Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, na Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Évora
1. RELATÓRIO
1.1. Nestes autos de processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, n.º 3809/18.5T9STB, do Tribunal Comarca de Setúbal – Juízo Local Criminal de Setúbal – Juiz 4, foram os arguidos AAA e SA., melhor identificados nos autos, pronunciados pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 107º, com referência ao artigo 105º, n.ºs 1 a 5, ambos do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho e artigo 30º, n.º 2, do Código Penal e, ainda, no que concerne à sociedade arguida ao artigo 7º, n.º 1, do RGIT.
1.2. Tendo os arguidos, em sede de contestação, invocado a extinção do procedimento criminal contra a sociedade arguida, em virtude de a mesma ser tido declarada insolvente, a não verificação da condição objetiva de punibilidade prevista no artigo 105º, n.º 4 do RGIT, no que diz respeito ao arguido, pessoa singular e a nulidade da acusação conforme validada e alterada pelo despacho de pronúncia, foram estas questões prévias julgadas improcedentes, por despacho proferido em 12/04/2021, o que motivou a interposição de recurso pelos arguidos, que com tal decisão não se conformaram.
1.3. Realizado o julgamento, foi proferida sentença, em 14/10/2021, depositada nessa mesma data, com o seguinte dispositivo:
«(…), decide este Tribunal:
a) Condenar o Arguido AAA pela prática, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelo artigo 107.º, n.º 1 e 2, com referência ao disposto no artigo 105.º, n.ºs 1, 4 e 7, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias, bem como no artigo 30.º, n.º 2, do Cód. Penal, na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de € 3,00, perfazendo um total de € 390,00;
b) Condenar a sociedade Arguida SA. pela prática, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelo artigo 7.º, nºs. 1 e 3, artigo 107.º, n.º 1 e 2, com referência ao disposto no artigo 105.º, n.ºs 1, 4 e 7, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias, bem como no artigo 30.º, n.º 2, do Cód. Penal, na pena de 230 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, perfazendo um total de € 1.150,00;
Condenar cada um dos Arguidos no pagamento de 3 [três] UC´s de taxa de justiça e nas demais custas do processo, nos termos dos arts. 513.º, n.º 1 e 2 e 514.º do Cód. Proc. Penal e art. 8.º, n.º 9 e da tabela III anexa ao RCP.
(…).»
1.4. Inconformados, os arguidos interpuseram recurso da sentença.
1.5. Das motivações dos recursos, o arguido/recorrente extraiu as seguintes conclusões:
1.5.1. Conclusões do recurso do despacho interlocutório referido em 1.2.:
«1. Vem o presente recurso interposto do despacho com a refª 92184712, proferido a 12 de Abril de 2021, na parte em que julga improcedentes as questões prévias invocadas na contestação – cfr. pontos (II) e (III).
A. Omissão da condição de punibilidade:
1. Os factos de que os Arguidos vêm pronunciados não reúnem a condição de punibilidade encerrada no artigo 105.º/4, al. b) ex vi Artigo 107.º/2 do RGIT.
2. Desde logo, não pode concluir-se que o Arguido pessoa singular foi notificado a título pessoal e individual, apenas porque a comunicação se mostra assinada por aquele.
3. O contribuinte investigado é, segundo o texto da notificação (o qual faz fé junto dos seus destinatários), a sociedade comercial, não o Arguido pessoa singular.
4. Não decorre, pois, das comunicações em crise que impende qualquer responsabilidade penal sobre o Arguido pessoa singular - pois que, vinque-se, a investigação recaía, dixit, sobre a Arguida SA., tão-somente.
5. Adite-se que a notificação prevista no Art. 105º/4, b) RGIT deve consistir numa “interpelação admonitória”, de tal sorte que dela resulte que se está a conceder uma derradeira oportunidade para que o (pretenso) contribuinte relapso liquide a dívida.
6. No caso vertente, as notificações constantes de fls. 296 não assumem tal caráter terminante, desde logo porque não foram as únicas emitidas pelo INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL [ISS] (v. fls. …). A notificação almejada pelo legislador deve ser única e firme. Não se pode reputar de admonitória uma sucessão de notificações (sempre se perguntará: qual delas, se alguma, é a definitiva e final?).
7. Denote-se que as comunicações dos autos não veiculam que, nos termos da lei e mediante o pagamento dos valores notificados, os Arguidos, aqui Recorrentes, ficariam eximidos ao processo-crime, conforme a vontade do legislador ao prever a condição de punibilidade ora em pauta.
8. Com efeito, bem lido o teor das comunicações, resulta que a preclusão do processo-crime é uma mera hipótese e não uma certeza (como impõe o legislador). De facto, o que se transmitiu foi que “o cumprimento da (…) notificação é passível de determinar o eventual arquivamento do processo de inquérito atualmente em curso”. Os adjetivos «passível» e «eventual», sendo pleonásticos, reforçam a ideia de que a extinção do processo-crime se salda como discricionária e incerta. Também nesta vertente, é impossível afirmar que as comunicações em apreço corresponderam ao desiderato legal e à ratio da «punibilidade», não podendo, razoavelmente, exigir-se de quem as recebe um último esforço de alinhamento com a intimação da Segurança Social (pois, mesmo que envidassem tal esforço, a sua exoneração não estaria garantida…).
9. Adicionalmente, as comunicações em exame não contêm todos os elementos prescritos na lei: capital da prestação alegadamente em falta, juros de mora e valor da coima.
10. Quanto ao primeiro elemento, resulta já dos autos que a quantia total que o ISS indicou como sendo devida não o é, na realidade.
11. Não se pode aceitar que, para se exonerar ao pathos da ação penal, o arguido notificado para os efeitos do artigo 105.º/4, al. b) RGIT tenha de arrostar com o pagamento de um valor indébito. Para além de representar um enriquecimento injustificado do Estado, tal implica que a ação penal revista foros de desproporcionalidade (violando a garantia de um processo equitativo, leal e justo) – sendo que até pode dissuadir o contribuinte que pretenda honrar a dívida de o fazer (desvirtuando a ratio da condição de punibilidade).
12. No que tange aos juros moratórios (leia-se: vencidos), as comunicações mostram-se totalmente omissas.
13. No que se refere ao valor da coima aplicável, as comunicações sob análise veiculam tão-somente um intervalo dentro do qual se poderá (quem? Quando?) encontrar o valor da coima aplicável.
14. Quando alude a «juros moratórios» e «valor da coima aplicável», o legislador pretende que a notificação prevista no artigo 105.º/4, al. b) RGIT contenha quantias líquidas.
15. A lei não consente outra interpretação, sob pena de usurpação do sentido possível das palavras e do princípio da legalidade (Cfr. artigos 1º/1 CP e 29.º/1 CRP), que se aplica às condições de punibilidade (v.g., TERESA BELEZA e FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO).
16. Acresce que a trintena prevista no RGIT corresponde ao prazo que o legislador reputou de adequado para a realização do pagamento. Donde resulta que a quantia a pagar pelo arguido deve surgir concretizada na notificação referida no Artigo 105.º/2, al. b) RGIT.
17. Se assim não se entender, o arguido terá de se enlear em diligências junto da Segurança Social, as quais poderão revelar-se infrutíferas no prazo improrrogável e imperativo de 30 dias. A resposta dos serviços poderá não ser (consciente ou inadvertidamente) célere – abrindo, assim, a oportunidade a que a Administração defraude o âmago e a finalidade da condição de punibilidade (com inegável detrimento para as razões de política-criminal e de racionalidade do poder punitivo do Estado que inerem à referida condição) – v. fundamentação do ac. TRL de 28.11.2019; P. 2886/16.8T9LSB.
18. Admitir aligeiramentos, incluindo omissões, ao conteúdo da notificação referenciada no artigo 105.º/4, b) RGIT acarreta – para além de uma violação do princípio da legalidade – uma compressão (administrativa) do prazo (legal) definido para a efetivação do pagamento das rubricas indicadas naquela alínea (o que afronta inclusivamente os princípios da separação de poderes e da legalidade, este agora entendido como vetor estruturante da atividade administrativa Cfr. Artigo 266.º/2 CRP).
19. Independentemente do que antecede, a doutrina - v.g., MANUEL DA COSTA ANDRADE e FREDERICO DA COSTA PINTO - tem apontado à condição de punibilidade em apreço a pecha (em bom rigor: inconstitucionalidade) de consentir um tratamento arbitrário e desigual dos contribuintes.
20. Divergindo agora do conteúdo das notificações, enfrentemos a questão da legitimidade da sua emissão, o ISS não devia ter procedido à emissão da notificação, falecendo-lhe competência para tal ato.
21. Sendo a categoria da punibilidade autónoma do tipo ilícito e da culpa, as condições que lhe são atinentes não são objeto de «diligências probatórias», estando vedada ao I.S.S a sua intervenção neste conspecto…
22. A notificação em apreço deveria ter sido ordenada pelo Ministério Público, uma vez que os autos se encontravam em pleno inquérito. Como tal não sucedeu (nem ab initio nem em reparação do comportamento da Administração), estamos ante ato inoperante para os efeitos do artigo 105.º/4, al. b) do RGIT.
ARGUIÇÃO (EXPRESSA E SEPARADA) DE INCONSTITUCIONALIDADE:
23. A interpretação do artigo 105.º/4, b) RGIT (Ex vi Artigo 107.º/2 do RGIT) no sentido em que a notificação aí prevista não tem de liquidar os valores a pagar pelo contribuinte é inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade, proporcionalidade, separação de poderes e igualdade e do direito fundamental a um processo equitativo (v. artigos 2.º, 13.º, 18.º/2, 20º/4 e 29.º/1, todos da CRP).
24. A admitir-se que a notificação em exame pode ser realizada pela Administração Pública (o que vem contestado neste recurso), a supramencionada interpretação viola ainda os princípios da boa-fé, imparcialidade, justiça, proporcionalidade e igualdade que devem pautar a atividade administrativa (cfr. Artigo 266.º/2 CRP).
25. É inconstitucional a interpretação do artigo 105.º/4, al. b) RGIT (Ex vi Artigo 107.º/2 do RGIT) no sentido em que não prevê a concessão ao arguido do direito de audiência prévia relativamente ao «valor da coima aplicável» [e, acrescente-se, aos demais elementos da infração contraordenacional], obrigando-o a acatar o valor (ou moldura sancionatória) indicado para que se possa isentar do processo-crime – cfr. Artigos 20.º/4 e 32.º/10, ambos da CRP.
26. Ademais, como preconiza FREDERICO DA COSTA PINTO, “a tipificação do abuso de confiança [contra a Segurança Social] a partir de uma omissão pura conjugada com uma condição objetiva de punibilidade que depende em absoluto de um ato da administração (…) constitui uma solução normativa que põe intrinsecamente em causa as exigências de legalidade, reserva de lei e igualdade no exercício do poder punitivo, decorrentes dos artigos 29.º, n.º 1, 165.º, n.º 1, al. c), e 13.º da Constituição” (in A Categoria da Punibilidade na Teoria do Crime, Tomo II, Almedina, 2013, p. 701).
Tudo ponderado:
27. Atenta a não verificação da condição de punibilidade e/ou inconstitucionalidade da aplicação do artigo 105.º/4, al. b) RGIT nos termos enunciado supra, os Recorrentes devem ser absolvidos da autoria do crime do qual vêm pronunciados, à luz dos artigos 368.º/2, al. e), 375.º/1, a contrario e 376.º, todos do CPP.
B. Nulidade da Acusação/ Pronúncia:
28. Os Arguidos requereram a declaração de nulidade da Acusação/ Pronúncia.
29. A nulidade da acusação/pronúncia constitui questão de conhecimento oficioso e, a mais é insuscetível de sanação – cfr., taxativamente, ac. TRC de 22.5.2015; P. 368/07.8TALRA.
30. O caso julgado formal consiste na imodificabilidade das decisões judiciais proferidas ao longo do processo e ocorre quando a decisão já não pode ser impugnada. Esta torna-se definitiva e exequível, esgotando-se, assim, o poder jurisdicional quanto à matéria que constituiu objeto de conhecimento.
31. Nos termos do artigo 308.º/3 CPP, a decisão instrutória principia por apreciar as nulidades, questões prévias e/ou incidentais. Esta apreciação não é passível de recurso, como resulta de uma leitura concatenada do disposto nos artigos 309.º/1 e 310.º/1 e 3, todos da lei processual penal.
32. De facto, a decisão do Sr. Juiz de Instrução que indefira quaisquer nulidades é irrecorrível sob o art. 310.º/1 CPP. Somente cabe recurso da decisão instrutória se esta cometer uma concreta e única nulidade: a alteração substancial dos factos descritos na acusação pública ou do assistente ou no requerimento de abertura de instrução.
33. A irrecorribilidade da decisão instrutória no respeitante à apreciação de nulidades não significa, porém, a petrificação de tal decisão, maxime se em causa estiver, como ocorre no caso vertente, uma nulidade insanável.
34. O Sr. Juiz de Julgamento terá obrigatoriamente de reapreciar as nulidades (cuja invocação seja renovada pelos sujeitos processuais ou que sejam de conhecimento oficioso e não se mostrem sanadas) – cfr. Artigo 311.º/1 CPP.
35. Seja como for, a defesa imputou vícios, geradores de nulidade, à própria decisão instrutória.
36. Esta nulidade decerto não poderia reputar-se de consumida quando os autos são recebidos no Tribunal de Julgamento. Tampouco poderia motivar a interposição de recurso, mormente pela defesa, dado que a nulidade impugnável hierarquicamente é a individualizada no artigo 309.º/1 (atento o disposto no artigo 310.º/3) do CPP. Nulidades diversas não poderiam ser recorridas e, ainda que o fossem, os Arguidos sequer teriam interesse em agir, pois se tratar de um vício que os beneficia (Artigo 401.º/1, al. b) e 2 CPP). O MP consentiu que o libelo transitasse para a fase de julgamento com a pecha do ponto 12, nada tendo requerido ou arguido ex adverso.
37. Em face do exposto, requer-se a este Venerando Tribunal de Recurso se digne aferir da validade da Acusação/ Pronúncia, concluindo pela sua nulidade.
38. Em violação do Artigo 283.º/3, al. b) CPP, o libelo contem juízos imprecisos, conclusivos, sem concretização das exatas ações imputadas aos Arguidos.
39. Independentemente do antedito, certo é que o quadro em exame é meramente conclusivo, radical, totalista, não permitindo a captação a que concretos trabalhadores, remunerações e taxas contributivas se refere. Ora, o libelo criminal deve ser um instrumento monolítico, que encerre todos os elementos integrantes da factualidade em mérito. Ao admitir-se a dedução de acusação penal através de tabelas, com valores totais (não parcelares) e não nominativos, o julgador está a postergar o prescrito no artigo 283.º/3, b) CPP (porquanto este inciso prescreve uma narrativa completa da factualidade imputada ao arguido). O que não se pode aceitar.
40. Sendo evidente (e insuprível) a nulidade do libelo, os Arguidos devem ser absolvidos.
NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS:
➢ Artigo 105.º/4, al. b) ex vi Artigo 107.º/2 do RGIT;
➢ Artigo 1.º/1 CP;
➢ Artigos 283.º/1 e 3, al. b); 307.º/1 e 311.º/1 CPP;
➢ Artigos 2.º; 13.º; 18.º/2; 20.º/4; 29.º/1; 32.º/10 e 266.º/2 da CRP.
Termos em que deve ser julgado PROCEDENTE o presente recurso, revogando-se o despacho impugnados e absolvendo-se os Arguidos/ Recorrentes do crime do qual vêm pronunciados.
Só assim se fará JUSTIÇA!»
1.5.2. Conclusões do recurso da sentença:
«1. Os pontos 8, 10, 12, 15 da matéria de facto provada, deverão passar a constar da matéria de facto NÃO PROVADA, porquanto NÃO resulta provado que os Arguidos não tenham procedido à entrega ao Estado das quotizações devidas, NÃO resulta provado que os Arguidos não tenham procedido ao pagamento devido.
2. O Tribunal a quo desconsiderou por completo os pagamentos que foram efectuados à Segurança Social e desconsiderou o facto de a Segurança Social não ter identificado todos os pagamentos que foram feitos.
3. O Tribunal a quo considerou o depoimento de uma testemunha (CA) que se limitou a analisar as declarações de remuneração, declarando o Tribunal a quo que não foi “produzido qualquer elemento probatório que infirme o depoimento da referida testemunha.”
4. Sucede que, é o próprio Tribunal a quo a declarar que as folhas de remuneração não fazem prova por si só, uma vez que existem “contra-indícios” nos autos que põem em causa as mesmas.
5. Sendo que a própria matéria provada (cfr. pontos 8 e 12) e não provada (alínea a) dos factos não provados) contrariam o próprio depoimento daquela testemunha.
6. Declarou ainda o Tribunal a quo que a lista de pagamentos junta aos autos não é suficiente para pôr em causa o depoimento daquela testemunha.
7. Em primeiro lugar, o ónus da prova não cabia aos Arguidos, não cabia a estes fazer prova dos pagamentos; cabia ao Ministério Público fazer prova da omissão de entrega; sendo que a prova dos pagamentos, ou não realização dos pagamentos, deveria encontrar-se suportada em prova documental, e não no depoimento de uma testemunha.
8. Em segundo lugar, ainda que se considere que a lista de pagamentos é insuficiente para abalar o depoimento desta testemunha, conforme se referiu, os factos provados (cfr. pontos 8 e 12) e não provados (alínea a) dos factos não provados) por si só abalam a credibilidade desta testemunha.
9. Em terceiro lugar, o Tribunal a quo não teve em consideração toda a prova junta aos autos; nomeadamente, o Tribunal a quo não considerou a documentação junta pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Juízo comércio – juiz 4 (com a refª citius 5809216).
10. Desconsiderou o Tribunal a quo o plano de recuperação (junto com a informação com a refª citius 5809216, 3º ficheiro), aprovado pelos credores e homologado pelo Tribunal, transitado em julgado no dia 17/02/2015, e a resposta da Segurança Social relativamente ao mesmo (ofício com a refª citius 5832357 de 22/06/21).
11. Da conjugação daquela documentação resulta que do plano de recuperação resulta um plano de pagamentos à Segurança Social e que, conforme esta declara “os períodos até essa data foram abrangidos no Plano Prestacional do PER.”
12. Sendo que, da listagem junta aos autos pela Segurança Social (com o ofício com a refª citius 5832357 de 22/06/21) não resulta qualquer informação relativamente aos pagamentos realizados no âmbito do “Plano Prestacional do PER”.
13. Da listagem de pagamentos junta aos autos (e referida pelo Tribunal a quo), com aquele ofício, apenas resultam os pagamentos efectuados no âmbito de processos executivos, não podendo os pagamentos realizados no âmbito do plano especial de revitalização ser qualificados como tal, cfr. art. 17º E do CIRE, e conforme a Segurança Social o reconhece ao denominá-lo de forma distinta.
14. Face ao exposto, resulta indiciado que foram efectuados pagamentos relativos às quotizações referentes ao período mencionado no ponto 6 dos factos provados da sentença.
15. Surgindo, no mínimo, a dúvida se os pagamentos à Segurança Social foram ou não efectuados.
16. Em quarto lugar, na senda do supra exposto relativamente ao plano de pagamentos no âmbito do PER, da lista de pagamentos, junta com o ofício com a refª citius 5832357 de 22/06/21, referida pelo Tribunal a quo, não constam todos os pagamentos realizados pela Sociedade Arguida, ou em nome desta.
17. Conforme resulta do ofício de 24/06/21, com a refª citius 5837211, e respectivos duc’s juntos com o mesmo, a listagem de pagamentos diz respeito a pagamentos efetuados em sede de processo executivo.
18. Para que o Tribunal a quo pudesse concluir, como o fez, que os pagamentos não foram realizados, teria sido necessário que a Segurança Social juntasse a respectiva documentação de suporte, nomeadamente a documentação referente aos pagamentos efectivamente realizados (juntou apenas os duc para pagamento relativos a processos executivos) e a conta corrente da sociedade arguida.
19. A Segurança Social nada referiu relativamente a pagamentos mensais, correntes e avulsos que foram feitos no período referido na acusação (e no ponto 6 dos factos provados) e respectiva forma de imputação.
20. Acresce que do mapa de quotizações (junto com a participação com a refª citius 3883632) não se faz qualquer referência ao período entre Fevereiro e Março de 2015.
21. Pelo que, resulta evidente nos autos que terão ocorridos outros pagamentos para além daqueles que foram identificados pela Segurança Social.
22. Nestes termos, mais uma vez, no mínimo, surge a dúvida se os valores referidos pela Segurança Social são devidos ou não.
23. Em quinto lugar, da documentação junta pela Segurança Social com o ofício com a refª citius 5837211, verifica-se que os DUC (mencionados na sentença recorrida e junto com este ofício) referentes ao período da acusação ascendem a 9.530,55€, tendo sido feita uma imputação a contribuições e a quotizações de 6.536,64€ e 2.991,91€, respetivamente.
24. Contrariamente ao que declarou o Tribunal a quo, todos os pagamentos efectuados são relevantes para se averiguar se existe ou não dívida.
25. Apenas quando não existe dívida de quotizações é que a Segurança Social pode imputar os pagamentos a contribuições.
26. Se a Segurança Social imputou os pagamentos a contribuições, e não cotizações, fê-lo em violação da supra referida disposição legal, não podendo tal facto prejudicar os Arguidos, in casu, não podia o Tribunal a quo, como o fez, declarar que os Arguidos não procederam ao pagamento do valor identificado nos pontos 8 e 12 dos factos provados (sendo o valor que a Segurança Social imputou a contribuições superior ao indicado nestes pontos da matéria de facto provada).
27. Face ao exposto, atenta a prova produzida nos presentes autos, e perante as dúvidas existentes, em nome do princípio do in dúbio pro reu deverá decidir-se a favor dos Arguidos, e, consequentemente, deverão os pontos 8, 10, 12 e 15 ser dados como NÃO PROVADOS.
28. Também deverá ser excluído da matéria de facto provada o ponto 11 porquanto os Arguidos não foram notificados das contribuições em divida (cfr. pontos 8 e 12 dos factos provados e notificações de fls. 295 e ss, 3º volume).
29. Passando a constar como não provados os factos 8, 10, 11, 12 e 15, também os pontos 16, 17 e 18 o deverão ser, por serem uma consequência daqueles.
30. Deverão passar a constar da matéria de facto PROVADA, por serem essenciais e absolutamente relevantes nos presentes autos, na senda do supra exposto, e conforme prova que se indica, os seguintes factos:
1) “Foram efectuados pagamentos à Segurança Social em valor superior ao valor referido nos pontos 8 e 12 dos factos provados”. (cfr. i) Informação junta Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Juízo Comércio - Juiz 4, onde correu termos o Processo Especial de Revitalização da Sociedade Arguida, sob o nº 1806/14.9TYLSB, com a refª citius 5809216, nomeadamente o plano de recuperação da Sociedade Arguida, ii) Ofício da Segurança Social de 24/06/21, e respectivos documentos juntos com este ofício, com a refª citius 5837211, e iii) mapa de quotizações, junto com a participação com a refª citius 3883632, onde não se faz qualquer referência ao período entre Fevereiro e Março de 2015.)
2)” A Segurança Social imputou, pelo menos, parte dos pagamentos realizados a contribuições” (cfr. Ofício da Segurança Social de 24/06/21, e respectivos duc’s juntos com este ofício, com a refª citius 5837211)
3) “O plano de recuperação da Sociedade Arguida foi homologado no dia 17/02/2015” (cfr. Informação junta Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Juízo Comércio - Juiz 4, onde correu termos o Processo Especial de Revitalização da Sociedade Arguida, sob o nº 1806/14.9TYLSB, com a refª citius 5809216, nomeadamente o plano de recuperação da Sociedade Arguida, e ofício da Segurança Social, de 22/06/21, com a refª citius 5832357).
Deverá ainda passar a constar da matéria de facto PROVADA que:
4) “Os Arguidos não solicitaram à Segurança Social que os pagamentos fossem imputados a contribuições”
Este facto é absolutamente relevante, não resultando dos autos qualquer prova de que a entidade devedora (sociedade arguida) tenha feito o pedido mencionado no artigo 79º da Regulamentação do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (não cabendo ao Arguido fazer essa prova), resultando provado que a Segurança Social imputou, pelo menos parte, dos pagamentos a contribuições.
31. Considerando o acima exposto, relativamente ao recurso da matéria de facto, é evidente que os Arguidos não praticaram o crime que foram condenados pelo Tribunal a quo.
32. Só mediante a omissão de entrega é que se verifica o elemento objectivo do crime de que os Arguidos foram condenados.
33. O Tribunal a quo violou o disposto no art. 107º do RGIT porquanto não resultou provado que os Arguidos não tenham efectuado o pagamento e, consequentemente, não resulta provado que os Arguidos não tenham entregue ao Estado quaisquer quantias devidas, devendo a sentença recorrida ser revogada. Sem conceder sempre se dirá que,
34. O Tribunal a quo violou o princípio do in dúbio pro reu, corolário do princípio constitucional da presunção de inocência previsto no art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP.
35. Permanecem dúvidas nos presentes autos relativamente aos valores totais pagos à SS entre Dezembro de 2013 e Janeiro de 2015 e qual a imputação feita pela SS.
36. Desconhece-se por falta de informação prestada pela Segurança Social e por incongruência entre a resposta dada pela Segurança Social e a documentação junta aos autos.
37. Conforme acima se referiu, consta dos autos prova documental que demonstra inequivocamente que foram realizados outros pagamentos para além da listagem junta pela Segurança Social.
38. Perante estas dúvidas sobre factos essenciais, deveria o Tribunal a quo ter decido a favor dos Arguidos, em nome do princípio do in dúbio pro reu.
39. Perante estas dúvidas subsistentes que culminam com a dúvida de se de facto alguma vez houve uma omissão de entrega, e consequentemente, da prática do crime de que os Arguidos foram condenados, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva os Arguidos. Sem conceder sempre se dirá que,
40. Acresce que, a Segurança Social deveria, nos termos e para os efeitos do art. 79º da Regulamentação do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro, Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011, ter imputado os pagamentos que foram realizados à dívida de quotizações mais antiga.
41. Não o tendo feito, a Segurança Social violou o critério legal de imputação e, assim, só por sua culpa - e nunca por culpa dos arguidos ou por factos a si imputáveis - não se extinguiram as dívidas por cotizações mais antigas.
42. A decisão do Tribunal a quo, e qualquer outra que desconsidere a forma de imputação dos pagamentos pela Segurança Social, viola os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, consagrados no art. 2º da CRP, inconstitucionalidade que desde já se argui.
43. A jurisprudência constitucional é uniforme no sentido de o princípio do Estado de Direito democrático implicar que os cidadãos devem poder prever as intervenções do Estado em relação a eles e preparar-se para se lhes adequarem, e poder confiar em que a sua actuação de harmonia com o direito seja reconhecida pela ordem jurídica e assim permaneça nas suas consequências juridicamente relevantes (Neste sentido, por exemplo, cfr. os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 303/90, de 21 de Novembro de 1990, e 63/91, de 19 de Março de 1991, «Diário da República», I Série, de 26 de Dezembro de 1990, e II Série, de 3 de Julho de 1991, respectivamente.)
44. Os princípios da segurança jurídica e da protecção de confiança são violados quando a Segurança Social, e o Tribunal, como foi o caso, se sobrepõem a uma norma prevista no nosso ordenamento jurídico, inconstitucionalidade que desde já se invoca.
45. Tendo a Segurança Social violado o critério legal de imputação, existindo valor em dívida a título de quotizações só por sua culpa, e considerando o princípio da segurança jurídica previsto no art. 2º da CRP, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva os Arguidos. Sem conceder sempre se dirá que,
46. Não se encontra preenchida a condição de punibilidade encerrada no artigo 105.º/4, al. b) ex vi Artigo 107.º/2 do RGIT.
47. As notificações enviadas nos autos (cfr. fls. 295 e ss, 3º volume) não contêm todos os elementos prescritos na lei: capital da prestação alegadamente em falta, juros de mora e valor da coima.
48. Quanto a juros de mora e valor de capital as notificações são totalmente omissão.
49. E quanto ao primeiro elemento, resulta que a quantia total que o ISS indicou como sendo devida não o é, na realidade.
50. O valor que constava das notificações (36.169,08€) é totalmente distinto daquele a que o Tribunal a quo chegou à conclusão que era devido - € 5.143,36 (pontos 8 e 12 da matéria de facto provada).
51. Para que a notificação surta um efeito admonitório e possa ser cumprida na trintena improrrogável e impreterível prevenida na lei, não se pode admitir, conscienciosamente, que a notificação em exame se baste com uma referência a um valor (absolutamente) incorrecto cujo pagamento isenta o arguido do pathos do processo penal.
52. Tendo os arguidos sido notificados para liquidar 36.169,08€ quando o que estava em dívida (repita-se: apenas se equaciona este valor por mera cautela e dever de patrocínio) para com a Segurança Social era € 5.143,36 (cfr. pontos 8 e 12 dos factos provados), atendendo à grande disparidade de valores, inadmissível e injustificável, deve-se ter por não satisfeita a condição objectiva de punibilidade constante do artigo 105.º, n.º 4, aI. b) do RGIT, não, podendo os arguidos ser punidos por tais factos.
53. Tendo sido omitida ou constatando-se que o conteúdo é irregular, a notificação salda-se, para todos os efeitos jurídicos, inoperante, sobrevindo, por conseguinte, a absolvição do arguido, dado que os factos de que vem acusado ou pronunciado não são puníveis – v. Acórdãos dos Tribunais da Relação de Lisboa de 28.11.2019 (FILIPA COSTA LOURENÇO); proc. 2886/16.8T9LSB e da Relação do Porto de 13.5.2015 (AUGUSTO LOURENÇO).
54. Não se pode aceitar que, para se exonerar ao pathos da ação penal, o arguido notificado para os efeitos do artigo 105.º/4, al. b) RGIT tenha de arrostar com o pagamento de um valor indébito. Para além de representar um enriquecimento injustificado do Estado, tal implica que a ação penal revista foros de desproporcionalidade (violando a garantia de um processo equitativo, leal e justo) – sendo que até pode dissuadir o contribuinte que pretenda honrar a dívida de o fazer (desvirtuando a ratio da condição de punibilidade).
55. A lei não consente outra interpretação, sob pena de usurpação do sentido possível das palavras e do princípio da legalidade (Cfr. artigos 1º/1 CP e 29.º/1 CRP), que se aplica às condições de punibilidade (v.g., TERESA BELEZA e FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO).
56. A interpretação do artigo 105.º/4, b) RGIT que o Tribunal a quo faz ao declarar que “a circunstância de o valor apurado ser inferior ao constante da notificação efectuada nos termos do artigo 105.º, n.º 4, do RGIT é irrelevante”, é inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade, proporcionalidade, separação de poderes e igualdade e do direito fundamental a um processo equitativo (v. artigos 2.º, 13.º, 18.º/2, 20º/4 e 29.º/1, todos da CRP).
57. Atenta a não verificação da condição de punibilidade e/ou inconstitucionalidade da aplicação do artigo 105.º/4, al. b) RGIT, nos termos enunciado supra, bem como a interpretação que o Tribunal a quo faz desta norma de forma manifestamente inconstitucional, deverá a sentença ser revogada e substituída por outra que absolva os Arguidos.
58. Ainda que porventura se considere que a não verificação do requisito de punibilidade não determina a absolvição dos Arguidos, o que se admite por mera cautela e dever de patrocínio sempre se dirá que, deverá, no mínimo, ser declarada a irregularidade da notificação conforme declarou o Tribunal da Relação do Porto (in www.dgsi.pt, Acórdão de 13/05/15, Processo nº 7018/11.6IDPRT.P1).
NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS:
➢ Artigo 107º nº 1 do RGIT
➢ Artigo 1.º/1 CP;
➢ Art. art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP
➢ Artigo 79º da Regulamentação do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro, Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011;
➢ Artigo 105.º/4, al. b) ex vi Artigo 107.º/2 do RGIT;
➢ Artigos 2.º; 13.º; 18.º/2; 20.º/4; 29.º/1; 32.º/10 e 266.º/2 da CRP.
Termos em que deve ser julgado PROCEDENTE o presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e absolvendo-se os Arguidos do crime pelo qual foram condenados
Só assim se fará JUSTIÇA!»
1.6. Ambos os recursos foram regularmente admitidos.
1.7. O Ministério Público apresentou resposta aos recursos, pronunciando-se no sentido de deverem ser julgados improcedentes, formulando, a final, as seguintes conclusões:
1.7.1. Na resposta ao recurso do despacho interlocutório:
«1. O recurso a que ora se responde é sobre matéria de Direito e tem por objecto decisão proferida, em 12/04/2021, pelo Tribunal ad quo e que considerou improcedentes as questões previas invocadas na contestação apresentada pelos recorrentes, que se subsumem às seguintes temáticas: Omissão de um requisito de punibilidade; Nulidade da acusação conforme validade e alterada pelo despacho de pronúncia; e inconstitucionalidades da notificação do 105.º, n.º 4, al. b) do RGIT:
2. os recorrentes referem terem sido violadas as seguintes normas jurídicas, Artigo 105.º/4, al. b) ex vi Artigo 107.º/2 do RGIT, 1.º/1 CP; 283.º/1 e 3, al. b); 307.º/1 e 311.º/1 CPP; 2.º, 13.º, 18.º/2; 20.º/4; 29.º/1; 32.º/10 e 266.º/2 da CRP.
3. Considera o Ministério Público que o despacho recorrido não é passível de qualquer censura e não viola quaisquer disposições legais, concordando-se integralmente com o mesmo.
4. Refere o recorrente como questão prévia que não está preenchido o artigo 105.º, n.º 4, al. b) do RGIT.
5. Na acusação pública foi expressamente indicado como prova documental o comprovativo de receção, assinado pelo recorrente, em que o mesmo é notificado enquanto representante da sociedade e pessoalmente, nos termos do artigo 105.º, n.º 4 do RGIT.
6. Tal notificação é clara quando menciona que que “Assim, fica pessoalmente notificado (…)”.
7. Por aplicação do artigo 6.º do RGIT, não pode a responsabilidade criminal do recorrente ser posta em causa pela mera formalidade de não ter sido novamente notificado, da exacta mesma informação, mas a título meramente individual, uma vez que tal prática seria completamente inútil, a nível de conhecimento por parte deste, da necessidade de cumprimento das suas obrigações para com a Segurança Social.
8. Tanto os elementos objectivos como os subjectivos do tipo legal apontam para uma conduta enquanto gerente, sendo que o artigo 6.º do RGIT não faz depender a autoria singular da pessoa que age enquanto representante da pessoa colectivas de qualquer acto fora do âmbito da representação.
9. Se a acção (onde se inclui o nexo causal), a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade do arguido não dependem de uma acção a título pessoal e singular, fora das funções de representação, também não deverão os pressupostos de punibilidade disso dependerem.
10. A notificação do artigo 105.º, n.º 4 do RGIT não pode ser uma excepção, uma vez que não é expressamente estipulado por lei.
11. Caso contrário, e através de uma interpretação contra legem do artigo 6.º do RGIT, estaríamos a ficcionar um requisito adicional e autónomo, como uma tramitação e natureza distinta de toda a restante conduta, nomeadamente a necessidade de uma notificação cumulativa a título pessoal.
12. Em todo o caso, a título subsidiário, refira-se que tais notificações podem ser sempre determinadas pelo Juiz de Julgamento.
13. A notificação contém todos os elementos essenciais para que os recorrentes fossem informados do prazo que tinham, do montante a remeter à Segurança Social, de que ao mesmo acrescem juros legais e das consequências da não entrega de tais valores.
14. O Ministério Público delegou na ISS o poder para a realização de todas as diligências probatórias genericamente, o que inclui a prática de todos os actos que não estejam expressamente previstos no artigo 270.º, n.º 2 do código de Processo Penal ou em qualquer outra legislação.
15. Inexistindo qualquer norma que confira a esta autoridade judiciária a competência exclusiva para a prática de tal acto, estava incluído na delegação de poderes para proceder a tal notificação, caso se demonstrasse como necessário para a prossecução penal dos recorrentes.
16. Bem andou o Tribunal ad quo em não apreciar o mérito da excepção invocada de nulidade da acusação pública.
17. Tendo tal questão já sido apreciado pelo Mm.º Juiz de Instrução Criminal, em sede de despacho de pronúncia, estava o tribunal impedido de apreciar a questão prévia suscitada na contestação apresentada, pelo menos, em fase de saneamento dos autos.
18. Em todo o caso, diga-se que a acusação contém a descrição factual de todos os elementos essenciais do tipo legal, incluindo a notificação do artigo 105.º, n. 4 do RGIT (não exigindo a lei uma descrição exaustiva).
19. Os arguidos fundamentam a nulidade da acusação baseados em factualidade meramente acessória à acusação (que as funções do gerente não são precisamente descritas, que não é expressamente referido o dia e lugar em que o arguido foi notificado), inexistindo qualquer impedimento do direito de defesa por parte dos arguidos tendo em conta o disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.
20. Inexiste qualquer interpretação inconstitucional ao entender que a notificação recebida pelo recorrente cumpre o artigo 105.º, n.º 4 al. b) do RGIT.
21. A notificação em causa indica expressamente o montante total que e o recorrente teria de entregar à Segurança Social e de que a tais valores acrescem juros moratórios à taxa legal.
22. Não é necessário de que os valores aí estipulados estejam correctos para que a notificação cumpra o artigo 105.º, n.º 4 do RGIT, sendo apenas necessário que a quantia monetária em falta seja passível de enquadrar o tipo legal do artigo 107.º do RGIT.
23. A necessidade de audiência prévia não é indicada expressamente no preceito legal e não deve ser entendida enquanto uma notificação submetida ao CPA, na medida em que a mesma não é um acto administrativo de per si.
24. Caso os recorrentes não concordassem com o valor das prestações ou com qualquer outra matéria referente às mesmas, deveriam ter impugnado, durante o prazo legalmente para o efeito, no âmbito de uma impugnação administrativa ou judicial, a contar, no momento em que a obrigação se venceu e não com o recebimento da notificação do artigo 105.º, n.º 4 do RGIT.
Pelo que deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, devendo o douto despacho ser integralmente confirmado nos seus precisos termos, o que se requer aos Venerandos Desembargadores.
Assim sendo feita a costumada Justiça.»
1.7.2. Na resposta ao recurso da sentença:
«A) Os pontos 8 (em conjugação com os demais factos provados), 10, 12, 15, 16, 17, 18 da matéria de facto provada foram correctamente dados como provados.
B) Os Arguidos foram notificados devidamente para os efeitos do artigo 105.º, n.º 4 b) do Regime Geral das Infracções Fiscais e Tributárias.
C) A notificação prevista na al. b) do nº4 do art. 105.º do RGIT tem-se por realizada, enquanto acto instrumentalizado à verificação da condição de punibilidade ali estabelecida, apesar de incompleta, se o obrigado nada fizer com vista à regularização da obrigação incumprida.
D) No caso sub judice encontram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de abuso de confiança contra a segurança social.
E) Os comprovativos dos DUC juntos pelos Arguidos referem-se a pagamentos de quantias em sede de execução, portanto, trata-se de pagamentos no âmbito de processos executivos em curso não são entregas devidas pelo pagamento dos salários no período compreendido entre Dezembro de 2013 a Janeiro de 2015.
F) Efectivamente, no período compreendido entre Dezembro de 2013 e Janeiro de 2015, pela sociedade Arguida foram sucessivamente pagos os salários dos trabalhadores LO, SI, TA e TS, e não foram entregues os valores devidos a título de contribuições à Segurança Social, pese embora a sociedade Arguida dispusesse de dinheiro para o efeito, que utilizou para proceder ao pagamento dos salários devidos aos trabalhadores nos meses subsequentes.
G) Ao agir desta forma o Arguido, na qualidade de legal representante da sociedade Arguida, reteve a quantia total de € 5.143,36 referente às deduções por si efectuadas a título de contribuições para a Segurança Social nas remunerações dos trabalhadores, não havendo qualquer dúvida que os Arguidos praticaram os aludidos factos.
H) Em face dos elementos de prova acima referidos não existe qualquer dúvida razoável, pelo contrário, existe grau de certeza compatível com as regras da livre apreciação da prova por parte da Mma. Juiz de que a factualidade dado como provada é igual à verdade material
I) Os limites a essa liberdade de valoração da prova no âmbito penal são as regras da lógica e da razão, as máximas da experiência e os conhecimentos técnicos e científicos.
J) A existir dúvida a mesma não releva no espirito dos Arguidos, mas sim no espírito do julgador.
K) Ao ler a fundamentação é possível apreender o iter do processo lógico e racional que conduziu à formação da convicção.
L) Em suma, o tribunal a quo fez uma correcta ponderação e apreciação da prova e, efectuou uma correcta qualificação jurídica dos factos.
Nestes termos, e com o douto suprimento desse Venerando Tribunal, negando provimento ao recurso e, em consequência, mantendo, na íntegra, a douta sentença recorrida, Vªs. Exas. farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA.»
1.8. Subidos os autos a esta Relação, o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso interposto da sentença dever ser julgado improcedente, acompanhando a resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público, em 1ª instância.
1.9. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Em matéria de recursos, que ora nos ocupa, importa ter presente as seguintes linhas gerais:
O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito (cfr. artigo 428º do CPP).
As conclusões da motivação recursiva balizam ou delimitam o respetivo objeto do recurso (cfr. artigos 402º, 403º e 412º, todos do CPP), delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Tal não impede o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados no n.º 2 do artigo 410º do CPP, mas tão somente quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum, bem como das nulidades principais, como tal tipificadas por lei.
2.2. No caso vertente, tendo presentes as considerações que se deixam enunciadas e atentas as conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação dos recursos que apresentaram, são suscitadas as seguintes questões:
2.2.1. No recurso do despacho interlocutório:
- Nulidade da acusação e da pronúncia;
- Omissão da condição de punibilidade prevista no artigo105º, n.º 4, al. b), do RGIT;
- Inconstitucionalidade da norma contida no artigo 105º, nº 4, alínea b), do RGIT, interpretada no sentido em que a notificação aí prevista não tem de liquidar os montantes a pagar pelo contribuinte, por violação dos princípios da legalidade, proporcionalidade, separação de poderes e igualdade e do direito fundamental a um processo equitativo (artigos 2º, 13º, 18º, nº 2, 20º, nº 4 e 29º, nº 1 todos da Constituição da República Portuguesa).
- Inconstitucionalidade da norma ínsita no artigo 105º, n.º 4, alínea b), do RGIT, interpretada no sentido em que não prevê a concessão ao Arguido do direito a audiência prévia relativamente ao valor da coima aplicável e bem assim aos elementos da infração contraordenacional, obrigando-o a acatar o valor indicado para que se possa isentar do processo crime.
- Inconstitucionalidade material e orgânica da própria condição objetiva de punibilidade,
a admitir-se que a notificação prevista no artigo 105º, n.º 4, alínea b), do RGIT, pode ser realizada pela Administração Pública, por violação dos princípios da boa-fé, imparcialidade, justiça, proporcionalidade e igualdade que devem pautar a atividade administrativa (cfr. Artigo 266.º/2 CRP).
2.2.2. No recurso da sentença:
- Impugnação da factualidade dada como provada nos pontos 8, 10, 12 e 15 a 18;
- Violação do princípio in dúbio pro reo;
- Violação pela Segurança Social do critério da imputação e do principio da confiança jurídica;
- Omissão da condição de punibilidade prevista no artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT;
- Irregularidade da notificação efetuada ao arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT:
- Inconstitucionalidade da norma ínsita no artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT, na interpretação feita pelo Tribunal a quo faz no sentido de que “a circunstância de o valor apurado ser inferior ao constante da notificação efectuada, nos termos do artigo 105.º, n.º 4, do RGIT é irrelevante”, por violação dos princípios da legalidade, proporcionalidade, separação de poderes e igualdade e do direito fundamental a um processo equitativo (v. artigos 2.º, 13.º, 18.º/2, 20º/4 e 29.º/1, todos da CRP). * 2.3. Para que possamos apreciar as questões suscitadas nos recursos, importa ter presente o teor do despacho interlocutório e da sentença recorridos e que passamos a transcrever:
2.3.1. O despacho interlocutório referido em 1.3., é do seguinte teor:
«SAe AAA vieram apresentar contestação, alegando, para além do mais:
(i) a extinção do procedimento criminal contra a Arguida pessoa colectiva em virtude de a mesma ser tido declarada insolvente;
(ii) a omissão do requisito de punibilidade previsto no artigo 105.º, n.º 4, do RGIT, no que diz respeito ao Arguido pessoa singular e
(iii) a nulidade da acusação conforme validada e alterada pelo despacho de pronúncia.
*
Lavrado termo de vista à Digna Magistrada do Ministério Público, pela mesma foi promovido o indeferimento do requerido pelos Arguidos, devendo ser realizada a audiência de julgamento e os autos prosseguir em cumprimento dos seus regulares termos legais.
*
Cumpre apreciar e decidir.
*
Resulta do documento junto com a contestação que a sociedade Arguida foi declarada insolvente por sentença já transitada em julgado.
No entanto, da análise da certidão do registo comercial junta aos autos resulta que a sociedade Arguida ainda se encontra em liquidação, não tendo sido registada a dissolução e o encerramento da sua liquidação.
Ora, é entendimento jurisprudencial unânime que a declaração de insolvência de uma sociedade, embora provoque a sua dissolução, não provoca a sua extinção nem a extinção do procedimento criminal contra ela instaurado. – Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 9/02/2009, processo n.º 2701/08-1; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26/09/2017, processo n.º 862/15.7T9EVR.E1 e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21/01/2014, processo n.º 57/09.9IDSTR.E1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Na verdade, conforme resulta do Código das Sociedades Comerciais, a declaração de falência é um dos casos legalmente previstos que faz entrar a sociedade em dissolução [art. 141º, n.º1, al. e): “1- A sociedade dissolve-se nos casos previstos no contrato e ainda: e) Pela declaração de insolvência da sociedade”], mas a sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica [art. 146º, n.º2: “A sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica e, salvo quando outra coisa resulte das disposições subsequentes ou da modalidade da liquidação, continuam a ser-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas”] e só se extingue pelo registo do encerramento da liquidação (art. 160º, n.º2). Por isso “ainda que esteja despojada de quaisquer bens, a sociedade não pode considerar-se extinta enquanto não se mostrar efectuado o registo do encerramento da liquidação” (cit Ac. da Rel. do Porto de 19-09-2007, proc.º n.º 0741140, rel. Pinto Monteiro). É o que resulta de forma inequívoca do n.º 2 do artigo 160º do Código das Sociedades Comerciais: “A sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos artigos 162º a 164º, pelo registo do encerramento da liquidação.” – Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 9/02/2009, processo n.º 2701/08-1.
Como ensina Raul Ventura, reconhecidamente o maior especialista português na matéria: “A extinção da sociedade resulta da inscrição no registo do encerramento da liquidação, «mesmo entre os sócios». Não se trata, pois, de, pelo registo, tornar esse facto oponível a terceiros; mesmo entre os sócios, a sociedade mantém-se (incluindo a respectiva personalidade) até ser efectuada aquela inscrição. Na terminologia usual, o registo tem neste caso eficácia constitutiva. O sistema estabelecido no CSC justifica-se por motivos teóricos e práticos. Por um lado, está em correspondência com o sistema estabelecido para a aquisição de personalidade pela sociedade e existência desta como tal (art. 6.°). Por outro lado, consegue-se a certeza quanto ao momento em que a sociedade se extingue e além disso evitam-se as dificuldades de a sociedade se extinguir pelo que respeita aos sócios, sem no entanto estar extinta pelo que respeita a terceiros” (Comentário ao Código das Sociedades Comerciais - Dissolução e Liquidação de Sociedades, Coimbra, 1987, pág. 436). – idem.
Aliás, como foi demonstrado no Ac. da Rel de Évora de 2-5-2006, proc.º 394/06-1, Pires da Graça, o procedimento criminal instaurado contra uma sociedade comercial nem sequer se extingue com a extinção da própria sociedade operada nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 160º do Código das Sociedades Comerciais. – idem.
Em face do que supra se deixou exposto, e sem necessidade de maiores considerações, não tendo sido registado o encerramento da liquidação da sociedade arguida, indefere-se a requerida extinção da responsabilidade criminal da mesma em virtude de a sua declaração de insolvência.
*
Vem o Arguido pessoa singular invocar que não foi notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, em nome pessoal e singular, mas tão somente na qualidade de legal representante da Arguida pessoa colectiva.
Com efeito, nos termos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
Tal notificação destina-se a proporcionar ao(s) arguido(s) – que tendo efetuado a comunicação da prestação à AT ou à Segurança Social, através da correspondente declaração, não tenha efetuado o respetivo pagamento, nem no prazo legal para o efeito, nem no prazo de 90 dias previsto na al. a) do n.º 4 do artigo 104º do RGIT – uma derradeira possibilidade de proceder(em) ao pagamento da prestação em dívida, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após ter(em) sido notificado(s) para o efeito. – Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24/11/2020, processo n.º 1192/16.2T9STR.E1, disponível in www.dgsi.pt.
A questão que tem gerado controvérsia na doutrina e na jurisprudência é a de saber se a notificação em causa, exige que dela conste a concretização das quantias a pagar pelo arguido ou se basta uma indicação genérica para que pague “as prestações, juros e coima, aplicáveis, no prazo de 30 dias”. A orientação jurisprudencial maioritária perfilha o entendimento de que não tem de constar da aludida notificação a concretização dos valores a pagar, competindo ao arguido/notificado, que pretenda cumprir a condição, diligenciar junto da Administração Tributária ou da Segurança Social, consoante o caso, inteirando-se daqueles valores. Em nosso entender, a notificação a efetuar, nos termos e para os efeitos previstos na al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT – aplicável ao crime de abuso fiscal contra a segurança social ex vi do artigo 107º, n.º 2 do mesmo diploma legal –, tendo em conta os fins a que se destina, deverá indicar, pelo menos, o valor das prestações tributárias ou contributivas, em dívida e a menção de que esse valor é acrescido de juros e, ainda, de coima, não sendo exigível a concretização do valor dos juros, nem do montante da coima, já que serão variáveis. – idem.
Resultando de fls. 296 que AAA foi notificado pessoalmente para, no prazo de 30 dias, proceder ao pagamento do valor das quotizações retidas e não entregues à Segurança Social no valor de € 38485,09, sendo que a esse valor somam-se os juros de mora e a(s) coima(s) aplicável(is), consideramos que o Arguido pessoa singular foi efectivamente notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, constando da notificação em causa os elementos legalmente exigidos.
Assim sendo, soçobra o alegado pelo Arguido relativamente à falta de preenchimento da condição de punibilidade prevista no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT. * Vieram ainda os Arguidos arguir a nulidade da acusação proferida nos autos.
Conforme resulta da análise dos autos, nos presentes, houve fase instrutória, que culminou com a decisão instrutória de fls. 636 verso a 644, que, para além de indeferir a arguida nulidade da acusação, concluiu pela pronúncia dos arguidos pela prática dos crimes imputados em sede de acusação.
Tendo havido instrução, no âmbito da qual já foi apreciada e decidida a arguida nulidade da acusação, mostra-se vedado ao presente Tribunal apreciar nesta sede a nulidade arguida.* Em face de tudo o que se deixou exposto, conclui-se pela inexistência de questões prévias ou nulidades que obstem à designação de data para a realização da audiência de julgamento.
(…).»
2.3.2. A sentença recorrida, nos segmentos que relevam para a apreciação das questões suscitadas no recurso, é do seguinte teor:
«(…)
II – Fundamentação
1. Factos provados
Com interesse para a decisão da causa provaram-se os seguintes factos:
1. A sociedade SA., com sede na (…) tem como objecto social o comércio (…).
2. Entre 2013 e 2017, a sociedade arguida tinha como sede (…).
3. O arguido AAA é presidente do conselho de administração da sociedade Arguida e administrador de facto da Arguida sociedade, desde o ano de 2003 e até à presente data e, como tal, responsável por toda a sua actividade, actuando sempre em nome e no interesse da SA.
4. Nessa qualidade, e entre outras incumbências, o Arguido AA era responsável pelo preenchimento e entrega mensal, à Segurança Social, das folhas de remuneração pagas pela Arguida sociedade aos seus trabalhadores, bem como pela dedução e entrega - em nome desta - do montante relativo às quotizações efectivamente deduzidas naquelas remunerações, nos termos e prazos legalmente previstos.
5. No exercício da sua actividade e no período compreendido entre Dezembro de 2013 e Dezembro de 2017, os Arguidos mensalmente procediam à entrega das folhas de remunerações na Segurança Social.
6. Entre Dezembro de 2013 e Janeiro de 2015, LO, SI, TA e TA eram trabalhadores da Arguida SA.
7. Entre Dezembro de 2013 e Janeiro de 2015, o Arguido AAA, na qualidade de legal representante da Arguida SA. Materiais de Construção, S.A., procedeu ao pagamento aos trabalhadores supra referidos do valor total de € 46.757,97 a título de remunerações, descriminadas da seguinte forma:
Mês/Ano | LO | SI | TA | TS | Total (€) |
Dezembro 2013 | 584,53 + 33,00 | 1162,53 + 34,00 | 708,64 + 43,00 + 672,26 | 1.212,46 | 4.450,42 |
Janeiro 2014 | 595,23 + 59,00 | 1.166,81 + 38,00 | 719,34 + 16,00 | 1.203,90 | 3798,28 |
Fevereiro 2014 | 590,95 + 54,00 | 1.168,95 + 32,00 | 715,06 + 10,00 | 1.212,46 | 3.783,42 |
Março 2014 | 590,95 + 161,00 | 1.160,39 + 23,00 | 715,06 + 8,00 | 1.338,52 | 3996,92 |
Abril 2014 | 590,95 + 34,00 | 1.166,81 + 14,00 | 712,92 + 27,00 | 1.342,80 | 3888,48 |
Maio 2014 | 588,81 + 34,00 | 1.168,95 + 13,00 | 717,20 + 5,00 | 1.336,38 | 3863,34 |
Junho 2014 | 575,97 + 8,00 | 1.168,95 + 20,00 | 710,78 + 22,00 | 1.340,66 | 3846,36 |
Julho 2014 | 597,37 + 22,72 | 1.156,11 + 18,00 | 238,54 + 8,54 | 1.327,82 | 3369,10 |
Agosto 2014 | 702,22 +
124,11 +
13,50 | 1.147,55 + 15,00 | 1.340,66 | 3343,04 |
Setembro 2014 | 706,50 +
61,83 | 951,30 | 1.347,08 | 3066,71
|
Outubro 2014 | 721,48 +
51,00 | 1.347,08 | 2119,56 |
Novembro 2014 | 704,36 +
50,00 | 1.342,80 | 2097,16 |
Dezembro | 706,50 +
19,00 +
672,26 +
672,26 | 1.329,96+
1.000,00 | 4399,98
 | 1.000,00 |
 | 717,20 + 18,00 | 735,20 |
|
Janeiro 2015 717,20 + 735,20
18.00
8. Para tanto, deduziu do valor das remunerações pagas aos referidos trabalhadores, o montante global de € 5.143,36 referente às contribuições por estes legalmente devidas à Segurança Social, descriminadas da seguinte forma:
Mês/Ano | Salários Pagos (€) | Taxas das Cotizações | Cotizações do Trabalhador (€) | Cotizações do Trabalhador em Dívida (€) |
Dezembro 2013 | 4.450,42 | Trab. Conta Outrém 11% | 489,55 | 489,55 |
Janeiro 2014 | 3798,28 | Trab. Conta Outrém 11% | 417,81 | 417,81 |
Fevereiro 2014 | 3.783,42 | Trab. Conta Outrém 11% | 416,18 | 416,18 |
Março 2014 | 3996,92 | Trab. Conta Outrém 11% | 439,66 | 439,66 |
Abril 2014 | 3888,48 | Trab. Conta Outrém 11% | 427,73 | 427,73 |
Maio 2014 | 3863,34 | Trab. Conta Outrém 11% | 424,97 | 424,97 |
Junho 2014 | 3846,36 | Trab. Conta Outrém 11% | 423,10 | 423,10 |
Julho 2014 | 3369,10 | Trab. Conta Outrém 11% | 370,60 | 370,60 |
Agosto 2014 | 3343,04 | Trab. Conta Outrém 11% | 367,73 | 367,73 |
Setembro 2014 | 3066,71 | Trab. Conta Outrém 11% | 337,34 | 337,34 |
Outubro 2014 | 2119,56 | Trab. Conta Outrém 11% | 233,15 | 233,15 |
Novembro 2014 | 2097,16 | Trab. Conta Outrém 11% | 230,68 | 230,68 |
Dezembro 2014 | 4399,98 | Trab. Conta Outrém 11% | 483,99 | 483,99 |
Janeiro 2015 | 735,20 | Trab. Conta Outrém 11% | 80,87 | 80,87 |
Total | 46.757,97 | Trab. Conta Outrém 11% | 5.143,36 | 5.143,36 |
9. Os Arguidos na qualidade de entidade patronal dos seus trabalhadores, sabiam que estavam obrigados a entregar à Segurança Social as quantias monetárias resultantes dos descontos efectuados nos salários dos seus empregados, até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que respeitava.
10. Todavia, os Arguidos não procederam à entrega ao Estado das contribuições legalmente imputáveis aos trabalhadores dentro do prazo legal referido em 7., nem nos 90 dias subsequentes.
11. Notificados os Arguidos para procederem ao pagamento das contribuições em divida à Segurança Social no prazo de 30 dias, nos termos do disposto no art. 105.°, n.º 4, al. b) do Regime Geral das Infracções Tributárias, não o fizeram.
12. A sociedade Arguida reteve e não entregou, até à presente data, à Segurança Social a quantia total de € 5.143,36 referente às deduções por si efectuadas a título de contribuições para a Segurança Social nas remunerações dos seus trabalhadores, a qual ingressou no acervo patrimonial da sociedade, tomando-se coisa sua.
13. Não obstante a sua situação de divida à Segurança Social, a sociedade arguida, continuou a laborar, a pagar vencimentos e a efectuar pagamentos a fornecedores.
14. Com a conduta descrita sabiam os Arguidos que eram responsáveis pelos pagamentos perante a Segurança Social das contribuições devidas pelos trabalhadores, as quais eram, para tanto, por si deduzidas e retidas dos seus salários.
15. No entanto, e apesar de conscientes desse seu dever, não efectuaram esses pagamentos a que estavam obrigados, antes introduzindo no acervo patrimonial da sociedade Arguida as quantias deduzidas das remunerações, as quais se apossaram para seu proveito próprio.
16. Agiu o Arguido, actuando em nome e no interesse da sociedade Arguida, sempre da mesma forma e repetindo as descritas condutas enquanto foram conseguindo, de modo idêntico de todas as vezes em que não efectuaram a entrega mensal das quantias devidas à Segurança Social.
17. Os arguidos agiram de modo consciente e voluntário, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade das suas condutas e tinham a liberdade necessária para se conformar com essa actuação.
18. O Arguido AAA, na qualidade de legal representante da sociedade Arguida, agiu da forma supra descrita para fazer face às dificuldades económicas sentidas pela sociedade Arguida, assim a mantendo no giro comercial.
19. O Arguido:
- é divorciado;
- encontra-se desempregado, auferindo mensalmente a quantia de € 504,00 a título de subsídio de desemprego;
- vive com a sua companheira em casa desta, nada pagando para o efeito;
- tem dois filhos maiores, a quem entrega mensalmente a quantia de € 200,00 a título de pensão de alimentos;
- foi declarado insolvente, tendo-lhe sido deferida a exoneração do passivo restante;
- é licenciado em gestão;
- não tem quaisquer antecedentes criminais registados.
20. A sociedade Arguida foi declarada insolvente, encontrando-se em liquidação.
21. A sociedade Arguida não tem quaisquer antecedentes criminais registados.
2. Factos não provados
Com interesse para a boa decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente:
a) Para tanto, deduziram do valor das remunerações pagas a todos os trabalhadores, o montante global de €36.169,08 (trinta e seis mil cento e sessenta e nove euros e oito cêntimos) referente às contribuições por estes legalmente devidas à Segurança Social.
O Tribunal não teve em consideração quaisquer factos constantes da contestação por os mesmos se revelarem conclusivos, de direito ou irrelevantes para a boa decisão da causa.
3. Motivação de facto
O Tribunal formou a sua convicção, para a determinação da matéria de facto dada como provada e não provada, na análise crítica e conjugada da totalidade da prova produzida, valorada à luz das regras de experiência comum, nos termos do disposto no artigo 127.º do Cód. Proc. Penal.
O Tribunal teve em consideração toda a prova documental junta aos autos, nomeadamente, a certidão do registo comercial da sociedade Arguida de fls. 7 a 21, os mapas de cotizações retidas e não pagas de fls. 5 e 6, as notificações efectuadas nos termos do disposto no artigo 105.º, do RGIT de fls. 75 e 77, os extractos de remunerações de fls. 127 a 141, a sentença de reclamação de créditos de fls. 280 a 287, a relação de créditos reconhecidos de fls. 289, os recibos de vencimento de fls. 163 a 200, de fls. 204 a 252, de fls. 330, de fls. 335 a 356, de fls. 360 a 367, de fls. 371 a 374, de fls. 378 e seguintes, de fls. 393 a 400, de fls. 401 a 439, de fls. 443 a 464 e de fls. 467 a 475, os requerimentos de fundo garantia salarial de fls. 335 a 356 e fls. 794 a 795, os requerimentos de retribuições em mora de fls. 382 389 e de fls. 324, a lista de pagamentos de fls. 873 verso, as situações dos planos prestacionais de fls. 874 a 879 e os detalhes de DUC de fls. 881 verso a 894.
O Tribunal ponderou as declarações do Arguido e o depoimento das testemunhas (…).
Os factos constantes em 1. e 2. resultaram provados com base no teor da certidão do registo comercial junta aos autos, cujo teor não se mostrou impugnado por qualquer elemento probatório.
No que concerne aos factos constantes em 3. e 4., o Tribunal teve em consideração as declarações prestadas pelo Arguido, que confirmou desempenhar funções de administrador na sociedade Arguida e que, nessa qualidade, tomava as decisões necessárias ao desenvolvimento da sua actividade, nomeadamente quanto ao pagamento dos salários aos trabalhadores da sociedade Arguida e às diligências inerentes ao mesmo, tal como o preenchimento e entrega mensal à Segurança Social das folhas de remuneração pagas e a dedução e entrega - em nome desta - do montante relativo às quotizações efectivamente deduzidas naquelas remunerações, nos termos e prazos legalmente previstos.
As declarações do Arguido mostraram-se corroboradas pelas testemunhas (…), todos trabalhadores da sociedade Arguida, que identificaram de forma espontânea e peremptória o Arguido como tendo sido o seu patrão, bem como pela testemunha (…), contabilista da sociedade Arguida, e pela testemunha (…), pai do Arguido.
De igual modo, relativamente ao facto constante em 5., o Tribunal teve em consideração as declarações prestadas pelo Arguido, que admitiu ter procedido à entrega das folhas de remunerações à Segurança Social, declarações essas que se mostraram corroboradas pelo teor da prova documental junta aos autos, nomeadamente, os extractos de remunerações de fls. 127 a 141.
O facto constante em 6. resultou provado com base no depoimento das testemunhas (…), que afirmaram de forma peremptória em sede de audiência de julgamento ter desempenhado funções na sociedade Arguida, tendo concretizado o período em que tal ocorreu, depoimentos estes que se mostram completados pelos recibos de vencimentos juntos aos autos a fls. 360 a 367, 467 a 475 e 330 bem como pelos extractos de remunerações de fls. 127 a 141.
A testemunha LO afirmou de forma assertiva que recebeu os seus salários até Março de 2015, tendo ficado em dívida quantias correspondentes a três salários e a subsídios. Tal depoimento é confirmado pelo teor da prova documental junta aos autos a fls. 335 e 336, nomeadamente o requerimento para pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho referentes às retribuições de Maio e Junho de 2015 e ao valor dos subsídios de férias e Natal dos anos de 2014 e 2015. O depoimento da testemunha mostra-se ainda compatível com o valor do crédito de € 710,23 que lhe foi reconhecido no âmbito dos autos de insolvência.
Concatenando todos os elementos probatórios produzidos nos autos, nomeadamente, o depoimento da testemunha LO, os recibos de vencimento juntos aos autos a fls. 337 a 356, o requerimento para pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho de fls. 335 e 336 e, bem assim, o valor do crédito que lhe foi reconhecido no âmbito dos autos de insolvência, o Tribunal não teve quaisquer dúvidas que as remunerações dos meses de Dezembro a 2013 a Janeiro de 2015 da referida testemunhas lhe foram pagas.
Pese embora a testemunha tenha referido que recebeu salários da BBB, considerando que da restante prova produzida nos autos resultou que os salários foram pagos pela BBB a partir do momento em que os trabalhadores passaram a prestar serviços para esta empresa, o que sucedeu a partir de meados do ano de 2015, o Tribunal considerou que os salários entre Dezembro de 2013 e Janeiro de 2015 foram pagos pela SA.
De igual modo, a testemunha SI afirmou peremptoriamente ter sempre recebido os seus salários, tendo apenas ficado com “subsídios em atraso”, que reclamou em sede própria. Concatenando o depoimento desta testemunha com os recibos de vencimento e os extractos de remunerações juntos aos autos, o Tribunal ficou convencido que o Arguido, na qualidade de legal representante da sociedade Arguida, procedeu ao pagamento das retribuições devidas ao referido trabalhador entre Dezembro de 2013 e Setembro de 2014.
A testemunha TS referiu ter desempenhado funções na sociedade arguida entre 2008 e 2015, não tendo apenas recebido o seu vencimento no último ano. Mais concretizou que tem “dois salários em atraso”, o que se mostra compatível com o valor do crédito que lhe foi reconhecimento no âmbito dos autos de insolvência. O seu depoimento mostra-se ainda confirmado pelo teor da prova documental junta aos autos a fls. 325 e 326, nomeadamente a comunicação de suspensão do contrato de trabalho por não pagamento pontual da retribuição referente a parte do mês de Março e do mês de Abril de 2015.
Concatenando o depoimento da testemunha TS com toda a prova documental junta aos autos, o Tribunal ficou convencido que entre Dezembro de 2013 e Dezembro de 2014 a sociedade Arguida procedeu ao pagamento da retribuição devida à referida trabalhadora.
Por fim, a testemunha TA afirmou assertivamente que não ficou com “salários em atraso”, motivo pelo qual não reclamou créditos. Atento o depoimento peremptório desta testemunha, o Tribunal entendeu ter ficado provado que entre Dezembro de 2013 e Julho de 2014 a sociedade Arguida procedeu ao pagamento da retribuição à referida trabalhadora.
Atentos os referidos elementos probatórios, que não se mostraram contrariados por quaisquer outros, o Tribunal decidiu dar como provado o facto constante em 7.
Os factos constantes em 8., 10. e 12. resultaram provados com base no teor do depoimento das testemunhas (…), ambos funcionários da Segurança Social, que procederam ao apuramento dos valores em dívida.
A testemunha (…) – que depôs de forma objectiva e imparcial – afirmou peremptoriamente que os valores declarados nas folhas de remunerações entregues à Segurança Social não foram pagos, não tendo sido produzido qualquer elemento probatório que infirme o depoimento da referida testemunha.
Foi efectivamente junto aos autos uma lista de pagamentos efectuados pela sociedade Arguida. Tais pagamentos foram imputados aos respectivos planos prestacionais conforme resulta de fls. 874 verso a 879, planos esses que foram sucessivamente incumpridos. Ora, analisados os detalhes de DUC, verifica-se que esses pagamentos foram imputados ao pagamento de valores em dívida referentes ao ano de 2012, ou seja, a período anterior ao aqui em discussão. Assim sendo, tais pagamentos não se mostram susceptíveis de infirmar o depoimento da testemunha (…), já que não dizem respeito ao período aqui em dívida.
Considerando as funções desempenhadas pelo Arguido bem como as suas habilitações literárias, dúvidas não restam que o mesmo sabia que estava obrigado a entregar à Segurança Social as quantias monetárias resultantes dos descontos efectuados nos salários dos seus empregados, até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que respeitava, motivo pelo qual se deu como provado o facto constante em 9.
O facto constante em 11. resultou provado com base no teor das notificações efectuadas aos Arguidos e juntas aos autos a fls. 77 e 79.
Aqui chegados resulta da factualidade dada como provado que, entre Dezembro de 2013 e Janeiro de 2015, foram sucessivamente pagos os salários dos referidos trabalhadores e não entregues os valores devidos a título de contribuições à Segurança Social. Analisada tal factualidade à luz das regras da lógica e da experiência comum, apenas se pode concluir que o Arguido não procedeu à entrega dos valores devidos à Segurança Social, pese embora a sociedade Arguida dispusesse de dinheiro para o efeito, que utilizou para proceder ao pagamento dos salários devidos aos trabalhadores nos meses subsequentes.
Ao agir desta forma apenas se pode concluir que o Arguido, na qualidade de legal representante da sociedade Arguida, reteve a quantia total de € 5.143,36 referente às deduções por si efectuadas a título de contribuições para a Segurança Social nas remunerações dos trabalhadores, motivo pelo qual se deu como provado o facto constante em 12.
O facto constante em 13. resulta do que se deixou exposto conjugado com as declarações do Arguido, que admitiu que a sociedade só deixou de laborar em Junho de 2015.
Os factos constantes em 14. a 17. resultaram provados da conjugação da factualidade dada como provada com as regras da experiência comum e da lógica.
Com efeito, considerando as funções efectivamente exercidas pelo Arguido e, bem assim, as suas habilitações literárias, conforme declarado pelo mesmo em sede de audiência de julgamento, tinha conhecimento dos deveres que lhe competiam, nomeadamente que se encontrava obrigado a deduzir das remunerações base pagas aos trabalhadores da empresa em causa as contribuições devidas à Segurança Social, contribuições estas que deviam ser entregues ao Instituto de Gestão Financeira do Instituto da Solidariedade e Segurança Social.
Destarte, sabendo que tinha que entregar as quantias deduzidas das remunerações base pagas aos trabalhadores da empresa e ao não entregar à Segurança Social tais quantias monetárias nos prazos legalmente previstos, pese embora continuasse a proceder ao pagamento dos salários devidos aos trabalhadores, apenas se pode concluir que o Arguido quis agir da forma descrita, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, motivo pelo qual se deram como provados os factos constantes em 14. a 17.
Quanto ao facto constante em 18., consideraram-se as declarações do Arguido quanto às dificuldades financeiras sentidas pela sociedade Arguida, que se mostraram corroboradas pela documentação junta aos autos, nomeadamente a sentença de declaração de insolvência, a lista de créditos reconhecidos e o depoimento das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento.
Relativamente às condições socioeconómicas do Arguido, o Tribunal teve em consideração as suas declarações por se mostrarem sinceras e, como tal, credíveis.
Relativamente à situação económica da sociedade Arguida, atendeu à sentença de declaração de insolvência junta aos autos.
Quanto aos antecedentes criminais dos Arguidos, o Tribunal teve em consideração os certificados de registo criminal dos mesmos juntos aos autos.
O facto constante em a) resultou não provado em face da insuficiência de prova.
Da prova documental junta aos autos resulta que foram remetidas à Segurança Social as declarações de remunerações.
É verdade que, na ausência de contra-indícios, as declarações de remunerações remetidas pelo próprio arguido/contribuinte á Segurança Social - declarações onde constam discriminados os trabalhadores do empregador/arguido, os montantes dos salários pagos e as contribuições retidas - constituem prova (indirecta) bastante de que tais remunerações foram pagas e deduzidas as contribuições devidas à Segurança Social. – Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 04/06/2013, processo n.º 952/09.5TALLE.E1, disponível in www.dgsi.pt.
No entanto, produzida a prova, resultaram provados contra-indícios.
Antes de mais, o Arguido afirmou de forma peremptória que foram intimados pela Segurança Social, na sequência de uma acção inspectiva, a remeter as folhas de remuneração em causa, independentemente de os salários serem ou não efectivamente pagos. Tais declarações mostraram-se corroboradas pelo depoimento da testemunha (…), contabilista da sociedade Arguida, e pela própria inspectora da Segurança Social, a testemunha (…).
Ora, o Arguido afirmou, em suma, que, a partir de 2013, houve um incumprimento generalizado, sendo que, no início, os salários foram pagos com atrasos, e, a partir de Junho de 2015, a sociedade Arguida deixou de ter actividade, tendo os salários dos trabalhadores sido pagos pela sociedade BBB ou mediante a entrega de material de construção civil.
As declarações do Arguido mostraram-se corroboradas pelo depoimento das testemunhas (…), todos trabalhadores da sociedade arguida.
Estas testemunhas referiram todas não terem recebido integralmente os seus salários, não tendo sido capazes de concretizar os salários efectivamente pagos pela SA. mediante transferência bancária, sendo certo que os elementos probatórios produzidos nos autos se mostram insuficientes para lograr apurar quais os vencimentos efectivamente pagos a esses trabalhadores.
Na verdade, no âmbito do processo de insolvência, foram reconhecidos créditos laborais às testemunhas (…). No entanto, não se logrou apurar a que retribuições diziam respeito tais créditos, na medida em que as respectivas reclamações de crédito não foram juntas aos autos, apesar de solicitadas, ou o Senhor Administrador de Insolvência não possuir tal informação.
Por outro lado, as testemunhas (…) afirmaram ter acertado contas com a sociedade Arguida mediante a entrega de material de construção.
Por fim, as testemunhas (…) afirmaram que os seus salários foram pagos pela BBB a partir de 2015, data em que passaram a desempenhar funções na BBB, pese embora ainda fossem formalmente trabalhadores da SA..
Concatenando os referidos elementos probatórios, o Tribunal entendeu que a prova produzida era insuficiente para se afirmar de forma indubitável quais os salários efectivamente pagos mediante transferência bancária pela SA. a estes trabalhadores, motivo pelo qual se deu como não provado o facto constante em a).
O mesmo se dirá quanto ao vencimento auferido pelo Arguido enquanto membro do Conselho de Administração.
Ora, vigorando no sistema penal português o princípio da presunção de inocência do Arguido (vide art. 32º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa) e tendo presente que, para a condenação na prática de um crime é impreterível que se forme no julgador um juízo de certeza quanto à pratica dos factos, temos que em face dos elementos probatórios supra descritos a prova não se mostraria suficientemente consistente e firme para dar como provado o facto constante em a).
4. Aspecto Jurídico da causa
4.1 Enquadramento jurídico-penal
Apurado o quadro factual com interesse para a decisão da causa, importa subsumi-lo ao respectivo enquadramento jurídico, apurando, designadamente, se a conduta dos Arguidos preenche ou não um crime de abuso de confiança contra à Segurança Social, sob a forma continuada, previsto pelo artigo 107.º, e punido pelo artigo 105.º, n.ºs 1 a 5, com referência aos artigos 6.º e 7.º. todos do RGIT, e com referência ao disposto no artigo 30.º, n.º 2, do Cód. Penal, e ainda, no que concerne à sociedade arguida, artigo 7.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias.
Comete um crime de abuso de confiança contra a segurança social as entidades empregadoras que, tendo deduzido ao valor das remuneração devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social (cfr. artigo 107.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias).
A referida norma visa uma dupla tutela: por um lado, a norma penal procura proteger interesses patrimoniais da Segurança Social, mas, por outro lado, visa reforçar valores e deveres patrimoniais do sujeito passivo para com a administração tributária (transparência e verdade fiscais), já que se pretende que aquele assuma uma posição de substituto tributário – Neste sentido, Carlos Teixeira e Sofias Gaspar, in Comentário das Leis Penais Extravagantes, Volume II, Universidade Católica Editora, 2011, página 475.
O tipo objectivo preenche-se com a conduta de não entrega, em prazo estabelecido, dos valores deduzidos das remunerações de trabalhadores e membros dos órgãos sociais, legalmente devidos, pelo que o tipo legal assenta numa omissão pura.
Os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária (cfr. artigo 105.º, n.º 7, ex vi do artigo 107.º, n.º 2, do Regime Geral das Infracções Tributárias).
Esta infracção tributária considera-se praticada na data em que termina o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários (cfr. art. 5.º, n.º 2 do RGIT).
Em face da alteração introduzida pela Lei 68-A/2008 no artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, foi suscitada a questão de saber se o limiar de € 7.500,00 também se aplica ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, que se caracteriza por ser um tipo dependente do crime de abuso de confiança fiscal.
Tal questão foi definitivamente resolvida pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2010, de 23/9, que decidiu que “a exigência do montante mínimo de (euro) 7500, de que o n.º 1 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias – RGIT (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, e alterado, além do mais, pelo artigo 113.º, da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro) faz depender o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, não tem lugar em relação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no artigo 107.º, n.º 1, do mesmo diploma”.
Para o preenchimento do tipo, deverão ainda estarem preenchidas as condições de punibilidade previstas no artigo 105.º, n.º 4, ex vi do disposto no artigo 107.º, n.º 2, ou seja, (i) deverão ter decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação tributária; (ii) a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
Quanto ao elemento subjectivo, o tipo legal exige o dolo em qualquer uma das suas modalidades, tendo deixado de ser exigível uma intenção de apropriação.
Nos termos do artigo 6.º, n.º 1 do RGIT, quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, será punido mesmo quando o tipo legal de crime exija: a) determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado; b) que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado.
O artigo 7.º, n.º 1 e 3 do RGIT, por seu turno, estabelece que “as pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo, sendo que a responsabilidade criminal destas entidades não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes”.
No que concerne a responsabilidade criminal das pessoas colectivas, importará ainda ter em conta o entendimento jurisprudencial no sentido de que a pessoa colectiva pode ser responsabilizada independentemente da condenação ou absolvição dos seus agentes.
É verdade que a responsabilidade criminal da pessoa colectiva exige o nexo de imputação do facto a um agente da pessoa colectiva, que será aquele que nela exerça liderança ou um seu subordinado nas condições prescritas no artigo 11.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Cód. Penal. Mas, a responsabilidade criminal da pessoa colectiva não exige a responsabilização do seu agente, bastando que seja possível estabelecer e demonstrar o nexo de imputação do facto à pessoa física, independentemente de posterior condenação desta. Assim sucederá nos casos em que não é possível determinar qual, de entre vários, é o agente responsável pelos factos integrantes do crime; quando se sabe que a responsabilidade cabe a um dos administradores da sociedade, mas não é possível precisar a qual deles. – Neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26/06/2012, processo n.º 60/09.9TAVVC.E, disponível in dgsi.pt.
Nestes termos, tem sido entendido que, preenchidos os requisitos exigidos legalmente para a imputação do crime em seu nome e no seu interesse à pessoa colectiva, pode esta ser condenada, independentemente da condenação ou absolvição dos seus agentes.
Feitas estas considerações passemos a analisar a conduta dos arguidos. * Atenta a factualidade dada como provada, resulta evidente que se encontram preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do tipo-de-ilícito em causa.
Na verdade, no período compreendido entre Dezembro de 2013 e Janeiro de 2015, o Arguido, na qualidade de presidente do Conselho de Administração da sociedade Arguida, não entregou o valor correspondente às contribuições descontadas das remunerações pagas aos trabalhadores ao seu serviço, quantias que eram devidas à Segurança Social, no valor de € 5.143,36, tendo tal montante sido usado em seu proveito e da sociedade Arguida.
O Arguido sabia que tais montantes eram pertença da Segurança Social e que lhe deviam ser entregues, mas agiu como agiu, com o concretizado propósito de se apossar dos montantes globais acima indicados, em proveito próprio, não ignorando que os mesmos não lhe pertenciam e que a sua posição era a de assegurar, enquanto mero depositário, a sua detenção para ulterior entrega à Segurança Social, lesando, dessa forma, patrimonialmente esta entidade. O Arguido agiu, quer em seu nome, quer em nome da sociedade que representa, de forma livre, deliberada, e consciente, sabendo, ainda, que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
As condições de punibilidade previstas no n.º 4 do artigo 105.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias, encontram-se igualmente verificadas, na medida em que os Arguidos foram notificados, nos termos e para os efeitos do disposto pelo artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do Regime Geral das Infracções Tributárias, para proceder ao pagamento dos montantes considerados em dívida pelo Instituto de Segurança Social, acrescidos dos respectivos juros de mora, no prazo de 30 dias a contar da notificação, o que não vieram a fazer.
Refira-se que a notificação a que alude o artº 105º, nº 4, al. b), do R.G.I.T., não tem que conter os valores exactos a pagar. Aquilo que o legislador pretendeu foi que se concedesse ao sujeito tributário uma derradeira oportunidade de se eximir à responsabilidade criminal, procedendo ao pagamento das quantias devidas e da coima aplicável, sobre ele incidindo o ónus de se inteirar dos valores exatos em dívida junto da autoridade tributária. – Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23/02/2021, processo n.º 1129/18.4T9MTA-A.E1, disponível in www.dgsi.pt.
Na verdade, a não se entender assim, sempre que da prova produzida resultasse uma redução do valor considerado em dívida na acusação, haveria que concluir no sentido da não verificação da condição objetiva de punibilidade, o que seria absurdo. Aquilo que o legislador pretendeu foi que se concedesse ao sujeito tributário uma derradeira oportunidade de se eximir à responsabilidade criminal, procedendo ao pagamento das quantias devidas e da coima aplicável, sobre ele incidindo o ónus de se inteirar dos valores exatos em dívida junto da autoridade tributária. Ao arguido que esteja interessado em efetuar o pagamento caberá diligenciar junto dessa entidade pelo apuramento do montante exato em dívida e do total a pagar, sendo certo que o valor das prestações retidas e não pagas serão do seu conhecimento, porque as declarou, o mesmo sucedendo com eventuais pagamentos parcelares que, entretanto, tenha efetuado. Daí que seja defensável o entendimento de que a notificação em apreço não se destina a dar conhecimento ao sujeito tributário, com exatidão, das prestações ainda em dívida, uma vez que ele próprio delas terá conhecimento, mas sim conceder-lhe uma nova oportunidade para pagar, agora já com os juros de mora respetivos e o valor da coima aplicável, a fim de se eximir à sua responsabilidade criminal. Decisivo para a verificação da condição objetiva de punibilidade é que o arguido não venha a ser condenado por falta de pagamento de prestações tributárias em relação às quais não lhe foi dada a oportunidade de proceder à respetiva regularização, o que, manifestamente, não é o caso dos autos. Aliás, importa realçar que a condição de punibilidade não reside, em si mesma, no conteúdo concreto da notificação efetuada pela entidade tributária, mas sim na atitude que o contribuinte toma perante ela, liquidando ou não as quantias em dívida. – idem.
Assim, é entendimento jurisprudencial que a existência de uma disparidade entre os valores constantes na notificação efectuada nos termos do artigo 105º/4 al. b) do RGIT e os que foram, a final, considerados relevantes para efeitos do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, não invalida que se tenha por verificada a condição objectiva de punibilidade. – Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6/01/2010, processo n.º 130/03.7IDAVR.P1, disponível in www.dgsi.pt.
A não ser assim, sempre que da prova produzida resultasse uma redução do valor considerado em dívida na acusação, haveria que concluir no sentido da não verificação da condição objectiva de punibilidade, o que não pode merecer acolhimento. – idem.
Pelo exposto, e sufragando o entendimento que se deixou explanado, conclui-se que a circunstância de o valor apurado ser inferior ao constante da notificação efectuada nos termos do artigo 105.º, n.º 4, do RGIT é irrelevante.
Os Arguidos alegam a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 105º, nº 4, alínea b), do RGIT, no sentido em que a notificação aí prevista não tem de liquidar os montantes a pagar pelo contribuinte, por violação dos princípios da legalidade, proporcionalidade, separação de poderes e igualdade e do direito fundamental a um processo equitativo (artigos 2º, 13º, 18º, nº 2, 20º, nº 4 e 29º, nº 1 todos da Constituição da República Portuguesa).
Resulta expressamente do Acórdão nº 151/2009, do Tribunal Constitucional, publicado em DR nº 95/2009, Série II de 2009-05-2018, “não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 105º, nº 4, alínea b), do Regime Geral de Infracções Tributárias, segundo a qual pode ser criminalmente punido quem tenha sido notificado para pagar uma prestação tributária acrescida dos respectivos juros sem que seja indicado o montante concreto desses juros nem a forma de os calcular”. Assim, relativamente ao concreto montante dos juros já existe Jurisprudência do Tribunal Constitucional em julgar de acordo com a Constituição da República Portuguesa, a não determinação dos juros em dívida. Por outro lado, conforme supra, referido, impossível resulta face ao disposto no artigo do artigo 27º, do RGCO, a determinação concreta da coima a aplicar, pelo que face a tal impossibilidade manifesta, não se mostra violado qualquer princípio constitucionalmente tutelado ou norma da Constituição da República Portuguesa. – Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23/02/2021, processo n.º 1129/18.4T9MTA-A.E1, disponível in www.dgsi.pt.
Os Arguidos invocam ainda a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 105º, nº 4, alínea b), do RGIT, no sentido em que não prevê a concessão ao Arguido do direito a audiência prévia relativamente ao valor da coima aplicável e bem assim aos elementos da infracção contraordenacional, obrigando-o a acatar o valor indicado para que se possa isentar do processo crime.
A notificação a que se reporta o artigo 105º, nº 4, al. b), do RGIT, é realizada no âmbito do processo penal e não são aplicáveis as disposições e exigências do processo administrativo, mormente, o direito de audiência prévia. Acresce que a mencionada notificação, nos termos e para os efeitos nela previstos, trata-se de uma condição de punibilidade do processo crime, a qual, no fundo, configura uma segunda oportunidade dos devedores de efectuarem o pagamento do imposto em dívida, acrescida do valor da coima aplicável e juros, e, em contrapartida, obstar à sua punição penal. Pelo que não vislumbramos que tal interpretação viole as garantias de defesa ou que não se mostrem asseguradas e/ou que o processo não seja equitativo. Assim, (…), por legalmente não ser admissível a audiência prévia dos arguidos, para a verificação da condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105º, nº 4, alínea b), do RGIT, não resulta violado qualquer princípio constitucionalmente tutelado ou norma da Constituição da República Portuguesa. – idem.
Invocam ainda os Arguidos a inconstitucionalidade material e orgânica da própria condição objectiva de punibilidade.
O crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelo artigo 105º, nº 1, “ex vi” do disposto no artigo 107º, do RGIT, corresponde a um crime omissivo puro, pois o facto típico previsto na norma incriminadora da omissão da entrega da prestação para a Segurança Social, cuja prática se consuma na data em que termina o prazo para cumprimento da obrigação tributária, por força no artigo 5º, nº 2, RGIT, “as infracções tributárias omissivas consideram-se praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários”. A notificação prevista no artigo 105º, nº 4, alínea b) do RGIT, constitui uma condição objectiva de punibilidade, conforme entendimento Jurisprudencial uniforme, não integrando os elementos típicos do crime de abuso de confiança à Segurança Social, não desqualificando a conduta típica, mas, apenas, eliminando a sua punibilidade penal. Assim, também nesta perspectiva, não temos como violado qualquer princípio constitucionalmente tutelado ou norma da Constituição da República Portuguesa. – idem.
Em face de tudo o que se deixou exposto, não se julgam verificadas as invocadas inconstitucionalidades.
Posto isto, importa agora apurar se, atenta a factualidade dada como prova, a conduta dos arguidos é susceptível de integrar a figura do crime continuado.
A figura do crime continuada foi “incentivada por motivos ou finalidades de ordem prática, em especial com o intuito de evitar o rigor das penas em caso de acumulação de crimes” – Neste sentido, Manuel Cavaleiro Ferreira, Lições…, Parte Geral, I, Editorial Verbo, 1988, página 396 e seguintes.
O crime continuado vem previsto no artigo 30.º, n.º 2 do Cód. Penal nos seguintes termos: “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
“Nos casos de crime continuado existe um só crime porque, verificando-se embora a violação repetida do mesmo tipo legal ou a violação plúrima de vários tipos legais de crimes, a culpa está tão acentuadamente diminuída que um só juízo de censura, e não vários, é possível formular” – Neste sentido, Maia Gonçalves, Código Penal Português, Anotado e Comentado, 15.ª edição, 2002, Almedina, páginas 142 e 143.
Do referido preceito legal extrai-se que o crime continuado pressupõe:
- a realização plúrima de um mesmo tipo de crime ou de vários outros tipos, desde que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico;
- a homogeneidade de condutas do agente;
- a lesão do mesmo bem jurídico;
- a unidade de dolo, ou seja, a existência de uma linha psicológica continuada;
- a existência de uma situação exterior ao agente que facilite a execução dos ilícitos, assim diminuindo a sua culpa.
Posto isto, apreciemos o caso concreto.
Atenta a factualidade dada como provada, resulta evidente a existência de uma realização plúrima de crimes – já que, no período compreendido entre Dezembro de 2013 e Janeiro de 2015, o Arguido, na qualidade de presidente do Conselho de Administração da sociedade Arguida, não entregou o valor correspondente às contribuições descontadas das remunerações pagas aos trabalhadores ao seu serviço, quantias que eram devidas à Segurança Social – que protegem o mesmo bem jurídico – os interesses patrimoniais da Segurança Social.
Resulta igualmente claro que a execução de tais crimes foi levado a cabo pelo Arguido de uma forma homogénea – omissão de entrega -, com renovação da resolução criminosa sempre que a ocasião se proporcionou.
Por fim, ficou provado que o Arguido agiu da forma descrita para fazer face às dificuldades económicas sentidas pela sociedade Arguida, assim a mantendo no giro comercial, e aproveitando o facto de a Segurança Social não reagir ou sancionar atempadamente, por qualquer forma, as omissões de entrega das quantias retidas, que se iam sucedendo.
Assim, considera-se que a ausência de qualquer controlo por parte da entidade credora dessas quantias constituiu uma situação exterior ao Arguido que lhe facilitou a execução do ilícito, diminuindo consideravelmente a sua culpa.
Nestes termos, conclui-se que os Arguidos praticaram, na forma continuada, um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelos artigos 107.º, n.º 1 e 105.º, n.º 4, alíneas a) e b) e 7, ex vi do artigo 107.º, e ainda, no que concerne à sociedade arguida, artigo 7.º, n.º 1 e 3, todos do Regime Geral das Infracções Tributárias, bem como no artigo 30.º, n.º 2, do Cód. Penal.
(…).»
2.3. Apreciação do mérito dos recursos
2.3.1. Do recurso do despacho interlocutório
2.3.1.1. Da nulidade da acusação e da pronúncia
Invocam os recorrentes a nulidade da acusação e da pronúncia que a acolheu, na medida em que, em seu entender, inexiste, em tais peças processuais, uma narração factual que possa satisfazer os requisitos exigidos pela al. b) do n.º 3 do artigo 283º do CPP.
Em ordem a fundamentar a arguida nulidade, sustentam os recorrentes que o libelo contém juízos imprecisos, conclusivos, sem concretização das exatas ações imputadas aos Arguidos, não permitindo a captação a que concretos trabalhadores, remunerações e taxas contributivas se refere, defendendo que ao admitir-se a dedução de acusação penal através de tabelas, com valores totais (não parcelares) e não nominativos, o julgador está a postergar o prescrito no artigo 283, n.º 3, al. b), do CPP, porquanto este inciso prescreve uma narrativa completa da factualidade imputada ao arguido.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de que bem andou o Tribunal a quo ao não apreciar o mérito da invocada nulidade da acusação pública, tendo tal questão já sido apreciado pelo Mm.º Juiz de Instrução Criminal, em sede de despacho de pronúncia, estava o tribunal impedido de apreciar a questão prévia suscitada na contestação apresentada, pelo menos, em fase de saneamento dos autos. Em todo o caso, manifesta o MP, que a acusação contém a descrição factual de todos os elementos essenciais do tipo legal, incluindo a notificação do artigo 105.º, n.º 4 do RGIT (não exigindo a lei uma descrição exaustiva), inexistindo qualquer impedimento do direito de defesa por parte dos arguidos tendo em conta o disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.
Vejamos:
Esta questão, no que toca à acusação, já foi objeto de apreciação, como questão prévia, no despacho de pronúncia, tendo sido indeferida a arguida nulidade da acusação, com os fundamentos que aqui se renovam sem necessidade de considerações complementares.
Ali se consignou o seguinte:
«(…)
O objeto do processo é delimitado pela acusação ou pelo RAI, sendo que este último configura uma verdadeira acusação (artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), ex vi artigo 287.º, n.º 2, ambos do CPP). Em obediência ao princípio da vinculação temática, é imprescindível que a acusação ou o RAI do assistente descrevam, ainda que de modo sintético, sob pena de nulidade, as razões de facto e de direito pelas quais fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como as indicações das disposições legais aplicáveis (cf. artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal): só tendo conhecimento de tais razões (de facto e de direito) o arguido poderá exercer cabalmente os seus direitos de defesa.
In casu, da leitura e análise da acusação pública deduzida não se extrai que a mesma omita factos essenciais. Pelo contrário, entendemos que da acusação se retiram razões de facto e de direito capazes de enquadrar e configurar os diversos elementos típicos do crime imputado aos arguidos, pelo que a acusação não viola o disposto no n.º 3 do artigo 283.º do CPP. Não se verifica, por isso, existir qualquer nulidade da acusação a apontar.
Indefere-se a requerida nulidade.»
O artigo 310º, n.º 1, do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, estabelece a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283º, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias e incidentais.
E ainda que seja objeto de controvérsia na doutrina e na jurisprudência, a questão da (des)conformidade com a Constituição, mormente, com as garantias de defesa do arguido, consagradas no artigo 32º, n.º 1, da CRP, a irrecorribilidade do despacho de pronúncia que aprecie nulidades e outras questões prévias ou incidentais[1], não cabendo aqui tomar posição em tal querela, por a questão não ser colocada à nossa apreciação, entendemos ser isento de dúvida que apenas será passível de integrar a nulidade da acusação ou do despacho de pronúncia, com fundamento na omissão da narração de factos, nos termos previstos no artigo 283º, n.º 3, al. b), aplicável ao despacho de pronúncia, por força do estatuído no artigo 308º, n.º 2, ambos do CPP, a não narração de factos passíveis de integrar os elementos típicos objetivos e subjetivos de um determinado crime, cuja prática é imputada ao(s) arguido(s).
Ora, lido o libelo acusatório, sendo os factos nele narrados reproduzidos no despacho de pronúncia, não se vislumbra que aí se omitam factos essenciais à caracterização do crime de abuso de confiança contra a segurança social cuja prática é imputada aos arguidos, antes dele decorrendo, com suficiência bastante, elementos de facto suscetíveis de enquadrar a descrita conduta dos arguidos, no crime em causa, não se verificando, por isso, qualquer nulidade, seja da acusação, seja da pronúncia.
Na verdade, tal como bem faz notar o Ministério Público, na resposta ao recurso, as deficiências apontadas pelos recorrentes, nesta sede, assentam em factualidade meramente acessória à acusação – como a reportada às concretas funções de gerência do arguido AAA, que não se mostram descritas, ou o dia e lugar em que o mesmo arguido foi notificado nos termos do artigo 105º, n.º 4 do RGIT – a qual, contudo, em nada contende com os direitos de defesa dos arguidos e a garantia de um processo justo e equitativo, porquanto não litigiam com a essencialidade do que é assacado aos arguidos, no que toca à possibilidade de virem a ser condenados pelo crime em causa.
Assim sendo, concluindo-se pela inexistência da invocada nulidade, ter-se-á de concluir pela improcedência, nesta parte, do recurso interlocutório interposto pelos arguidos.
2.3.1.2. Da omissão da condição de punibilidade prevista no artigo105º, n.º 4, al. b), do RGIT
Alegam os recorrentes – o que reiteram no recurso interposto da sentença – que não foi cumprida a condição objetiva de punibilidade prevista no artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT.
São vários os fundamentos invocados pelos arguidos/recorrentes – quer no recurso interlocutório, quer no recurso da sentença, razão pela qual serão apreciados em conjunto, até porque tal matéria foi também avaliada pelo tribunal recorrido em sede do despacho recorrido e na decisão condenatória –, para sustentarem o entendimento de que a condição objetiva de punibilidade, decorrente do artigo 105º, nº 4, al. b) do RGIT não se mostra verificada.
Antes de passarmos a apreciar cada uma das vertentes em que a enunciada questão é colocada pelos recorrentes, importa ter presente o artigo 105º do RGIT, que, na parte que aqui releva, dispõe que:
«(…)
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
(…).»
O Supremo Tribunal de justiça, no Acórdão n.º 6/2008, fixou jurisprudência no sentido de que a exigência prevista na al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, na redação dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro, configura uma condição objetiva de punibilidade[2].
A referenciada condição objetiva de punibilidade – do crime de abuso de confiança fiscal e, por força da remissão do n.º 2 do artigo 107º do RGIT, também do crime de abuso de confiança contra a segurança social – consubstancia-se na falta de pagamento da prestação tributária ou contributiva, em dívida que foi declarada – à AT ou à Segurança Social – mas que não foi paga, acrescida dos juros devidos e da coima aplicável, no prazo de 30 dias, após a notificação efetuada para o efeito.
Tal notificação destina-se a proporcionar ao(s) arguido(s) – que tendo efetuado a comunicação da prestação à AT ou à Segurança Social, através da correspondente declaração, não tenha efetuado o respetivo pagamento, nem no prazo legal para o efeito, nem no prazo de 90 dias previsto na al. a) do n.º 4 do artigo 104º do RGIT – uma derradeira possibilidade de proceder(em) ao pagamento da prestação em dívida, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após ter(em) sido notificado(s) para o efeito.
Posto isto, passamos, então, a apreciar, cada uma das vertentes em que a questão ora em apreciação é colocada pelos recorrentes.
Invoca o arguido/recorrente, que não foi notificado, a título pessoal e individual, enquanto pessoa singular, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105º, n.º 4, al. b), aplicável ex vi do artigo 107º, n.º 2, ambos do RGIT, tendo-o sido apenas como representante da sociedade arguida, pessoa coletiva, pelo que, quanto ao arguido, não se mostra verificada a referenciada condição objetiva de punibilidade.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não assistir razão ao recorrente, resultando do comprovativo de receção, assinado pelo ora recorrente e que se mostra junto aos autos, que o mesmo foi notificado enquanto representante da sociedade e pessoalmente, nos termos do artigo 105º, n.º 4 do RGIT.
Vejamos:
Verifica-se do teor das notificações juntas a fls. 295 e 296 dos autos, assinadas pelo arguido, que o mesmo foi notificado, quer enquanto represente legal da sociedade arguida, quer pessoalmente, para pagamento do valor em dívida, nos termos do disposto no artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT, em atento o estatuído nos artigos 6º e 7º, n.º 3, do RGIT.
Assim sendo, tendo o arguido AAA sido notificado, quer na qualidade de legal representante da sociedade arguida, quer a título pessoal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105º, nº 4 al. b) do RGIT, é inequívoco que, nesta parte, não assiste razão aos recorrentes.
Alegam, por outro lado, os recorrentes que o Instituto da Segurança Social, que ordenou as notificações em causa, não tem competência para o efeito, cabendo a mesma ao Ministério Público, por não ter sido expressamente delegada pelo Ministério Público a atribuição dessa competência, mas tão somente a da “realização das diligências probatórias”, nos termos do disposto no artigo 40º, n.º 2, do RGIT.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de que também neste ponto não assistir razão aos recorrentes, manifestando o entendimento de que tendo o MP delegado no ISS o poder para realização de todas as diligências probatórias genericamente, o que inclui a prática de todos os atos que não estejam expressamente previstos no artigo 270º, n.º 2 do código de Processo Penal ou em qualquer outra legislação, pelo que, inexistindo qualquer norma que confira a esta autoridade judiciária a competência exclusiva para a prática de tal ato, estava incluído na delegação de poderes para proceder a tal notificação, caso se demonstrasse como necessário para a prossecução penal dos recorrentes.
Vejamos:
O Tribunal Constitucional, no Ac. n.º 531/2008, de 11/11/2008[3], entendeu que «Competente para determinar a notificação em causa é a entidade titular do procedimento ou do processo. Administração, Ministério Público, Tribunal de Instrução Criminal ou Tribunal de Julgamento, consoante a fase em que ele se encontre quando surge a necessidade de proceder a essa notificação (…).»
Assim, no caso dos autos, sendo as notificações de que se trata, para efeitos do disposto no artigo 105º, nº 4 al. b) do RGIT, efetuadas na fase de inquérito, tendo o Ministério Público delegado, genericamente, no NIC dos Serviços de Fiscalização do Instituto da Segurança Social, I.P., nos termos do disposto nos artigos 40º, n.º 2 e 41º, n.º 1, al. c), do RGIT, a realização de inquérito pelos factos participados, nessa delegação de competência, como bem faz notar o MP, na resposta ao recurso, estão naturalmente incluídas as notificações em causa, até porque em nenhum comando legal é atribuída a competência exclusiva da autoridade judiciária para a prática desse ato.
O ISS tinha, pois, competência para efetuar a notificação aos arguidos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT, por a prática desse ato estar abrangida, na delegação de competência, efetuada, em termos genéricos, pelo Ministério Público.
Soçobra, por isso, também este fundamento do recurso.
Invocam, ainda, os recorrentes que as notificações que lhes foram efetuadas pelo ISS, I.P., nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105º, n.º 4, al. b) do RGIT, não contêm todos os elementos estabelecidos na lei: capital da prestação alegadamente em falta, juros de mora e valor da coima, existindo erro na indicação do valor da dívida a cujo pagamento deviam proceder, constando de tais notificações o valor de €36.169,08, quando, se veio a provar, em julgamento, que o valor da dívida se fixava em €5.143,36 e não sendo indicados nas referidas notificações, nem o valor dos juros, nem da coima aplicável.
Entendem os recorrentes que a admitir-se a validade/regularidade das notificações em causa, nessas condições, levaria a que o(s) arguido(s) tivesse(m) de se enlear em diligências junto da Segurança Social, que poderiam revelar-se infrutíferas, no prazo improrrogável e imperativo de 30 dias, abrindo-se, desse modo, na falta de resposta célere dos serviços, à Administração a oportunidade de defraudar o âmago e a finalidade da condição de punibilidade de que se trata, para além de constituir violação do principio da legalidade.
Defendem os recorrentes que, nesta situação, não poderá ter-se por verificada a condição objetiva de punibilidade prevista no artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT, impondo-se, consequentemente, a absolvição dos arguidos ou, se assim não for entendido, sempre se estará perante uma irregularidade da notificação, que deve ser declarada, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 123º do CPP e ordenada a repetição dessa notificação, com a indicação do valor correto da prestação em dívida, bem como do valor dos juros e da coima aplicável.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não assistir razão aos recorrentes, pugnando pela manutenção do despacho recorrido, defendendo que a notificação em causa indica expressamente o montante total que os recorrentes teriam de entregar à Segurança Social e de que a tais valores acrescem juros moratórios à taxa legal, sufragando o entendimento de que não é necessário que os valores aí estipulados estejam corretos para que a notificação cumpra o artigo 105º, n.º 4 do RGIT.
Apreciando:
Tem gerado controvérsia na doutrina e na jurisprudência a questão de saber se a notificação prevista no artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT exige que dela conste a concretização das quantias a pagar pelo arguido ou se basta uma indicação genérica para que pague “as prestações, juros e coima, aplicáveis, no prazo de 30 dias”[4].
A orientação jurisprudencial maioritária e que foi acolhida no despacho e na sentença recorridos, perfilha o entendimento de que não tem de constar da aludida notificação a concretização dos valores a pagar, competindo ao arguido/notificado, que pretenda cumprir a condição, diligenciar junto da Administração Tributária ou da Segurança Social, consoante o caso, inteirando-se daqueles valores[5].
Aqueles que defendem a posição contrária[6], que é sustentada pelos ora recorrentes, argumentam que existe um verdadeiro ónus de comunicação, informação e esclarecimento, que devem ser plasmados no teor da notificação, por forma a que o arguido/notificado fique inteirado sobre a quantia que terá de pagar, para que fique excluída a sua punibilidade.
Em nosso entender, a notificação a efetuar, nos termos e para os efeitos previstos na al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT – aplicável ao crime de abuso fiscal contra a segurança social ex vi do artigo 107º, n.º 2 do mesmo diploma legal –, tendo em conta os fins a que se destina, deverá indicar, pelo menos, o valor das prestações tributárias ou contributivas, em dívida e a menção de que esse valor é acrescido de juros e, ainda, de coima, não sendo exigível a concretização do valor dos juros, nem do montante da coima, já que serão variáveis.
Consideramos que não sendo feita, em tal notificação, a indicação do valor das prestações tributárias ou contributivas em dívida e cujo pagamento é reclamado pela Administração Tributária ou pela Segurança Social, o arguido/notificado não ficará na posse de uma informação essencial, para poder aferir da (des)conformidade do valor indicado com os montantes efetivamente em dívida e para poder ajuizar sobre se dispõe e, não dispondo, sobre se consegue arranjar (v.g. recorrendo a empréstimo), no referido prazo de 30 dias, meios de pagamento para liquidar o valor em causa, estando ciente de que esse valor é acrescido de juros e de terá ainda de pagar uma coima, podendo o arguido, no caso de pretender pagar, solicitar junto da AT ou da Segurança Social, conforme o caso, o cálculo dos juros e informar-se sobre o valor da coima que será aplicada.
No respeitante aos juros, o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 151/2009, de 25/03/2009[7], chamado a pronunciar-se, decidiu não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do Regime Geral de Infrações Tributárias, na interpretação segundo a qual pode ser criminalmente punido quem tenha sido notificado para pagar uma prestação tributária acrescida dos respetivos juros sem que seja indicado o montante concreto desses juros nem a forma de os calcular.
Porém, ainda que preconizando o entendimento de que, da notificação a efetuar ao arguido, nos termos e para os efeitos do disposto na al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, deve constar o valor das prestações tributárias ou contributivas em dívida, entendemos que, no caso de existir incorreção na indicação desse valor e/ou divergência entre o montante mencionado na notificação e o valor efetivamente devido, apurado em audiência, tal não afeta a validade do ato/notificação efetuada[8].
A não ser assim, tal como se faz notar na decisão recorrida, citando-se jurisprudência nesse sentido[9], sempre que da prova produzida, na audiência de julgamento, resultasse ser o valor da prestação tributária em dívida, inferior àquele que constava da acusação ou da pronúncia e que havia sido indicado na notificação efetuada ao arguido, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT, haveria que concluir no sentido da não verificação da condição objetiva de punibilidade prevista nessa disposição legal, o que, salvo o devido respeito, não pode merecer acolhimento.
Assim, aplicando o entendimento sufragado, ao caso concreto, tendo os arguidos, ora recorrentes, sido notificados, para os efeitos previstos na al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, em 07/03/2019 - cf. fls. 295 e 296 -, constando das respetivas notificações que o valor da dívida relativo a quotizações retidas e não entregues à Segurança Social era de €38.485,09, com a menção, de que “a esse valor somam-se os juros de mora e a(s) coima(s) aplicável(is)”, pese embora, tenha sido dado como provado na sentença, que o valor das contribuições, que a sociedade arguida deduziu das remunerações dos seus trabalhadores e que reteve, e não entregou à Segurança Social, é de €5.143,36 [tendo o Tribunal a quo, em face da prova produzida, na audiência de julgamento se confrontado com a dúvida, sobre se foram efetivamente pagos os salários a que respeitam todas as folhas de remunerações enviadas à Segurança Social, com referência ao período temporal indicado e sobre a forma de pagamento de alguns desses salários – sendo apresentada a versão de que o foram em materiais de construção forma como foram pagos os salários –, dúvida essa que, por aplicação do princípio in dúbio pro reo, resolveu a favor dos arguidos, dando como não provado, que tivessem sido deduzidos do valor das remunerações pagas a todos os trabalhadores, o montante global de €36.169.08, referentes a contribuições por estes legalmente devidas à Segurança Social], concluímos que a notificação em causa é válida e mostra-se apta a preencher a condição objetiva de punibilidade estabelecida na al. b) do n.º 4 do artigo 105º, aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social ex vi do n.º 2 do artigo 107º do RGIT, pelo que, nenhuma censura merecem as decisões recorridas, que assim decidiram.
Este fundamento dos recursos é, pois, também improcedente.
2.3.1.3. Da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 105º, nº 4, alínea b), do Regime geral das Infrações Tributárias
Os recorrentes suscitam a inconstitucionalidade da norma ínsita no artigo 105º, n.º 4, do RGIT, nas seguintes vertentes e interpretações normativas:
a) - Inconstitucionalidade material e orgânica da própria condição objetiva de punibilidade, a admitir-se que a notificação prevista no artigo 105º, n.º 4, alínea b), do RGIT, pode ser realizada pela Administração Pública, por violação dos princípios da boa-fé, imparcialidade, justiça, proporcionalidade e igualdade que devem pautar a atividade administrativa (cfr. Artigo 266.º, n.º 2, CRP).
b) - Na interpretação no sentido de que a notificação prevista no artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT não tem de liquidar os montantes a pagar pelo contribuinte, por violação dos princípios da legalidade, proporcionalidade, separação de poderes e igualdade e do direito fundamental a um processo equitativo (artigos 2º, 13º, 18º, nº 2, 20º, nº 4 e 29º, nº 1 todos da Constituição da República Portuguesa).
c) - Na interpretação no sentido em que não prevê a concessão ao Arguido do direito a audiência prévia relativamente ao valor da coima aplicável e bem assim aos elementos da infração contraordenacional, obrigando-o a acatar o valor indicado para que se possa isentar do processo crime.
Salvo o devido respeito, entendemos não ser de julgar inconstitucional a norma constante do artigo 105º, n.º 4, do RGIT, em qualquer das dimensões convocadas pelos recorrentes, sendo que no referente ao conteúdo da notificação prevista na al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, conforme supra se referiu, entendemos que deverá indicar o valor das prestações tributárias ou contributivas, em dívida e a menção de que esse valor é acrescido de juros e, ainda, de coima, não sendo exigível a concretização do valor dos juros, nem do montante da coima, já que serão variáveis, sufragando-se, no demais e, na íntegra, o que a este respeito se consignou no despacho e na sentença recorridos, aí se citando o que se escreve no Acórdão desta Relação de Évora de 23/02/2021 e que aqui se reitera:
«Alegam os recorrentes a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 105º, nº 4, alínea b), do RGIT, no sentido em que a notificação aí prevista não tem de liquidar os montantes a pagar pelo contribuinte, por violação dos princípios da legalidade, proporcionalidade, separação de poderes e igualdade e do direito fundamental a um processo equitativo (artigos 2º, 13º, 18º, nº 2, 20º, nº 4 e 19º, nº 1 todos da Constituição da República Portuguesa).
Desde logo cumpre afirmar que tal não resulta do texto da lei em causa.
Por outro lado, resulta expressamente do Acórdão nº 151/2009, do Tribunal Constitucional, publicado em DR nº 95/2009, Série II de 2009-05-2018, “não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 105º, nº 4, alínea b), do Regime Geral de Infracções Tributárias, segundo a qual pode ser criminalmente punido quem tenha sido notificado para pagar uma prestação tributária acrescida dos respectivos juros sem que seja indicado o montante concreto desses juros nem a forma de os calcular”.
Assim, relativamente ao concreto montante dos juros já existe Jurisprudência do Tribunal Constitucional em julgar de acordo com a Constituição da República Portuguesa, a não determinação dos juros em dívida.
Por outro lado, conforme supra, referido, impossível resulta face ao disposto no artigo do artigo 27º, do RGCO, a determinação concreta da coima a aplicar, pelo que face a tal impossibilidade manifesta, não se mostra violado qualquer princípio constitucionalmente tutelado ou norma da Constituição da República Portuguesa.
De igual modo, não assiste razão aos arguidos/recorrentes, na invocação da inconstitucionalidade na interpretação que admite a realização da notificação constante do artigo 105º, nº 4, alínea b), do RGIT, pela Segurança Social, desde logo porque legalmente admissível, conforme supra exposto e, porque não resulta violado qualquer princípio constitucionalmente tutelado ou norma da Constituição da República Portuguesa.
Alegam também a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 105º, nº 4, alínea b) do RGIT, quando não admite ao arguido do direito de audiência prévia relativamente ao valor da coima aplicável - artigo 20º, nº 4 e 32º, nº 10, da Constituição da República Portuguesa.
(…), “a notificação a que se reporta o artigo 105º, nº 4, al. b), do RGIT, é realizada no âmbito do processo penal e não são aplicáveis as disposições e exigências do processo administrativo, mormente, o direito de audiência prévia. Acresce que a mencionada notificação, nos termos e para os efeitos nela previstos, trata-se de uma condição de punibilidade do processo crime, a qual, no fundo, configura uma segunda oportunidade dos devedores de efectuarem o pagamento do imposto em dívida, acrescida do valor da coima aplicável e juros, e, em contrapartida, obstar à sua punição penal.
Pelo que não vislumbramos que tal interpretação viole as garantias de defesa ou que não se mostrem asseguradas e/ou que o processo não seja equitativo”.
Assim, por aderirmos integralmente a tal argumentação, damos aqui como nossa a mesma e, neste sentido, por legalmente não ser admissível a audiência prévia dos arguidos, para a verificação da condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105º, nº 4, alínea b), do RGIT, não resulta violado qualquer princípio constitucionalmente tutelado ou norma da Constituição da República Portuguesa.»
Improcedem, assim, as invocadas inconstitucionalidades da norma do artigo 105º, n.º 4, alínea b), do Regime geral das Infrações Tributárias.
O recurso do despacho interlocutório é, pois, improcedente, bem assim como as questões suscitadas no recurso interposto da sentença, que foram objeto de apreciação nesta sede.
2.3.2. Recurso da sentença
2.3.2.1. Da impugnação da matéria de facto dada como provada nos pontos 8, 10, 12 e 15 a 18, por erro de julgamento
Tendo-se conhecido já das questões respeitantes à notificação efetuada nos termos e para os efeitos da al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, importa apreciar e decidir das demais questões suscitadas no recurso de que agora se trata.
Assim:
Sustentam os recorrentes não ter sido feita prova de que os arguidos não tenham procedido à entrega ao Estado – Segurança Social das cotizações devidas, mencionadas nos pontos 8, 10, 12 e 15, pugnando para que a matéria factual nestes vertida, seja dada como não provada.
Alegam os recorrentes que o Tribunal a quo desconsiderou, por completo os pagamentos efetuados à Segurança Social e o facto desta entidade não ter identificado todos os pagamentos que foram feitos, tendo considerado o depoimento da testemunha (…) que se limitou a analisar as folhas de remunerações, sendo, na perspetiva dos recorrentes, os factos dados como provados nos pontos 8 e 12 e como não provados na al. a), por si só, suficientes para abalar a credibilidade da referida testemunha.
Manifestam, ainda, os recorrentes que o Tribunal a quo não teve em consideração toda a prova junta aos autos, nomeadamente, a documentação junta pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo de Comércio – Juiz 4, o plano de recuperação, aprovado pelos credores e homologado pelo Tribunal, transitado em julgado no dia 17/02/2015 e a resposta da Segurança Social relativamente ao mesmo, de que resulta um plano de pagamentos à Segurança Social e que, conforme esta declara “os períodos até essa data foram abrangidos no Plano Prestacional do PER”, não resultando da listagem junta aos autos pela Segurança Social, qualquer informação relativamente aos pagamentos realizados, no âmbito desse Plano Prestacional.
Nesta linha de entendimento, defendem os recorrentes que resulta indiciado terem sido efetuados pagamentos relativos às cotizações referentes ao período mencionado no ponto 6 dos factos provados e que, no mínimo, surge a dúvida, se foram ou não efetuados pagamentos, nada tendo a Segurança Social referido relativamente a pagamentos mensais, correntes e avulsos que foram feitos no período referido na acusação (e no ponto 6 dos factos provados) e respetiva forma de imputação, não fazendo o mapa de cotizações junto com a participação que deu origem aos presentes autos, referência ao período entre fevereiro e março de 2015, pelo que, resulta evidente, terem ocorrido outros pagamentos para além daqueles que foram identificados pela Segurança Social, o que, mais uma vez, leva a que surja a dúvida sobre se os valores referidos pela segurança Social são devidos ou não, dúvida essa que impunha que o Tribunal a quo decidisse a favor dos arguidos, dando como não provados os factos agora impugnados e, ao não decidir, nesse sentido, tendo violado o principio in dúbio pro reo.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de que o Tribunal a quo procedeu a uma correta valoração de todos os elementos de prova constantes dos autos e produzidos na audiência de julgamento, conjugados entre si, decidindo de acordo com a livre convicção, nos termos previstos no artigo 127º do CPP, não se verificando qualquer erro na apreciação/valoração da prova e não existe qualquer dúvida razoável com que o julgador se tivesse confrontado, pelo contrário, existe grau de certeza compatível com as regras da livre apreciação da prova, por parte da Mma. Juiz, de que a factualidade dada como provada é igual à verdade material, como tal, devendo manter-se inalterada a matéria de facto dada como provada.
Vejamos:
Na motivação da decisão de facto e com relevância para a apreciação da impugnação dos pontos que são indicados pelos recorrentes, o Tribunal a quo consignou o seguinte:
«O Tribunal formou a sua convicção, para a determinação da matéria de facto dada como provada e não provada, na análise crítica e conjugada da totalidade da prova produzida, valorada à luz das regras de experiência comum, nos termos do disposto no artigo 127.º do Cód. Proc. Penal.
O Tribunal teve em consideração toda a prova documental junta aos autos, nomeadamente, a certidão do registo comercial da sociedade Arguida de fls. 7 a 21, os mapas de cotizações retidas e não pagas de fls. 5 e 6, as notificações efectuadas nos termos do disposto no artigo 105.º, do RGIT de fls. 75 e 77, os extractos de remunerações de fls. 127 a 141, a sentença de reclamação de créditos de fls. 280 a 287, a relação de créditos reconhecidos de fls. 289, os recibos de vencimento de fls. 163 a 200, de fls. 204 a 252, de fls. 330, de fls. 335 a 356, de fls. 360 a 367, de fls. 371 a 374, de fls. 378 e seguintes, de fls. 393 a 400, de fls. 401 a 439, de fls. 443 a 464 e de fls. 467 a 475, os requerimentos de fundo garantia salarial de fls. 335 a 356 e fls. 794 a 795, os requerimentos de retribuições em mora de fls. 382 389 e de fls. 324, a lista de pagamentos de fls. 873 verso, as situações dos planos prestacionais de fls. 874 a 879 e os detalhes de DUC de fls. 881 verso a 894.
(…)
O facto constante em 6. resultou provado com base no depoimento das testemunhas LO, SI, TA e TS, que afirmaram de forma peremptória em sede de audiência de julgamento ter desempenhado funções na sociedade Arguida, tendo concretizado o período em que tal ocorreu, depoimentos estes que se mostram completados pelos recibos de vencimentos juntos aos autos a fls. 360 a 367, 467 a 475 e 330 bem como pelos extractos de remunerações de fls. 127 a 141.
A testemunha LO afirmou de forma assertiva que recebeu os seus salários até Março de 2015, tendo ficado em dívida quantias correspondentes a três salários e a subsídios. Tal depoimento é confirmado pelo teor da prova documental junta aos autos a fls. 335 e 336, nomeadamente o requerimento para pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho referentes às retribuições de Maio e Junho de 2015 e ao valor dos subsídios de férias e Natal dos anos de 2014 e 2015. O depoimento da testemunha mostra-se ainda compatível com o valor do crédito de € 710,23 que lhe foi reconhecido no âmbito dos autos de insolvência.
Concatenando todos os elementos probatórios produzidos nos autos, nomeadamente, o depoimento da testemunha LO, os recibos de vencimento juntos aos autos a fls. 337 a 356, o requerimento para pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho de fls. 335 e 336 e, bem assim, o valor do crédito que lhe foi reconhecido no âmbito dos autos de insolvência, o Tribunal não teve quaisquer dúvidas que as remunerações dos meses de Dezembro a 2013 a Janeiro de 2015 da referida testemunhas lhe foram pagas.
Pese embora a testemunha tenha referido que recebeu salários da BBB, considerando que da restante prova produzida nos autos resultou que os salários foram pagos pela BBB a partir do momento em que os trabalhadores passaram a prestar serviços para esta empresa, o que sucedeu a partir de meados do ano de 2015, o Tribunal considerou que os salários entre Dezembro de 2013 e Janeiro de 2015 foram pagos pela SA.
De igual modo, a testemunha SI afirmou peremptoriamente ter sempre recebido os seus salários, tendo apenas ficado com “subsídios em atraso”, que reclamou em sede própria. Concatenando o depoimento desta testemunha com os recibos de vencimento e os extractos de remunerações juntos aos autos, o Tribunal ficou convencido que o Arguido, na qualidade de legal representante da sociedade Arguida, procedeu ao pagamento das retribuições devidas ao referido trabalhador entre Dezembro de 2013 e Setembro de 2014.
A testemunha TS referiu ter desempenhado funções na sociedade arguida entre 2008 e 2015, não tendo apenas recebido o seu vencimento no último ano. Mais concretizou que tem “dois salários em atraso”, o que se mostra compatível com o valor do crédito que lhe foi reconhecimento no âmbito dos autos de insolvência. O seu depoimento mostra-se ainda confirmado pelo teor da prova documental junta aos autos a fls. 325 e 326, nomeadamente a comunicação de suspensão do contrato de trabalho por não pagamento pontual da retribuição referente a parte do mês de Março e do mês de Abril de 2015.
Concatenando o depoimento da testemunha TS com toda a prova documental junta aos autos, o Tribunal ficou convencido que entre Dezembro de 2013 e Dezembro de 2014 a sociedade Arguida procedeu ao pagamento da retribuição devida à referida trabalhadora.
Por fim, a testemunha TA afirmou assertivamente que não ficou com “salários em atraso”, motivo pelo qual não reclamou créditos. Atento o depoimento peremptório desta testemunha, o Tribunal entendeu ter ficado provado que entre Dezembro de 2013 e Julho de 2014 a sociedade Arguida procedeu ao pagamento da retribuição à referida trabalhadora.
Atentos os referidos elementos probatórios, que não se mostraram contrariados por quaisquer outros, o Tribunal decidiu dar como provado o facto constante em 7.
Os factos constantes em 8., 10. e 12. resultaram provados com base no teor do depoimento das testemunhas (…), ambos funcionários da Segurança Social, que procederam ao apuramento dos valores em dívida.
A testemunha CA – que depôs de forma objectiva e imparcial – afirmou peremptoriamente que os valores declarados nas folhas de remunerações entregues à Segurança Social não foram pagos, não tendo sido produzido qualquer elemento probatório que infirme o depoimento da referida testemunha.
Foi efectivamente junto aos autos uma lista de pagamentos efectuados pela sociedade Arguida. Tais pagamentos foram imputados aos respectivos planos prestacionais conforme resulta de fls. 874 verso a 879, planos esses que foram suscessivamente incumpridos. Ora, analisados os detalhes de DUC, verifica-se que esses pagamentos foram imputados ao pagamento de valores em dívida referentes ao ano de 2012, ou seja, a período anterior ao aqui em discussão. Assim sendo, tais pagamentos não se mostram susceptíveis de infirmar o depoimento da testemunha CA, já que não dizem respeito ao período aqui em dívida.
(…)
O facto constante em 11. resultou provado com base no teor das notificações efectuadas aos Arguidos e juntas aos autos a fls. 77 e 79.
Aqui chegados resulta da factualidade dada como provado que, entre Dezembro de 2013 e Janeiro de 2015, foram sucessivamente pagos os salários dos referidos trabalhadores e não entregues os valores devidos a título de contribuições à Segurança Social. Analisada tal factualidade à luz das regras da lógica e da experiência comum, apenas se pode concluir que o Arguido não procedeu à entrega dos valores devidos à Segurança Social, pese embora a sociedade Arguida dispusesse de dinheiro para o efeito, que utilizou para proceder ao pagamento dos salários devidos aos trabalhadores nos meses subsequentes.
Ao agir desta forma apenas se pode concluir que o Arguido, na qualidade de legal representante da sociedade Arguida, reteve a quantia total de € 5.143,36 referente às deduções por si efectuadas a título de contribuições para a Segurança Social nas remunerações dos trabalhadores, motivo pelo qual se deu como provado o facto constante em 12.
(…)
Os factos constantes em 14. a 17. resultaram provados da conjugação da factualidade dada como provada com as regras da experiência comum e da lógica.
Com efeito, considerando as funções efectivamente exercidas pelo Arguido e, bem assim, as suas habilitações literárias, conforme declarado pelo mesmo em sede de audiência de julgamento, tinha conhecimento dos deveres que lhe competiam, nomeadamente que se encontrava obrigado a deduzir das remunerações base pagas aos trabalhadores da empresa em causa as contribuições devidas à Segurança Social, contribuições estas que deviam ser entregues ao Instituto de Gestão Financeira do Instituto da Solidariedade e Segurança Social.
Destarte, sabendo que tinha que entregar as quantias deduzidas das remunerações base pagas aos trabalhadores da empresa e ao não entregar à Segurança Social tais quantias monetárias nos prazos legalmente previstos, pese embora continuasse a proceder ao pagamento dos salários devidos aos trabalhadores, apenas se pode concluir que o Arguido quis agir da forma descrita, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, motivo pelo qual se deram como provados os factos constantes em 14. a 17.
Quanto ao facto constante em 18., consideraram-se as declarações do Arguido quanto às dificuldades financeiras sentidas pela sociedade Arguida, que se mostraram corroboradas pela documentação junta aos autos, nomeadamente a sentença de declaração de insolvência, a lista de créditos reconhecidos e o depoimento das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento.»
Não pondo os recorrentes em causa que hajam sido pagos pela sociedade arguida as remunerações aos trabalhadores, nos períodos e pelos valores que surgem descriminados nos pontos 7 e 8 da matéria factual provada e que tivessem sido deduzidas as contribuições devidas à Segurança Social, referenciadas no ponto 8., apenas impugnam não ter havido pagamento à Segurança Social das cotizações deduzidas e que se mostram discriminadas no ponto 8.
Como decorre da motivação da decisão de facto, a convicção do Tribunal a quo, no referente aos valores das cotizações deduzidas das remunerações pagas aos trabalhadores da sociedade arguida e não entregues à Segurança Social, descritas no ponto 8 da matéria factual provada, alicerçou-se no depoimento da testemunha CA, funcionário da Segurança Social, que, analisando a documentação disponível, afirmou perentoriamente, que os valores em causa, que foram declarados nas folhas de remunerações entregues à Segurança Social, não foram pagos.
Considerou o Tribunal a quo não ter sido produzida qualquer prova que infirme o depoimento da testemunha CA, fazendo-se notar que os pagamentos efetuados pela sociedade arguida que constam de da lista junta aos autos, «foram imputados aos respetivos planos prestacionais conforme resulta de fls. 874 verso a 879, planos esses que foram sucessivamente incumpridos. Ora, analisados os detalhes de DUC, verifica-se que esses pagamentos foram imputados ao pagamento de valores em dívida referentes ao ano de 2012, ou seja, a período anterior ao aqui em discussão. Assim sendo, tais pagamentos não se mostram susceptíveis de infirmar o depoimento da testemunha CA, já que não dizem respeito ao período aqui em dívida.»
Cabe perguntar?
Que prova foi produzida de que resulte terem sido pagos os valores das cotizações devidas à Segurança Social que surgem descriminados no ponto 8 da matéria factual provada? Que concretos elementos probatórios foram carreados para os autos que impunham que o Tribunal a quo se tivesse confrontado com uma dúvida, razoável e fundada, sobre se foram efetuados ou não efetuados os pagamentos das cotizações em questão?
A resposta a tais questões surge como inequívoca: Nenhum(a).
Os recorrentes alegam resultar dos documentos juntos aos autos e que mencionam terem existido pagamentos por conta dos valores em dívida à Segurança Social, mas não especificam quais os documentos que, em concreto, comprovam terem sido entregues à Segurança Social os valores das cotizações descriminadas no ponto 8 ou, pelo menos, que levam a que se suscitasse a dúvida, sobre se esse pagamento teve ou não lugar, em ordem a determinar que fossem dados como não provados os pontos 10, 12 e 15 a 18 da matéria factual dada como provada.
E neste domínio, não poderá perder-se de vista o seguinte:
Os acordos de pagamento celebrados entre a sociedade arguida e a segurança Social, no âmbito do PER, que foi homologado por decisão transitada em julgado, em 17/02/2015, com vista a regularizar as dívidas contributivas daquela para com esta e o eventual cumprimento de algumas dessas prestações, respeitam a circunstâncias posteriores ao cometimento dos factos que integram o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social cuja prática é imputada aos ora recorrentes, não tendo, por isso, qualquer relevância, em termos de permitir extrair qualquer ilação quanto à (in)verificação dos elementos do tipo.
O crime de abuso de confiança contra a segurança social é um crime de omissão pura, que se consuma com a não entrega, no prazo legal, à Segurança Social, das contribuições deduzidas pela entidade empregadora dos salários dos seus trabalhadores e dos órgãos sociais (cfr. artigo 107º, n.º 1, do RGIT)[10].
E são condições objetivas de punibilidade do crime que tenham decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo de pagamento (cfr. artigos 105º, n.º 4, al. a) e 107º, n.º 2, do RGIT) e decorridos 30 dias sobre a notificação que para o pagamento deve ser feita (artigo 105º, nº 4, al. b), ex vi do artigo 107º, n.º 2, do RGIT), sem que o pagamento haja sido efetuado.
As prestações tributárias, devidas pela sociedade arguida cuja administração o arguido exercia (respeitantes às cotizações para a segurança social, descontadas dos salários dos trabalhadores), que foram retidas e cuja entrega à Segurança Social, não foi feita, respeitam a períodos compreendidos entre dezembro de 2013 a janeiro de 2015, sendo que o plano de pagamentos à Segurança Social, estabelecido no âmbito do PER, que foi homologado por decisão transitada em julgado, em 17/02/2015, com vista a regularizar as dívidas contributivas da sociedade arguida para com a Segurança Social e o eventual cumprimento de algumas dessas prestações, conforme supra se referiu, respeitam a circunstâncias posteriores ao cometimento dos factos que integram o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social cuja prática é imputada aos ora recorrentes, não relevando, em termos de poder afastar o preenchimento dos elementos típicos do mesmo crime.
Acresce que a existência de um acordo de pagamento celebrado entre o devedor da prestação contributiva e a Segurança Social, mesmo, no caso de ser anterior ao termo dos prazos estabelecidos como condições objetivas de punibilidade, previstos no artigo 105º, n.º 4, alíneas a) e b), do RGIT, aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, ex vi do n.º 2 do artigo 107º do RGIT, ou deles contemporâneo, mesmo que exista cumprimento parcial desse acordo, dentro desses prazos, não afasta o preenchimento do crime de abuso de abuso de confiança contra a segurança social[11].
A existência de pagamento parcial da dívida contributiva, no âmbito de acordo celebrado naqueles termos, apenas poderá relevar como circunstância atenuante, na determinação da medida concreta da pena a aplicar.
Ora, no caso vertente, não foi produzida qualquer prova de que os valores em dívida à Segurança Social respeitantes às cotizações descriminadas no ponto 8, tivessem sido pagos.
E não assiste razão aos recorrentes quando defendem que a Segurança Social não deu cumprimento ao disposto no artigo 79º da Regulamentação do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Providencial da Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 119/2009, de 16 de setembro e no Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011, não imputando os diversos pagamentos que foram feitos à dívida de quotizações mais antigas.
Com efeito, como se faz notar na sentença recorrida, analisados os DUC juntos aos autos, verifica-se que esses pagamentos foram imputados ao pagamento de valores em dívida referentes ao ano de 2012, ou seja, a período anterior ao que é referido no ponto 8. matéria factual provada e como bem refere o Ministério Público, na resposta ao recurso, resulta dos DUC juntos aos autos pela Segurança Social, com o ofício, que consta no Citius com a Refª. 5837211, que se referem a pagamentos efetuados que foram afetos a contribuições, no valor de, pelo menos, €6.536,64, que esses DUC datam principalmente de datas anteriores a dezembro de 2013 e, como tal, nunca se podem ater a pagamentos de cotizações respeitantes ao período de dezembro de 2013 a janeiro de 2015. Por outro lado, como também enfatiza o Ministério Público, na resposta ao recurso, os pagamentos que se referem a quantias reclamadas em sede de execução, respeitam a pagamentos efetuados no âmbito de processos executivos em curso, não respeitando a “entregas devidas pelo pagamento dos salários no período compreendido entre dezembro de 2013 a janeiro de 2015”.
Não ocorreu, assim, qualquer violação, pela Segurança Social, do critério da imputação e do princípio da confiança jurídica invocados pelos recorrentes.
E não releva para a boa decisão da causa a matéria factual que os recorrentes indicam no ponto 30, das conclusões da motivação de recurso, como devendo constar do elenco dos factos provados, os quais, consabido que é que a impugnação da matéria de facto, só pode ter por objeto factos dados como provados ou como não provados, na sentença recorrida, só poderiam ser levados à matéria de facto provada, se se verificasse a insuficiência da matéria de facto para a decisão, nos termos previstos no artigo 410º, n.º 2, al. a), do CPP, o que não é, de todo, aqui o caso.
2.3.2.2. E também não houve violação do princípio in dubio pro reo.
Com efeito:
O princípio in dúbio pro reo, que é decorrência do princípio constitucional da presunção da inocência consagrado no artigo 32º, n.º 2 da CRP, constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre a veracidade dos factos, ou seja, impõe ao julgador que, quando confrontado com a dúvida, razoável e fundada, em matéria de prova, resolva tal dúvida em sentido favorável ao arguido.
Está consolidado na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, o entendimento de que o tribunal de recurso apenas pode censurar o não uso do princípio in dúbio pro reo se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, perante essa dúvida, optou por decidir em sentido desfavorável ao arguido[12]ou, numa outra vertente, se, o tribunal de recuso, apreciando a impugnação ampla da matéria de facto, por erro de julgamento, for levado a considerar que, em face da prova produzida, essa dúvida – razoável e fundada – deveria suscitar-se no espirito do julgador, impondo-se que a resolvesse em sentido favorável ao arguido.
No caso dos autos, lida a sentença recorrida e, designadamente, a motivação da decisão de facto nela exarada, é inequívoco que da mesma não resulta que o julgador se tivesse confrontado com qualquer dúvida sobre os factos que deu como provados e, designadamente, em relação aos factos vertidos nos pontos 8, 10 a 12 e 15 a 18, que são impugnados pelos recorrentes.
E atentando-se nas razões que presidiram à valoração da prova produzida, enunciadas na motivação da decisão de facto, que se revelam consentâneas com a regras da experiência comum e não se descortinando a violação de quaisquer normativos ou princípios relativos ao direito probatório, decidindo o Tribunal a quo, de acordo com a livre convicção, nos termos do disposto no artigo 127º do CPP, fica afastada a possibilidade de a prova produzida determinar que o Tribunal a quo, devesse ter sido confrontado com dúvida razoável e fundada, em termos de valoração da prova, que devesse resolver em sentido favorável aos arguidos/recorrentes.
Deste modo, impõe-se concluir não existir violação, por parte do Tribunal a quo, do princípio in dúbio pro reo. * 2.3.2.3. Por todo o exposto e em conformidade, concluímos não existir erro de julgamento, estando a convicção alicerçada pelo Tribunal a quo devidamente fundamentada e o juízo da valoração da prova a que procedeu mostra-se estribado em razões objetivas e em consonância às regras da experiência comum e da normalidade da vida e conforme ao princípio da livre apreciação da prova, não existindo violação de qualquer princípio ou norma que imponha a valoração da prova de acordo com a pretensão dos recorrentes, em oposição à apreciação/valoração da prova que foi feita pelo tribunal a quo.
Não merece, por isso, qualquer censura a decisão do tribunal a quo ao dar como provados os factos que são impugnados pelos recorrentes, que se têm, assim, como definitivamente fixados.
Improcede, pois, a impugnação da matéria de facto.* 2.3.2.4. Permanecendo inalterada a matéria de facto provada fixada na 1ª instância e dando-se aqui por reproduzidas as considerações jurídicas expendidas, na sentença recorrida, dúvidas não existem de que os arguidos/recorrentes, preencheram, nos seus elementos típicos objetivos e subjetivos, o crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelos artigos 107º e 105º, n.ºs 1 e 4, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na forma continuada (cf. artigo 30º, n.º 2, do C.P.), sendo a sociedade arguida, nos termos previstos no artigo 7º do RGIT e o arguido pessoa singular, nos termos do disposto no artigo 6º do mesmo diploma legal, não existindo quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa e estando verificada a condição objetiva de punibilidade prevista na al. b), do nº4, do artigo 105º do RGIT.
2.3.2.5. Da inconstitucionalidade da norma ínsita no artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT
Suscitam os recorrentes a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT, na interpretação feita pelo Tribunal a quo faz no sentido de que “a circunstância de o valor apurado ser inferior ao constante da notificação efectuada, nos termos do artigo 105.º, n.º 4, do RGIT é irrelevante”, por violação dos princípios da legalidade, proporcionalidade, separação de poderes e igualdade e do direito fundamental a um processo equitativo (v. artigos 2º, 13º, 18, n.º 2, 20º, n.º 4 e 29, n.º 1, todos da CRP).
Salvo o devido respeito, também neste ponto não assiste razão aos recorrentes.
Com efeito, entendemos não ser inconstitucional, não violando os princípios da legalidade, nem da proporcionalidade, da separação de poderes ou da igualdade, nem o direito a um processo equitativo, com consagração nos artigos 2º, 13º, 18, n.º 2, 20º, n.º 4 e 29, n.º 1, todos da CRP, a interpretação da norma insista no artigo 105º, n.º 4, do RGIT, que foi feita na sentença recorrida, no sentido de que a circunstância de o valor apurado – entenda-se, em julgamento e que vem a ser dado como provado na sentença –, ser inferior ao constante da notificação efetuada nos termos do artigo 105º, n.º 4, do RGIT é irrelevante, para que se tenha por verificada a condição objetiva de punibilidade prevista na al. b) do n.º 4, do artigo 105º do RGIT.
O valor da prestação tributária em dívida, que é feita constar da notificação efetuada nos termos e para efeitos do disposto no artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT, quando realizada numa fase anterior à dedução da acusação, será aquele que decorre dos elementos de que a Administração Tributária ou a Segurança Social, dispõem, nesse momento. No caso da Segurança Social, serão tidos em conta os mapas de remunerações pagas aos trabalhadores e/ou elementos dos órgãos sociais, remetidos pela entidade empregadora à Segurança Social, mapas esses que contém a descriminação dos trabalhadores, dos montantes dos salários pagos e das contribuições retidas, estas últimas não tendo sido entregues, no prazo legal, nem posteriormente, estarão em dívida.
Na audiência de julgamento, em que será produzida a prova, podendo o arguido exercer plenamente o direito ao contraditório, sendo aplicáveis as regras da apreciação da prova, uma delas a do principio in dúbio pro reo, enquanto limite normativo ao principio da livre apreciação da prova, o valor da prestação tributária ou das cotizações em dívida que foi indicado na notificação efetuada ao(s) arguido(s), nos termos e para efeitos do disposto no artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT, poderá resultar confirmado ou não, sendo que a circunstância de resultar provado que o valor em dívida é inferior ao que se fez constar daquela notificação, não põe em causa a validade ou a eficácia desta última, nem afasta a verificação da condição objetiva de punibilidade prevista na enunciada norma legal.
A interpretação da norma do artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT, neste sentido, que foi feita pelo Tribunal a quo, na sentença recorrida, não viola qualquer dos princípios constitucionalmente consagrados ou das normas da Constituição da República Portuguesa, que são convocados pelos recorrentes. * Por todo o exposto e em conformidade, decide-se manter a condenação dos arguidos/recorrentes, pela prática de um crime, continuado, de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punível, pelo artigo 107.º, n.º 1 e 2, com referência ao disposto no artigo 105.º, n.ºs 1, 4 e 7, ambos do RGIT, nos termos decididos na sentença recorrida.* O recurso interposto da sentença é, pois, também julgado improcedente.
3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem esta Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento aos recursos do despacho interlocutório e da sentença, interpostos pelos arguidos SA. e AAA e, em consequência, confirmar, na íntegra, o despacho e a sentença recorridos.
Custas pelos recorrentes, nos dois recursos, atento o decaimento total, sendo as da arguida sociedade a suportar pela massa insolvente, fixando-se a taxa de justiça individual em 3 (três) UC´s, em cada um dos recursos (artigo 513º, n.ºs 1 e 3 e 514º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Penal e artigo 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma). Notifique.
Évora, 24 de maio de 2022
(Fátima Bernardes - Relatora por vencimento)
Renato Barroso – com voto de vencido, nos termos da declaração infra)
(Gilberto Rocha - Presidente da Secção Criminal)
Voto de vencido:
Nos termos do Artº 105 nº4 al. b) do RGIT, a notificação aí referida deve visar os seguintes elementos (menções obrigatórias): capital da prestação previdencial, juros moratórios e valor da coima aplicável.
É certo que, a este nível, a jurisprudência divide-se, existindo vários arestos, como o citado na decisão recorrida, em que se considera que de tal notificação não tem de constar a menção expressa dos montantes em divida.
Defendo, todavia, o entendimento expresso, entre outros, pelo Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28/11/19, proferido no proc. 2886/16.8T9LSB, onde se escreveu, o seguinte:
“Contudo, há quem entenda do citado artigo 105º do RGIT, que não resulta essa mesma obrigatoriedade, de menção expressa de tais montantes na notificação realizada, sendo certo que pela própria natureza variável dos mesmos montantes, essa indicação seria sempre meramente indicativa, até à concreta e efetiva data da entrega dos montantes em causa, com o consequente momento da liquidação dos demais montantes.
Mas daqui não se retira, claramente, que a menção por exemplo, aos montantes das coimas ou aos juros não tenha de ser feita, o que aqui se acha e intui, é que não é necessário referir os exactos montantes dos juros por estarem em constante actualização, sob pena, entendemos de se simplificar e esvaziar a finalidade desta condição objectiva de punibilidade a uma mera formalidade esvaziada de conteúdo.
Entendemos que se o arguido tem de ser notificado para pagar o devido dentro de 30 dias, este tem o direito de saber exactamente (ressalvando a contagem dos juros por estarem em constante actualização) qual o montante a pagar, para de forma célere proceder ao seu pagamento, pois se assim não for aquele prazo fica inelutavelmente comprimido porque o arguido tem que se deslocar junto das entidades competentes, primeiro para saber qual o valor das coimas a pagar, cujo valor está omisso, bem como dos juros, sabendo nós as condicionantes e entraves que podem ocorrer neste processo.
Deste modo e pelo que que supra se deixou expresso aquela condição de punibilidade do artº 105 nº 4 al b) do RGIT, tem que vir perfectibilizada, ou seja se o arguido tem trinta dias para pagar, o montante que este tem de efectuar, neste caso à Segurança tem de estar completamente revelado naquela notificação, para lhe possibilitar o “facere” do pagamento não ficando dependente de organismos do Estado para saber o exacto montante que tem de pagar.
Alias nem consideramos impossível, pelo contrário, que ali se fizesse a concreta contagem dos juros devidos à data daquela notificação…
Isto tudo porque o fundamento do instituto em causa exige dos arguidos uma conduta positiva e ativa junto da administração tributária ou da segurança social, para liquidar tais montantes, de forma a excluir a punibilidade das suas condutas.
Assim, da actividade desenvolvida pelo agente junto das entidades tributárias irá obrigatoriamente resultar a concretização efectiva dos montantes em dívida, cujo pagamento exclui a punibilidade criminal da conduta anterior.
Mas tal pressupõe em analepse que os arguidos tenham um esclarecido conhecimento dos montantes em divida a liquidar, e neste caso, à Segurança Social, como deflui mesmo da norma jurídica em questão, não podendo esta passar a ser considerada como um produto “branco” da administração pública, ou como um mero requisito formal destituído de conteúdo, que é exactamente a menção do devido pelo contribuinte relapso.
(…)
…não menos certo é que pelo menos na notificação a efectuar nos termos do artº 105º nº 4 al. b) do RGIT, para além da quantia em divida ao Estado (que é preciso concretizar) algo mais é necessário para perfectibilizar tal notificação, até porque a finalidade visada é o pagamento do devido, e que é a menção da coima (se a ela houver lugar) e dos juros devidos, tendo nós a convicção que aqui não precisamos de ser fundamentalistas ao ponto de exigir a contagem dos juros aquela data, pois como se sabe, estes, os juros, estão sempre a acrescer até ao pagamento da divida, como se refere no Ac. Da Relação do Porto de 11.01.2012 “qualquer exigência de indicação, na notificação a que se refere a alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, dos valores supracitados revelar-se-ia redundante e inútil, uma vez que o montante dos juros está sempre a sofrer actualização.
Concordamos com o supra referido mas só no que tange à contagem dos juros (que estão sempre em actualização), mas não no demais, pese embora existir, como não podia deixar de ser, entendimento adverso ou diverso, como por exemplo no Ac. da Relação do Porto de 24.09.2008, onde ali, se pode ler: «Nada na lei nos permite concluir pela exigência acrescida de que o concreto montante em que as prestações, os juros e a coima a pagar se traduzem seja indicado na própria notificação. O que o legislador teve em vista, na prossecução de objetivos de política criminal e fiscal que visavam não só a diminuição de processos, mas sobretudo uma mais rápida e fácil arrecadação de receitas, foi, tão só, dar aos agentes devedores uma segunda oportunidade de efetuarem o pagamento das quantias devidas a cada um daqueles títulos, interpelando-os para o efeito, e oferecendo-lhes como contrapartida (caso correspondam positivamente a essa interpelação), a impunibilidade criminal das respectivas condutas.
Ora, os devedores tributários que estejam interessados em fazê-lo dispõem de tempo mais do que suficiente para diligenciarem no sentido de, junto da entidade própria e que também é naturalmente aquela junto da qual o pagamento há-de ser efectuado, averiguarem o montante concreto e total que devem pagar, sendo certo que, pelo menos o montante das prestações ou contribuições já o saberão, além do mais porque já as declararam.
E é evidente que, no caso de sentirem dificuldades em obter as informações necessárias junto daquelas entidades, sempre poderão transmiti-las ao tribunal, que não deixará de providenciar para que daí não resulte prejuízo para aqueles que só não efectuem o pagamento atempado devido a falhas que não sejam da sua responsabilidade.
E com lisura afirma-se que não concordamos com tal asserção, primeiro porque sabemos como funciona em tempo real a segurança social, e máquina administrativa do Estado Português a providenciar informações, nomeadamente quando implica a contagem de juros, ou do exacto montante devido e coimas, e depois, porque o arguido tem o direito de saber dentro da faculdade que lhe foi conferida pela lei ( e porque só tem 30 dias para proceder ao pagamento do devido, depois da notificação legal /105º nº 4 al b) do RGIT…) pelo menos o valor da coima, ou , no caso, o real montante em divida das prestações à segurança Social em falta, concedendo-se que tem de para além do mais de pagar uma coima que acresce ao devido, mais juros, e segundo porque ao devedor será necessário reunir condições para proceder ao pagamento, o qual, “ab initio” não sabe qual é o seu valor, pelo que, francamente, e sendo o prazo para proceder ao pagamento de 30 dias, este prazo ficará necessariamente comprimido, quando a finalidade concedida por aquela norma será promover o pagamento célere do devido, dizemos nós, (mas com o devido respeito por opinião contrária), não podendo ficar ao arbítrio de um despacho casuístico de um Tribunal, de conceder mediante requerimento à extensão/ prorrogamento daquele prazo (por não ser, dizemos nós legalmente permitido/ por ser um prazo imune a prorrogações…) quando o arguido tenha dificuldade em obter as informações necessárias junto das entidades Estatais.
Tanto mais que não estando legalmente previsto tal extensão, de prazo este direito fica necessariamente dependente de decisões judiciais, que podem ser bem diversas relativamente ao mesmo assunto, ou seja não uniformes, entenda-se, coisa que violaria a segurança jurídica, a estabilidade, igualdade e a confiança nas normas do nosso ordenamento Jurídico.
Ou seja, não havendo norma específica para a extensão desse prazo sempre ficará dependente de decisões discricionárias dos Tribunais que podem ser antagónicas face ao mesmo pedido, como decorre da experiência comum.
(…)
…anote-se que a devida e correta interpretação do artº 105º do RGIT, mormente das alíneas a) e b) do seu número 4, impõe que se deva entender que a mera não entrega das prestações tributárias não é crime, mesmo que passem 90, 100 ou 1000 dias. A ocorrência de crime (ou melhor, a verificação dos elementos subjetivos e objetivos do tipo e as condições de punibilidade) só se pode verificar após a notificação correta da Administração Tributária para "pagar" a dívida e a sua violação por parte do contribuinte no [prazo] de 30 dias concedido para o efeito.
(…)
Antes de decorridos aqueles 90 dias, bem assim como antes de transcorrido o prazo de 30 dias após aquela notificação admonitória, estamos no âmbito da responsabilidade contraordenacional. Até esse momento, não se verificam — não pode haver — suspeitas de prática de crime. As suspeitas de prática de crime só podem ocorrer (isto é: só são legítimas e suscetíveis de fundamentar a constituição de arguido) a partir do momento em que se verificar que já decorreram 90 dias após a data em que o contribuinte devia ter entregado a prestação tributária (como previsto na alínea a) do nº 4 do artº 105º do RGIT), que foi realizada a notificação admonitória prevista na alínea b) do nº 4 do artº 105º do RGIT, e que já se encontra esgotado o prazo de 30 após tal notificação.
(…)
No presente caso, da 1ª notificação efetuada aos arguidos, designadamente ao recorrente, não consta sequer a menção da liquidação dos concretos montantes referentes aos juros devidos, nem da coima, nem das consequências do pagamento.
Contudo, pode parecer da leitura do artigo 105º do RGIT não resultar essa mesma obrigatoriedade, de menção expressa de tais montantes na notificação realizada, sendo certo que pela própria natureza variável dos mesmos montantes, essa indicação seria sempre meramente indicativa, até à concreta e efetiva data da entrega dos montantes em causa, momento da liquidação efetiva dos demais montantes.
O fundamento do instituto em causa exige aos arguidos uma conduta célere, positiva e ativa junto da administração tributária ou da segurança social, para liquidar tais montantes, de forma a excluir a punibilidade das suas condutas, não podendo ficar dependente da atividade desenvolvida pela SS para lhe prestar as informações que em rigor estão em falta na notificação legal que lhe foi feita (sob pena de se exaurir e comprimir ou até exceder o prazo de 30 dias que o contribuinte relapso tem ao seu dispor para proceder ao pagamento.
(…)
Face a tal quadro diremos e cogitamos, que patologia acarreta tal omissão?
Deste modo, resume-se que não está verificada a condição objetiva de punibilidade prevista na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT relativamente a ambos os arguidos e não preenchendo assim as suas apuradas condutas, o tipo objetivo e subjetivo do crime de crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 6º, nº 1, 7º, nº 1, 105º, nºs 1, 4 e 7 e 107º, nºs 1 e 2, todos do RGIT e art. 30º, nº 2 do C. Penal, face ao atrás exposto, impõe-se a sua absolvição pela prática deste ilícito típico
In casu, a notificação enviada aos arguidos é totalmente omissa em termos de juros, pelo menos, no que toca aos vencidos, não tendo sequer sido fixada a data a partir do qual esse vencimento ocorre.
Também no que respeita à coima aplicável, a mesma não é concretizada, sendo apenas indicados o respectivo intervalo entre os seus mínimos e máximo.
Para além disto, a questão coloca-se, verdadeiramente, ao nível do valor a pagar pelos arguidos que consta dessa notificação.
Como se lê no aresto do Tribunal da Relação de Coimbra de 03/12/14 proc. n.º 47/03.5IDSTR:
“Salvo o devido respeito por opinião diversa, pensamos que a lei é bem clara quando faz depender a punibilidade de um crime, não do simples decurso de um prazo, como acontece com a alínea a), mas do decurso de um prazo e de uma notificação para pagamento, em exigir que a notificação contenha os montantes corretos a pagar, exigência que se revela com mais acuidade se pensarmos que a multa não é uma dívida, mas uma sanção e que, por maioria de razão, só à administração cabe calcular. (…) Em nosso entender, o preceito a que nos estamos a referir, não se basta com uma simples interpelação, a notificação aí referida só tem sentido se contiver o montante concreto que o sujeito passivo do imposto tem de pagar para afastar de si a responsabilidade criminal.
E não se entende porque se há de onerar o contribuinte, arguido, com a obrigação de indagar junto da AT a quantia exata a pagar, quando essa AT pode calcular a coima antes de fazer a notificação.
É que se a quantia relativa ao imposto é conhecida dos sujeitos passivos pela simples razão de que foram eles a declara-la, as restantes quantias, e com maior acuidade a coima aplicável ao caso, não o é, nem tem de ser conhecida do contribuinte, devendo ser a AT a liquida-la.
Não vislumbramos por que havemos de trocar a segurança jurídica que deve resultar da notificação, pela prova das “dificuldades em obter as informações necessárias e das falhas que não sejam da sua responsabilidade”.
Ora nos presentes autos, os arguidos foram notificados nos termos do Artº 105 nº4 al. b) do RGIT, para procederem, em 30 dias, ao pagamento de um montante em dívida, que, só de capital, relativo a prestações não pagas à Segurança Social, se cifrava em € 36.169,08, sendo certo que se veio a demonstrar que tal valor, indicado por aquela entidade, estava profundamente errado, já que apenas estavam em dívida, como foi provado pelo tribunal a quo, prestações no valor de € 5.143,36.
Considerou a instância sindicada que esta circunstância - de o valor apurado ser inferior ao constante da notificação efectuada nos termos do Artº 105 nº 4 do RGIT - é irrelevante, apoiando-se em jurisprudência que aponta nesse sentido.
Com o devido respeito, não concordo com esta asserção, já que não estamos a falar de uma pequena ou reduzida diferença de verbas, mas antes, de uma diferença substancial, em que o valor ínsito na dita notificação é quase sete vezes superior ao que era, de facto, devido!
Se estivéssemos na presença de uma diferença de valores irrelevante ou mesmo diminuta, poderia valer o entendimento expresso no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28/10/15, proferido no proc. 7748/08.0TDPRT, quando afirma que “Quanto ao valor constante da notificação, como importância em dívida e que haveria de ser paga, foi o mesmo de [x] €, tendo sido fixado na sentença, como valor em dívida à Segurança Social, o valor de [x – y] € (…) – o que se afigura uma diferença de montantes irrelevante enquanto razão determinante para o recorrente tomar a decisão de pagar ou de não pagar. (…) entendemos que a questão colocada nos autos apenas assumiria relevância se estivessem em causa diferenças significativas entre os montantes indicados na notificação e os montantes efetivamente apurados em audiência, o que não é o caso”
Mas tratando-se, como se referiu, de uma diferença muito substancial e relevante, há que dar razão aos recorrentes até porque, como refere Maria Francisca Amaral de Sá Carneiro in As Condições de Punibilidade no Crime de Abuso de Confiança Fiscal, dissertação de mestrado inédita, acessível em linha, F.D.U.C., 2013, p.37;
“A melhor interpretação do art. 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT é no sentido de que o legislador pretendeu que a notificação contivesse de início a concretização dos montantes, pressupondo os 30 dias concedidos o conhecimento de tal informação, de modo a que o contribuinte use tal prazo legal para arranjar os meios de pagamento ou negociar com a Administração Tributária.
Portanto, o melhor procedimento consiste em atribuir legitimidade à Administração Tributária ou a Segurança Social para efetuarem a liquidação das quantias devidas para efeitos do art. 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT, e mais tarde o Tribunal procede à notificação, atribuindo a validade desta e remetendo o guia da liquidação. Só assim o contribuinte terá 30 dias para proceder a tal pagamento. Efetuada a notificação, cabe ao contribuinte optar pelo pagamento dos montantes que no entender da Administração Tributária ou Segurança Social estão em dívida ou não efetuar o mesmo, por vários motivos, como a impossibilidade financeira ou estratégia de defesa, prosseguindo o processo os seus trâmites legais. Caso opte pelo pagamento deverá dirigir-se à Administração Tributária ou Segurança Social para regularizar a situação e apresentar a declaração de quitação, para assim comprovar a liquidação no prazo de 30 dias pós notificação, fazendo assim operar a causa de exclusão de punição e o arquivamento dos autos”.
Também Tiago Caiado Malheiro, in Da Punibilidade nos crimes de abuso de confiança contra a Segurança Social, in Revista julgar, nº11, págs. 76/77, alinha pelo mesmo diapasão:
“Afigura-se-nos que a melhor interpretação do normativo, vai no sentido de que o legislador pretendeu que a notificação contivesse ab initio a concretização dos montantes, pressupondo os 30 dias concedidos o conhecimento de tal informação, de modo a que o(s) arguido(s) utilize(m) tal prazo legal para arranjar os meios de pagamento ou negociar com a administração tributária ou segurança social.
(…)
Só deste modo efetivamente o arguido terá 30 dias para proceder ao pagamento, já que, caso contrário, a maioria deste período de tempo ou mesmo na totalidade seria gasto junto de tais instituições para lograr obter qual a liquidação a efetuar …atento o decurso de tempo que a administração tributária ou segurança social demoravam a proceder a tais informações.
Parece-nos o que resulta da letra da lei e do princípio da lealdade que deve imperar no processo penal”.
Sabendo-se que a lei estabelece como condição do início ou prosseguimento do processo-crime que o prazo de trinta dias sobre a notificação tenha decorrido integralmente e sem o pagamento da prestação em falta, sendo o decurso integral deste prazo sem pagamento condição legal de instauração ou prossecução do procedimento criminal, para que tal pagamento tenha lugar tem de se verificar, naturalmente, uma notificação do valor correcto para o mesmo.
Conforme já por várias vezes foi ensinado por esta Relação (Acs. de 10/12/12, 04/04/16, 25/10/16, 12/07/18 e 18/02/2020, respectivamente, nos procs. 67/11.6TASRP, 469/15.9T9STB, 1221/14.4TAFAR, 646/12.4TATVR e 481/15.8IDFAR, não pode ser proferida acusação contra arguido que não se encontre regularmente notificado nos termos e para os efeitos previstos na al. b) do nº4, do Artº 105 do RGIT e, a tê-lo sido, essa acusação apresenta-se como manifestamente infundada.
Ora, como supra se mencionou, o valor plasmado na notificação prevista na referenciada norma e que configura, legalmente, uma condição objectiva de punibilidade para o crime que é imputado nos autos, está profundamente incorrecto, com manifesto prejuízo dos arguidos, no que toca à eventual possibilidade de saldarem a dívida e verem, assim, interrompido, o respecivo processo crime.
O valor que constava da notificação encontrava-se manifestamente incorrecto e, como tal, os arguidos não tinham os elementos necessários para - mesmo que quisessem - liquidar os montantes em causa para se exonerarem do processo crime, pelo que, não tendo aquela notificação o montante efectivamente devido a título de quotizações, não possui os méritos para desempenhar a função de dar aos arguidos a oportunidade de extinguir a sua responsabilidade criminal, por não lhes transmitir a informação do montante que teriam de dispor para aquele efeito.
Constatando-se assim que o conteúdo dessa notificação é claramente irregular, creio não se poder considerar a aludida notificação como operante e eficaz para os efeitos jurídicos com a mesma pretendidos.
Sufrago, pois, o que se plasmou no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, em 01/06/11, no processo nº 1534/08.4TDPRT.P1, onde se concluiu que “…o arguido, bem como a sociedade arguida, não foram devidamente notificados, nos termos e para os efeitos da apontada al. b), do nº 4, do artigo 105º, do RGIT, e, ao não o serem, não lhes foi dada a possibilidade de poderem vir a optar, de forma esclarecida, livre e consciente, pelo cumprimento, ou não, daquela notificação, podendo na primeira situação, qualquer um deles eximir a responsabilidade de ambos através do eventual pagamento, e, assim sendo, não se mostrava preenchida aquela condição de punibilidade relativamente a ambos os arguidos, o que se traduzia na não punibilidade das apuradas condutas”.
Todavia, ao contrário do pretendido pelos recorrentes, entendo que a consequência deste raciocínio não deve ser a sua absolvição, por os factos que lhe são imputados não serem punidos, atenta a não verificação da respectiva condição de punibilidade.
Com efeito, no caso sub judice, não estamos perante uma omissão total da notificação, mas antes, perante uma irregularidade, muito peculiar e muito significativa, em que os ora recorrentes foram notificados para pagar uma quantia quase sete vezes superior àquilo que lhes era devido, o que consubstancia um que erro grosseiro por parte da Administração Fiscal e para o qual aqueles em nada contribuíram.
Como se escreve no Acórdão da Relação do Porto de 13/05/15, relativo ao processo 2886/16.8T9LSB, “É de admitir, à luz das regras de experiência comum que o destinatário que recebe uma notificação daquele teor…, não a levasse a sério e admitisse estar perante um erro. A nosso ver, impunha-se uma nova notificação, mais rigorosa, explícita e sem equívocos de modo a que o cidadão não tivesse dúvidas do que ainda restava pagar, o que deveria tempestivamente ser ordenado pelo tribunal “a quo” com recurso ao nº 2 do artº 123º do cód. proc. penal.”
Defendo, nesta medida, o também aludido neste acórdão e expressamente admitido no aresto daquela Relação de 26/02/14, proferido no processo 6319/11.8IDPRT.P1, onde se consignou:
“Uma vez que, entre nós, vigora o princípio da legalidade em matéria de nulidades, só constituem nulidades as expressamente previstas na lei, sendo todos os demais atos ilegais considerados meramente irregulares.
Se a regra é a do conhecimento das irregularidades a requerimento do interessado – do titular do interesse protegido pela norma violada, nos termos do artigo 123º, nº 1, Código de Processo Penal – é evidente que a mesma não foi arguida no prazo previsto na 2ª parte do mesmo preceito.
No entanto, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado.
Ora, como o arguido B… foi condenado no pressuposto – expresso na fundamentação de Direito – da verificação, para além do mais, da referida condição objetiva de punibilidade, é patente que se encontra afetado o valor da sentença condenatória.
Assim, a irregularidade, quando afete o valor do ato, poderá ser suprida a todo o tempo, pelo que, ainda que não seja arguida, pode ser reparada oficiosamente ou mandada reparar pela autoridade judiciária competente para tal ato, enquanto mantiver o domínio dessa fase do processo.
É, de resto, esta a posição defendida no já citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13 de Maio de 2009, quando aí se expende: «A falta de notificação dos arguidos em nome pessoal, nos termos e para os efeitos do artigo 105º nº 4 al. b) do RGIT, constitui, em nosso entender, uma irregularidade. O Tribunal pode ordenar, oficiosamente, a reparação da irregularidade em causa, no momento em que da mesma tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado (cfr. artigo 123°/2 do Código de Processo Penal)».
Estamos, então, perante uma irregularidade do conhecimento oficioso, por afetar o valor do ato praticado – que, por isso, não se pode ter como sanada – e que podia constituir, como constituiu, fundamento para recurso da sentença.
A declaração desta irregularidade – que afeta o valor do ato praticado, e que implica a sua repetição de acordo com a letra, a “ratio” e as finalidades ínsitas na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT – prejudica o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso, pelo que haverá que ordenar a baixa do processo à 1ª instância.”
Também aqui, o que se verifica é que a notificação recebida pelos arguidos foi irregular, que a torna ineficaz e inoperante, porquanto, para que surtisse o efeito admonitório previsto na lei, não poderia assentar, como assentou, para além do que se disse em relação à ausência do cálculo dos juros vendidos e da referência à coima a aplicar, num valor referenciado às quotizações em dívida absolutamente incorrecto, cujo pagamento isentaria os arguidos da prossecução do processo penal.
A irregularidade em causa afecta, de modo substancial, a validade do acto e os efeitos com o mesmo pretendidos, pelo que entendo que em posições como a dos autos – em que não estamos na presença de uma ausência de notificação, mas, antes, de um caso em que a notificação em causa não cumpre os requisitos mínimos para poder operar – o caminho a seguir seria este tribunal determinar a remessa dos autos à 1ª instância a fim de ser ordenado o suprimento da aludida irregularidade, com nova notificação aos arguidos a efectuar pela Administração Fiscal.
Considerando que a notificação prevista no Artº 105 nº4 al. b) do RGIT constitui uma condição objetiva de punibilidade, devendo ser determinante no sentido de que a sua observância acarreta o efeito da extinção de toda e qualquer responsabilidade penal dos sujeitos notificados, deveria o tribunal a quo, depois de cumprida a nova notificação, com a indicação de todos os elementos em falta e a correcta informação do valor em dívida, actuar em conformidade com a postura perante a mesma levada a cabo pelos arguidos.
A declaração desta irregularidade, que afectando o valor do acto praticado - a notificação em causa, - e implicando a sua repetição, nos termos e para os efeitos previstos na al. b) do nº4 do Artº 105 do RGIT, faz retroagir o processo a esse momento, pelo que ficariam sem efeito os actos subsequentes, e, consequentemente, prejudicada a apreciação das questões levantadas pelos recorrentes no recurso interposto da decisão final.
Nesta medida, entendo que deveria ter sido concedido parcial provimento ao recurso interlocutório, com a devolução dos autos à 1ª instância, para aí se solicitar à administração fiscal que procedesse à notificação dos arguidos recorrentes, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 4 do Artº 105 do RGIT, nos termos supra expostos, seguindo-se a realização dos demais actos que se mostram afetados pela irregularidade em causa.
(Renato Barroso)
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[1] Sobre a temática, cfr., por todos, na doutrina, Rita Serrano, “A irrecorribilidade do despacho de pronuncia”, in Prova Criminal e Direito de Defesa, Estudos Sobre a Teoria da Prova e Garantias de Defesa em Processo Penal, Coordenação de Tereza Pizarro Beleza e outro, Almedina, Agosto de 2016, pág.s 185 e ss. e, na jurisprudência, Ac. da RC de 21/01/2009, proc. n.º 180/05.9JACBR-A.C1, acessível in www.dgsi.pt.
[2] Publicado no D.R. n.º 94/2008, Série I de 15/05/2008.
[3] Proferido no processo n.º 115/08, acessível in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080531.html
[4] Sobre a problemática vide Tiago Milheiro, “Crime de abuso de confiança fiscal”, in Revista Julgar, n.º 11, 2010, pág. 76 e 77.
[5] Cfr., entre outros, Ac. da RP de 24/09/2008, proc. 0811683, Ac.s da RE de 03/11/2015, proc. 546/12.8IDFAR.E1 e de 27/09/2016, proc. 393/11.4IDFAR.E1, Ac. da RG de 11/11/2019, proc. 103/17.2T9CBT.G1 e Ac. da RC de 08/09/2021, proc. 180/19.1T9SRT.C1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[6] Cf. Ac. da RP de 11/03/2009, proc. 0847944, disponível em www.dgsi.pt. e na doutrina Tiago Milheiro, in ob. e loc. cit. e também em “Navegando pelos mares (atribulados) da criminalidade tributária”, disponível em http://julgar.pt., pág. 12.
[7] Publicado no Diário da República n.º 95/2009, Série II de 18/05/2009.
[8] Neste sentido, cf., entre outros, Ac. da RP de 28/10/2015, proc. 7748/08.0TDPRT.P1, acessível em www.dgsi.pt.
[9] Ac. desta RE de 23/02/2021, proc. 1129/18.4T9MTA-A.E1 e Ac. da RP de 6/01/2010, proc. 130/03.7IDAVR.P1, disponíveis in www.dgsi.pt.
[10] Neste sentido, cfr., entre muitos outros, Ac. da RP de 18/11/2020, proc. 950/18.8T9PRD.P1, in www.dgsi.pt
[11] Neste sentido, relativamente ao crime de abuso de confiança fiscal e à existência de acordo(s) de pagamento celebrado(s) entre o devedor da prestação tributária e a Administração Tributária, vide, entre outros, Ac. da RL de 17/04/2018, proc. 777/16.11DLSB.L1-5 e Ac. da RP de 17/02/2021, proc. 35/19.0IDPRT.P1, disponíveis in www.dgsi.pt. E no referente a acordo de pagamento em prestações celebrados no âmbito de execuções fiscais, relativos à não entrega nos prazos legalmente estabelecidos das quantias devidas, cfr. Ac. da RL de 18/01/2022, proc. 574/18.0IDLSB.L1-5, disponível in www.dgsi.pt.
[12] Cfr. entre outros, Ac. da RE de 02/02/2016, proc. 114/13.7TARMR.E1 e Ac. da R.C. de 03/06/2015, proc. 12/14.7GBRST.C1, acessíveis no endereço www.dgsi.pt.
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