencionadas quatro estufas, os arguidos ainda cultivavam plantas de canabis noutras duas divisões da casa do sítio das Gateiras, embora quanto a estas estufas, mais pequenas (como se respiga nas fotos de fls. 135 e 136), se admita que fossem usadas em fases mais embrionárias da maturação das plantas, eventualmente para transplante posterior quando tivessem dimensão menos fácil de dissimular ou o respectivo cultivo carecesse de maior atenção e cuidados.

Assinale-se que as estufas de maior dimensão tinham características de grande sofisticação: tinham montados sistemas de rega, de ventilação, de controlo da temperatura e da luminosidade, tudo preparado com evidente cuidado e saber com vista à maximização e eficiência da produção. E, para além da enorme capacidade produtiva do cultivo de plantas nos locais mencionados, como se disse já os arguidos tinham ainda em mãos estupefaciente já devidamente “processado” (já prensado e embalado), pronto a ser introduzido “por grosso” no circuito comercial de disseminação das drogas.

Por fim, note-se que este contexto em que os arguidos levavam a cabo a actividade produtiva carece de meios, de capacidade de investimento pecuniário assinalável: foi preciso arrendar os imóveis onde se encontravam as estufas, foi preciso adquirir os materiais para as construir e para cultivar as plantas, foram precisos meios humanos e tempo para construir as estufas. Sem prejuízo de não se ter apurado se tal investimento foi desembolsado pelos arguidos (como se assinalou na motivação dos factos provados, face à dimensão da “operação” é plausível que tenham actuado em colaboração ou sob instruções de algum terceiro, que lhes tenha confiado as unidades de produção em questão nos autos), a verdade é que os arguidos se integraram voluntariamente nesse contexto de actividade produtiva dotada de meios; Participaram, porque quiseram, numa concreta linha produtiva de drogas que pressupõe necessariamente aquela apontada capacidade financeira já bastante assinalável. E, não fique por dizer, na cadeia do tráfico o seu papel andava longe do que normalmente se considera o menos relevante na economia do tráfico, o do traficante de rua, que tantas vezes arrisca tal actividade para satisfazer o vício ou para auferir ganhos pouco significativos por miséria ou necessidade financeira. Pelo contrário, a intervenção dos arguidos foi num momento prévio, menos exposto, apto até a ser bastante mais lucrativo do que quem contacta directamente com o consumidor final.

Assim sendo, embora o canabis seja uma das designadas “drogas leves”, os contornos da sua produção dão ao crime dos autos foros de gravidade bastante elevada. E no descrito contexto — grande quantidade de estupefaciente detido, elevada capacidade e sofisticação da cadeia produtiva, e uma organização de produção cuja actividade carece de investimentos pecuniários muito assinaláveis— conclui-se, por um lado, ser muito censurável a conduta dos arguidos e, por outro, que as exigências de prevenção geral não permitem, de todo, a aplicação de uma pena correspondente aos patamares inferiores da moldura legal.

No que toca aos cuidados de prevenção especial reclamados pelo caso, pouco é conhecido. Todavia, provou-se que os arguidos não registam antecedentes criminais, o que naturalmente favorece a sua posição.

Pesado o que antecede, temos por justa a aplicação aos arguidos da pena de 7 anos e 8 meses de prisão.
(…).”.
IV
Apreciando a primeira questão, [(i)], trazida ao conhecimento deste Tribunal ad quem pelos recorrentes, da nulidade da decisão recorrida, vejamos:

Primo aspecto, alegam os recorrentes que a decisão recorrida é nula porquanto valorou meio de obtenção de prova - as buscas realizadas no âmbito dos presentes autos - sem que os arguidos, de nacionalidade estrangeira, que não compreendem (nem se fazem compreender) a língua portuguesa, tenham sido assistidos por intérprete e por profissional forense, em violação do preceituado nos artigos 64º, nº 1, alínea d) e 92º, do Código de Processo Penal.

Dispõe a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 34º, reportando-se à inviolabilidade do domicílio e da correspondência, que:

1. O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis.

2. A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstas na lei.

3. Ninguém pode entrar durante a noite no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento, salvo em situação de flagrante delito ou mediante autorização judicial em casos de criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes, nos termos previstos na lei.
4. (…).”.

E o artigo 18º, da Constituição da República Portuguesa que, na parte dedicada aos direitos e deveres fundamentais, se reporta à força jurídica, estatui nos seguintes termos:

1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.

2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.”.
O Prof. Costa Andrade, in “Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal. Uma Perspectiva Jurídico-Criminal”, Coimbra Editora, pág. 33, nota 4, assinala que “os direitos fundamentais correspondentes aos bens jurídicos pessoais valem como direitos de defesa (...) e proibições de intromissão ou agressão (...) por parte dos poderes públicos, só comportando as restrições consentidas por lei (reserva de lei) e preordenadas à salvaguarda de outros valores ou interesses constitucionalmente tutelados e contidas nas exigências de necessidade, idoneidade e proporcionalidade – e ressalvada sempre a intangibilidade do seu núcleo essencial.”.

Da lei ordinária, concretamente, do Código de Processo Penal, importa-nos o disposto:

(i) - no artigo 125º, onde se consagra o princípio da legalidade (e a regra da não taxatividade dos meios de prova) - “São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.”;

(ii) - no artigo 126º, que se reporta aos métodos proibidos de prova, qualificando de nulas e considerando não utilizáveis, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular (nº 3);

(iii) - no artigo 174º, que definindo pressupostos, estabelece que quando houver indícios que quaisquer objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada a busca.

(iv) - no artigo 177º, que se reporta a buscas domiciliárias e em escritório de advogado, exigindo-se a intervenção de juiz.

As buscas, enquanto meios de obtenção de prova, são instrumentos de que se servem as autoridades judiciárias para investigar e recolher meios de prova. Não são instrumentos de demonstração do thema probandi, são instrumentos para recolher no processo esses instrumentos.

A regra é a de que as buscas são autorizadas ou ordenadas por despacho da autoridade judiciária competente, devendo esta, sempre que possível, presidir à diligência – cfr. artigo 174º, nº 3, do aludido diploma.

Porém, os artigos 174º, nº 5 e 251º, do Código de Processo Penal, prevêem casos em que as buscas podem ser efectuadas sem autorização ou ordem das autoridades judiciárias e o artigo 177º, contém disposições especiais aplicáveis à busca domiciliária, em escritório de advogado, em consultório médico ou em estabelecimento oficial de saúde.

No tocante às buscas domiciliárias, podem ser ordenadas pelo juiz e pelo Ministério Público e ser efectuadas por órgão de polícia criminal, mas em condições estritas que constam do artigo 177º, do Código de Processo Penal.

Podem ser ordenadas pelo juiz e realizadas: a) entre as 7 e as 21 horas, sem limitações – artigo 177º, nº 1; b) entre as 21 e as 7 horas, nos casos de (i) terrorismo ou criminalidade violenta ou altamente organizada; (ii) com consentimento do visado, documentado por qualquer forma; (iii) em flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior no seu máximo a três anos – artigo 177º, nº 2. Podem ser ordenadas pelo Ministério Público ou ser efectuadas por órgão de polícia criminal: a) entre as 7 e as 21 horas, nos casos de (i) terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa; (ii) em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado; (iii) aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão – artigo 177º, nº 3, alínea a), do Código de Processo Penal; b) entre as 21 e as 7 horas, nos casos de (i) consentimento do visado, documentado por qualquer forma; (ii) flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos.

Quando a busca domiciliária for efectuada por órgão de polícia criminal sem consentimento do visado e fora de flagrante delito, a realização da diligência é, sob pena de nulidade, imediatamente comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada em ordem à sua validação – cfr. artigo 177º, nº 6, do Código de Processo Penal. A validação respeita à verificação dos pressupostos e dos requisitos da validade da busca. A recusa da validação tem como efeito a proibição de prova, nos termos do estatuído no artigo 126º, nº 3, do Código de Processo Penal.

Por outro lado, estatui o artigo 64º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Penal que, é obrigatória a assistência de defensor “Em qualquer acto processual, à excepção da constituição de arguido, sempre que o arguido for cego, surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída.”.

E, nos termos prevenidos no artigo 92º, nº 2, do Código de Processo Penal, “Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada.”.

A falta de defensor, quando ela é obrigatória, gera nulidade insanável, nos termos do estatuído no artigo 119º, alínea c), do Código de Processo Penal e a falta de nomeação de intérprete é sancionada como nulidade dependente de arguição, ou seja, sanável, como preceituado no artigo 120º, nº 2, alínea c), do mesmo compêndio legal.

Reavivado o pertinente quadro legal, da compulsa dos autos urge salientar que, precedendo a constituição como arguidos [sublinhado nosso] dos recorrentes, foram no âmbito dos presentes autos realizadas duas buscas, em 07.03.2017, pelas 07h00m e pelas 08h40m, respectivamente, às residências utilizadas pelos visados – os ora recorrentes – sitas uma na Estrada Vale Rabelho…, na Guia e outra no Sítio das Gateiras, em Tunes, e bem assim aos respectivos anexos, fossem contentores, pavilhões, estruturas pré-fabricadas, garagens ou outros espaços fechados e/ou de acesso reservado ali existentes e uma outra busca (a terceira) ao veículo automóvel de matrícula MK ---EYM, da marca “Ford”, modelo “Mondeo”, por aqueles habitualmente utilizado e que teve lugar, também, na indicada data, pelas 13.00 horas [cfr. fls. 69 a 75, 122 a 127 e 115 a 116].

As duas primeiras buscas (domiciliárias) foram determinadas por despacho judicial da Mmª Juiz de Instrução, datado de 14.02.2017 e a terceira por despacho proferido pelo Digno Magistrado do Ministério Público em 09.02.2017 [cfr. fls. 44 a 45 e 35 a 41].

Os recorrentes foram constituídos arguidos na sequência da realização das mencionadas buscas (e em razão da prova indiciária que as mesmas, então, permitiram recolher e que ditaram a sua detenção), em 07.03.2017, pelas 14h30m, o denunciado LL e pelas 14h10m, o denunciado TT [cfr. fls. 108 e 145].

Os arguidos foram sujeitos a primeiro interrogatório judicial de arguido(s) detido(s), nos termos do estatuído no artigo 141º, do Código de Processo Penal, em 08.03.2017 [cfr. fls. 213 a 222].

Em razão do que se deixa exposto, afigura-se-nos incontornável que aquando da realização das mencionadas buscas (salienta-se, todas elas determinadas pela autoridade judiciária devida e competente), os recorrentes não tinham ainda a qualidade de arguidos, outrossim a de suspeitos, entendido o “suspeito” como “toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar” - cfr. artigo 1º, alínea e), do Código de Processo Penal - e, por conseguinte, não eram sujeitos processuais titulares de direitos e sujeitos a deveres processuais especiais (v.g. Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. I, Editorial Verbo, 5ª edição, 2008, pág. 286), não beneficiando, por isso, do conjunto de direitos e deveres processuais próprios do estatuto de arguido, entre os quais o de, sendo estrangeiro e desconhecedor da língua portuguesa, ser-lhes nomeado intérprete e defensor - cfr. artigos 57º, 58º, nºs 1, alíneas c) e d) e 2, 61º, 64º, nº 1, alínea d) e 92º, nºs 1, 2 e 3, todos do Código de Processo Penal.

Porque assim, ressalvado o devido respeito pelo argumentário dos recorrentes, o mesmo estaria, desde logo, votado ao naufrágio.

Destarte, ainda que assim não seja entendido, como se deixou editado, as buscas domiciliárias em apreço foram determinadas pelo Juiz e a outra busca (em veículo automóvel) pelo Ministério Público.

Porque assim, porque ordenadas judicialmente, não se verifica a exigência de estar presente nem um intérprete, nem um defensor, pois que tais diligências deverão ser realizadas independentemente da prévia autorização ou do consentimento do visado e mesmo sem que a sua presença seja sequer necessária - v.g., no mesmo sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18.10.2018, proferido no processo nº 48/15.0 GBTVR.E1, disponível em www.dgsi.pt/jtre. Diferentemente da situação a que alude o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto citado pelos recorrentes, proferido em 29.03.2017 no processo nº 256/16.7 PAPVZ-B.P1 e daqueloutro relatado pela signatária e proferido, em 17.01.2012, no processo nº 206/10.4 GDABF.E1, disponível em www.dgsi.pt/jtre, em que estavam em causa buscas domiciliárias efectuadas por órgão de polícia criminal.

Acresce que a falta de nomeação de intérprete é sancionada, como já se deixou afirmado, como nulidade dependente de arguição, ou seja, nulidade sanável, como preceituado no artigo 120º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal. E, acompanhando o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14.01.2009, proferido no processo nº 275/08.7GBVNO-A.C1, disponível in www.dgsi.pt/jtrc. “(...) Não sendo razoável que a invocação desta nulidade tenha de ser efectuada até ao termo do acto a que o visado assistiu sem intérprete [sob pena de completo esvaziamento da tutela pretendida] mas isto apenas nos casos em que não está presente o defensor, nomeado ou constituído, deve aceitar-se, para eles, a aplicação da regra geral de arguição de nulidades sanáveis, ou seja, a arguição no prazo de 10 dias, (art. 105º, nº 1, do C. Processo Penal), a contar daquele em que o interessado foi notificado para qualquer termo posterior do processo ou teve intervenção em acto nele praticado (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, 3ª Ed., 85). Desta forma, a nulidade sanável prevista no art. 120º, nº 2, c), do C. Processo Penal não significa uma compressão e muito menos, intolerável, do direito constitucionalmente garantido ao processo equitativo, nem restrição inadmissível dos direitos de defesa, constitucionalmente assegurados nos arts. 20º, nº 4, e 32º, nº 1, da Lei Fundamental.”.

Vale o exposto por se afirmar, que a invocada nulidade por falta de nomeação de intérprete (a verificar-se, o que, repete-se, entendemos não ocorrer) uma vez que não foi arguida até ao termo do acto de busca, nem nos 10 (dez) dias subsequentes ao interrogatório judicial, realizado no dia 08.03.2017, há muito que se mostra sanada.

Em suma, em face de tudo o que se deixa expendido, forçoso é concluir que a decisão recorrida não padece de nulidade nos termos prevenidos nos artigos 379º, nº 1, alínea a) e 374º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal, porquanto não valorou meio de obtenção de prova nulo, outrossim, as buscas realizadas não se mostram minimamente beliscadas pela não nomeação de defensor e/ou de intérprete aos arguidos recorrentes, de nacionalidade estrangeira e desconhecedores da língua portuguesa, à data da sua realização (ainda) suspeitos.

Secundo aspecto, alegam os recorrentes que a decisão recorrida se mostra ferida de nulidade porque o Tribunal a quo omitiu pronúncia sobre a Lei nº 33/2018, de 18.07, diploma que regula a utilização de medicamentos, preparações e substâncias à base da planta da canábis, para fins medicinais [que à data da prolação da decisão recorrida não havia ainda sido regulamentada].

Ressalvado o sempre e devido respeito, mal se compreende tal alegação por banda dos recorrentes que, aliás, não a enformam por forma alguma.

Como é sabido a nulidade da sentença ou acórdão a que alude a alínea c), do nº 1, do artigo 379º, do Código de Processo Penal, só se prefigura quando Tribunal se tenha pronunciado sobre questão que lhe estivesse vedado o conhecimento ou, ao invés, tenha omitido pronúncia sobre questão cuja apreciação a lei lhe impusesse - v.g. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.07.2010, proferido no processo nº 408/08.3 PRLSB.L2.S1 e disponível em www.dgsi.pt/jstj..

Ora, a pretextada omissão de pronúncia extravasa por completo e em absoluto o objecto da acção penal: nunca constou da acusação pública, nem da pronúncia, não foi alegada pelos arguidos, nem discutida em audiência de julgamento ou resultante da discussão da causa, sendo in casu irrelevante quer à fundamentação de facto, quer à fundamentação de direito da decisão recorrida, maxime no conspecto do enquadramento jurídico-penal da matéria de facto dada como provada e da existência (ou não) de causas de exclusão da ilicitude e/ou da culpa dos arguidos e bem assim à determinação da medida concreta da pena que lhes cabe e da pena de substituição eventualmente aplicável. Ou seja, a pretextada omissão de pronúncia extravasa todas as pertinentes soluções jurídicas que ao Tribunal a quo se imporia conhecer ou apreciar ante o objecto da acção penal tal como se mostra definido nos autos.

Nestes termos, forçoso é concluir que a decisão recorrida não padece de nulidade nos termos preceituados no artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal, posto que não omitiu pronúncia sobre questão que legalmente se lhe impusesse apreciar ou conhecer.

Importa, agora, apreciar as segunda e terceira enunciadas questões, [(ii) e (iii)], aportadas ao conhecimento desta instância pelos recorrentes.

Sabido é que constitui princípio geral que as Relações conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no artigo 428º, do Código de Processo Penal, sendo que, no tocante à matéria de facto, é também sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada, incumbindo a quem recorre o ónus de impugnação especificada, previsto no artigo 412º, nºs 3 e 4, do citado diploma, condição para que a mesma seja apreciada e, depois e se for o caso, dos vícios a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.

O erro de julgamento, ínsito no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, ocorre quando o Tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em primeira instância, havendo que a ouvir em segunda instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal. É que nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E, exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação de normas de direito processual), que o recorrente deverá expressamente indicar e se lhe impõe o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº 3, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.

Assim: impõe-se-lhe a especificação dos “concretos pontos de facto” que considera incorrectamente julgados, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado; impõe-se-lhe a especificação das “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida, acrescendo que o recorrente deve explicitar por que razão essa prova impõe decisão diversa. Isto é, impõe-se ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado. E, sendo caso, impõe-se-lhe a especificação das “provas que devem ser renovadas”, que só se satisfaz com a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento no Tribunal de primeira instância, dos vícios referidos nas alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo – cfr. artigo 430º, nº 1, do citado diploma.

No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão revidenda, justificando em relação a cada facto alternativo que propõe porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.

Ou, por outras palavras, como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nº 3/2012, de 08.03.2012, publicado no D.R. I Série, nº 77, de 18.04.2012, “Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório.

A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.

O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto.

Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.”.

Postos estes considerandos e sem os olvidarmos, urge relembrar que os recorrentes reclamam que foram incorrectamente julgados os factos dados como provados na decisão recorrida constantes dos pontos sob os números “4.”, “5.”, “6.”, “7.”, “12.”, “13.”, “14.”, “15.” e “16.” e bem assim os constantes sob os números “9.”, “10.” e “11.”, reclamando ainda que seja aditado ao acervo fáctico dado como provado o facto seguinte: “as chaves dos imóveis sitos na Gateira encontravam-se em cima de um frigorífico e acessíveis a todos”.

Ora, relativamente aos factos constantes sob os números “9.”, “10.” e “11.” da factualidade dada como provada na decisão recorrida, importa desde já afirmar que a pretendida correcção modificativa assentava única e exclusivamente na alegada, mas perecida, nulidade do meio de obtenção de prova - as buscas - que consentiram e fundaram a convicção do Tribunal a quo ao dar como provado tal acervo. Por isso, neste conspecto a pretensão recursiva naufraga.

Relativamente aos factos constantes sob os números “4.”, “5.”, “6.”, “7.”, “12.”, “13.”, “14.”, “15.” e “16.” E bem assim aqueloutro cujo aditamento é pretendido, impõe-se-nos afirmar, peremptoriamente, que os recorrentes não dão em lado algum das respectivas peças recursivas, quer no corpo da motivação, quer nas conclusões, cumprimento aos mencionados ónus de especificação a que alude o artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal.

Não dão porque não indicam em lado algum os “concretos pontos de facto” que consideram incorrectamente julgados, limitando-se à mera indicação da numeração que os mesmos têm na decisão de facto constante da decisão recorrida, sem que se alcance se é do teor de tais pontos de facto in tottum ou de algum dos segmentos da história de vida que neles se relata e, neste caso, qual ou quais, o fundamento da sua dissidência. Não dão porque, procedendo na medida das respectivas conveniências, à transcrição (comentada e adaptada pelos próprios) de excertos da prova produzida por declarações em audiência de julgamento, em lado algum da sua peça recursiva procedem à especificação das “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, não indicando, como legalmente se lhes impunha, o concreto conteúdo de tais meios de prova que, na sua óptica, imporiam decisão diversa da proferida pelo Tribunal a quo limitando-se, outrossim, a discorrer sobre a forma como tais meios de prova deveriam ter sido apreciados e valorados, logicamente distinta da efectuada pelo Tribunal a quo. Porque assim, consequentemente, também em lado algum da sua peça recursiva, os recorrentes não indicam qual a sua decisão de facto alternativa, nem justificam em relação a cada facto alternativo (que, ademais, não propõem) qual o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida, nem relacionam o facto individualizado (que também não indicam) que consideram incorrectamente julgado. Ademais, o facto cujo aditamento propõem é completamente irrelevante à boa decisão da causa.

Não cumprindo, como não cumpriram, os aludidos ónus de especificação, quer na motivação da peça recursiva, quer em sede de conclusões, não houve lugar a convite ao aperfeiçoamento, nos termos do preceituado no artigo 417º, nº 3, do Código de Processo Penal - v.g. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 259/02, disponível em http:/www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos -, e não pode este Tribunal ad quem conhecer da impugnação ampla da matéria de facto nos termos do preceituado no artigo 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal como pretendido pelos recorrentes.

Porém, do excurso pela peça recursiva dos recorrentes o que estes fazem, e ademais se limitam, é a discorrer sobre a convicção que formaram sobre a prova produzida em audiência de julgamento e aqueloutra que o Tribunal a quo efectuou, desenvolveu, explicitou e explicou de forma clara, exaustiva, objectiva e lógica e que, naturalmente, não é coincidente com a sua.

Em rigor, ressalvado o devido respeito pelo esforço argumentativo dos recorrentes, estes mais não pretendem deste Tribunal ad quem que sobreponha a sua análise e valoração da prova produzida na instância, enfim a convicção que pessoalmente alcançaram sobre os factos que constituem o objecto da presente acção penal, àquela que o Tribunal a quo atingiu e verteu na decisão sobre matéria de facto e com a qual não se conformam.

Olvidam os recorrentes o princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127º, do Código de Processo Penal, norma de acordo com a qual “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.

É sabido que livre convicção não se confunde com convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, no ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, vol. I, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 201 a 206, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.

De harmonia com o aludido princípio da livre apreciação da prova, o julgador é livre ao apreciar as provas, estando tal apreciação apenas “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório– cfr. Prof. Cavaleiro Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, vol. I, pág. 211. “A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspectivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento. Isto é, na outorga, não de um poder arbitrário, mas antes de um dever de perseguir a chamada verdade material, verdade prático-jurídica, segundo critérios objectivos e susceptíveis de motivação racional.” – cfr. Prof. Figueiredo Dias, ob. e loc. citados e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08.02.2012, proferido no processo nº 38/10.0 TAFIG.C1, disponível em www.dgsi.pt/jtrc.

Acresce que, em abono do princípio da livre apreciação da prova a que se refere o citado artigo 127º, do Código de Processo Penal [e que, como se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.10.2007, proferido no processo nº 8428/2007-3, disponível em www.dgsi.pt/jtrlé apenas um princípio metodológico de sentido negativo que impede a formulação de “regras que predeterminam, de forma geral e abstracta, o valor que deve ser atribuído a cada tipo de prova”, ou seja, o estabelecimento de um sistema legal de prova legal” e que, “não obstante o seu carácter negativo, este princípio pressupõe a adopção de regras ou critérios de valoração da prova” e esta “valoração há-de conceber-se como um actividade racional consistente na eleição da hipótese mais provável entre as diversas reconstruções possíveis dos factos.”], quando o caminho trilhado pelo Tribunal a quo na convicção formada e nos motivos dela determinantes se mostra, como já se afirmou, perfeitamente explicado, de forma lógica e objectivável, porque beneficiou da imediação e da oralidade, deve prevalecer.

Como se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2010, proferido no processo nº 11/04.7 GCABT.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj,Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.”. Só assim não será, quando as provas produzidas impõem decisão diversa da proferida pelo Tribunal recorrido, o que sucederá, sem preocupação de enunciação exaustiva, designadamente, quando o julgador decidiu a apreciação dos meios de prova ou de obtenção de prova ao arrepio e contra a prova produzida (v.g. dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e ouvido tal depoimento ou lida a respectiva transcrição constata-se que a dita testemunha disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida ou nem se pronunciou sobre aquele facto), ou quando o Tribunal valorou meios de prova ou de obtenção de prova proibidos, ou apreciou a prova produzida desrespeitando as regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, ou quando a apreciação da prova produzida contraria as regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, enfim, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência, ou, ainda, quando a apreciação se revela ilógica, arbitrária e violadora do favor rei.

Ora, também nesta vertente, como pretendem os recorrentes, não se vislumbra que o Tribunal a quo haja violado o princípio in dubio pro reo uma vez que, pelos motivos expendidos na decisão recorrida, a prova consente (e impõe) a convicção formada pelo Tribunal de primeira instância e a violação de tal princípio suporia, de um lado, a formação de uma convicção positiva sem suporte probatório bastante, o que não ocorre, ou de outro, que o Tribunal demonstrada uma dúvida razoável ante a prova produzida a havia resolvido contra os arguidos, o que também não ocorre.

Vale o exposto por se afirmar que, quando os recorrentes impugnam a decisão proferida sobre matéria de facto, não podem esquecer e descuidar que a prova produzida há-de impor, e não apenas permitir, decisão diversa da recorrida. Como se afirma no Acórdão do Tribunal desta Relação de Évora de 15.03.2011, proferido no processo nº 212/04.8 TACTX.E1, disponível em www.dgsi.pt/jtre, “se perante determinada situação de facto em concreto, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis e o juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente (tenha ele, nos autos, a posição processual que tiver), ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efectuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que por ela opte, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova.”.

Nestes termos, a alteração da factualidade assente na primeira instância só poderá ocorrer pela verificação de algum dos vícios a que aludem as alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, a saber: (a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; (b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e (c) o erro notório na apreciação da prova – cfr. ainda artigo 431º, do citado diploma –, verificação que, como acima se deixou editado, se nos impõe ex officio, avivando a este propósito que os recorrentes invocam os prevenidos nas mencionadas alíneas b) e c).

Em comum aos três vícios, o vício que inquina a sentença ou o acórdão em crise tem que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum. Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871, Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”, loc. supra mencionado.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), ocorrerá, como ensina Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. citados, quando exista “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.

Porventura, melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.

Ou, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a «formulação incorrecta de um juízo» em que «a conclusão extravasa as premissas» ou quando há «omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão»”.

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício a que alude a alínea b), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), consiste na “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.

Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.– cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. supra mencionados.

O erro notório na apreciação da prova (vício a que alude a alínea c), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), constituiu uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.

Ou, dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. citados.

Ora, não só não se verifica o reclamado vício de contradição entre os factos provados nos pontos sob os números “6.”, “7.” e “12.” da decisão recorrida e as alíneas “b)” e “c)” da factualidade dada como não provada, porquanto não só não são incompagináveis entre si, como não se excluem, como, aliás, bem elucida a motivação da decisão fáctica, designadamente ao afirmar que “apesar de não se ter ficado com nenhuma dúvida sobre o destino final do estupefaciente em questão (a sua comercialização no mercado), e bem assim que a actividade dos arguidos era feita com vista a obter ganhos financeiros, as provas produzidas não foram de molde a demonstrar que seriam os arguidos, eles mesmos, a proceder directamente às transacções e vendas, seja com os consumidores finais seja com intermediários distribuidores.”, como não se verifica o reclamado vício de erro notório na apreciação da prova que não só não existe quando a apreciação da prova e a credibilidade conferida à prova por declarações, depoimentos, documental e pericial que suportou e fundou a convicção formada pelo Tribunal a quo, não ofende qualquer regra sobre avaliação da prova, nem as regras da experiência, nem se fundou na formulação de um qualquer juízo ilógico ou arbitrário, como não se atesta um tal vício quando a discordância resulta da forma como o Tribunal apreciou a prova produzida. O simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo Tribunal e expressa na decisão recorrida não conduz ao aludido vício.

Assim, do texto da decisão recorrida, como se vê da transcrição supra, a mesma apreciou os factos aportados na pronúncia, na contestação dos arguidos e bem assim aqueles que resultaram da discussão da causa em audiência de julgamento. Do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, não se perfila a existência dos vícios elencados nas citadas alíneas, designadamente nas alíneas b) e c), do mencionado artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal. Investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê, por isso, que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a solução de direito atingida, não se vê que se haja deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, como não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos provados ou entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, não se descortinando, por outro lado, que haja situações contrárias à lógica ou à experiência comum, constitutivas de erro patente detectável por qualquer leitor da decisão, com formulação cultural média.

E, porque assim, este Tribunal ad quem não pode deixar de julgar improcedente a reclamada impugnação da matéria de facto por banda dos recorrentes e, em consequência, manter a factualidade assente Tribunal a quo, que sedimentada se mostra, posto que não se vislumbra na decisão recorrida nulidade ou vício cujo conhecimento ex officio se imponha a este Tribunal ad quem.

Em razão da sedimentação do acervo factual dado como provado pelo Tribunal a quo impõe-se proceder à apreciação da quarta editada questão [(iv)], do quantum da pena de prisão imposta a cada um dos arguidos e da reclamada suspensão da sua execução caso seja atendida a sua pretendida comutação in melius.

Sobre as finalidades da punição consignadas no artigo 40º, do Código Penal e sobre os critérios concretos a observar no doseamento da pena – cfr. artigo 71º, do mesmo Código –, dir-se-á, reproduzindo o Professor Figueiredo Dias, em “Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, pág. 110 e 111, que “1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.”. Ou, como ensina o mesmo ilustre Professor, em “Direito Penal”, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª ed., pág. 84, “a pena concreta é limitada no seu máximo inultrapassável pela medida da culpa; dentro desse limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais”.

Ora, atentos os factos julgados provados, os bens jurídicos protegidos pela incriminação e as circunstâncias indicadas na decisão recorrida supra transcrita, que não nos merece qualquer censura, tendo ainda em consideração a respectiva moldura penal abstracta do crime de tráfico de estupefaciente em que os arguidos se mostram incursos, não se vê no conspecto sedimentado no Tribunal a quo, qualquer margem que permita afirmar que a medida da culpa dos arguidos foi excedida, figurando-se a pena imposta a cada um doseada em medida adequada aos factos apurados e ademais temperada com equilibrado critério.

Nestes termos, cremos que é de manter a pena de prisão aplicada pelo Tribunal a quo a cada um dos arguidos - de 7 (sete) anos e 8 (oito) meses de prisão -, posto que não afronta os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas – cfr. artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa –, antes se mostra adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, e não ultrapassa a medida da culpa dos arguidos.

Assim, sem necessidade de qualquer outro considerando, por despiciendo, não se vislumbra fundamento para a pretendida alteração in melius.

E, ante o exposto, por carência absoluta de fundamento legal – cfr. artigo 50º, nº 1, do Código Penal -, falece também a reclamada suspensão da execução da pena de prisão em que os arguidos foram condenados, posto que tal instituto só é pensável quando ao agente seja imposta pena de prisão não superior a cinco anos.

Em face de tudo o que se deixa exposto, o recurso interposto pelos arguidos é, pois, totalmente improcedente.

V
Tendo em consideração que os recorrentes decaíram totalmente no recurso por si interposto, ao abrigo do disposto nos artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1, do Código de Processo Penal, 8º, nº 9, com referência à Tabela III anexa, do Regulamento das Custas Processuais, e sem prejuízo do preceituado no artigo 4º, nº 1, alínea j), deste mesmo Regulamento, impõe-se a respectiva condenação nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça devida em 5 (cinco) unidades de conta.

VI

Decisão
Nestes termos acordam em:

A) - Negar provimento ao recurso interposto pelos arguidos LL e TT e, consequentemente manter o acórdão recorrido nos seus precisos termos;

B) - Condenar os recorrentes nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça a cargo de cada um em 5 (cinco) unidades de conta.

Remeta-se, desde já, cópia do presente aresto ao Tribunal de primeira instância, nos termos e para os efeitos do estatuído no artigo 215º, nº 6, do Código de Processo Penal.

[Texto processado e integralmente revisto pela relatora (cfr. artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal)]

Évora, 26 de Fevereiro de 2019

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(Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares)

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(José Proença da Costa, com voto de vencido, que a seguir se transcreve)

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Fernando Ribeiro Cardoso (Presidente da Secção Criminal)

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Voto de vencido

Nos presentes autos vieram os arguidos suscitar a nulidade do auto de busca de fis, 69 a 75, 115 a 116, e 122 a 127- realizada no âmbito do Inquérito - porquanto os respectivos mandados não foram traduzidos para a sua língua materna, nem lhes ter sido nomeado intérprete, para de, no decurso das buscas, não terem sido assistidos por defensor.

Veio este Tribunal de recurso entender não se verificar qualquer das apontadas nulidades.

Desde logo, por inexistir norma que imponha a tradução para língua estrangeira dos mandados de busca emitidos. E que a haver alguma invalidade, muito a mesma estaria sanada, nos termos dos art.ºs, 121.º e 123.º do C.P,P,

No que toca à nomeação de intérprete, entendeu-se que nulidade quando falte nomeação de intérprete nos casos em que a lei a considerar obrigatória, o que não é o caso em presença.

que nos termos do art, 92º nº2 do CPP se nomeia intérprete quando o arguido, desconhecedor da língua portuguesa, houver de intervir no processo, cfr art.º 92.º, n.º 2, do C.P.P.

E tratando-se de buscas fundadas em mandados de magistrado, as mesmas realizam-se, naturalmente, à revelia e independentemente de qualquer vontade, declaração, acto ou intervenção do arguido. E, em decorrência, não é obrigatória a nomeação de qualquer intérprete.

Como entendeu não ser necessária a assistência de defensor, porquanto e na interpretação que se fez do art.º 64.º, n.º 1, al.ª d), do C.P.P., ser obrigatória a assistência de defensor ao arguido que não fala português é obrigatória nos actos processuais em que o arguido deva ter intervenção.

Ora, mostrando-se as buscas sustentadas em mandados, são actos processuais independentes de qualquer intervenção do visado ou do arguido - antes se realizam à sua revelia e independentemente da sua vontade ou qualquer participação-, inexiste qualquer obrigatoriedade processual de, no seu decurso, haver assistência por defensor.

Não secundamos o entendimento acabado de expor, mormente no que tange à obrigatoriedade de nomeação de intérprete e bem assim à necessidade de se proceder à tradução dos mandados de busca.

Desde logo, Importa chamar a terreiro o disposto no art.º 32.º, n.º1, da CRP, onde se diz que o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa.

Devendo-se ler a norma do n.º1, como cláusula geral que permita identificar outras possíveis concretizações judiciais do princípio da defesa não referenciadas no preceito, não pode deixar de configurar o processo criminal como um due process of law que considere ilegítimas quer normas processuais quer procedimentos decorrentes das mesmas que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido.[14]

E entre essas concretizações judiciais do direito de defesa encontra-se a da nomeação de intérprete a pessoa que desconheça ou não domine a língua portuguesa.

É, assim, que aparece o disposto no art.º 92.º, n.º 1, do Cód. Proc. Pen., onde se estatui que nos actos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa, sob pena de nulidade.

Se no processo intervier pessoa que desconheça ou não domine a língua Portuguesa é-lhe nomeado pertinente intérprete, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada, n.º 2, do citado normativo.

Importando, a respeito, reter o disposto no al.ª e), do n.º3, do art.º 6.º da C.E.D.H., onde se estatui que o acusado tem, no mínimo, direito a fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo.

Como é, ainda, de nomear intérprete, quando se torne necessário' traduzir documento em língua estrangeira, ver, ainda, n.º6, do mencionado inciso normativo.

E como vem entendendo o Tribunal Europeu dos direitos do Homem - a respeito da acusação - a Convenção não impõe uma forma especial ao acusado (...) apesar disso, exige-se um extremo cuidado nessa notificação, dado o papel determinante da acusação.

Alertando-se para o facto de que sem uma tradução 'escrita do documento feito numa língua que o acusado compreenda, pode acontecer que este venha a ficar numa posição desvantajosa.

Retendo-se que se no momento da notificação, uma explicação verbal pode ser suficiente se o processo vier a revelar que a acusação foi compreendida por quem domina a língua portuguesa; porém, a tradução [da acusação] evitará que a dúvida se desenhe, exigindo-se ao Estado a prova de que, apesar dessa omissão, a notificação atingiu o seu objectivo, o que nem sempre se mostrará fácil sobretudo na hipótese frequente de o acusado ou o seu defensor a terem reclamado.

Afigurando-se prudente que, pelo menos, uma tradução do essencial ou, no limite, um resumo dos factos e da sua qualificação jurídica sejam entregues ao acusado aquando da notificação da acusação.[15]

Para dilucidar tal pretensão, Importa fazer apelo ao que se passou, a respeito, nos autos. E, a respeito apura-se que:

- Em 14/02/2017 a Sra. Juíza de Instrução autorizou a realização de buscas domiciliárias, visando os então suspeitos e agora arguidos LL e TT, a decorrer numa moradia da Galé e numa quinta sita nas Gateiras em Tunes, tendo em 16/02/2017 sido emitidos os respectivos mandados (fls. 44 e 67)

- Em 09/02/2017 o Sr, Procurador-Adjunto, que então presidia ao inquérito, ordenou a realização de busca, que também visava os mesmos suspeitos/arguidos, a ser levada a cabo num veículo automóvel Ford Mondeo, tendo sido emitidos os respectivos mandados em 20/02/2017 (fis. 40 e 114);

Em 07/03/2017 foram levadas a cabo as três diligências de busca supra-mencionadas (respectivamente, autos de busca e apreensão de fls. 69 a 75, 122 a 127, e 115 a 116);

- Os arguidos falam inglês e não falam, ou percebem pouco, a língua portuguesa;

- Durante as buscas as trocas de palavras entre os suspeitos/arguidos e os Militares que levaram a cabo as diligências; de teor não apurado, ocorreram em inglês, uma vez que pelo menos alguns dos militares falam algum inglês, embora não dominem perfeitamente a língua.

Do que acaba de se dizer, e por desconhecedores da língua Portuguesa, obrigatoriamente lhes deveria ter sido nomeado intérprete para que se pudesse levar a cabo as buscas.

Se dúvidas existissem, a respeito - e não vemos como com o fazer intervir o disposto no art.º 92.º, do Cód, Proc. Pen., da leitura do art.º 6.º da CEDH, tais dúvidas ficaram todas dissipadas.

E se mesmo assim subsistissem, ainda, dúvidas importaria fazer intervir a Directlva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal.

Directiva cuja publicação ocorreu no JO, em 26-10-2010, a sua entrada em vigor ocorreu, nos termos do seu artigo 11.º, no vigésimo dia seguinte ao da sua publicação.-15-11-2010 - ocorrendo o prazo final de transposição para Portugal a 27-10-2013, cfr. art.º 9.º, da Dlrectiva,

O mesmo é dizer que a predita Directiva tem aplicação directa em Portugal desde 28-10-2013.

E não se modo de não a aplicar, apesar de Portugal não ter procedido à transposição da Directiva, que comunicou à Comissão que não eram necessárias quaisquer medidas de implementação adicionais.

É que para de não ter procedido à sua transposição, mostra-se decorrido o prazo de transposição e a maior parte dos direitos conferidos pela Directiva possuem um conteúdo suficientemente claro, preciso e incondicional.

E face à Directiva, tendo em linha de conta os considerandos - 21 - os Estados-Membros deverão assegurar a existência de um procedimento ou método que permita apurar se o suspeito ou acusado fala e compreende a língua do processo penal e se necessita da assistência de um intérprete. Tal procedimento ou método pressupõe que as autoridades competentes verifiquem por quaisquer meios adequados, designadamente a consulta do próprio suspeito ou acusado, se este fala e compreende a língua do processo penal e se necessita da assistência de um intérprete.

Sendo que a interpretação e a tradução previstas na presente dlrectiva deverão ser disponibilizadas na língua materna do suspeito ou acusado ou em qualquer outra língua que ele fale ou compreenda, a fim de lhe permitir exercer plenamente o seu direito de defesa e a fim de garantir a equidade do processo - considerando 22.

O respeito do direito à interpretação e tradução estabelecido na presente directiva não deverá prejudicar qualquer outro direito processual previsto no direito nacional-considerando 23.

Dizendo-se no art.º 2.º, n.º1, da Directiva - sob a epígrafe direito à interpretação - que os Estados-Membros asseguram que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo penal em causa beneficiem, sem demora, de interpretação durante a tramitação penal perante as autoridades de investigação e as autoridades judiciais, Inclusive durante os interrogatórios policiais, as audiências no tribunal e as audiências intercalares que se revelem necessárias,

E no seu n.º 2 que os Estados-Membros asseguram que, caso tal seja necessário à garantia da equidade do processo, seja disponibilizada interpretação para as comunicações entre o suspeito ou acusado e o seu defensor legal directamente relacionadas com qualquer interrogatório ou audição no decurso do processo, com a interposição de um recurso ou com outros trâmites de carácter processual.

E no art.º 3.º da Directiva - sob a epígrafe direito à tradução dos documentos essenciais - vem referir no seu n.º 1 que os Estados-Membros asseguram que aos suspeitos ou acusados que não compreendem a língua do processo penal em causa seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo.

E que entre os documentos essenciais contam-se as decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças, seu n.º 2.

Devendo as autoridades competentes decidir, em cada caso, se qualquer outro documento é essencial, n.º 3.

Dizendo-se no seu n.º 4 que não têm de ser traduzidas as passagens de documentos essenciais que não sejam relevantes para que o suspeito ou acusado conheça as acusações e provas contra ele deduzidas.

Donde resulta sem qualquer margem para dúvidas da necessidade de nomeação de intérprete aos suspeitos, ao tempo e bem assim a obrigatoriedade de tradução dos mandados de busca.

Importa reter que se está no âmbito de buscas domiciliárias e que dado o espaço em que se vai desenvolver a recolha de informação, a lesão de vários direitos pode ter lugar, como sejam o da reserva da intimidade da vida privada e familiar- ver art.º 26.º, n.º 1, da C.R.P. -, ou a inviolabilidade do domicílio- art.º 34,n.º 1, da C.R.P. direitos que se consideram essenciais na protecção da pessoa humana.

Daí todas as cautelas na sua realização, devendo assegurar-se aos visados os mais elementares direitos de defesa que passam Indubitavelmente pela nomeação de intérprete e tradução do auto de busca, sob pena de lhes ser totalmente alheia a diligência a levar a efeito, ofendendo de forma clara os direitos de defesa dos então suspeitos.

No que tange à nomeação de defensor para o acto/actos em causa,

Importa, desde logo, reter qual a qualidade em que intervém os cidadãos de nacionalidade Inglesa. E pelos elementos aportados aos autos temos de concluir que os mesmos podiam ser considerados como suspeitos, cfr art.º 1.º,al.ª e), do Cód. Proc. Pen.

Somos a entender que com a constituição de arguido - e não antes - que lhe é assegurado o exercício de direitos e de deveres processuais, como resulta do art.º 60.º, do Cód. Proc. Pen.

Direitos esses compaginados no art.º 61.º do mesmo compêndio adjectivo, de onde se destaca o de constituir advogado ou solicitar a nomeação de um defensor, n.º1, al.ª e) e 62.º.

E não sendo o suspeito sujeito da relação jurídica processual penal não lhe assistem nem os direitos nem os deveres previstos nos art.ºs 60.º e 61.º, do Cód. Proc. Pen.

Ou como referem Simas Santos e Leal Henriques [[16]], sendo o suspeito figura processual penal que fica aquém da figura do arguido não beneficia de qualquer direito dos que àquele cabe (cfr art.ºs 58.º a 62.º).

Razão pela qual não havia que lhes nomear e antes de serem constituídos arguidos qualquer defensor, não se descortinando a violação dos preceitos legais que invoca, nomeadamente o art.º64.º, n.º1, al.ª d), do Cód. Proc. Pen., e, consequentemente o cometimento da invocada nulidade insanável contemplada no art.º.119.º, n.º 1, al.ª c), do mesmo diploma adjectivo.

Cabe descortinar qual a sanção para a não nomeação de intérprete aos suspeitos e bem assim a não tradução dos mandados de busca, nos moldes que se acabam de tecer.

Somos a entender, no seguimento do Acórdão desta Relação, datado de 20.12,2018, no Processo n9 55/2017.9GBLGS.E1 [[17]], que as obrigações positivas impostas pela Directiva implicam a revogação de todas as normas do direito nacional -existentes ou a existir - que sejam contrárias ao consagrado nas Directlvas e que consagrem imperativamente um regime comunitário comum. Aqui se incluindo um sistema de invocação de invalidades que vise suprir as falhas imputáveis ao Estado que, qual Pilatos, lave as mãos das consequências do seu incumprimento.

Entendendo-se, portanto, não se estar perante mera irregularidade ou nulidade sanável, figuras que se entendem revogadas sempre que exista uma "obrigação positiva" a onerar o Estado e proveniente de norma comunitária imperativa, levando necessariamente a considerar revogada a al. c) do n.º 2 do artigo 120.º do Código de Processo Penal.

Afastando-se a conclusão de que a sanção possa ser a nulidade insanável, face ao princípio da legalidade vertido no art,º 118.º, do Cód. Proc. Pen., onde se estatui no seu n.º1 que a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.

Restando concluir pela irregularidade do n.º2, do art.º 123.º, do mesmo diploma adjectivo e pela inexistência jurídica.

Ora, tendo em conta que os suspeitos falam inglês e não falam, ou percebem pouco, a língua portuguesa. E que durante as buscas às trocas de palavras entre os suspeitos/arguidos e os militares que levaram a cabo as diligências, de teor não apurado, ocorreram em inglês, uma vez que pelo menos alguns dos militares falam algum inglês, embora não dominem perfeitamente a língua.

E não ocorreu qualquer tradução para a língua materna dos preditos suspeitos do teor dos mandados de busca, somo a entender, como se deu nota no Acórdão desta Relação e supra-referido que estamos perante um acto formal, vazio de conteúdo substancial, sem significado processual válido.

E assim sendo, bem se pode afirmar que não ocorreu a prática de actos processuais relevantes. Estes são inexistentes processualmente. Se a prática de actos se destina a dar a conhecer o conteúdo de um acto e nada transmite, é um acto que não existe. Não cumpre o seu papel de dar a conhecer os factos Imputados e o direito aplicável.

Somos pois reconduzidos a sair do apertado espartilho das nulidades previstas no Código de Processo Penal, pois que se trata de caso de uma gravidade não previsível pelo legislador ordinário português, a cair no âmbito das inexistências processuais.

Como afirma João Conde Correia, "trata-se de um recurso excepcional, utilizado para repor a justiça em situações extremas, que quase ultrapassam as fronteiras do imaginável".

"A anomalia é tão grande que o acto nem sequer é comparável com o seu esquema normativo, não alcançando aquele mínimo imprescindível para poder ser reconhecido como tal e ter vida jurídica".

Razão pela qual concederia provimento ao recurso, não tomando em linha de conta as buscas em causa nos autos, e remetendo os autos à 1.ª Instância para que viesse decidir a causa não levando em conta o meio de prova em questão.

(texto elaborado e revisto pelo relator)

José Proença da Costa

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[1] . No requerimento de 19/09/2018 a Defesa declarou impugnar o relatório planimétrico de fls. 77 e 79; os relatórios fotográficos de fls. 80, 118, 128, 312, 317 e 329; os relatórios de criminalística e fotográficos de fls. 310, 315 e 327; e os relatórios periciais de toxicologia de fls. 346 a 349 (todos eles prova indicada no despacho de pronúncia); Todavia, se bem se entende o plasmado no requerimento em questão, ali não se aponta a tais meios de prova qualquer invalidade processual, tão-somente se pretende declarar desconhecer — ou ser inverdadeiro— o seu teor. Da mesma impugnação genérica foi alvo o documento de fls. 150 e 156 (contrato de arrendamento) que, ademais, não foi indicado como prova no despacho de pronúncia.

[2] . E, no que importa a eventuais restrições de recolha de retratos de pessoas, o art. 79º do Código Civil.

[3] . Sem prejuízo de as buscas terem sido actos a que os arguidos assistiram (pelo menos em parte), afigura-se-nos que o prazo da respectiva arguição não pode ser o (mais apertado) da al. a) do nº 3 do art. 120º do CPP, uma vez que se nos parece difícil que quem não domine a língua do processo (art. 92º nº 1 do CPP) consiga, sem intérprete, arguir alguma coisa.

[4] . Tirado no processo 331/08, publicado na Colectânea de Jurisprudência, 2008, Tomo 2, página 272, e publicado igualmente na em www.colectaneadejurisprudencia.com.

[5] . Mas note-se que o consentimento prestado, sem qualquer tradução, em língua materna do visado já arreda qualquer invalidade do acto, como se decidiu no recente acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18 de Outubro de 2018 (processo nº 10/18.1GATVR-A.E1, publicado em www.dgsi.pt).

[6] . A não ser assim teria de se nomear defensor para qualquer acto processual (elaborar um qualquer auto de denúncia, interrogar-se uma qualquer testemunha, etc) ainda que o arguido de tal processo, desconhecedor do português, não estivesse presente em tais actos.

[7] . Consigna-se que se corrigiu oficiosamente uma das datas indicadas na contestação (facto não provado g), por ser manifesto tratar-se de lapso de escrita; Com efeito, tendo em consideração o contexto e o restante teor do próprio documento é patente que quando ali se disse “Quanto ao tudo quanto se encontra descrito e relacionado relativamente ao Anexo 1 (...) já se encontrava tudo exactamente assim no final de 2017” se pretendia dizer “2016”. Não fique por dizer, o mesmo facto redundaria igualmente não provado por referência ao ano de 2017.

[8] . Embora, evidentemente, não abone a fiabilidade do relato, sendo o auto documental muito mais fiável que o testemunho (por ser imutável a incorporação da informação feita na altura no documento). De todo o modo, porque a discrepância se reportou a um detalhe com importância secundária —e por isso não ser de estranhar a desmemoriação do militar— a mesma nem sequer abalou a fiabilidade do essencial em que se deteve aquela inquirição.

[9] .Note-se que os arguidos não se limitavam a cultivar o canabis, tinham igualmente meios para fazer face às várias fases de produção e disseminação do estupefaciente: peneiras e prensas para preparar as plantas depois da colheita, máquinas para proceder à respectiva embalagem do produto, caixas de cartão e material para a respectiva expedição, etc. Atente-se por exemplo no caixote de cartão que continha no interior seis sacos, devidamente selados, com aproximadamente 4 quilogramas de canabis já seco, prensado e embalado, documentada no auto de busca e apreensão a fls. 72, foto nº 117 de fls. 99.

[10] . Por exemplo, o valor que FO afirmou ter sido fixado à renda mensal da casa da Galé, € 500 ou € 600, parece significativamente inferior aos preços normalmente praticados na zona para casas com características semelhantes à moradia em questão — cfr. fotos de fls. 81 e 82.

[11] . Publicado em www.tribunalconstitucional.pt.

[12] .Cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Novembro de 2014, tirado no processo nº 249/11.0 PECBR. C1. S1, e publicado em www.dgsi.pt.

[13] . Entendimento largamente dominante na doutrina e na jurisprudência, cfr., entre muitos outros, Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, 3º Tema: Fundamento Sentido e Finalidade da Pena Criminal, Coimbra.

[14] - 'Ver, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 337/86, de 30.12.86 e Acórdão do mesmo Tribunal n.º 61/88, de 09.03.88.

[15] - Ver, Ireneu Cabral Barreto, in Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 5,a edição, págs. 210-211.

[16] - Ver, Código de Processo Penal Anotado, Vol. l, págs 60.
[17] - Relatado pelo Sr. Desembargador Gomes de Sousa.