Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
419/08.9TBPTG-O.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: REMIÇÃO
DEPÓSITO DO PREÇO
Data do Acordão: 03/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Na fase processual da venda por negociação particular, o direito de remição pode ser exercido até ao momento da entrega dos bens ou da assinatura do título que a documenta (realização da escritura pública tratando-se de imóveis), face aos termos literais do art. 843º do C.P.C..
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 419/08.9TBPTG-O.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

Na execução que Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…) instaurou contra (…) e outros, veio (…), por requerimento datado de 11 de Junho de 2018, declarar exercer o direito de remição sobre os prédios identificados como verbas nºs 17, 18, 19, 20 e 21 da notificação enviada pelo agente de execução e datada de 29-05-2018, uma vez que o processo executivo se encontrava já na fase processual da venda por negociação particular. Alegou para o efeito ser mãe do executado (…), requerendo ainda que seja elaborado documento com a referência para depósito do preço, após decisão que lhe reconheça o aludido direito de remição.
Notificada para se pronunciar veio a exequente opôr-se ao solicitado, alegando que a ora requerente não pode remir já que tem nos autos a qualidade de executada (sendo certo que aquela já havia formulado, oportunamente, pedido para lhe serem adjudicados os bens supra referidos).
A requerente respondeu, esclarecendo que o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão já transitado, reconheceu que a mesma não é executada, já que a oposição à execução que, oportunamente, apresentou nos autos, veio a ser julgada procedente.
De seguida, pela M.ma Juiz “a quo” foi proferida decisão que, não obstante haja reconhecido que a aqui requerente pode remir, mas como não depositou o respectivo preço, não exerceu validamente esse direito, razão pela qual não lhe reconheceu o direito em remir os bens que supra identificou.

Inconformada com tal decisão dela apelou a requerente (…), tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
1ª.- Por comunicação ao Agente de Execução, formulada no requerimento de 11.JUN/2018, citius 1175419, veio a recorrente declarar a vontade de remir.
2ª.- A exequente opôs-se alegando que a remidora não podia remir, por ter a qualidade de executada nos autos.
Na sequência:
3ª.- As partes requereram ao Tribunal que se pronunciasse sobre o direito a remir da recorrente.
4ª.- O Tribunal a quo reconheceu esse direito.
Porém:
5ª.- A Mmª. Juiz do Tribunal a quo veio também a decidir pela invalidade daquela declaração, por falta de depósito imediato do valor da remição, e ordenou a adjudicação dos bens à exequente.
Ora:
1ª. Questão: Da preclusão do direito de remir
6ª.- Nos termos do artº. 843.º, n.º 1, al. b), CPC, aplicável à venda por negociação particular, o direito de remissão pode ser exercido até à formalização da adjudicação, emitindo o agente de execução o título de transmissão.
7ª.- O que a remidora fez requerendo emissão de guias para depósito do preço ao A.E.
8ª.- Nos termos do artº. 833.º, n.º 4, CPC: (a) a declaração da vontade de remir foi validamente expressada e (b) o depósito valor da remissão poderá ser concretizado até à emissão do título de adjudicação
9ª.- Ainda que assim não se entenda, até aquele momento [formalização da adjudicação], não pode ter-se por precludido o exercício do direito de remissão, ainda que o remidor, no momento em que manifestou intenção de exercer esse direito, não deposite logo o preço, podendo, ainda, fazê-lo.
Neste sentido:
* Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, prolatado em 26.JAN/2017 * proc.º 671/17TBSTC-C.E1;
* Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, prolatado em 17.FEV/2014;
2ª. Questão: o Tribunal é incompetente para formular a decisão de adjudicação;
9ª A.- O artº. 719.º, n.º 1, CPC estabelece as competências do Agente de Execução, que são todas as que não estejam atribuídas à secretaria ou sejam da competência do Juiz. Por sua vez, o art.º 723.º CPC elenca as competências atribuídas ao Juiz.
10ª.- Não é da competência do Juiz ordenar a adjudicação de bens na execução, pois tal não resulta nem do art.º 723.º CPC, nem de qualquer outra norma processual; tal competência está atribuída, por exclusão, ao Agente de Execução.
11ª.- Inopinadamente, a Mmª. Juiz do Tribunal a quo decidiu adjudicar os bens à exequente.
12ª.- Sem competência para tal decisão.
13ª.- Pelo que aquela decisão é nula, o que se invoca com as legais consequências.
3ª. Questão: O tribunal pronunciou-se sobre aquelas duas questões, sem que estas lhe tivessem sido apresentadas para conhecimento, e decidiu sem respeito pelo princípio geral do contraditório
14ª.- O Tribunal a quo foi chamado a intervir para dirimir o conflito entre a exequente e a remidora, aquela pugnando pelo indeferimento do pedido do exercício do direito de remição apresentado pela recorrente (…), por ilegitimidade.
15ª- Foi esta a única questão levada ao Tribunal a quo pelas partes.
16ª.- Ao decidir sobre questões [validade do exercício do direito de remir e decisão de adjudicar] que não lhe foram apresentadas pelas partes, e sem as ouvir previamente, houve excesso de pronúncia, e, além do mais, violação dos princípios do dispositivo e do contraditório.
17ª.- Pelo que aquelas decisões são nulas, o que se invoca com as legais consequências.
18ª.- A decisão recorrida fez incorreta interpretação de art.º 833.º, n.º 4; art.º 843.º do Código de Processo Civil.
19ª.- A decisão recorrida violou o disposto nos art.º 3.º, nºs. 1 e 3, art.º 615.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Civil.
20º.- Nestes termos, com o sempre douto suprimento de Vs. Exªs., deve:
a) a Apelação ser doutamente julgada procedente in totum e, em consequência,
-b) ser doutamente revogado o Despacho revidendo, na parte em que:
b1.- decidiu pela invalidade da declaração de remir, por falta de depósito imediato do valor da remição;
b2.- ordenou a adjudicação dos bens à exequente;
e doutamente substituído por outro que reconheça a validade da declaração de remir por parte da remidora/recorrente, e remeta os autos ao Agente de Execução para ser proferida decisão de adjudicação a quem de direito fazendo, assim, Exmºs. Senhores Doutores Juízes Desembargadores, a costumada Justiça.
Não foram apresentadas contra-alegações de recurso.

Atenta a não complexidade das questões a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na decisão for desfavorável à recorrente (art. 635º, nº 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo artigo 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela requerente (…), ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação das seguintes questões:
1º) Saber se não estava precludido o exercício do direito de remição por parte da apelante (cfr. artigo 842º e segs. do C.P.C.);
2º) No caso de assim não se entender, sempre a decisão recorrida é nula, por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, alínea d), do C.P.C.) e por violação do princípio do contraditório (cfr. art. 3º, nºs 1 e 3, do C.P.C.).

Apreciando de imediato a primeira questão suscitada pela recorrente importa, desde logo, ter presente o que, a tal respeito, estipula o art. 842º do C.P.C. Assim temos que:
- “Ao cônjuge que não esteja separado de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado é reconhecido o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço que tiver sido feita a adjudicação ou a venda.”
Por sua vez, o art. 843º, nº 1, alínea b), do C.P.C. dispõe que o direito pode ser exercido “nas outras modalidades de venda, até ao momento da entrega dos bens ou da assinatura do título que a documenta”, nesta previsão se incluindo, portanto, a modalidade de venda por negociação particular.
Ora, o citado art. 843º reproduz, afinal, o art. 913º do anterior C.P.C., na redacção do D.L. nº 226/2008, de 20/11.
E, sobre a venda por negociação particular, no domínio da lei anterior, Amâncio Ferreira afirma o seguinte:
-“Quanto à forma que há-de revestir a transacção, aplicam-se as regras gerais da venda. Assim pode ser celebrada por qualquer das formas admitidas para a declaração negocial (arts. 217º e 219º do CC), exceptuados a venda de imóveis (art.º 85º do CC e art.º 22, al. a), do DL nº 116/2008, de 4 de Julho) e o trespasse do estabelecimento comercial ou industrial (artigo 1112.º, nº 3, do CC), que só são válidos se forem celebrados, respectivamente, por escritura pública ou documento particular autenticado e por documento escrito” – cfr. Curso de Processo de Execução, 11ª ed., pág. 386.
Daqui resulta que, havendo título de venda, como no caso da venda por negociação particular, apenas releva como termo do prazo para o exercício do direito de remição, a assinatura do título de venda, que, no caso da venda por negociação particular de bens imóveis, corresponde à escritura pública (cfr. art. 875º do Cód. Civil); e que o acto de entrega apenas vale como termo do prazo para o exercício do direito de remição quando a venda, pela sua modalidade, não imponha um título que a documente, o que sucede na venda em bolsas e, consoante o regulamento, na venda em estabelecimento de leilões e em depósito público (cfr. Ac. R.P. de 17.3.2006 e Ac. R.G. de 6.10.2004, disponíveis in em www.dgsi.pt).
Ora, voltando agora ao caso dos autos, verifica-se que, à data do exercício do direito de remição por parte da requerente (mãe do executado …), ainda não tinha sido realizada a venda dos bens imóveis por escritura pública (cfr. art. 785º do Cód. Civil), e que estão identificados como verbas nºs 17, 18, 19, 20 e 21 da notificação enviada pelo agente de execução.
Com efeito, a adjudicação de tais bens à exequente, como esta havia peticionado, ainda não era apta a produzir os efeitos próprios da compra e venda, como o de transmissão da propriedade e a obrigação de entregar a coisa (cfr. art. 879º, alíneas a) e b), do Cód. Civil), uma vez que só podia produzir esses efeitos jurídicos quando viesse a ser formalizada pela celebração da respectiva escritura pública, o que, de todo, ainda não tinha ocorrido.
Com efeito, se o agente de execução não realizou a escritura pública relativa à venda (por adjudicação à exequente) dos imóveis acima identificados, forçoso é concluir que essa circunstância não interfere com a validade do direito de remição por parte da aqui apelante, direito esse que sempre poderá ser exercido por aquela até à assinatura da dita escritura pública.
Deste modo, resulta claro que a remição foi exercida pela recorrente dentro do prazo legal para o efeito, não tendo ocorrido, pois, qualquer caducidade.
Neste sentido, e em caso similar ao dos presentes autos, veja-se o recente Ac. desta Relação, de 18/10/2018 (relator: Tomé de Carvalho), disponível in www.dgsi.pt, no qual, a dado passo, foi afirmado o seguinte:
- Na hipótese em apreço de venda de imóvel por negociação particular, há a considerar, como termos finais para o exercício do falado direito, dois momentos: o da assinatura do título que a documenta (a escritura pública, por se tratar de um imóvel) e o prévio despacho de adjudicação do bem, tal como ressalta do disposto nos artigos 832º e 833º, com referência ao artigo 827º do Código de Processo Civil.
Com efeito, para que o direito de remição seja exercido e possa ser considerado pelo agente de execução, a venda tem de estar determinada, no sentido de que o agente de execução já tomou a decisão de aceitar a proposta mais alta oferecida, pois é sobre essa proposta concreta que o direito de remição terá de ser exercido. Assim, para que o titular do direito de remição o possa exercer e o mesmo possa ser aceite pelo agente de execução é necessário estarmos perante uma proposta concreta de aquisição feita por um terceiro, e que já foi aceite por aquele.
É indiscutível que, no caso da venda por negociação particular, o direito de remição pode ser exercido até ao momento da entrega dos bens ou da assinatura do título que a documenta, face aos termos literais consagrados no artigo 843º do Código de Processo Civil. No entanto, tudo pressupõe que as regras adjectivas tenham sido correctamente aplicadas, a fim de garantir um processo justo e equitativo.
Neste horizonte interpretativo, apesar da previsão legal não exigir a notificação pessoal do remidor, o direito de remição apenas caduca com o decurso do prazo em que o mesmo tem de ser exercido.
(…) E, para que o direito de remição pudesse ser operacionalizado, os executados teriam de ser informados sobre o acto de adjudicação e igualmente transmitidas as circunstâncias de modo, tempo e lugar onde seria concretizada a venda por negociação particular do imóvel em discussão.
(…) Os executados não tiveram conhecimento desses elementos. E, por decorrência lógica, também o interessado na remição ficou injustamente privado de exercer o direito que legalmente lhe é cometido até ao termo final da assinatura do título que documenta a venda por negociação particular.
(…) Ao contrário daquele que foi o juízo final do Tribunal «ad quo», ao não ter tido conhecimento da data e do local para a celebração da escritura pública ou de acto notarial equivalente, o remidor ficou privado de perfectibilizar a preferência qualificada na compra do imóvel e, assim sendo, o exercício pontual do direito de remição ficou irremediavelmente prejudicado, o que constitui uma nulidade processual com influência na decisão da causa.

Assim sendo, forçoso é concluir que, “in casu”, a declaração da vontade de remir por parte da recorrente foi validamente expressa por ela e que o depósito do valor da remição deverá ocorrer atá à emissão do título de adjudicação por parte do agente de execução – cfr. artigo 833º, nº 4, do C.P.C..
Pelo exposto, atentas as razões e fundamentos supra elencados, torna-se evidente que a decisão recorrida não se poderá manter, de todo, revogando-se a mesma em conformidade, com as consequências legais que dai advêm e já acima referidas, e sem prejuízo da apreciação substantiva da validade do depósito que vier a ser realizado.
E, face à procedência da primeira questão recursiva suscitada pela apelante, fica prejudicado o conhecimento da segunda questão por ela levantada no presente recurso (saber se a decisão recorrida é nula, por excesso de pronúncia – artigo 615º, nº 1, alínea d), do C.P.C. – e por violação do princípio do contraditório – cfr. art. 3º, nºs 1 e 3, do C.P.C.).
***
Por fim, atento o estipulado no nº 7 do artigo 663º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
- É indiscutível que, estando os autos na fase processual da venda por negociação particular, o direito de remição pode ser exercido até ao momento da entrega dos bens ou da assinatura do título que a documenta (realização da escritura pública tratando-se de imóveis), face aos termos literais consagrados no art.843º do C.P.C.
- A fim de viabilizar o exercício do direito de remição, o agente de execução deve comunicar ao executado o despacho de adjudicação, bem como as circunstâncias de modo, tempo e lugar onde será concretizada a venda por negociação particular dos imóveis em discussão.
- Ao não ter sido dado conhecimento desses elementos ao executado, a remidora ficou privada de perfectibilizar a preferência qualificada na compra dos imóveis em causa, verificando-se assim a omissão de formalidade que tem influência na decisão da causa.
***

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, nos exactos e precisos termos acima explanados.
Sem custas.
Évora, 28 de Março de 2019
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás
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[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).