Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
485/09.0GEALR.E1
Relator: ALBERTO BORGES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DECLARAÇÕES DA VÍTIMA
PROVA INDIRECTA OU CIRCUNSTANCIAL
Data do Acordão: 02/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Nada obsta a que a convicção do tribunal se forme apenas com base no depoimento de uma única testemunha, ainda que essa testemunha seja a ofendida ou parte cível, desde que o seu relato, atentas as circunstâncias e modo como é prestado, mereça credibilidade ao tribunal.
II - A prova dos factos não tem que assentar, necessariamente (e muitas vezes assim não acontece, designadamente quando ocorrem no ambiente familiar), em prova direta, em depoimentos de testemunhas presenciais, podendo assentar na chamada prova indireta ou por presunção, ou seja, em indícios ou circunstâncias conhecidas e provadas - no caso, a demais factualidade dada como provada, no que respeita ao controlo que o arguido exercia sobre a ofendida e circunstâncias como a controlava - que, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, permita a conclusão segura e sólida de outro facto, como sua consequência necessária.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Tribunal Judicial de S correu termos o Proc. Comum Singular n.º 485/09.0GEALR, no qual foi julgado o arguido JBR, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152 n.ºs 1 al.ª b) e 2 do CP.
A final veio a decidir-se:
1) Condenar o arguido, pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelos art.ºs 10 n.º 1, 14 n.º 1, 26, 30 n.ºs 2 e 3, e 152 n.ºs 1 al.ª a), 2 e 4, todos do CP:
- na pena de dois anos e seis meses, suspensa na sua execução pelo mesmo período, nos termos do art.º 50 n.ºs 1 e 5 do CP, e sujeita a regime de prova, com a obrigação de cumprir plano de reinserção social a elaborar pela DGRS, dirigido, em especial, à prevenção da reincidência na prática deste crime (art.ºs 52 n.º 1 al.ª b) do CP e 494 do CPP);
- na pena acessória de proibição de contactos com RS pelo período da suspensão da pena de prisão aplicada.
2) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela ofendida
e, em consequência, condenar o arguido/demandado no pagamento da quantia de 4.500,00 euros à ofendida, a título de indemnização por danos não patrimoniais, e juros de mora, à taxa legal, desde a data da decisão até efetivo e integral pagamento.
3) Absolver o arguido/demandado do restante pedido (a ofendida havia pedido a condenação do arguido no pagamento da quantia de 47.400,00 euros, a título de danos patrimoniais, e 50.000,00 euros, a título de danos não patrimoniais, quantias acrescidas de juros legais a contar da data da citação até efetivo e integral pagamento).
2. Recorreu o arguido dessa sentença, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1 – O presente recurso é interposto da matéria de facto, por se considerar que foram dados como provados factos que não o deveriam ter sido, concretamente, os mencionados nos pontos 10 a 17 e 22 a 26 da matéria de facto dada como provada.
2 – Tendo o arguido negado tais factos, não podem ser suficientes para considerar os mesmos como provado apenas e só as declarações da ofendida, a qual é parte interessada no processo (o pedido de indemnização civil formulado não engana…), ou seja, as declarações da ofendida, ainda que – na perspetiva da Mm.ª Juiz a quo – prestadas de forma “espontânea, coerente e sincera”, deverão ser sempre corroboradas com a demais prova para permitirem a prova cabal e segura dos factos.
3 – Quanto aos factos do dia 2 de maio de 2009:
- A ofendida, nem após a saída do local, nem no dia seguinte, nem no outro, nem no outro, apresentou queixa contra o arguido, apenas o tendo feito semanas depois, o que não é “compatível” com a gravidade dos factos imputados;
- A ofendida não recebeu assistência médica pelos alegados hematomas sofridos, ninguém das relações próximas da ofendida viu os ditos hematomas, a ofendida, que anteriormente tinha tirado algumas fotografias (exemplo, ao GPS), não tirou uma simples fotografia às lesões, não comentou com ninguém o ocorrido e não indicou testemunha alguma que provasse que na cave do prédio existia uma garrafa de gás, um maçarico, etc., objetos que teriam sido utilizados pelo arguido para a ameaçar.
4 – Quanto aos factos do dia 28 de julho de 2009:
- Não foi indicada uma testemunha dos alegados factos, não obstante terem ocorrido num dia de semana (3.ª feira), cerca das 14 ou 15 horas, na Rua C (rua central da cidade de S);
- Nenhum funcionário da farmácia, nem nenhum utente, foi ouvido para confirmar algo que fosse da versão apresentada pela ofendida;
- A GNR, que foi chamada ao local e apareceu enquanto o arguido ainda aí se encontrava (cfr. gravação das suas declarações), não encontrou o “objeto” referido pela ofendida e ninguém, incluindo a própria ofendida (cfr. ponto 25) viu qualquer objeto;
- Segundo a versão da ofendida o mesmo estaria dentro do seu veículo (e não do veículo do arguido), quando o casal já se encontrava separado há cerca de um mês (cfr. pontos 1 e 9 dos factos provados), o que é ilógico.
5 - Os factos ocorridos naqueles dois mencionados dias nasceram da imaginação e da criatividade da ofendida, pelo que não deveriam ter sido dados como provados, sob pena de conceder crédito ilimitado a uma parte processual em total detrimento da outra, que, em caso de dúvida, deve ser decidido a seu favor (do arguido).
6 – As provas existentes, que são exclusivamente as declarações prestadas pela ofendida (cfr. a gravação referida na ata de 8.11.2010) em sede de audiência de julgamento, são insuficientes para poder dar como provados os mencionados factos, pelo que deverão ser dados como não provados.
7 - Excluídos os factos que não deveriam ter sido dados como provados, as condutas do arguido não revestem uma ilicitude elevada; tal, aliado à personalidade do agente (67 anos de idade, primário, inserido social e familiarmente) e à conduta posterior aos factos (desde a data da separação, ocorrida há dois anos, nenhum comportamento censurável a referir), justifica a condenação no limite mínimo da pena, suspendendo-se a sua execução.
8 – Ao decidir de modo diferente a Mm.ª Juiz violou o disposto no art.º 71 do CP.
9 – Quanto ao pedido de indemnização civil, o montante arbitrado é excessivo e desajustado.
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3. Respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:
1 – O recorrente não especifica, concretamente, em relação a cada ponto que considera incorrectamente julgado, quais as provas que impõem decisão diversa da recorrida nem indica, concretamente, as provas que, em seu entender, devem ser renovadas, impugnando genericamente factos que considera incorretamente julgados, sem observância do disposto no art.º 412 n.ºs 3 e 4 do CPP.
2 – O recorrente pretende apenas sobrepor a sua convicção àquela acolhida pelo tribunal a quo.
3 – O tribunal a quo efetuou criteriosa análise de toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, mostrando-se a convicção formada exaustivamente fundamentada na decisão recorrida.
4 – A pena aplicada resultou da ponderação e aplicação dos critérios que a lei exige e impõe, encontrando-se no seu ponto ótimo de equilíbrio.
5 – Não se verifica a violação de qualquer preceito legal, pelo que deve ser negado provimento ao recurso e manter-se a decisão recorrida.
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4. Nesta instância o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso (fol.ªs 521 a 524).
5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir, em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª c) do CPP).
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6. Foram dados como provados na 1.ª instância os seguintes factos:
1. O arguido e RS viveram em condições análogas às dos cônjuges durante 24 anos, tendo tal relação cessado em finais de junho de 2009.
2. Desse relacionamento nasceu JR, já maior de idade.
3. Nos últimos dez anos de vida em comum o arguido tinha uma atitude controladora, seguindo todos os passos da ofendida e pressionando-a a permanecer sempre junto de si.
4. O arguido, pelo menos uma vez, em circunstâncias de tempo e lugar que não foi possível determinar, agrediu a ofendida, desferindo-lhe empurrões e torcendo-lhe os braços.
5. O arguido tinha uma personalidade possessiva, sendo bastante ciumento e desconfiado relativamente a RS, situação que se agravou em final de 2008, quando a mesma foi para o Algarve iniciar um projeto a nível profissional.
6. Nessa altura o arguido começou a controlar ainda mais a ofendida, tendo ligado o seu telemóvel a um GPS e colocado um localizador na sua carteira.
7. O arguido dizia à ofendida que sabia sempre onde a mesma andava, com quem falava e que conhecia o teor das conversas telefónicas que a mesma mantinha no seu telemóvel.
8. Em data que não foi possível apurar, o arguido levou o computador pessoal da ofendida a um amigo conhecedor de informática que efetuou uma cópia do disco do seu computador.
9. Dizia-lhe ainda que era possuidor de armas de fogo.
10. No dia 2 de maio de 2009 o arguido solicitou à ofendida que o encontrasse na cave do prédio sito na Rua M, em S, propriedade de ambos, onde se encontravam armazenadas algumas mercadorias, com o pretexto de a ofendida ir buscar umas peças de vestuário para oferecer a um familiar.
11. A ofendida entrou no referido compartimento e atrás de si o arguido, que de imediato trancou a porta e colocou a chave no bolso das calças.
12. Sem que nada o fizesse prever, o arguido desferiu um forte empurrão na ofendida, que a projetou contra o solo, caindo sobre um caixote que ali se encontrava, tendo batido com o braço direito numa prateleira, o que lhe provocou diversos hematomas.
13. Nesse local encontrava-se uma garrafa de gás, um maçarico, um recipiente com gasolina, um isqueiro, uma garrafa de água e comprimidos “Ultramidol”.
14. Nessa ocasião o arguido disse à ofendida: “Hoje é o dia D, vou tirar-te tudo o que te dei e uma coisa que não te dei, que é a vida”.
15. O arguido disse ainda à ofendida que tomasse os comprimidos que ali se encontravam para ficar sonolenta, pois assim “ia custar menos”, e que quando abrisse o gás ia demorar cerca de meia hora até morrer.
16. Perante as ameaças do arguido, a ofendida suplicou pela vida em nome da filha de ambos.
17. O arguido manteve a ofendida naquele local durante cerca de duas horas, não levando a cabo os seus intentos porque a ofendida lhe garantiu que reatava o relacionamento com o mesmo.
18. Após esse dia a ofendida acompanhou o arguido até ao Algarve, onde permaneceu com o mesmo até finais de junho.
19. Nesse período de tempo, entre 2 de maio e finais de junho de 2009, o arguido acompanhava a ofendida para todos os sítios, nunca a perdendo de vista, controlando todos os seus passos.
20. O arguido ameaçava constantemente a ofendida dizendo que tinha vários planos para a matar e que não descansava enquanto não concretizasse os seus objetivos.
21. No dia 28 de julho de 2009, enquanto almoçavam juntos, o arguido disse à ofendida que o final da relação entre ambos lhe traria muitos dissabores e que nunca mais teria paz.
22. Nesse mesmo dia, após o almoço, dirigiram-se à Farmácia D, sita na Rua C, em S, seguindo cada um no seu veículo.
23. Após estacionarem os veículos, o arguido dirigiu-se ao veículo da ofendida e de forma brusca retirou um objeto que se encontrava debaixo do banco traseiro do veículo e que guardou debaixo do braço.
24. Com receio, a ofendida dirigiu-se de imediato para o interior da farmácia.
25. Após, a ofendida perguntou ao arguido se o objeto que este guardava debaixo do braço era uma pistola, ao que este respondeu: “Tenho aqui o que mereces há muito tempo”.
26. Com receio que o arguido concretizasse as ameaças que lhe vinha fazendo, de imediato a ofendida refugiou-se num gabinete reservado a funcionários existente na farmácia, tendo-se trancado no seu interior, onde se encontrava uma funcionária, tendo aí permanecido até à chegada da GNR.
27. RS vive sobressaltada e receosa de que o arguido a agrida e ofenda, sentindo-se permanentemente inquieta, intimidada e em estado de tensão.
28. Ao adotar estes comportamentos, o arguido teve sempre a intenção de atemorizar e molestar a ofendida.
29. Ao atormentar a ofendida, com quem viveu em condições análogas às dos cônjuges, o arguido agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, com intenção de a molestar física e psicologicamente, do modo descrito, como fez, bem sabendo que dessa forma afetava o normal desenrolar da vida daquela e lhe causava receio, o que pretendia e logrou alcançar.
30. Sempre que assim agiu, o arguido fê-lo com o propósito de ofender e maltratar RS, intimidando-a e fazendo-a recear pela sua vida, o que fazia de forma contínua e reiterada, agindo sempre com o intuito de atingir a dignidade humana e saúde mental da ofendida, como visou e conseguiu.
31. O arguido determinou-se, durante o lapso de tempo referenciado, reiterando sucessivamente os mesmos propósitos, cometendo de forma homogénea os repetidos atos e servindo-se dos mesmos métodos que, sucessiva e repetidamente, se foram revelando aptos para atingir os seus fins.
32. O arguido sabia que a sua conduta era proibida por lei e, mesmo assim, não se coibiu de a praticar e de o fazer de forma sucessiva e reiterada.
33. Em setembro de 2009 a ofendida contratou o arrendamento de uma casa em Faro.
34. Pela prestação de serviços que lhe foi proposta pela empresa MJP a ofendida receberia rendimentos anuais da ordem dos 15.000,00 euros.
35. Em data que não foi possível apurar, o arguido disse à ofendida, no domicílio comum: “Esta noite esta catana esteve para servir, estive à espera para te degolar, estiveste toda a noite e, afinal, ela não serviu”.
36. O arguido e a ofendida estão separados de facto desde 8 de julho de 2009.
37. O arguido não tem antecedentes criminais registados.
38. Recebe reforma no valor de 300,00 euros e aufere rendimentos de imóveis arrendados no valor de 300,00 euros.
39. O arguido apresenta um coeficiente de inteligência correspondente a uma inteligência brilhante, o que potencia em larga escala a sua racionalidade;
- tem uma visão ingénua e irrealista do que o rodeia, exagera as suas qualidades morais e escrúpulos positivos de forma rígida, tende a ser autocrítico e frustrado;
- tende a minimizar ou a negar os seus problemas, podendo existir simulação deliberada;
- é honesto, simples, convencional, ativo e responsável;
- pretende passar uma imagem positiva para os outros, utilizando a racionalização, não se apercebendo das impressões que os outros podem ter dele, tendo insight e compreensão diminuídos;
- é extremamente defensivo e procuta dar impressão de adequação à normalidade;
- é imaturo, egocêntrico, impulsivo e emocionalmente instável;
- denuncia alguma tendência para a probabilidade de passagem ao ato (potenciado pelo descontrolo emocional e má lidação com a frustração);
- tende a projetar hostilidade, expressando conteúdos agressivos de forma indireta, envolvendo outras pessoas;
- apresenta um estilo passivo-agressivo de manejo da hostilidade, em que o sujeito expressa a ira de forma encoberta ou oculta;
- apresenta uma perturbação da personalidade, que também se manifesta pela necessidade de controlo de terceiros, perturbação que interfere com a avaliação da realidade, sabendo, no entanto, distinguir o bem e o mal.
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7. E não se provou.
- Que o arguido, por diversas vezes, em circunstâncias de tempo e lugar que não foi possível determinar, agrediu a ofendida, desferindo-lhe puxões de cabelo e apertando-lhe o pescoço, na tentativa de a asfixiar;
- Que o arguido contratou detetives particulares para seguirem a ofendida;
- Que, em janeiro de 2009, em data que não foi possível apurar, o arguido colocou uma catana no quarto da ofendida, junto do seu computador, como forma de a intimidar;
- Que as constantes perseguições por banda do arguido à ofendida levaram esta a abandonar um projeto profissional no Algarve;
- Que o arguido impediu a ofendida de cumprir um contrato de prestação de serviços em regime de avença com a empresa JP, SA, sediada em Loulé, que deveria ter iniciado em janeiro de 2009;
- Que a conduta do arguido levou a ofendida a desistir do projecto de realização profissional na zona do Algarve e, em consequência, a revogar o contrato de arrendamento e entregar a casa à senhoria, perdendo o montante de três meses de renda, num total de 2.400,00 euros.
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8. O tribunal formou a sua convicção – escreve-se na fundamentação – na ponderação crítica do conjunto da prova produzida em julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum, sendo que todos os depoimentos se afiguraram credíveis, designadamente:
Nas declarações do arguido, que negou a prática dos factos, declarando que nunca agrediu fisicamente a ofendida, admitindo apenas que a chegou a ver com nódoas negras no corpo, costas e pescoço, declarando que não foi o próprio que as provocou; referiu ainda que chegou a ver a ofendida com uma marca vermelha num seio; relatou as circunstâncias da vida em comum com a ofendida… que vigiava os registos de via verde do veículo conduzido pela ofendida, contava os quilómetros percorridos pelo mesmo veículo, estava atento aos telefonemas que esta fazia e vigiava o telemóvel sempre que tinha ocasião para o fazer sem que a ofendida soubesse… que gravava as chamadas telefónicas da ofendida através de um gravador digital que colocava no quarto desta… Admitiu ainda que colocou um telemóvel controlado por GPS no veículo da ofendida para saber sempre onde a mesma se encontrava e por onde circulava… retirou o disco rígido do computador da ofendida para verificar o respectivo conteúdo e confirmar se a ofendida mantinha alguma relação extraconjugal. Relativamente à catana… declarou que esta esteve sempre no seu quarto, junto ao computador, tendo sido adquirida no Brasil como recordação. Negou os factos vertidos em 10 a 17… Confirmou que após essa data foram os dois para o Algarve, onde estiveram até ao fim de junho. Nega que ameaçasse a ofendida de morte. Relativamente aos factos ocorridos no dia 28 de junho de 2009, negou os mesmos, admitindo apenas que almoçaram juntos e que acompanhou a ofendida à farmácia. Atribui os factos a delírio da ofendida…

Nas declarações da ofendida, que, de forma espontânea, coerente e sincera relatou os factos tal como os mesmos ocorreram e constam dos factos provados, revelando boa recordação dos mesmos, que foram descritos de forma circunstanciada, revelando emoção em alguns momentos, o que não retirou coerência e objectividade ao depoimento, que foi considerado credível. Em síntese, declarou que a relação terminou em 8 de julho de 2009 e que durante algum tempo foi feliz com o arguido… relatou um episódio ocorrido em 1998, altura em que descobriu que o arguido mantinha uma relação extraconjugal, facto que o mesmo admitiu. Referiu que as agressões que sofreu foram sobretudo a nível psicológico, mas numa ocasião referiu que o arguido pôs-lhe os dedos no cabelo e levou-a ao chão e apertou-lhe os braços… a sua agressão principal era o silêncio; a partir dos 8 anos da filha passaram a dormir em quartos separados… os problemas recrudesceram quando a filha foi para a faculdade e a ofendida decidiu relançar a vida profissional, o que implicou ir trabalhar para o Algarve, pois aí lhe surgiu uma hipótese de contratar uma avença. Em janeiro de 2009 esteve o tempo todo no Algarve e o arguido dizia-lhe que estava a ser seguida por pessoas a pé e que sabia sempre onde a ofendida estava. Referiu que estas palavras do arguido a perturbavam, pois esta também lhe dizia vem para cá antes que te aconteça alguma coisa. Confirmou que a catana estava no quarto do arguido e que tinha vindo do Brasil… disse que numa ocasião o arguido lhe disse “esta noite esta catana esteve para servir, estive à espera para te degolar, estive toda a noite e, afinal, ela não serviu”. Referiu que em data não apurada constatou que o seu computador portátil estava formatado e já não tinha arquivo nem documentos… o arguido admitiu que foi à Worten que lhe abriu o computador, ele pediu o disco externo e a ofendida anuiu. Mais relatou que o arguido dizia à frente de outras pessoas que a mandava matar. Disse que foi perseguida por carros e que sabia que foi controlada através de telemóvel porque o arguido lhe disse para que era o telemóvel. Relatou o episódio ocorrido no dia 2 de maio de 2009 de forma circunstanciada e coerente, pelo que nas suas declarações mereceram credibilidade por banda do tribunal. Após tal episódio foi com o arguido para o Algarve, onde permaneceu até fim de junho. Nessa altura a ofendida passou a ter muito medo do arguido, chegando ao ponto de adormecer e ir dormir para o carro com medo dele. No dia 7 à noite preparou um saco de roupa e sai de casa e foi até finais de setembro para casa do primo. Relatou também de forma circunstanciada o episódio descrito de 21 a 26 dos factos provados, referiu ainda que tinha um chip localizador na carteira e que o arguido disse à empregada que sabia onde a patroa estava; relativamente aos seus projetos profissionais, que alega terem ficado comprometidos em consequência da conduta do arguido, declarou que tinha uma avença apalavrada e tinha medo dele; declarou de forma sincera que actualmente teme pela sua vida, mas o arguido não tem continuado a contactá-la; considera o arguido uma pessoa fria, insensível, manipuladora e cruel.

MQF… empregada doméstica do casal durante 16 ou 17 anos, desde os 2 anos da filha até há um ano atrás… trabalhava diariamente na casa, das 8h00 às 17h00… Só ultimamente, há dois ou três anos, reparava que as coisas não andavam bem e que o arguido e a ofendida não conversavam e não andavam felizes. A ofendida fazia queixas do marido dizendo que ele a ameaçava e que andava assutada. Viu no carro… que a ofendida tinha um telemóvel pendurado no carro na bagageira. A ofendida ficou surpreendida e não sabia de nada; nessa altura chorou e disse que estava a ser ameaçada pelo marido e que aquilo era para a espiar… o arguido lhe mostrou no computador que tinha um localizador para saber o paradeiro da ofendida, o que contou à patroa… o arguido falava com alguma frequência sobre esse assunto. Declarou que viu uma vez uma catana na mesa do computador no quarto do arguido. Relatou que a ofendida e o arguido dormiam em quartos separados e que a ofendida tinha medo do arguido. Disse ainda que a ofendida lhe relatou o episódio do dia 2 de maio, mas não viu qualquer lesão no corpo da ofendida nem ela lhe mostrou…

JPS, amiga do casal há cerca de 20 anos… Declarou que a ofendida esteve em sua casa no início de 2009 com intenção de arrendar um apartamento para aí ficar a viver… a ofendida chegou a viver no Algarve e viviam no mesmo prédio e apercebeu-se que o arguido se deslocou ao Algarve para ver a ofendida e que esta demonstrou receio de estar sozinha com o marido. Esteve presente num encontro entre o casal… descreveu de forma espontânea coerente e objetiva o estado de espírito que presenciou entre o arguido e a ofendida como sendo de tensão mútua… Declarou que se recorda que em maio ou junho o casal esteve em permanência no Algarve e não presenciou qualquer discussão entre eles, mas percebia a tensão existente e que a ofendida estava intranquila. Declarou ter-se apercebido que o arguido exercia forte pressão sobre a ofendida, não lhe dando tranquilidade para trabalhar. Disse ainda que o arguido lhe confidenciou que desconfiava que a ofendida mantinha uma relação extraconjugal e que tinha forma de a vigiar e a testemunha tentava demovê-lo de tais pensamentos.

LS foi patrona da ofendida no Algarve… Declarou que o estágio da ofendida começou em janeiro de 2009 e que esta foi para o Algarve porque tinha medo do companheiro… disse saber que a ofendida pretendia afastar-se do companheiro. Nos primeiros quinze dias de janeiro a ofendida viveu na sua casa e depois arrendou uma casa em Quarteira… sempre que chegava ao escritório a ofendida dizia que estava a ser perseguida e recebia chamadas em que ninguém falava ou dizia que o marido a perseguia. Durante o estágio o marido sabia permanentemente onde ela andava e dizia-lhe que sabia… se tocava o telefone e percebia que era o arguido ficava em pânico… declarou que chegou a acompanhar a ofendida à APAV e à PJ. Nessa altura a ofendida já tinha conhecimento que o carro tinha um dispositivo de localização… a própria testemunha numa ocasião verificou a existência no porta-bagagens do carro do dispositivo ligado dentro do veículo. Em maio de 2009 esteve com os dois juntos no Algarve a tomar café e percebeu que a ofendida estava acanhada e que media as palavras, tendo sentido tensão entre o casal.

FMS foi colega de escritório da testemunha anterior e conhece a ofendida há dois anos… A ofendida fez-lhe confidências de que o marido a pressionava pelo facto de ela ter ido fazer o estágio no Algarve. Assistiu a telefonemas e pelo teor da conversa percebia que havia discussões sobre o tempo que permanecia no Algarve e era pressionada a voltar para casa… a ofendida ficava nervosa e inquieta pelo telefonema. Nunca assistiu a situações com os dois presentes… A ofendida tinha receio do arguido e tinha a ideia que estava a ser perseguida, dizia que recebia telefonemas a altas horas da noite em que ninguém falava… em maio foi ver o aparelho que estava ligado no carro…”.

E apreciando criticamente as provas produzidas, concretiza a decisão recorrida:
… atenta a forma clara, espontânea e objectiva como as declarações foram prestadas pela ofendida, não tem o tribunal dúvidas em conferir-lhes verosimilhança quanto aos factos que relatou da vivência com o arguido. Relativamente à vigilância e desconfiança do arguido sobre a ofendida, o próprio arguido a admitiu nas suas declarações e foi de tal forma espontâneo que ao tribunal se suscitaram dúvidas quanto à possibilidade de o mesmo ter características na sua personalidade compatíveis com uma perturbação que se manifestaria pela necessidade de controlo de terceiros e que no caso dos autos se manifesta pelo controlo obsessivo e permanente da vida da ofendida. Ora, tal possibilidade foi totalmente confirmada pelo relatório psicológico junto aos autos… tais características da personalidade do arguido atribuem verosimilhança ao relato da ofendida e bem assim ao relato das testemunhas quanto à vivência do casal e ao feed-back que foram recebendo da ofendida e em alguns casos da tensão que testemunharam entre o arguido e a ofendida e que é compatível com o relato desta. Quanto ao episódio de 2 de maio, é certo que não existem testemunhas do mesmo, mas as declarações da ofendida, pela forma vivida, circunstanciada, coerente, sentida e sincera como foram prestadas, permitem ao tribunal crer na sua veracidade. Da apreciação global dos factos não restam dúvidas que o arguido ao longo do tempo exerceu um forte controlo sobre a vida da ofendida, especialmente nas alturas em que pressentia que a mesma procurava s sua independência e tentava afastar-se de si. Esta forma de controlo é susceptível de sujeitar a ofendida, tal como qualquer outra pessoa na sua situação, em estado de tensão e de desorientação interior, compatível com violência que, no caso, não só é psicológica como em algumas ocasiões também física.
Não obstante… não se pode estabelecer uma relação direta entre a conduta do arguido e a opção da ofendida de não aceitar a avença no Algarve e permanecer em S. Não se provaram factos concretos que o determinassem e sempre se poderia dizer que, tal como a coabitação cessou em julho de 2009, por opção da ofendida, a mesma poderia ter cessado em qualquer outra altura, sendo desconhecidas as reais motivações desta para não aceitar a avença que lhe foi proposta… à luz das regras da experiência comum podiam ser as mais diversas…
… a apreciação da prova engloba não apenas os fatos provados apresáveis por prova direta, mas também os factos indiciários, factos interlocutórios ou habilitantes, no sentido de factos que, por deduções e induções objectiváveis a partir deles, e tendo por base as referidas regras da experiência, conduzem à prova indirecta daqueles outros factos que constituem o tema de prova. Tudo a partir de um processo lógico racional que envolve, naturalmente, também elementos subjetivos, inevitáveis no agir e no pensar humano, que importa reconhecer, com consistência e maturidade, no sentido de prevenir a arbitrariedade e, ao contrário, permitir que atuem como instrumento de perspicácia e prudência na busca da verdade processualmente possível.
… quanto ao estabelecimento desta causalidade concreta… entende o tribunal não se poder estabelecer uma relação direta entre a opção da ofendida e a conduta do arguido que tivesse resultado nos danos reclamados…”.
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9. É sabido que as conclusões do recurso delimitam o âmbito do conhecimento do mesmo e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (art.ºs 402, 403 e 412 n.º 1, todos do Código de Processo Penal, e, a título de exemplo, o acórdão do STJ de 19.06.96, in BMJ, 458, 98).
Elas devem conter, por isso, um resumo claro e preciso das questões que o recorrente pretende ver submetidas à apreciação do tribunal superior, sem perder de vista a natureza do recurso, que não se destina a um novo julgamento sobre o objeto do processo, mas a uma reapreciação da decisão recorrida por forma a corrigir os vícios ou erros de que a mesma enferme.
Feitas estas considerações, e tendo em conta as conclusões da motivação do recurso apresentado pelo arguido – acima descritas – são as seguintes as questões colocadas à apreciação deste tribunal:
1.ª – Se, em face das provas produzidas, o tribunal julgou incorretamente os factos dados como provados nos pontos 10 a 17 e 22 a 26 da matéria de facto dada como provada;
2.ª – Se, em face da factualidade dada como provada – excluída a que, segundo o recorrente, não devia ter sido dada como provada – devia o tribunal condenar o arguido “no limite mínimo da pena”, suspendendo a sua execução, e considerar o montante civil arbitrado a título de indemnização “excessivo e desajustado”.
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9.1. – 1.ª questão
Alega o recorrente que o tribunal julgou incorretamente os factos descritos nos pontos 10 a 17 e 22 a 26 da matéria de facto dada como provada, porque, em síntese:
- tendo o arguido negado tais factos, “não pode ser suficiente para considerar como provados esses mesmos factos apenas tão só com base nas declarações da ofendida… interessadíssima no processo…”;
- as declarações da ofendida “deverão ser corroboradas com demais elementos para permitirem a prova cabal e séria dos factos… e… nenhuma prova existe, para além das declarações da ofendida…”.
Consta da matéria dada como provada naqueles pontos:
10. No dia 2 de maio de 2009 o arguido solicitou à ofendida que o encontrasse na cave do prédio sito na Rua M, em S, propriedade de ambos, onde se encontravam armazenadas algumas mercadorias, com o pretexto de a ofendida ir buscar umas peças de vestuário para oferecer a um familiar.
11. A ofendida entrou no referido compartimento e atrás de si o arguido, que de imediato trancou a porta e colocou a chave no bolso das calças.
12. Sem que nada fizesse prever, o arguido desferiu um forte empurrão na ofendida, que a projetou contra o solo, caindo sobre um caixote que ali se encontrava, tendo batido com o braço direito numa prateleira, o que lhe provocou diversos hematomas.
13. Nesse local encontrava-se uma garrafa de gás, um maçarico, um recipiente com gasolina, um isqueiro, uma garrafa de água e comprimidos “Ultramidol”.
14. Nessa ocasião o arguido disse à ofendida: “Hoje é o dia D, vou tirar-te tudo o que te dei e uma coisa que não te dei, que é a vida”.
15. O arguido disse ainda à ofendida que tomasse os comprimidos que ali se encontravam para ficar sonolenta, pois assim “ia custar menos”, e que quando abrisse o gás ia demorar cerca de meia hora até morrer.
16. Perante as ameaças do arguido, a ofendida suplicou pela vida em nome da filha de ambos.
17. O arguido manteve a ofendida naquele local durante cerca de duas horas, não levando a cabo os seus intentos porque a ofendida lhe garantiu que reatava o relacionamento com o mesmo.

22. Nesse mesmo dia (28 de julho de 2009), após o almoço, dirigiram-se à Farmácia D, sita na Rua C, em S, seguindo cada um no seu veículo.
23. Após estacionarem os veículos, o arguido dirigiu-se ao veículo da ofendida e de forma brusca retirou um objeto que se encontrava debaixo do banco traseiro do veículo e que guardou debaixo do braço.
24. Com receio, a ofendida dirigiu-se de imediato para o interior da farmácia.
25. Após, a ofendida perguntou ao arguido se o objeto que este guardava debaixo do braço era uma pistola, ao que este respondeu: «Tenho aqui o que mereces há muito tempo».
26. Com receio que o arguido concretizasse as ameaças que lhe vinha fazendo, de imediato a ofendida refugiou-se num gabinete reservado a funcionários existente na farmácia, tendo-se trancado no seu interior, onde se encontrava uma funcionária, tendo aí permanecido até à chegada da GNR”.
O tribunal formou a sua convicção, concretamente, no que respeita a estes factos:
– nas declarações da ofendida, que, (sic) “de forma espontânea, coerente e sincera, relatou os factos, tal como os mesmos ocorreram e constam dos factos provados, revelando boa recordação dos mesmos, que foram descritos de forma circunstanciada, revelando emoção em alguns momentos, o que não retirou coerência e objetividade ao depoimento, que foi considerado credível…”; relatou “o episódio do dia 2 de maio de 2009 de forma circunstanciada e coerente, pelo que as suas declarações mereceram credibilidade por banda do tribunal”; “relatou também de forma circunstanciada o episódio descrito de 21 a 26 dos factos provados…”;
- no depoimento da testemunha MQF, empregada doméstica do casal, a quem a ofendida relatou o episódio do dia 2 de maio.
E analisando criticamente tais provas, o tribunal concluiu:
… atenta a forma clara, espontânea e objetiva como as declarações foram prestadas pela ofendida, não tem o tribunal dúvidas em conferir-lhes verosimilhança quanto aos factos que relatou da vivência com o arguido…”.
E, mais adiante: “… tais caraterísticas da personalidade do arguido (compatíveis com uma perturbação que se manifesta pela necessidade de controlo de terceiros, no caso, pelo controlo obsessivo e permanente da vida da ofendia, como consta do relatório psicológico junto aos autos) atribuem verosimilhança ao relato da ofendida e bem assim ao relato das testemunhas quanto à vivência do casal… quanto ao episódio de 2 de maio… não existem testemunhas do mesmo, mas as declarações da ofendida, pela forma vivida, circunstanciada, coerente, sentida e sincera como foram prestadas, permitem ao tribunal crer na sua veracidade…”.
Ou seja, na fundamentação da decisão recorrida constam bem claras as razões pelas quais o tribunal formou a sua convicção no sentido em que a formou, designadamente, quanto à factualidade que o recorrente questiona, fundamentação que se mostra lógica, coerente e racionalmente sustentada, conforme com as regras da experiência comum e os critérios da normalidade da vida, afinal, os critérios a que se encontra vinculado, ex vi art.º 127 do CPP.
Acresce que:
- por um lado, nada obsta a que a convicção do tribunal se forme apenas com base no depoimento de uma única testemunha, ainda que essa testemunha seja a ofendida ou parte cível, desde que o seu relato, atentas as circunstâncias e modo como é prestado, mereça credibilidade ao tribunal (deve dizer-se que é frequente neste tipo de crime os factos – ou alguns dos factos - ocorrerem no recato do ambiente familiar, sem a presença de estranhos, não fazendo qualquer sentido, por isso, e a lei não o exige, pretender que tais factos têm que ser necessariamente corroborados por outras provas, que não têm);
- por outro lado, ao recorrente que divirja da convicção que o tribunal formou não basta manifestar a sua divergência quanto ao decidido, impondo-lhe a lei, até pela própria natureza do recurso – que não se destina a um novo julgamento, mas à correção de eventuais erros ou vícios de que enferme a decisão recorrida – que concretize as provas impõem decisão diversa da recorrida e as razões pelas quais o tribunal errou na análise que fez das provas produzidas, seja porque outras provas – relevantes – existem que não foram analisadas e apreciadas (que no caso não foram concretizadas), seja porque as que foram analisadas contradizem o entendimento plasmado na sentença (o que no caso não foi alegado), seja porque a convicção que o tribunal formou se mostra desconforme com as regras da experiência comum, da lógica e os critérios da normalidade (o que no caso não resulta demonstrado, pois que o facto da ofendida ser interessada no desfecho do processo não permite, só por si, questionar a seriedade do seu depoimento, que ao tribunal perante o qual foi prestado, pelo modo sincero, espontâneo e coerente como foi prestado, mereceu credibilidade).
As razões da divergência do recorrente quanto ao decidido não se enquadram, pois, em qualquer daqueles parâmetros, pelo que não se vê porque razão haveria o tribunal de formar a sua convicção de modo diverso e, por isso, porque razão haveria este tribunal – que não presenciou a prestação do depoimento da ofendida e modo como foi prestado – de afastar a credibilidade que aquele mereceu ao tribunal perante o qual foi prestado.
Diga-se ainda, por um lado, que a prova dos factos não tem que assentar, necessariamente (e muitas vezes assim não acontece, designadamente, quando ocorrem no ambiente familiar), em prova direta, em depoimentos de testemunhas presenciais, podendo assentar na chamada prova indireta ou por presunção, ou seja, em indícios ou circunstâncias conhecidas e provadas – no caso, a demais factualidade dada como provada, no que respeita ao controlo que o arguiudo exercia sobre a ofendida e circunstâncias como a controlava - que, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, permita a conclusão segura e sólida de outro facto, como sua consequência necessária (veja-se neste sentido, v.g., os acórdãos da RP de 16.01.2013, Proc. 277/10.3PASTS.P1, da RG de 25.01.2010 e do STJ de 12.09.2007, Proc.07PA588, in www.dgsi.pt); trata-se, ainda aqui, da aplicação do princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127 do CPP;
Por outro lado, ainda, como se escreveu no acórdão do STJ de 13.02.2003, in www.dgsi.pt - “se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência comum, ele será inatacável, já que proferida em obediência à lei, que impõe que ele julgue de acordo com a sua convicção. Isto é mesmo assim quando... houver documentação da prova, de outra maneira seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação”.
No mesmo sentido pode ver-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 30.03.2004, in DR, II Série, de 2.06.204, onde se escreveu que “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode... assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na valoração de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente, os dados objetivos que se apontam na motivação... doutra forma seria uma inversão das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem julga pela convicção dos que esperam a decisão”.
E, ainda, o acórdão da RC de 6.03.2002, Col. Jur., Ano XXVII, t. 2, 44, onde se conclui que o tribunal de recurso – quando a atribuição da credibilidade de uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade – “só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
Consequentemente, a divergência do recorrente quanto à convicção que o tribunal formou – convicção que se mostra lógica e racionalmente explicada, conforme com as regras da experiência comum, como bem se vê da análise crítica das provas que da sentença constam e que acima se sintetizaram, designadamente, quanto às razões pelas quais lhe mereceu credibilidade o depoimento da ofendida (afinal, porque razão haveria o tribunal de duvidar da seriedade deste depoimento, atento o modo como foi prestado?) - não é, em face das razões em que assenta tal divergência e do que acaba de se expor, fundamento bastante para questionar a bondade da decisão recorrida, o mesmo é dizer que tais razões não permitem concluir, fazendo apelo aos critérios que supra se deixaram expostos, que a convicção formada pelo tribunal a quo se mostra desconforme com as regras da experiência comum e os critérios da normalidade da vida e, portanto, que não respeitou o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127 do CPP.
Improcede, por isso, a 1.ª questão supra enunciada.
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9.2. - 2.ª questão
O arguido foi condenado na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, sujeita a regime de prova, com obrigação de cumprir o plano de reinserção social a elaborar pela DGRS (art.ºs 152 n.ºs 1 al.ª a), 2 e 4, 10 n.º 1, 14 n.º 1 e 30 n.ºs 2 e 3, todos do CP), dentro da moldura pena de 2 a 5 anos de prisão.
Para assim decidir o tribunal ponderou, por um lado:
- o grau elevado da ilicitude da conduta do arguido, atendendo à gravidade objetiva dos factos, à sua reiteração e violência com que foram praticados e o período de tempo durante o qual a mesma foi praticada;
- a culpa do arguido (elevada), tendo agido sempre com dolo direto, atendendo à forma violenta como as agressões foram praticadas e as atuações persecutórias que adotou para com a ofendida.
Por outro:
- as exigências de prevenção geral, elevadas, uma vez que o crime de violência doméstica atinge bens jurídicos pessoais e tem ganho maior ressonância social, estando a comunidade mais sensibilizada para o caráter danoso de condutas como as que o arguido praticou;
- as elevadas exigências de prevenção especial, tendo em conta que o arguido, ainda que não tenha antecedentes criminais, não interiorizou o caráter negativo da sua conduta e as caraterísticas da sua personalidade plasmadas no relatório de avaliação psicológica junta aos autos permitem concluir que não está ciente do carácter danoso da sua conduta e da necessidade de respeitar a liberdade dos outros, enquanto indivíduos, em particular a liberdade da ofendida, ao que acresce que a proximidade das relações familiares permite configurar a repetição da sua conduta.
Pretende o arguido que a pena aplicada – excluídos os factos que “não deveriam ter sido dados como provados” (sic) e atendendo à personalidade do arguido, sua idade, ausência de antecedentes criminais, inserção social e familiar e conduta posterior aos factos – devia situar-se no limite mínimo da pena.
Sem razão.
Por um lado, pelas razões supra expostas, não há factos a excluir da matéria de facto dada como provada, por outro, as demais circunstâncias alegadas – perante a gravidade dos factos, a elevada culpa do agente e as exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir (pelas razões supra expostas, que aqui nos dispensamos de reproduzir) – não permitem reduzir a pena aplicada (que se situou bem abaixo da média entre o limite mínimo e máximo da pena aplicável), a qual, não indo além da culpa do agente, se mostra criteriosamente ponderada e ajustada à satisfação das prementes exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir (note-se que o arguido, para além de não interiorizar a gravidade da sua conduta, como consta do ponto 39 da matéria de facto dada como provada, apresenta uma perturbação da personalidade, é impulsivo e emocionalmente instável, denunciando alguma tendência para a probabilidade de passagem ao ato, potenciado pelo descontrolo emocional e má lidação com a frustração, circunstâncias que relevam ao nível da necessidade da pena).
Consequentemente, uma pena inferior, perante tais circunstâncias, não só não daria satisfação às exigências de prevenção que no caso se fazem sentir, como poderia ser encarada pela comunidade como uma forma mitigada de desculpabilização, contribuindo para o sentimento de desconfiança que reina na sociedade sobre a eficácia do sistema de justiça jurídico penal, designadamente, na prevenção do crime de violência doméstica.
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O arguido foi condenado a pagar à ofendida, a título de compensação pelos danos não patrimoniais causados, a quantia de 4.500,00 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença até integral pagamento.
Alega o arguido que tal montante “é excessivo e desajustado”, não concretizando – seja na motivação propriamente dita, seja nas conclusões – as razões pelas quais o considera excessivo e desajustado, pelo que tal alegação, tal como se apresenta, não permite perceber porque razão haveria o tribunal de condenar em montante diverso, o que equivale a dizer que esta pretensão, assim apresentada, carece de fundamento. De facto, como supra se deixou dito, o recurso não visa um novo julgamento, mas a correção de eventuais erros ou vícios de que, eventualmente, enferme a decisão recorrida, vícios ou erros que devem ser concretizados e fundamentados, ou seja, indicando o recorrente as razões concretas que demonstrem que o tribunal errou na decisão que proferiu e porque razão errou.
Não indicando o recorrente tais razões, o recurso, nessa parte, apresenta-se como manifestamente improcedente.
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10. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, em manter integralmente a decisão recorrida.
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Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em quatro UC (art.ºs.º 513 e 514 n.º 1 do CPP e 8 n.º 5 e tabela III anexa do RCP), sendo também da sua responsabilidade as devidas relativamente ao pedido cível.
(Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado)

Évora, 03-02-2015

Alberto João Borges

Maria Fernanda Pereira Palma