Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
769/16.0TBOLH.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: DANOS NÃO PATRIMONIAIS
FACTO PUNÍVEL
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: De acordo com as regras de boa prudência, do bom senso prático e da criteriosa ponderação das realidades da vida, a tentativa de agressão com uma faca que não só não provoca danos à integridade física devido a intervenção de terceiros e à adopção de actos defensivos da vítima traduz-se num dano indemnizável, ainda que só se prove que a vítima sofreu aborrecimentos e pequenas alterações da sua vida quotidiana.
(Sumário do Relator).
Decisão Texto Integral: Processo nº 769/16.0TBOLH.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Local de Olhão – J2
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente acção de condenação proposta por (…) contra (…), o Autor veio interpor recurso da sentença proferida.
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O Autor pediu a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de € 10.000,00, acrescida de juros de mora legais até efectivo e integral pagamento, a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos. *
Para o efeito, alega que, no dia 14/04/2013, o Réu empunhou uma faca, na sua direcção, dizendo, em voz alta e ameaçadora, que o iria marcar. E só não o atingiu porque as pessoas que se encontravam no local impediram que tal acontecesse.
Adianta ainda que temeu pela sua vida e que, por o episódio ter ocorrido em local público, sentiu e sente muita vergonha, desgosto e humilhação.
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Regularmente citado, na sua contestação, o Réu afirmou que o Autor na presença do Réu proferiu comentários e expressões provocatórias contra si e que, apesar de deter em seu poder uma faca de cozinha, nunca a utilizou, nem se serviu da mesma com vista à prática de qualquer acto ofensivo da integridade física do Autor.
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Realizado o julgamento, o Tribunal «a quo» julgou improcedente a acção intentada por (…), absolvendo do pedido o Réu (…).
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O recorrente não se conformou com a referida decisão e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
1 – Entende o Recorrente, com o devido respeito por opinião diversa que toda a matéria de facto contida nas alíneas a), b) e c) dos Factos Não Provados, referidos na douta decisão, sob censura, foram incorrectamente julgados.
2 – De facto é o próprio Réu, cujo depoimento se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, com início pelas 14 horas e 30 minutos e termo pelas 14 horas e 44 minutos; à pergunta: “Sr. (…), aqui o que está dito é que o Senhor disse ao empunhar a faca que o ia marcar, e o Senhor disse isto não é verdade? E agora o que lhe pergunto é, o Senhor só não atingiu porque as pessoas que se encontravam o impediram? (…)” – Gravado ao minuto 00:01:37.
3 – Respondeu: “Senhora Doutora impediram sim Senhor (…)” – Gravado ao minuto 00:01:54. À pergunta: “E tiraram-lhe a faca? Respondeu: “Sim Senhora tiraram-me a faca (…)” – Gravado ao minuto 00:02:18.
4 – Por outro lado a testemunha (…), cujo depoimento se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, com início pelas 15:00 horas e termo pelas 15 horas e 12 minutos, referiu ao minuto 00:02:07 o seguinte: “Vi o (...) bater …. e meti-me no meio.”
5 – E a testemunha (…), cujo depoimento se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, com início pelas 14 horas e 37 minutos e termo pelas 14 horas e 55 minutos; à pergunta: “O outro estaria a tentar furar com a faca (…)? Respondeu: “Pois o outro não deixava … com a cadeira (…)” – Gravado ao minuto 00:07:43.
6 – Assim, considerando o depoimento do Réu e o das aludidas testemunhas os factos constantes nas alíneas a), b) e c), da douta sentença recorrida, encontram-se incorrectamente julgados. Pois, correcta apreciação de tais depoimentos conjugado com as regras da experiência comum levaria a considerar-se provada toda a matéria constante naqueles referidos pontos.
7 – Foi também dado como não provada, na douta decisão sob censura, a matéria constante nas alíneas e) e h) dos Factos Não Provados.
8 – Contudo, a testemunha (…), cujo depoimento esta gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, com início pelas 14 horas e 45 minutos e termo pelas 14 horas e 59 minutos referindo-se aos factos; à pergunta: “E este episódio foi, de alguma maneira, falado lá no café … era tema de conversa, este assunto?” Respondeu: “Sim … havia pessoas à volta dele (…) – Gravado ao minuto 00:08:53.
9 – E a testemunha (…), à Pergunta: “Isto que aconteceu foi conversa lá no café?”, Respondeu: “Foi” – Gravado ao minuto 00:07:21.
10 – Assim, considerando o depoimento das aludidas testemunhas, os factos constantes nas alíneas e) e h) dos Factos Não Provados, da douta decisão recorrida, encontram-se incorrectamente julgados. Pois, correcta apreciação de tais depoimentos, conjugado com as regras da experiência comum levaria a considerar-se provada toda a matéria constante naqueles referidos pontos.
11 – Igualmente a douta decisão recorrida deu como não provados os factos constantes nas alíneas j) e k) dos Factos Não Provados.
12 – Sobre essa matéria é relevante o depoimento da testemunha (…) que à pergunta “Ele continuava a ir lá ao café?”, respondeu “No café deixou de aparecer”, conforme teor do seu depoimento gravado ao minuto 00:07:37.
13 – No que tange a essa matéria devemos atender ao depoimento da testemunha (…) que à pergunta “E o Sr. (…) de alguma maneira se sentiu afectado por isto, teve medo, teve vergonha (…)?” Respondeu: “Afectado estava.” – Gravado ao minuto 00:06:21; e à pergunta: “Porque é que o Senhor diz que estava?” – Gravado ao minuto 00:06:29, Respondeu: “Porque estava … ele falava comigo”, à pergunta: “Conversava consigo … e dizia que estava afectado?”, Respondeu: “Estava” – Gravado ao minuto 00:06:32.
14 – Atento o depoimento das referidas testemunhas, os factos constantes nas alíneas j) e k) dos Factos Não Provados, da decisão recorrida, encontram-se incorrectamente julgados. Correcta apreciação de tais factos levaria a considera-se provada toda a matéria constante naqueles referidos pontos.
15 – Resulta da prova que o Recorrente entende ter sido produzida e até da matéria de facto que o tribunal “a quo” deu como provada que o Recorrente/Autor sofreu danos com o comportamento ilícito do Recorrido/Réu, existindo, entre eles, relação causal.
16 – O Tribunal recorrido ao considerar que não se provaram danos que mereçam a tutela do direito absolvendo o Recorrido/Réu, violou o disposto nos artigos 70º, 483º, 487º, nº 2 e 563º, todos do Código Civil. 17 – Correcta apreciação dos factos que o Tribunal deu como provados bem como dos factos que o Recorrente entende deverem ser julgados como provados levaria a considerar que, atenta a prova, o Recorrente/Autor sofreu danos com o comportamento culposo e ilícito do Recorrido/Réu. O que bastaria para, fazendo boa interpretação e aplicação dos preceitos legais referidos no parágrafo anterior, proferir sentença condenatória contra o Recorrido/Réu.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e em consequência anulada a sentença recorrida, a qual deve ser substituída por decisão que condene o Recorrido/Réu, nos termos formulados na p.i., assim se fazendo a costumada Justiça».
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Não houve lugar a resposta.
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Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre decidir.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento universal que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do NCPC).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de:
1) Erro na fixação dos factos.
2) Erro na apreciação do direito.
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III – Dos factos apurados:
3.1 – Factos provados:
Após o julgamento e discussão da causa, e com interesse para a decisão das questões enunciadas, provaram-se os seguintes factos:
1. No dia 14/04/2013, pelas 15h30m, na Rua (…), junto do café designado por “(…)”, café esse que se situa perto da loja Figueiredo surgiu um desentendimento entre o Réu e o Autor.
2. Acto contínuo, o Réu retirou uma faca de cozinha, com cabo preto, que tinha escondida na meia da perna e dirigiu-se, empunhando a dita faca, na direcção do Autor.
3. As pessoas que se encontravam no local retiraram a faca da mão do Réu, sendo que, entretanto, o Autor evitou que fosse atingido porque se defendeu com uma cadeira[1].
4. A faca referida em 2) é uma faca de cozinha com 12 cm de lâmina e 23 cm no conjunto cabo/lâmina.
5. Tal faca foi apreendida e entregue na Esquadra da PSP de Olhão.
6. Os factos referidos em 1) e 2) deram origem ao processo de Inquérito que sob o nº 336/13.0PAOLH, correu os seus termos na Secção Única do Ministério Público – Olhão – DIAP, vindo tais autos a ser arquivados com o fundamento segundo o qual “(...) o denunciado (…) não chegou a atingir a integridade física do denunciante (…), sendo igualmente certo que a faca apreendida ao denunciado (…) não assume qualidades para ser considerada como uma arma branca sem aplicação definida (…)”.
7. O local referido em 1) é um local público.
8. O Autor é pessoa conhecida e respeitada no meio onde vive e frequenta, sendo-lhe reconhecida uma grande autoridade moral e profunda honestidade.
9. Em consequência do referido em 2) o Réu sentiu-se aborrecido e entristecido[2].
10. Nas circunstâncias descritas em 2) o Réu pretendia atingir o Autor[3].
11. Após este episódio de discussão, ambos continuaram a frequentar o Café “(…)”, mas a horas diferentes para não se cruzarem[4].
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3.2 – Factos não provados:
a) Nas circunstâncias descritas em 1) o Réu dirigiu ao Autor algumas palavras relacionadas com acontecimento ocorrido, entre ambos, há muitos anos.
b) Nas circunstâncias descritas em 2) o Réu disse em voz alta e ameaçadora, que o ia marcar.
c)[5].
d) O Autor, com o comportamento do Réu, temeu pela sua vida.
e) Nas circunstâncias descritas em 1), havia grande movimento de pessoas com muitas pessoas sentadas nas esplanadas dos cafés que se encontram no local.
f) Todas essas pessoas ouviram as palavras proferidas pelo Réu bem como os gestos por este praticados.
g) O acontecido disseminou-se no meio onde o Autor vive e frequenta.
h) Tendo sido, e ainda é, tema de conversa entre as pessoas que o conhecem e que com ele se relacionam.
i) O Autor sentiu e sente muita vergonha, desgosto e humilhação com o comportamento do Réu.
j)[6].
k) O Autor ficou deprimido[7].
l) O Autor tem receio de se cruzar com o Réu, temendo que este o possa agredir ou ofender, por qualquer forma.
m) Com o comportamento do Réu o Autor passou a ter dificuldades em dormir e em comer, atento o estado de depressão, tristeza, desgosto, vergonha e humilhação em que passou a viver.
n) Com o comportamento do Réu o Autor sofreu incómodos e transtornos com idas à polícia, Tribunal e ao escritório do advogado.
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IV – Fundamentação:
4.1 – Da alteração da decisão de facto:
Só à Relação compete, em princípio, modificar a decisão sobre a matéria de facto, podendo alterar as respostas aos pontos da base instrutória, a partir da prova testemunhal extractada nos autos e dos demais elementos que sirvam de base à respectiva decisão, desde que dos mesmos constem todos os dados probatórios, necessários e suficientes, para o efeito, dentro do quadro normativo e através do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 662º do Código de Processo Civil.
Em face disso, a questão crucial é a de apurar se a decisão do Tribunal de Primeira Instância que deu como provados (e não provados) certos factos pode ser alterada nesta sede – ou, noutra formulação, é tarefa do Tribunal da Relação apurar se essa decisão fáctica está viciada em erro de avaliação ou foi produzida com algum meio de prova ilícito e, se assim for, actuar em conformidade com os poderes que lhe estão confiados.
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O recorrente pretende que se considerem como provados os factos indicados nas alíneas a)[8], b)[9], c)[10], e)[11], h)[12], j)[13] e k)[14] da factualidade não provada. A discordância relativamente aos três primeiros factos baseia-se nas declarações tomadas ao Réu e nos contributos testemunhais de (…) e de (…). A proposta de alteração da decisão de facto quanto aos restantes facto é motivada pelas prestações das testemunhas (…) e (…).
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No juízo crítico do Tribunal os factos agora impugnados «resultaram da inexistência de prova cabal e consistente quanto à sua ocorrência».
Da audição global de toda a prova gravada é viável concluir que não se encontram registos incontestáveis que permitam alterar a resposta às alíneas a) e b) dos factos não provados.
Todavia, em contraponto, na avaliação integrada de toda a prova, face à envolvência e à intensidade do incidente, o acontecimento em discussão era susceptível de atingir a integridade física alheia, não fosse a intervenção de terceiros e a defesa encetada pelo Autor, como ressalta claramente da versão trazida ao processo pela testemunha (…). De acordo com este testemunho a agressão não foi consumada porque o Autor se defendeu com uma cadeira e os presentes conseguiram tirar a faca das mãos do Réu, quando este se preparava claramente para atingir o (…).
É assim incontroverso que todas as circunstâncias de modo presentes na situação judicanda apontam incontestavelmente para que a intenção do Réu fosse agredir o Autor na sua integridade física. E, em certa medida, isso decorre até das palavras do Réu, que afirma que as pessoas ali presentes o impediram e lhe tiravam a faca das mãos. E, desta forma, decide-se alterar a resposta à alínea c) dos factos não provados, passando a mesma a corresponder ao ponto 10 dos factos provados.
Na avaliação do Tribunal Superior também não existe qualquer prova credível e sustentada que favoreça uma decisão distinta relativamente às alíneas e) e h) dos factos não provados. Na realidade, aquilo que consta das conclusões 8) e 9) não transmite a ideia da continuidade das conversas públicas sobre os acontecimentos aqui em discussão e a ter existido algum alarido ele foi contemporâneo com a situação em apreço. Inexiste assim qualquer notícia nos autos de que a situação proposta pelo recorrente se mantém ou teve grande repercussão pública.
Quanto à matéria indicada em pontos j) e k) dos factos não provados formaram-se dois blocos probatórios. Na exteriorização da convicção da matéria de facto provada podem ser encontrados aspectos relevantes complementares quanto às matérias associadas ao estado de espírito do Réu, bem como aquelas que estão associadas à descrição das sequelas que sobrevieram por causa do evento em discussão.
Nesta dimensão, o Tribunal «a quo» apoiou-se nas palavras de (…), que disse que «após este episódio de discussão, ambos continuaram a frequentar o Café “(…)”, mas a horas diferentes para não se cruzarem e relativamente ao Autor referiu que não o viu nervoso ou aborrecido com o sucedido». E também valorizou positivamente o testemunho de (…) confirma também que «nunca viu o autor aborrecido ou com medo de se cruzar com o réu ou de sair à rua». Em sentido contrário, a Meritíssima Juíza de Direito não acreditou no depoimento de (…), que havia asseverado que o Autor estava afectado e tinha alterado os seus rituais diários.
Numa lógica de normalidade social parece mais crível que um ataque com uma faca tenha repercussões psicológicas que ultrapassam a barreira do aborrecimento e que um episódio deste tipo determine a própria alteração das rotinas quotidianas. E esse é o procedimento do cidadão comum, à luz do critério do bom pai de família.
Neste contexto, a narrativa deste último interveniente processual deve ser privilegiada nesta situação concreta, pois a mesma é mais condizente com um contexto de uma tentativa de agressão como aquela que está em discussão nos presentes autos. E, além do mais, esta testemunha mantém uma relação de maior proximidade com o Autor do que as outras testemunhas atrás mencionadas e esse conhecimento directo deve ser valorizado.
Dito isto, embora não se possa afirmar que o Réu tenha sofrido de qualquer depressão, é de firmar a convicção que ficou «triste» e que «após este episódio de discussão, ambos continuaram a frequentar o Café “(…)”, mas a horas diferentes para não se cruzarem», tal como a testemunha (…) transmitiu ao Tribunal.
Sopesados todos os argumentos esgrimidos pelo recorrente, da interpretação da audição de todo o suporte magnetofónico gravado e da demais prova presente nos autos, a Meritíssima Juíza de Direito estava legitimada a decidir nos termos em que o fez relativamente às alíneas a), b), e) e h) dos factos não provados. No entanto, relativamente às alíneas c), j) e k) dos factos a realidade processualmente adquirida impõe decisão diversa, à luz do estabelecido no artigo 662º, nº 1, do Código de Processo Civil. E, por conseguinte, aditam-se os factos constantes das alíneas c)[15], j)[16] e parte da k)[17] no elenco dos factos provados, com a correspondente eliminação dessas realidades do rol dos factos não demonstrados.
De forma oficiosa é ainda introduzida a parte final do ponto 3 dos factos provados, a fim de reconstituir a verdade judicial e histórica do processo, cuja fundamentação jurídica está presente na nota de rodapé nº 1.
A factualidade em causa será aditada directamente no ponto 3.1 dos factos provados, a negrito, a fim de tornar mais fácil a percepção da modificação determinada.
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4.2 – Do erro de direito:
São vários os pressupostos da responsabilidade civil por actos ilícitos, como se extrai do artigo 483º, nº 1, do Código Civil:
a) o facto do agente ("um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma da conduta humana"[18] – que se pode traduzir numa acção ou omissão);
b) a ilicitude (ou antijuridicidade) que pode revestir a modalidade de violação de direito alheio (direito subjectivo) e a violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios;
c) o nexo de imputação do facto ao lesante ou culpa do agente, em sentido amplo, o que significa que a sua conduta merece a reprovação ou censura do direito e que pode revestir a forma de dolo ou negligência;
d) o dano ou prejuízo;
e) o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima.
A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, nº 2, do Código Civil).
Do conspecto factual apurado resulta claramente que os referidos pressupostos da responsabilidade civil se encontram preenchidos e que a situação em apreço é passível de ser integrada no crime de ofensa à integridade física simples, na forma tentada, dado que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, o comportamento assumido era de natureza a fazer esperar que se lhes seguissem actos idóneos a produzir o resultado típico, tal como resulta do disposto na alínea c) do nº 2 do artigo 22º e do artigo 143º[19] do Código Penal. Aliás, existiria ainda a possibilidade da tentativa ser qualificada por força da utilização da faca e a esta conclusão não se opõe o arquivamento do processo crime, face à natureza distinta dos ónus probatórios existentes no direito processual civil e no direito processual penal e ao disposto no artigo 624º[20] do Código de Processo Civil.
Todavia, o Tribunal recorrido entendeu que não deveria arbitrar qualquer indemnização ao Autor por os meros aborrecimentos não serem indemnizáveis. Na perspectiva da Meritíssima Juíza de Direito «os meros aborrecimentos, sem mais, não são de tal modo graves que mereçam a tutela do direito».
Discorda-se dessa análise.
Perscrutada a matéria de facto, não podemos perder de vista que, face ao risco criado, o próprio acontecimento descrito nos factos assentes já é um prejuízo objectivamente relevante.
A actividade dos Tribunais tem como objectivo principal a solução dos conflitos de interesse de forma adequada, funcionando como um filtro da litigiosidade e assegurando o acesso à ordem jurídica de forma justa.
É incontroverso que a acção da Justiça visa essencialmente a pacificação social e a intervenção dos Tribunais assume uma natureza pedagógica. E, por isso, de acordo com critérios de experiência e de normalidade social, a decisão tomada não se pode desvincular de todo o contexto delituoso em que se deu o ataque à vítima através do uso de uma faca e da potencialidade lesiva do comportamento adoptado.
Neste enfoque, sob pena de uma descompensação funcional da Justiça, uma sentença que negue a relevância do dano civil em discussão pode transmitir a imagem que comportamentos deste tipo são autorizados e aceites comunitariamente e que genericamente não são passíveis de censura jurídica ao nível do accionamento da responsabilidade civil por factos ilícitos.
Não deve assim ser desvalorizado um acontecimento agressivo com estas características. A tentativa de agressão com uma faca que não só não provoca danos à integridade física devido a intervenção de terceiros e à adopção de actos defensivos da vítima traduz-se num dano indemnizável, ainda que só se provasse que a vítima sofreu aborrecimentos ainda que só se provasse que a vítima sofreu aborrecimentos e pequenas alterações da sua vida quotidiana. Porém, a matéria de facto foi ampliada e actualmente o cenário factual é distinto daquele justificou a absolvição do Réu.
E, como corolário lógico, o Tribunal da Relação de Évora entende que existe um dano não patrimonial que deve ser ressarcido.
Em termos de danos não patrimoniais, são ressarcíveis «os danos que, pela sua gravidade, mereçam tutela do direito», proporcionando-se à vítima uma satisfação ou compensação económica (cfr. artigo 496º, nº 1, do Código Civil).
Conforme resulta da intersecção entre a disciplina contida nos artigos 494º e 495º do Código Civil, a determinação do montante indemnizatório ou compensatório que corresponde a estes danos é calculada segundo critérios de equidade, atendendo-se não só à extensão e gravidade dos danos, mas também ao grau de culpa do agente, à situação económica deste e do lesado, assim como a todas as demais circunstâncias que contribuam para uma solução justa e equilibrada do litígio.
Almeida e Costa entende «que os danos não patrimoniais, embora insusceptíveis de uma verdadeira e própria reparação ou indemnização, porque inavaliáveis pecuniariamente, podem ser, em todo o caso, de algum modo compensados. E mais vale proporcionar à vítima essa satisfação do que deixá-la sem qualquer amparo»[21] [22] [23] [24].
Conforme faz notar Pessoa Jorge, «na generosa formulação do artigo 496º do Código Civil, que confia ao legislador a tarefa de determinar o que é equitativo e justo em cada caso, no que fundamentalmente releva, não o rigor algébrico de quem faz a adição de custas, despesas, ou de ganhos (como acontece no cálculo da maior parte dos danos de natureza patrimonial), mas, antes, o desiderato de, prudentemente, dar alguma correspondência compensatória ou satisfatória entre uma maior ou menor quantia de dinheiro a arbitrar ao lesado e a importância dos valores de natureza não patrimonial em que ele se viu afectado»[25].
A jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça aponta igualmente para que o montante da indemnização seja proporcionado à gravidade do dano, objectivamente apreciado, e não à luz de critérios subjectivos, em função da tutela do direito, tomando-se em consideração, na sua fixação, todas as regras de boa prudência, do bom senso prático e da criteriosa ponderação das realidades da vida.
Em conformidade com princípios de razoabilidade e justiça do caso concreto, o bom senso determina que os danos morais sofridos pelo Autor sejam dignos de protecção legal, atribuindo-se uma indemnização de € 2.500,00 (dois e quinhentos euros), acrescida de juros à taxa legal, contados desde a prolação do presente acórdão[26], até integral e efectivo pagamento.
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V – Sumário:
1. A actividade dos Tribunais tem como objetivo principal a solução dos conflitos de interesse de forma adequada, funcionando como um filtro da litigiosidade e assegurando o acesso à ordem jurídica de forma justa.
2. De acordo com as regras de boa prudência, do bom senso prático e da criteriosa ponderação das realidades da vida, a tentativa de agressão com uma faca que não só não provoca danos à integridade física devido a intervenção de terceiros e à adopção de actos defensivos da vítima traduz-se num dano indemnizável, ainda que só se prove que a vítima sofreu aborrecimentos e pequenas alterações da sua vida quotidiana.
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar parcialmente procedente o recurso interposto, concedendo-se uma indemnização de € 2.500,00 (dois e quinhentos euros), acrescida de juros à taxa legal, contados desde a prolação do presente acórdão, até integral e efectivo pagamento.
Custas a cargo do apelante e do apelado na proporção do respectivo decaimento, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Tenha-se em conta a decisão relativa ao pedido de apoio judiciário.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 28/06/2018
José Manuel Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Matos Peixoto Imaginário__________________________________________________
[1] Aplica-se aqui a tese do Supremo Tribunal de Justiça constante de acórdão datado de 13/01/2015, que afirma que não padece do vício de nulidade a decisão do tribunal de apelação que, na reapreciação da decisão da matéria de facto, em cumprimento do dever de avaliação/valoração/interpretação/ apreciação ou fixação da prova, lançou mão de todos os meios probatórios à sua disposição no processo e usou de presunções judiciais para obter congruência factual com a verdade judicial e histórica do processo.
[2] A introdução do presente facto resulta da modificação da decisão de facto determinada no ponto 4.1 do presente acórdão e resulta da segmentação da alínea k) dos factos não provados.
[3] A introdução do presente facto resulta da modificação da decisão de facto determinada no ponto 4.1 do presente acórdão.
[4] A introdução do presente facto resulta da modificação da decisão de facto determinada no ponto 4.1 do presente acórdão.
[5] A matéria em causa passou a integrar o ponto 10 dos factos provados.
[6] A matéria em causa passou a integrar o ponto 11 dos factos provados.
[7] Parte da matéria aqui contida passou a integrar o ponto 9 dos factos provados.
[8] (a) Nas circunstâncias descritas em 1), o Réu dirigiu ao Autor algumas palavras relacionadas com acontecimento ocorrido, entre ambos, há muitos anos.
[9] (b) Nas circunstâncias descritas em 2), o Réu disse em voz alta e ameaçadora, que o ia marcar.
[10] (c) Nas circunstâncias descritas em 2), o Réu pretendia atingir o Autor.
[11] (e) Nas circunstâncias descritas em 1), havia grande movimento de pessoas com muitas pessoas sentadas nas esplanadas dos cafés que se encontram no local.
[12] (h) Tendo sido, e ainda é, tema de conversa entre as pessoas que o conhecem e que com ele se relacionam.
[13] (j) O Autor passou a evitar deslocar-se aos locais públicos que costumava e gostava de frequentar, evitando contactos com as pessoas com quem costumava relacionar-se.
[14] (k) O Autor ficou deprimido e entristecido.
[15] Nas circunstâncias descritas em 2), o Réu pretendia atingir o Autor.
[16] Após este episódio de discussão, ambos continuaram a frequentar o Café “(…)”, mas a horas diferentes para não se cruzarem.
[17] Cfr. a parte final do ponto 9 dos factos provados.
[18] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 4ª edição, vol. I, pág. 447.
[19] Artigo 143º (Ofensa à integridade física simples):
1 - Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 - O procedimento criminal depende de queixa, salvo quando a ofensa seja cometida contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas.
3 - O tribunal pode dispensar de pena quando:
a) Tiver havido lesões recíprocas e se não tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro; ou
b) O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor.
[20] Artigo 624º (Eficácia da decisão penal absolutória):
1 - A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer acções de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário.
2 - A presunção referida no número anterior prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil.
[21] Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 6ª edição, pág. 502.
[22] Pessoa Jorge, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, pág. 374 e seguintes.
[23] Pinto Monteiro, Sobre a reparação de danos morais, in Revista Portuguesa do Dano Corporal, ano 1, nº 1, Coimbra, 1992, pág. 17 e seguintes.
[24] Vaz Serra, Reparação do dano não patrimonial, Boletim do Ministério da Justiça nº 83, pág. 69.
[25] Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, pág. 376.
[26] Nos termos do acórdão de uniformização do Supremo Tribunal de Justiça registado sob o nº 4/2002, publicado no Diário da República I-série A, de 27/06/2002 «sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora e não a partir da citação».