Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
765/21.6T8STB.E1
Relator: JOSÉ ANTÓNIO MOITA
Descritores: RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO
HABITAÇÃO
DESPEJO
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1- As conclusões recursivas devem conter em si referência à impugnação da matéria de facto e bem assim, quais os concretos pontos de factos que o recorrente pretende impugnar.
2- Não é de considerar cumprido o ónus de impugnação da matéria de facto, previsto no artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, quando o Recorrente não especifica nas conclusões do recurso os factos que pretende impugnar, nem o faz por remissão para a motivação das alegações de recurso.
3- Verificando-se a prática pela arrendatária, ora Apelante, durante anos, de condutas flagrantemente violadoras de regras de higiene no locado, confirmadas por competente serviço de saúde pública, com consequências extensivas a partes comuns do prédio urbano onde o locado se inclui causadoras de perturbação nos restantes inquilinos do prédio, motivadoras de queixas, reclamações e alertas feitos por estes ao senhorio e de repetidos avisos levados a cabo por este à locatária incumpridora para se abster de tais práticas, por esta ignorados, existe fundamento para o senhorio, ora Apelado, resolver o contrato de arrendamento com fundamento na previsão contida na alínea a), do n.º 2, do artigo 1083.º, do Código Civil, por não lhe ser exigível, atenta a gravidade, constância e consequências de tal violação de regras de higiene e de boa vizinhança, manter tal contrato com a locatária.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 765/21.6T8STB.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal
Juízo Local Cível de Setúbal - Juiz 1
Apelante: (...)
Apelado: (...)
***
Sumário do Acórdão
(Da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC)
(…)
*
Acordam os Juízes na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora no seguinte:
I – RELATÓRIO
(…), divorciado, residente na Rua Dr. (…), n.º 52 - 2910-699 Setúbal, intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra (…), divorciada, residente na Rua do (…), n.º 55, 1.º-Esq.º, 2900-298 Setúbal, pedindo que se declare resolvido o contrato de arrendamento e consequentemente se condene a Ré na entrega do locado livre e devoluto.
Alegou, em síntese, que celebrou um contrato de arrendamento com a Ré sobre o imóvel descrito no artigo 1.º da petição inicial, acrescentando que esta desde há cerca de 3 ou 4 anos que acolhe cães e gatos no locado, verificando-se falta de higiene, cheiro resultante da urina e dejectos dos animais, assim como surtos de pulgas.
Mais referiu, ainda, que o locado encontra-se bastante degradado em virtude do mau uso do mesmo por parte da Ré.
Citada, a Ré contestou deduzindo a sua defesa por impugnação, referindo que o facto da habitação se encontrar degradada deve-se à ausência de obras, esclarecendo que os animais não constituem qualquer perigo para a saúde dos demais inquilinos.
Foi proferido despacho saneador e despacho que identificou o objecto do processo e enunciou os temas da prova.
Realizou-se a audiência final, a que se seguiu a prolação de sentença, que contem em si o seguinte dispositivo:
“DECISÃO
Pelo exposto, julgo a presente acção totalmente procedente, por provada e, em consequência,
1) Declaro resolvido o contrato de arrendamento que vigorava entre o A. e a R., referente ao 1.º andar esquerdo, do prédio urbano sito na Rua do (…), n.ºs 53, 55 e 57, em Setúbal, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o n.º (…), inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesias de Setúbal (S. Julião, Nossa Senhora da Anunciada e Santa Maria da Graça) sob o artigo (…).
2) Em consequência, condeno a R. a entregar ao A., livre e devoluto de pessoas e bens o descrito imóvel.
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Custas nos termos acima decididos.
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Registe e notifique.”
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Inconformada com a sentença, veio a Ré apresentar requerimento de recurso para este Tribunal da Relação de Évora, alinhando as seguintes conclusões:
CONCLUSÕES
1) Não existe ou inexiste fundamento legal para decretar o despejo do locado;
2) Não existe nomeadamente, porque não ficou provado, por ausência de prova séria e substancial de que o locado sofresse de falta de higiene ou que houvesse violação das regras de sossego, boa vizinhança e violação das normas de condomínio.
3) Inexiste utilização do prédio contrário à lei, já que não ficou provado que os referidos
maus cheiros tivessem causado um prejuízo substancial para o uso do imóvel, ou sequer que houvessem maus cheiros que se repercutissem na utilização do restante locado.
4) Existe flagrante contradição entre os factos dados como provados e não provados, nomeadamente quando se diz no artigo 7 que existia cheiro nauseabundo nas suas habitações, vindo do locado da Ré, originado pela urina e dejectos de cães e gatos, que se notava na entrada do prédio e depois na al) se dá como não provado que existem dejectos dos animais espalhados pelo chão do prédio e no b) que não se dá como provado que a urina se infiltra no soalho da habitação da Ré e escorre sobre os inquilinos.
5) Toda a fundamentação do Tribunal em suma baseou-se nos depoimentos das testemunhas da A, afirmando-se que as testemunhas da R não merecem credibilidade, porque afirmaram o oposto das do Autor, pelo que deve este Tribunal reapreciar os depoimentos das testemunhas da R. e chegar a conclusão diversa.
6) Nomeadamente da testemunha da R, inquilina do prédio, … (faixa 6) que depôs no sentido de que inexistem cheiros e que a água que se infiltra também não tem cheiros.
7) Do médico Veterinário (faixa 11) que afirmou que só sentiu os cheiros já no locado, que os cães estavam de boa saúde, sem pulgas ou parasitas externos.
8) Da testemunha … (faixa 10) de que conclui que a instalação eléctrica está degradada porque foi ao locado reparar um curto circuito causado por um fio eléctrico roído por um rato e que viu alguns interruptores partidos.
9) Em suma, inexiste prova testemunhal ou documental que sustente as conclusões que levaram o Tribunal a decretar o despejo da Ré com base na violação do artigo 1082.º, n.º 2, alíneas a) e b).
Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis deve a presente sentença ser revogada e, a final, absolver-se a Ré do pedido.
ASSIM SE FAÇA JUSTIÇA”
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O Autor respondeu ao recurso interposto concluindo da seguinte forma:
“CONCLUSÕES:
1-O recorrido intentou a presente ação contra a recorrente, peticionando a declaração de resolução do contrato de arrendamento e que fosse decretado o despejo do locado.
2-Com fundamento na violação reiterada das regras da boa vizinhança, higiene e boa utilização do locado.
3-Alegou factos que, considerados provados, consubstanciavam a violação dessas regras.
4-Designadamente, falta de higiene motivada pela existência de cheiros nauseabundos no prédio, vestígios e cheiros de urina de cães e gatos da recorrente espalhados pelo chão de forma continuada.
5-Reclamações dos inquilinos do prédio, cessações de contratos de arrendamento dos inquilinos, por não conseguirem suportar tal situação, surtos de pulgas originados pelos dejetos e urina dos cães e gatos da recorrente.
6-Por outro lado, o estado de degradação do locado, soalho, porta , urina e dejetos dos animais espalhados no chão .
7-Todos esses factos foram totalmente provados, quer em termos de prova documental e
testemunhal.
8-A recorrente enquanto arrendatária violou de forma grave e reiterada esses deveres, previstos nos artigos 1038.º, 1043.º e 1083.º do Código Civil .
9-Tornando absolutamente impossível a manutenção do contrato de arrendamento.
10-Toda a prova produzida, documental e testemunhal foi devidamente apreciada e valorada pela Mm.ª Juiz em 1.ª instância, que fez uma análise crítica da mesma.
11-A decisão proferida, encontra-se devidamente fundamentada, quer de facto quer de direito.
12-A mesma não enferma de qualquer vício, falta de fundamento ou contradição.
13-Pelo que deverá a mesma manter-se integralmente, nos seus precisos termos.
Termos em que deverá ser considerado improcedente o presente recurso e manter-se integralmente a douta decisão proferida em 1.ª Instância, assim se fazendo JUSTIÇA.”
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O recurso foi admitido na 1ª Instância.
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Colheram-se os Vistos pelo que cumpre, agora, decidir.
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugado com o artigo 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC), o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que respeita à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo , pelo que as questões a apreciar e decidir traduzem-se objectivamente no seguinte:
1- Contradição entre factos provados e não provados;
2- Impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
3- Reapreciação de mérito, incidente em saber se está verificado o fundamento para resolução do contrato de arrendamento previsto na alínea a) e b) do n.º 2 do artigo 1083.º do Código Civil (doravante apenas CC).
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Decorre da sentença recorrida o seguinte quanto à matéria de facto:
Factos provados:
Estão provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:
1) Desde 4/11/2013 na sequência de doação o A. é usufrutuário e possuidor do prédio urbano sito na Rua do (…), n.ºs 53, 55 e 57 em Setúbal, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o n.º (…), inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesias de Setúbal (S. Julião, Nossa Senhora da Anunciada e Santa Maria da Graça) sob o artigo (…).
2) Por contrato celebrado em 1 de Outubro de 2003, a então proprietária e ex-cônjuge do A. deu de arrendamento à R. o 1.º andar esquerdo, para habitação, do referido prédio urbano.
3) Pelo prazo de 5 anos, renovável por iguais períodos de tempo e mediante a renda mensal de € 300,00, pagar em casa do senhorio até ao dia 8 de cada mês.
4) A R., desde há cerca de 3 / 4 anos, que acolhe no locado vários gatos e cães, que aí permanecem diariamente, aí se alimentam e pernoitam, sendo que em Março de 2020 eram concretamente 3 cães e 2 gatos.
5) Existe falta de higiene no locado e o cheiro resultante da urina e dejectos dos cães e gatos tem provocado o aparecimento de surtos de pulgas, tendo sido feitas algumas desinfestações.
6) Em meados de 2018 a situação, que ainda se mantém, agravou-se de tal forma que o A. começou a receber queixas e reclamações dos restantes inquilinos do prédio.
7) Os quais se queixavam e alertavam o A. da existência de cheiro nauseabundo nas suas habitações, vindo do locado da R. e que se notava logo após a entrada no prédio, originado pela urina e dejectos dos cães e gatos.
8) Para além do cheiro nauseabundo, havia urina espalhada no chão do prédio.
9) Uma dessas inquilinas, em Julho de 2018, enviou uma carta ao A. na qual relatava a situação vivida, com a falta de higiene no prédio, o cheiro nauseabundo, o que a levou a fazer cessar o contrato de arrendamento.
10) Na sequência de uma reclamação apresentada pelo A. junto do Serviço de Saúde Pública de Setúbal, USP Setúbal, realizou-se em 10/03/2020 uma vistoria ao locado da R. na qual se concluiu o seguinte: «(…) a moradora informou ter 3 cães e 2 gatos. No interior da habitação verificámos a existência de 2 cães e 2 gatos, não tendo sido facultado o local onde permanecia o 3.º canídeo. Os animais vistos apresentavam-se em bom estado geral. A habitação encontrava-se insalubre com conspurcação ambiental, com intenso cheiro a urina, as paredes e portas sujas, o pavimento com vestígios de urina, roupa espalhada em vários locais da habitação, que de forma geral estava muito suja, desarrumada e com mau cheiro».
11) Por outro lado, as portas interiores e de entrada da habitação, encontram-se completamente estragadas, cheias de humidade, sem fechaduras e podres, em virtude da humidade, da sujidade e da insalubridade a que a R. as tem sujeitado.
12) As paredes interiores encontram-se igualmente degradadas, esburacadas e completamente sujas.
13) O mesmo sucede relativamente ao tecto e soalhos, que estão degradados, madeiras apodrecidas e cheios de humidades, sendo o apodrecimento do soalho devido aos dejetos e urina dos animais.
14) A própria instalação eléctrica encontra-se também toda ela degradada, com fios e extensões penduradas pelas paredes.
15) O que tem dado origem a curto-circuitos constantes, tendo já o electricista que faz as reparações, alertado a R. para o mau uso da mesma e para o perigo que resulta do estado em que tal instalação eléctrica se encontra.
16) Apesar dos constantes e repetidos avisos do A. para que a R. não degrade o imóvel e para que não perturbe o bem-estar, higiene e sossego dos outros inquilinos, até hoje continua a mesma situação.
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Factos não provados:
Não resultaram demonstrados os seguintes factos:
a) Há dejectos dos animais espalhados pelo chão do prédio.
b) A urina infiltra-se no soalho da habitação da Ré e escorre sobre os inquilinos do rés-do-chão.
c) A instalação eléctrica encontra-se degradada devido à ausência de reparações por parte do A.”.
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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1-Contradição entre factos provados e não provados.
Sustenta a Apelante nas respectivas conclusões recursivas que na sentença recorrida o Tribunal a quo incorreu em contradição ao considerar como assente o facto vertido no ponto 7 do segmento referente aos “Factos provados” e do mesmo passo como não demonstrados os factos vertidos na aludida sentença sob as alíneas a) e b) do segmento reservado aos “Factos não provados
A contradição entre pontos de factos provados e não provados discriminados na sentença pode conduzir a anulação da própria decisão desde que verificada no contexto prevenido na alínea c), do n.º 2, do artigo 662.º do CPC.
No caso concreto resultou demonstrado sob o ponto 7 do elenco dos factos provados que:
7) Os quais se queixavam e alertavam o A. da existência de cheiro nauseabundo nas suas habitações, vindo do locado da R. e que se notava logo após a entrada no prédio, originado pela urina e dejectos dos cães e gatos.”
E resultou como não provado sob as alíneas a) e b), do elenco dos factos não provados que:
“a) Há dejectos dos animais espalhados pelo chão do prédio.
b) A urina infiltra-se no soalho da habitação da Ré e escorre sobre os inquilinos do rés-do-chão.”
Ora, lendo com atenção e concertadamente os factos em apreço, afigura-se não assistir contradição entre eles.
Na verdade, o facto provado vertido sob o ponto 7 apenas nos permite concluir que foi reportado ao ora Apelado por outros inquilinos do mesmo prédio a subsistência de um cheiro nauseabundo decorrente de urina e dejectos dos cães e gatos da ora Apelante proveniente da habitação da mesma, o qual se propagava às suas habitações e que era perceptível logo após a entrada no prédio, o que não contraria de modo algum a indemonstração da existência de dejectos dos ditos animais espalhados no chão do próprio prédio, ou da urina se ter infiltrado no soalho do locado da Apelante e escorrido sobre os inquilinos do rés-do-chão (itálicos nossos).
Na verdade, resulta do senso comum e regras de experiência comum não ser necessário que urina animal de cão e gato produzida recorrentemente em determinada fração de um prédio necessite de se infiltrar e escorrer sobre outra fracção sita no piso por baixo para que o respectivo cheiro se torne detectável por outros habitantes do prédio, sendo certo que não foi apenas o inquilino do rés-do-chão que se queixou e reclamou da existência do dito cheiro , mas vários inquilinos do prédio.
Acresce ter resultado provado, sob o ponto 8) dos factos considerados como provados na sentença recorrida, que “Para além do cheiro nauseabundo havia urina espalhada no chão do prédio”.
Do exposto, resulta naufragar a contradição entre pontos de facto invocada expressamente pela Apelante nas respectivas conclusões recursivas.

2-Impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Resulta do artigo 640.º do CPC, que se debruça sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, o seguinte:
“1-Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b), do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
[…] “
A este propósito sustenta o Conselheiro António Abrantes Geraldes (“Recursos no Novo Código de Processo Civil“, Almedina, 5ª ed., a págs. 168-169), que a rejeição total ou parcial respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve ser feita nas seguintes situações:
“a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (artigo 640.º, n.º 1, alínea a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação“, esclarecendo, ainda, que a apreciação do cumprimento de qualquer uma das exigências legais quanto ao ónus de prova prevenidas nos mencionados n.º 1 e 2, a), do artigo 640.º do CPC, deve ser feita “à luz de um critério de rigor”.
Decorre, ainda, do artigo 662.º, n.º 1, do CPC, o seguinte:
“1. A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Refere quanto a este normativo António Abrantes Geraldes (obra acima citada, pág. 287), que:
“O actual artigo 662.º representa uma clara evolução no sentido que já antes se anunciava […], através dos nºs 1 e 2, alíneas a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”.
Nesta sede importa ainda recordar o teor dos n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do CPC, relativo à “Sentença”, que se traduzem no seguinte:
“4- Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
“5- O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
A este propósito diz-nos José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (“Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2º, Almedina, 4ª edição, 2019, pág. 709), o seguinte:
“O princípio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração[…]: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espirito, de acordo com as máximas de experiências aplicáveis”.
Assim, a prova submetida à livre apreciação do julgador não significa prova sujeita unicamente ao livre arbítrio do mesmo, como, aliás, bem se depreende da leitura do n.º 4 do supra referido artigo 607.º do CPC, que na sua primeira parte impõe ao juiz que analise “criticamente” as provas, indique as “ilações tiradas dos factos instrumentais” e especifique os “demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção”.
Neste domínio referem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa (“Código de Processo Civil Anotado, Vol. I”, Almedina, 2ª edição, 2020, pág. 745), o seguinte:
“O juiz deve, pois, expor a análise crítica das provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e não provados.”

Baixando ao caso concreto, desde logo percebemos que a Apelante não logrou, como deveria ter feito, deixar expresso nas respectivas conclusões recursivas que pretendia impugnar parte da matéria que integra a decisão de facto contida na sentença recorrida e menos ainda logrou especificar os pontos de facto concretos que considerou terem sido mal julgados pelo Tribunal a quo.
Na verdade, nos pontos 1) e 2) das conclusões recursivas a Apelante limita-se a expressar não existir fundamento para o decretamento do despejo por não ter ficado provado de que existisse falta de higiene, ou violação das regras de sossego, de boa vizinhança e das normas de condomínio, (ponto 1)), bem como inexistir utilização do prédio contrária à lei por não ter ficado provado que os maus cheiros tivessem causado um prejuízo substancial para o uso do imóvel, ou que existissem maus cheiros que se repercutissem na utilização do restante locado.
Dito de outra forma, a Apelante conclui nos mencionados pontos dizendo apenas de forma amplamente genérica que não se provou factualidade que terá constituído fundamento para a procedência da acção com o consequente decretamento do despejo, sem lograr tomar uma de duas posições, qual sejam cumprir adequadamente em sede de conclusões recursivas o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, já acima transcrito e interpretado, com a especificação dos factos considerados como provados de que discordou e pretendeu infirmar, ou, no mínimo, remeter para o que, a propósito, mencionou no segmento motivatório do recurso.
Não o fez, não se podendo sequer aceitar que o teor dos pontos nºs 6), 7) e 8), das conclusões do recurso supram essa lacuna, uma vez que também neles não foi feita qualquer especificação expressa, ou mera indicação por remissão, relativamente a factos concretos considerados como provados na sentença e pretendidos infirmar.
A este propósito e de acordo com linha orientadora já seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça noutros arestos anteriores e com a qual concordamos, permitimo-nos lembrar um excerto muito significativo a propósito da matéria ora em análise constante de recente acórdão do STJ de 14/02/2023 (relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Pedro Lima Gonçalves), proferido no processo 82/20.9T8FAR.E1.S1, com o seguinte teor:
“[…] uma vez que, conforme é jurisprudência maioritária neste STJ, nas conclusões deve constar, pelo menos, a referência à impugnação da matéria de facto, e bem assim, quais os concretos pontos de factos que o recorrente pretende impugnar.
- cfr., neste sentido, os seguintes Acs. do STJ, de 15/09/2022 (Revista n.º 556/19.4T8PNF.P1.S1), de 21/06/2022 (Revista n.º 644/20.4T8LRA.C1.S1), de 9/02/2021 (Revista n.º 16926/04.0YYLSB-B.L1.S1).”
Ainda no tocante ao aresto que trouxemos à colação permitimo-nos transcrever a elucidativa nota sumativa do seguinte conteúdo:
“Não se pode considerar cumprido pelo Recorrente o ónus de impugnação da matéria de facto, previsto no artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, quando o Recorrente não faz de forma expressa nas conclusões a indicação e também não o faz por remissão para a motivação das alegações de recurso.”
Aqui chegados, impõe-se decidir pela ausência de adequado cumprimento do ónus de obrigatória especificação previsto na alínea a), do n.º 1, do artigo 640.º do CPC, o que conduz à rejeição da pretensão de impugnar a decisão relativa à matéria de facto.
3- Nas suas conclusões recursivas a Apelante sustenta não ter ficado provado que o locado sofresse de falta de higiene ou que houvesse violação das regras de sossego, boa vizinhança e violação das normas de condomínio, assim como que os maus cheiros tivessem causado um prejuízo substancial para o uso do imóvel, ou que os mesmos se repercutissem na utilização do restante locado, entendendo que não foi feita prova passível de levar o tribunal a quo a decretar o despejo com base na violação do artigo 1082.º, n.º 2, alíneas a) e b).
Estatui o normativo acabado de identificar o seguinte:
“2- É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente quanto à resolução pelo senhorio:
a) A violação de regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio.
b) A utilização do prédio contrária à lei, aos bons costumes ou à ordem pública.”
O Tribunal a quo entendeu julgar procedente a acção com fundamento na verificação dos dois fundamentos acabados de transcrever plasmados nas alíneas a) e b) e fê-lo com base na argumentação que, no essencial, passamos a transcrever:
“[…] In casu, atenta a matéria de facto alegada e provada cumpre desde logo concluir que existiu e existe uma situação de violação de regras de higiene e boa vizinhança por parte da R., tendo em conta que a mesma mantém a sua habitação num estado de insalubridade causado pela ausência limpeza que aliada à presença de animais causa mau cheiro que se sente no prédio e perturba os demais que nele habitam. Cumpre ainda salientar que, permite que os animais urinem nas partes comuns do prédio, facto que é causador de importunação para os demais e causa perigo para a sua saúde. Por fim, cumpre referir que esta actuação tem vindo a ser reiterada pelo menos desde 2018, inexistindo melhorias. Tais cheiros provenientes do locado da R. resultam claramente de uma incorrecta utilização por parte desta do mesmo, pelo que inexistem duvidas de que se mostra verificada situação susceptível de enquadramento na alínea a) do artigo 1084.º do Código Civil.
Por seu turno, a alínea b) do artigo 1083.º do Código Civil tem relação com o artigo 1038.º, alínea d), do Código Civil, que estabelece que a obrigação do locatário não fazer uma utilização imprudente da coisa locada, sendo que ainda no artigo 1043.º, n.º 1, do Código Civil se concretiza que o locatário é obrigado a manter a coisa no estado em que a recebeu.
O locatário será prudente na utilização do locado, em conformidade com os fins do contrato, sempre que a sua actuação se paute pela diligência exigível ao bonus pater famílias, ao homem médio ou normal, de boa formação e de são procedimento que as leis têm em vista ao fixarem os direitos e deveres das pessoas em sociedade (in Acórdão do TRC, de 04/12/2007, do Relator Ferreira de Barros, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, atenta a factualidade provada que dita que a R. deixou as paredes, chãos, portas e instalação eléctricas deteriorarem-se por falta de limpeza, existência constante de urina e dejectos de animais e má utilização ao jogar baldes de água num chão de madeira, etc., cumpre concluir que tais estragos não se enquadram ou não são inerentes a uma boa e prudente utilização, pelo que se mostra igualmente verificada a situação prevista na alínea b) do artigo 1083.º do Código Civil.”
Sobre esta matéria importa revisitar a obra, da autoria de Luís Meneses Leitão, “Arrendamento Urbano” (Almedina, 2017 – 8ª edição), que nos elucida do seguinte modo sobre os aludidos fundamentos (cfr. págs. 136-137):
“Outra causa de resolução do arrendamento pelo senhorio consiste na violação de regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio (artigo 1083.º, n.º 2, alínea a)). Nesta situação, a resolução justifica-se pela perturbação que a conduta do arrendatário perturba nas relações de vizinhança, o que se vai igualmente repercutir sobre o senhorio. Após a revisão do NRAU pela Lei n.º 31/2012, já não se exige que esta violação ocorra de forma reiterada e grave, pelo que mesmo um simples incumprimento pontual poderá determinar a resolução do contrato.
[…]
É igualmente causa de resolução do contrato pelo senhorio a utilização do prédio contrária à lei, aos bons costumes ou à ordem publica (artigo 1083.º, n.º 2, b)).
Esta causa de resolução deve ser interpretada em sentido restritivo, uma vez que não são todas e quaisquer práticas que infrinjam a lei ou os bons costumes que poderão desencadear a resolução do arrendamento, mas apenas situações excepcionalmente graves como actividades criminosas, prostituição, jogo ilícito, etc.”.
Concordamos com a linha orientadora interpretativa acabada de expor.
E, nessa medida, perante a factualidade que resultou assente na sentença recorrida, não consideramos preenchido no caso concreto o requisito, ou fundamento, legal para resolução do contrato de arrendamento outorgado entre o Apelado e a Apelante plasmado na alínea b) do n.º 2 do artigo 1083.º do CC, uma vez que não ficou demonstrada a prossecução por parte da ora Apelante de uma prática de grave excepcionalidade passível de a enquadrar num cenário de utilização do locado em contrariedade ou violação à lei, aos bons costumes, ou à ordem pública.
Porém, no tocante ao fundamento previsto na alínea a) do n.º 2 do dito normativo, afigura-se-nos correcta a interpretação realizada na sentença recorrida.
Com efeito, do cotejo dos factos julgados como provados discriminados sob os pontos 5), 6), 7), 8), 9), 10), 11) 12), 13) e 16) do segmento da sentença recorrida reservado à factualidade provada conclui-se, sem margem para rebuços, que a conduta prosseguida desde há vários anos pela ora Apelante no locado correspondente ao primeiro andar esquerdo onde a mesma habita se espelha em flagrante violação de regras fundamentais de higiene, cenário que tem tido impacto e consequências em espaços comuns do prédio urbano onde o locado se insere afectando e perturbando os restantes habitantes e inquilinos de frações incluídas no mesmo prédio, implicando desse modo e do mesmo passo violação de regras de boa vizinhança e que conduziu a queixas, reclamações e alertas feitos por aqueles directamente ao Apelado, mantendo-se tais práticas pela Apelante não obstante os vários avisos feitos pelo Apelado à mesma para que as cessasse, tendo a situação sido, no essencial, constatada por serviços de saúde pública que vistoriaram o locado.
Tal incumprimento de regras de higiene e de boa convivência/vizinhança é grave, passível, inclusive, de beliscar com a saúde e o sossego dos demais inquilinos, não se podendo exigir no contexto factual descrito e perante os constantes e repetidos avisos feitos pelo Apelado à Apelante, os quais terão sido até ao momento ignorados, que o Apelado mantenha a situação de arrendamento para com a Apelante.
Pelo exposto, improcedem as conclusões recursivas da Apelante, sendo de manter o decidido na sentença recorrida, com base no fundamento previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 1083.º do Código Civil.
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V- DECISÃO
Termos em que, face a todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao presente recurso de Apelação interposto por (…), decidindo-se, em consequência, o seguinte:
1- Confirmar a sentença recorrida;
2- Fixar as custas a cargo da Apelante (artigo 527.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC).
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Notifique.
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Évora, 25 de Janeiro de 2024
José António Moita (Relator)
Maria José Cortes (1ª Adjunta)
Ana Pessoa (2ª Adjunta)