Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
90/11.0GCLLE.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: BURLA INFORMÁTICA
FURTO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
Data do Acordão: 01/20/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Tendo os arguidos subtraído à ofendida, e levado consigo, dois cartões de multibanco, e, de seguida, tendo retirado e levantado quantias em dinheiro de caixa de A.T.M., prejudicando a ofendida, cometeram, em concurso efetivo, dois crimes - um de furto e outro de burla informática (este previsto no artigo 221º, nº 1, do Código Penal).
Decisão Texto Integral:







Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:


I - RELATÓRIO

No âmbito do processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, com o nº 90/11.0GCLLE, do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Loulé, em que são arguidos A M S P e D EM M, estes foram condenados, em coautoria e em concurso real, pela prática de dois crimes de furto qualificado, um crime de furto simples e um crime de burla informática, cada um deles nas penas, respetivamente, de 2 anos de prisão, 1 ano de prisão, 4 meses de prisão e 1 ano de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão para o arguido A M P e de 3 anos e 4 meses de prisão para o arguido D EM M, penas únicas essas suspensas na sua execução por iguais períodos.
*
Os arguidos, inconformados, interpuseram recurso, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:
“1 - Para que se verifique a prática de burla informática é necessário que se verifiquem, cumulativamente, os requisitos de apropriação indevida de cartão de crédito, a utilização pelos arguidos de tal cartão no sistema informático bancário, e a apropriação indevida do saldo bancário, requisitos estes que não se verificam nos presentes autos.
2 - Para que se verifique a prática de furto em casa alheia é necessário provar em juízo que o arguido condenado se tenha ausentado e introduzido no domicílio da ofendida e daí subtrair os objetos que a mesma alega terem sido furtados. Tendo a ofendida declarado em juízo, que, em nenhum momento, o arguido A P se ausentou e sempre esteve presente consigo, até se ir embora, de facto não pode o arguido A P ter sido o autor de furto por que está condenado.
3 - Para que se verifique o crime de furto na pessoa do ofendido G G, tal como vem descrito na acusação, era necessário ter sido provado em Tribunal que o arguido A P retirou ao ofendido a quantia indicada nos autos. Sendo que o ofendido G G não reconheceu nenhum dos arguidos e só a instâncias do Tribunal, e a um metro de distância do arguido A P, admitiu “parecia que o conhecia”. Não existindo, nos autos, prova convincente e segura, de que os arguidos praticaram os crimes pelos que vinham acusados, devem os mesmos ser absolvidos da prática de tais crimes”.
*
O Ministério Público junto da primeira instância apresentou resposta, pugnando pela total improcedência do recurso interposto pelos arguidos.
Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, entendendo, também, que o recurso dos arguidos não merece provimento.
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada qualquer resposta.
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.


II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.

Três questões, em breve síntese, são suscitadas no recurso interposto pelos arguidos, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, que delimitam o objecto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal:
1ª - O arguido A M S P não praticou o crime de furto na casa da ofendida M C R G, pois que, como afirmou tal ofendida, em nenhum momento esse arguido se ausentou da presença da ofendida, sempre tendo estado com a mesma, até se ir embora (conclusão 2ª extraída da motivação do recurso).
2ª - Os arguidos não praticaram o crime de furto na pessoa do ofendido G G, já que esse ofendido não reconheceu, na audiência de discussão e julgamento, nenhum dos arguidos (conclusão 3ª extraída da motivação do recurso).
3ª - Os arguidos não cometeram o crime de burla informativa, uma vez que, para que ocorra a prática desse crime, é necessário que estejam preenchidos, cumulativamente, os requisitos de apropriação indevida de cartão de crédito, de utilização pelos arguidos de tal cartão no sistema informático bancário, e de apropriação indevida do saldo bancário, requisitos estes que não se verificam nos presentes autos (conclusão 1ª extraída da motivação do recurso).


2 - A decisão recorrida.

É do seguinte teor o acórdão revidendo (quanto aos factos provados -integrantes dos tipos legais de crime em causa -, e quanto à motivação da decisão fáctica):
Factos Provados
Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a sua decisão, os seguintes factos:
(Nuipc 90/11.0GCLLE)
1. No dia 03 de Outubro de 2011, pelas 11,00 horas, os arguidos deslocaram-se no veículo ligeiro de mercadorias, marca “Renault”, de cor branca, com a matrícula PF-54-45, propriedade do arguido D M, ao sítio da Brazieira de Baixo, em Salir.
2. Uma vez aí, saíram do veículo e abordaram o ofendido G G, nascido a 15-06-1943, atualmente com 69 anos de idade, que se encontrava numa cadeira de rodas, no terraço da sua residência, que se localiza no 1º andar.
3. Os arguidos dirigiram-se ao local onde se encontrava o ofendido e disseram-lhe que ele tinha uma consulta marcada no Centro de Saúde de Loulé, ao que o mesmo respondeu que tinha uma consulta marcada, mas no Hospital Distrital de Faro.
4. Os arguidos pediram então ao ofendido um papel, para apontar o número de telefone para onde devia telefonar, a fim de confirmar a consulta.
5. Nessa altura, quando o ofendido tirou um papel do bolso do lado esquerdo da camisa, o arguido A M S, ao se aperceber que o mesmo tinha dinheiro no bolso, rapidamente retirou todo o dinheiro que o ofendido tinha, no valor de 1.050 euros, pondo-se de imediato em fuga, juntamente com o arguido D M.
(Nuipc 95/11.1GCLLE)
6. No dia 07 de Outubro de 2011, pelas 16 horas, os arguidos dirigiram-se, no veículo referido no ponto 1, a Monte Ritas, Freixo Seco, Salir.
7. Uma vez aí, e enquanto o arguido D M aguardou no exterior, o arguido A P dirigiu-se à residência de M C R G, nascida a 08-09-1952, atualmente com 59 anos de idade.
8. A ofendida encontrava-se, naquele momento, no seu quarto, a descansar.
9. O arguido A abriu a porta da residência da ofendida, que se encontrava com a chave do lado de fora, e entrou.
10. Ao ouvir a porta a abrir, a ofendida levantou-se, tendo-se deparado com o arguido já no interior da sua residência, tendo-o questionado sobre o que ali estava a fazer.
11. O arguido terá dito: “olhe, está ali um cão a comer uma galinha!”, tendo então saído da residência, encaminhando a ofendida para as traseiras da mesma, deixando a porta aberta.
12. Nessa altura, e enquanto o arguido A entabulou conversa com a ofendida, a fim de a entreter, questionando-a sobre se comprava gado e se conhecia alguém que o fizesse, o arguido D M entrou no interior da residência da ofendida e apoderou-se de:
- Uma carteira da mesma, contendo 200 euros em notas do Banco Central Europeu, e dois cartões multibanco, referentes a uma conta da Caixa Geral de Depósitos, de que a ofendida é titular, juntamente com os respetivos códigos;
- Uma arma de fogo, pertencente a J E M, de características não apuradas.
13. Nesse mesmo dia, pelas 16,11 horas e 16,12 horas, os arguidos fizeram uso do cartão multibanco da ofendida, tendo logrado levantar, numa caixa automática, sita em Moncarapacho, a quantia de 400 euros, em dois levantamentos subsequentes.
(Nuipc 96/11.0GCLLE)
14. No dia 21 de Outubro de 2011, pelas 11 horas, os arguidos dirigiram-se, na viatura já descrita no ponto 1, ao lugar Alto Fica, em Salir.
15. Naquele local, o arguido A S P saiu do veículo e abordou o ofendido M L G, nascido a 26-09-1929, atualmente com 82 anos de idade, quando acabava de sair de sua casa.
16. Nessa altura, o A S P abraçou o ofendido, ao mesmo tempo que lhe disse que não tivesse medo dele, pois naquele dia já tinha apanhado 10 sacos de alfarrobas.
17. De imediato, e enquanto conversava com o ofendido, conduziu-o até às proximidades da carrinha, no interior da qual se encontrava o arguido D M, sentado no lado do pendura.
18. Nessa altura, o arguido A S P disse ao ofendido: “você tem aqui uma carraça!”, apontando para o bolso da camisa, onde o ofendido guardava a carteira.
19. Convencido da veracidade de tais factos, o ofendido M L G retirou a carteira, juntamente com uma nota de 20 euros, que tinha guardadas no bolso.
20. Nesse momento, o A P retirou-lhe subitamente das mãos a carteira e a nota, e entregou a carteira ao D M, enquanto guardou no bolso das calças a nota.
21. O ofendido pediu insistentemente que lhe devolvessem a carteira, tendo logrado retirar a mesma das mãos do arguido D M.
22. De imediato, o arguido A P introduziu-se na viatura e abandonaram o local.
23. Foram ainda encontrados no interior da viatura:
- Umas luvas latex;
- Duas folhas de papel com “croquis” de residências;
- Dois brincos em ouro;
- Um cordão entrelaçado, sem qualquer valor comercial.
24. Ao praticarem os factos supra descritos, agiram os arguidos A P e D M com o propósito concretizado de se apoderarem de tais objetos e valores, bem sabendo que os mesmos não lhes pertenciam e que atuavam sem o conhecimento e contra a vontade dos proprietários.
25. Conheciam ainda os arguidos a debilidade dos ofendidos G G e M L G, em virtude da doença e da idade dos mesmos, tendo-se aproveitado dessa situação para satisfazerem os seus intuitos apropriativos.
26. Ao praticarem os factos descritos no ponto 13, quiseram os arguidos apoderar-se das quantias monetárias existentes na conta bancária da ofendida, com o propósito de obterem um enriquecimento que sabiam não ser legítimo, em virtude de utilizarem dados da ofendida, contra a sua vontade e causando-lhe prejuízo.
27. Atuaram sempre mediante prévio acordo, em conjugação de vontades e de esforços, cada um aceitando a conduta do outro, e de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
(…).
Motivação
(…)
No caso em apreço, a convicção do Tribunal, quanto à matéria de facto provada, formou-se com base nos seguintes meios de prova, analisados criticamente, à luz das regras da experiência comum, da lógica, da razão e da livre convicção do julgador:
- O arguido D M não prestou declarações, usando o seu direito ao silêncio.
- Declarações do arguido A P, que negou a prática dos factos, relatando ao Tribunal uma história completamente inverosímil.
- Declarações de M C R G, ofendida, que, de forma imparcial, credível, lógica, atento o modo como relatou os factos por si vivenciados, referiu que estava em casa por volta das 17 horas, quando ouviu alguém abrir a porta, quando estava no quarto, e viu o arguido A P, já em casa, e este disse-lhe que “um cão andava a comer as galinhas”. Saiu, e, acompanhada pelo arguido, sempre a conversar com ela, para ela ir ver aos locais, insistia para ela ver debaixo dos arbustos e ela foi ver o que se passava, tendo deixado a porta aberta e não viu nada nem ninguém. Recorda-se que, quando saiu, viu estacionada uma carrinha branca, onde o arguido vinha. Quando regressou, viu que a carrinha branca já não estava estacionada na mesma direção, e apercebeu-se que tinha sido assaltada. Desapareceu-lhe 200 euros em dinheiro, dois cartões multibanco, com os respetivos códigos, e uma arma de J E. Efetuaram levantamentos no multibanco, no montante de 200 euros cada.
- Declarações de G K G, ofendido, que, de forma imparcial, coerente e visivelmente revoltado com a situação, disse conhecer os dois arguidos, esclarecendo que o arguido A apareceu em sua casa quando ele estava sentado na varanda, tendo ido ter com ele e perguntou-lhe se estava melhor, dizendo-lhe que tinha uma consulta marcada no Centro de Saúde de Loulé, pedindo-lhe a este um papel, para anotar o número de telefone para este escrever o contacto e telefonar. O ofendido, ao retirar o papel do bolso, caiu-lhe dinheiro, uma nota de 500 euros do bolso, tendo o arguido apanhado e tirado o restante do bolso, cerca de 1050 euros, no total. Depois surgiu o outro arguido negro, e fugiram os dois para a carrinha que tinham estacionado, que parecia ser de cor creme. Afirmou não ter dúvidas que os arguidos eram os indivíduos que lhe retiraram o dinheiro.
- Declarações de J E M, que disse terem retirado de casa da M C G uma espingarda de canos sobrepostos.
- Declarações de M L G, ofendido, disse de forma imparcial, coerente e séria, que conhece os dois arguidos, esclarecendo que, por volta do meio-dia, saiu de casa para beber café, quando o arguido A saiu do veículo e colocou-lhe o braço por cima do pescoço, dizendo-lhe para este o acompanhar à carrinha, onde estava sentado o arguido D. Nessa altura, o arguido A disse ao ofendido “você tem aqui uma carraça”, tirando-lhe imediatamente a carteira, que este tinha no bolso, e deu-a ao outro, que estava dentro da carrinha branca. Pediu-lhe os documentos, tendo o escuro devolvido a carteira e os documentos. Mas ficaram com a nota de 20 euros, que tinha no bolso. Referiu, ainda, que, há cerca de 4 dias, o escuro pediu-lhe um garrafão de água, e foi-se embora, na carrinha branca.
- Declarações de K M T, militar da GNR, a desempenhar funções no posto de Salir, disse conhecer os arguidos do exercício das suas funções, e referiu, de forma imparcial, coerente e consentânea, que efetuou investigações no âmbito dos presentes autos, na sequência de terem ocorrido muitos furtos a residências a velhotes, na zona de Salir. Identificou a viatura com a descrição do ofendido G (cor, marca) e também porque já havia referência a esta viatura noutros furtos, pelo que aquela foi intercetada pela patrulha de Loulé e identificados os arguidos. Foi feito o reconhecimento dos arguidos pelos ofendidos, no posto da GNR de Loulé.
- Declarações de R A B, militar da GNR, a desempenhar funções no NIC de Loulé, referiu que conhece os arguidos do exercício das suas funções, que, de forma imparcial e coerente, disse que no âmbito da investigação, fez a análise detalhada à faturação dos telemóveis dos arguidos e, na data dos factos, os arguidos encontravam-se nas áreas onde ocorreram os furtos, nomeadamente em Salir.
- Declarações de A J B C, militar da GNR, a desempenhar funções no posto de Salir, disse conhecer os arguidos do exercício das suas funções, e referiu, de forma imparcial, coerente e consentânea, que, no dia 03 de Novembro de 2011, recebeu uma chamada telefónica, que tinha sido assaltada a “Serafina”, tendo-se deslocado ao local, referindo que esta estava no local em pânico. Referiu, ainda, que a viatura dos arguidos, após comunicação de Loulé, foi intercetada, tendo efetuado a revista e a busca. O A P tinha dissimulado nas cuecas duas notas de 20 euros, duas notas de 10 euros e uma de 5 euros. O D tinha 20 euros no bolso. No assento do pendura havia dois brincos da “Serafina”, um maço de tabaco vazio, com um fio de ouro amarelo, e no “tablier” umas luvas latex e “croquis” de residências. Referiu, ainda, que os arguidos eram referenciados pelos furtos ocorridos no espaço de um mês, que andavam os dois juntos e utilizavam uma carrinha branca.
- Declarações de E M C, militar da GNR, a desempenhar funções no territorial de Loulé, disse conhecer os arguidos do exercício das suas funções, e referiu, de forma imparcial, coerente e consentânea, que efetuou a abordagem aos mesmos, no dia 03 de Novembro, na qual intercetaram a carrinha conduzida pelos arguidos. Não efetuou a busca nem a revista, mas recorda-se que o arguido A tinha dinheiro, havia brincos dentro da viatura, e um maço de tabaco vazio, com um fio.
- Declarações de C M, militar da GNR, a desempenhar funções no territorial de Loulé, disse conhecer os arguidos do exercício das suas funções, e referiu, de forma imparcial, coerente e consentânea, que efetuou a abordagem aos mesmos, no dia 03 de Novembro, na qual intercetaram a carrinha conduzida pelos arguidos. Corroborando o depoimento prestado pelo militar C.
O Tribunal valorou ainda os documentos de fls. 277 a 316 (informação da Vodafone, com extração detalhada das comunicações efetuadas); fls. 321 e segs.; fls. 346 a 363 (relatório de interceção de comunicações fornecido pela Vodafone); fls. 6, 19 e 20, 30 a 37, 131 (autos de reconhecimento); fls. 15 e 16 (auto de apreensão de vários objetos na posse dos arguidos); fls. 17 e 18, fls. 16 e 17 do inquérito 95/11.1GCLLE (extrato de movimentos do cartão).
(…).
Ponderando, de forma crítica e conjugada, à luz das regras da experiência comum, com especial relevo para o depoimento credível dos ofendidos, que identificaram os arguidos e descreveram a viatura em que os mesmos se deslocaram, conjugado com os depoimentos dos militares da GNR, e atento o modus operandi levado a efeito pelos arguidos (homogeneidade de escolha das vítimas - sempre idosas - e foi sempre a mesma área de atuação), o extrato de movimentos do cartão multibanco, o auto de apreensão, não obstante um dos arguidos não ter prestado declarações - D M - e outro arguido - A P - ter negado a prática dos factos, relatando uma história completamente inverosímil, resultou evidenciado para o Tribunal que os arguidos, aproveitando-se da idade e debilidade das vítimas, se apropriaram dos bens e dinheiro das mesmas, com o propósito de se apoderarem deles, contra a vontade dos seus proprietários. Apropriaram-se ainda de dois cartões multibanco, da ofendida M C, e respetivos códigos, tendo decidido utilizar os mesmos para obterem benefícios patrimoniais a que sabiam não ter direito, o que conseguiram, agindo sempre de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei”.


3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Do furto na casa da ofendida M C R G.

Alega-se na motivação do recurso que o arguido A M S P não praticou o crime de furto na casa da ofendida M C R G, pois que, para tanto, era necessário que tal arguido se tivesse ausentado (da presença da ofendida) e introduzido no domicílio da ofendida, e daí subtraído os objetos em causa, o que não aconteceu.
Cabe apreciar.
Com o devido respeito, a alegação agora em apreciação carece totalmente de sentido (sendo até absurda).
É certo que a ofendida M C R G relatou, em audiência de discussão e julgamento, que em nenhum momento o arguido A P se ausentou e sempre esteve presente consigo, até se ir embora do local.
Contudo, a ofendida disse várias outras coisas, que ficaram, aliás, plasmadas na matéria de facto dada como provada no acórdão revidendo (matéria essa não questionada, neste ponto, na motivação do recurso).
Assim, disse a ofendida M C R G, e ficou dado como assente no acórdão sub judice:
- A ofendida estava em sua casa, no seu quarto, quando ouviu alguém abrir a porta, e, de seguida, viu o arguido A M P, já dentro da casa, o qual lhe disse que um cão andava a comer as suas galinhas.
- Perante tal afirmação do arguido A M P, a ofendida saiu de casa com o mesmo, para ver o que se passava com as suas galinhas, indo o arguido sempre a conversar com ela, olhando os locais, e insistindo para que visse debaixo dos arbustos.
- A ofendida deixou aberta a porta de casa, e encaminhou-se para as traseiras da casa, na procura do cão e das galinhas.
- Enquanto o arguido A M P entabulou toda a referida “conversa” com a ofendida, o arguido D M saiu do veículo automóvel (no qual ambos os arguidos se tinham feito transportar para o local), entrou no interior da residência da ofendida, e, uma vez aí, apoderou-se de uma carteira da mesma, contendo 200 euros, e de dois cartões multibanco, referentes a uma conta da Caixa Geral de Depósitos de que a ofendida é titular, juntamente com os respetivos códigos, e ainda de uma arma de fogo (esta pertencente a J E M).
- Nesse mesmo dia, os arguidos fizeram uso dos referidos cartões multibanco da ofendida, tendo levantado, numa caixa automática, a quantia de 400 euros, em dois levantamentos subsequentes.
Mais consta da factualidade tida como provada no acórdão recorrido, e não questionada (também neste aspeto) na motivação do recurso, que os arguidos “atuaram sempre mediante prévio acordo, em conjugação de vontades e de esforços, cada um aceitando a conduta do outro, e de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei” (facto provado, no acórdão em análise, sob o nº 27 da matéria de facto provada).
Ora, perante tais factos, logo verificamos, sem dificuldade alguma, que a alegação agora em apreciação não possui a mínima pertinência.
Ela esquece, manifestamente (e estranhamente, diga-se), a disposição normativa constante do artigo 26º do Código Penal: “é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.
Face aos factos dados como provados no acórdão revidendo - não impugnados na motivação do recurso -, e visto (até só em si mesmo) o invocado depoimento da ofendida M C R G, constatamos, sem dúvidas ou hesitações, que os arguidos A M S P e D EM M praticaram os factos em coautoria, e, como tal, foram condenados (e bem).
No dizer de Maurach (in “Derecho Penal - Parte General”, tradução da 7ª edição alemã por Jorge Bofill Genzsch, Editorial Astrea, Buenos Aires, 1995, Vol. II, págs. 295 e 296), “autor é, em primeiro lugar, quem executa o facto por si mesmo. Para esta categoria são utilizadas também (equivalentemente) as descrições autor imediato ou autor primário. Porém, é também autor aquele que executa o facto por intermédio de outrem, o mesmo é dizer, o autor mediato, aquele que se serve de outra pessoa como instrumento. Finalmente, é compreendido o caso em que diversas pessoas cometem conjuntamente um facto punível, as quais são denominadas coautores”.
In casu, ambos os arguidos, em coautoria, praticaram o crime de furto na casa da ofendida M C R G, pois agiram de comum acordo, previamente combinados, ambos com domínio funcional dos factos e ambos visando retirar bens pertencentes à ofendida (o que conseguiram).
O arguido A M P não é, pois, alheio ao crime agora em análise, e nem sequer é mero cúmplice na prática do mesmo (cfr. o disposto no artigo 27º, nº 1, do Código Penal).
Na expressão de H. Jeschec (in “Tratado de Derecho Penal”, Vol. II, pág. 962), “o cúmplice limita-se a favorecer um facto alheio; como o instigador, não tem domínio do facto; o autor não necessita sequer de conhecer a cooperação que lhe presta (a chamada cumplicidade oculta). Neste ponto se distingue a cumplicidade da coautoria, posto que esta requer o domínio funcional do facto sobre a base de um acordo comum”.
De tudo o que acaba de expor-se pode concluir-se que, tendo em conta os factos que se tiveram como provados, ambos os arguidos, por forma inequívoca, tomaram parte ativa na decisão e nos atos de execução da conduta levada a cabo na residência da ofendida M C R G.
Resulta daqui, com larga evidência e sem necessidade de ir mais além, que ambos os arguidos, ao contrário do que se alega na motivação do recurso, tomaram parte direta na execução do crime de furto no interior da residência da ofendida M C R G, com vista à obtenção de um resultado comum (por ambos os arguidos perseguido) - no caso, a apropriação ilegítima de valores e de bens pertencentes à ofendida, e que estivessem no interior da residência desta -, sendo, assim, portanto, coautores do crime de furto em causa (artigo 26º do Código Penal).
Face ao exposto, e nesta primeira vertente, é de improceder o recurso.


b) Do furto na pessoa do ofendido G K G.

Alegam os recorrentes que o ofendido G K G não reconheceu, em audiência de discussão e julgamento, nenhum dos arguidos, e que, só a instâncias do tribunal e a um metro de distância do arguido A M P, admitiu que “parecia que o conhecia”.
Assim, e no entendimento dos recorrentes, não se fez prova que os arguidos tenham sido os autores dos factos relatados pelo ofendido G K G.
Cumpre decidir.
Compulsados os autos (cfr. fls. 30 e 34), verifica-se, desde logo, que o ofendido G K G, em 15 de Novembro de 2011, num “auto de reconhecimento” efetuado pela G.N.R., descreveu as características físicas dos arguidos A M P e D EM M, com inteiro rigor e singular pormenor, dizendo também que já conhecia, anteriormente aos factos em apreço, o arguido A M P.
Depois (e mais importante): ouvido (por nós) o depoimento (integral) do ofendido G K G (prestado na audiência de discussão e julgamento), constatamos, tal como bem refere o tribunal a quo, que o mesmo não teve quaisquer “dúvidas que os arguidos eram os indivíduos que lhe retiraram o dinheiro”.
Na verdade, em relato claro, assertivo e totalmente convincente, o ofendido disse conhecer os dois arguidos “infelizmente” (ou seja, dos factos em apreço), sendo o “mais branco” (o arguido A M P) quem primeiro apareceu e quem logo entabulou conversa consigo, e sendo que o “mais preto” (o arguido D M) surgiu depois, vindo da viatura automóvel onde ambos se faziam transportar.
Os factos foram praticados, pelos dois arguidos, da forma que foi dada como provada no acórdão sub judice, e conforme o relato, circunstanciado e seguro, do ofendido G K G.
Findo esse relato, onde o ofendido foi aludindo, impressivamente, à atuação de cada um dos arguidos, e a instâncias da Mmª Juíza Presidente do tribunal coletivo (e por solicitação do Ilustre mandatário dos arguidos), de novo o ofendido G K G, olhando diretamente para os dois arguidos (presentes na sala de audiências), narrando o que sucedeu no dia dos factos destes autos, e remetendo para as circunstâncias concretas desses mesmos factos, identificou inteiramente, sem hesitações, sem dúvidas, repetidamente, por várias referências e pormenores, os dois arguidos como sendo os autores dos factos ora em discussão.
Perante a insistência e a repetição das perguntas (se reconhecia os arguidos como sendo os autores dos factos), e após todos os esclarecimentos já prestados, o ofendido G K G concluiu o seu depoimento afirmando perentoriamente (elevando o tom de voz e dando a esta uma tonalidade mais incisiva): “não tenho dúvida nenhuma, tenho a certeza absoluta”.
Assim sendo, e ao contrário do que se alega na motivação do recurso, o ofendido G K G, na audiência de discussão e julgamento, reconheceu os arguidos, ao longo de todo o seu depoimento, de modo claro e uniforme, espontaneamente (e não apenas a “instâncias do Tribunal”), sem deixar margem para qualquer dúvida, e não tendo utilizado nunca, referindo-se ao arguido A M P, a expressão “parecia que o conhecia”.
Em suma: nenhuma razão assiste aos recorrentes nesta parte do recurso, a qual, por isso, não merece provimento.


c) Da burla informática (ofendida M C R).

Entendem os recorrentes que, para que ocorra a prática do crime de burla informática, é necessária a verificação (cumulativa) dos requisitos de apropriação indevida de cartão de crédito, de utilização, pelos arguidos, de tal cartão (no sistema informático bancário), e de apropriação indevida do saldo bancário, requisitos estes que não se verificam nos presentes autos.
Há que apreciar e decidir.
Incorre na prática do crime de burla informática “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, interferindo no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorreta de programa informático, utilização incorreta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento (artigo 221º, nº 1, do Código Penal).
Face aos factos dados como provados no acórdão revidendo (e não questionados, neste ponto, na motivação do recurso), não restam dúvidas que os arguidos cometeram o crime de burla informática que lhes vem imputado.
Com efeito, e por duas vezes no mesmo dia, utilizaram dados que não lhes pertenciam e que não estavam autorizados a utilizar, para aceder à conta bancária da ofendida M C R G, a fim de procederem a levantamentos de dinheiro, e, assim, obterem para si, como obtiveram, um benefício ilegítimo.
Mostram-se, por isso, preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de burla informática em apreciação.
Assim, e com o devido respeito, não se entende sequer a alegação constante da motivação do recurso nesta sede, pois que, ao contrário do alegado, estão verificados in casu, cumulativamente, os requisitos enunciados pelos recorrentes para o preenchimento do crime de burla informática: apropriação indevida de cartão de crédito (ou de simples débito); utilização de tal cartão no sistema informático bancário; e apropriação indevida do saldo bancário da ofendida (ou, obviamente, de parte desse saldo).
Mais desenvolvidamente, e seguindo de perto a exposição de Lopes Rocha (in “A Revisão do Código Penal - Soluções de Neocriminalização, Jornadas do C.E.J., págs. 94 e 95), podemos afirmar que o crime de burla informática se distingue do crime de burla previsto no artigo 217º do Código Penal, por ser um crime de execução vinculada, ou seja, a sua consumação tem de ocorrer através de um dos meios específicos seguintes:
a) Interferência do agente no resultado de tratamento de dados, isto é, servindo-se ele, diretamente, do computador, ou fornecendo dados falsos a quem tiver por tarefa introduzi-los no computador.
b) Estruturação incorreta de programa informático, significando a modificação do programa em ordem a que as instruções sejam diferentes das inicialmente concebidas pelo proprietário - por exemplo, a introdução de novas instruções ou funções no programa, a eliminação ou alteração do seu processo de funcionamento, ou a modificação dos sistemas de controlo do próprio programa.
c) Aproveitamento de dados sem autorização, o qual abrange, entre outras condutas, a utilização de cartões de crédito de caixas automáticas, tanto por terceiro não autorizado pelo seu titular, como a utilização abusiva por parte deste, quer dizer, ultrapassando o limite da disponibilidade monetária concedida.
d) A intervenção no processo sem autorização, que é uma forma ampla que pretende evitar possíveis lacunas legais, abrangendo, por isso, outras situações não subsumíveis nas modalidades anteriores ou de duvidosa subsunção.
Devemos, pois, considerar que o tipo de crime em causa engloba, como ficou referido, entre outras possíveis condutas, o uso de cartões nas caixas automáticas, quer esse uso seja feito por terceiro não autorizado pelo seu titular, quer o seja por banda do próprio titular para além do “plafond” concedido.
Quanto aos demais elementos do tipo objetivo, são eles comuns ao crime geral de burla, exigindo-se, assim, para a verificação do crime, a existência de prejuízo patrimonial, causado por aqueles atos.
Por sua vez, são elementos subjetivos do mesmo tipo de ilícito:
a) O conhecimento de todos os elementos objetivos atrás identificados e a vontade de os realizar, ou seja, o dolo em qualquer das suas três modalidades, previstas no artigo 14º do Código Penal (dolo direto, necessário ou eventual).
b) A existência do elemento subjetivo da ilicitude especialmente exigido no tipo, elemento que acresce ao dolo e que se traduz na intenção do agente de obter enriquecimento, a que não tem direito, para si ou para terceiro.
Feito este breve excurso teórico sobre os elementos típicos do crime de burla informática imputado aos arguidos, na hipótese vertente, os arguidos, na data determinada, subtraíram dois cartões de multibanco, e, em seguida, retiraram e levantaram, por duas vezes, de modo subsequente, quantias em dinheiro (num total de 400 euros) de caixa de A.T.M., prejudicando, assim, a ofendida M C R G.
Deste modo, dúvidas não existem de que foram integrados os elementos constitutivos de dois tipos legais de crime distintos: o crime de furto e o crime de burla informática previsto no artigo 221º, nº 1, do Código Penal.
Na verdade, e reportando-nos ao concurso efetivo que se verifica, enquanto no crime de burla informática está em causa não só o património, ou seja, a integridade patrimonial, mas também a fiabilidade dos dados e a sua proteção, tendo em linha de conta o específico modus operandi do sistema informático, no crime de furto o bem protegido é a “disponibilidade da fruição das utilidades da coisa com um mínimo de representação jurídica” (no lapidar dizer do Prof. José de Faria Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II, pág. 30).
Em conclusão: os arguidos cometeram o crime de burla informática (em que é ofendida M C R G), em concurso efetivo com o crime de furto (em que é também ofendida M C R G).
Face a tudo quanto ficou dito, é totalmente de improceder o recurso interposto pelos arguidos.


III - DECISÃO

Nos termos expostos, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se em toda a sua plenitude o acórdão que dele é objeto.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs..
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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 20 de Janeiro de 2015.


João Manuel Monteiro Amaro

Maria Filomena de Paula Soares