Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | JOSÉ MANUEL BARATA | ||
Descritores: | EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO | ||
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Data do Acordão: | 06/15/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I.- O conceito vago e indeterminado de “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”, previsto no artigo 239.º/3, alínea b), i., do CIRE, terá que ser densificado pelo aplicador do direito e apreciado no caso concreto, em função das circunstâncias económicas e encargos do insolvente e do respetivo agregado familiar, tendo como subjacente o reconhecimento do princípio da essencial dignidade da pessoa humana, ínsito no artigo 1.º da CRP. II.- O Sustento minimamente digno tem de estar conexionado com o conceito objetivado de salário mínimo nacional, uma vez que este montante é o que a comunidade entende, em cada momento e na medida da evolução económica, ser o valor que permite ainda uma vida em condições minimamente dignas de uma pessoa. III.- Se ficou demonstrado que o agregado familiar do insolvente é composto também pela sua mulher que as despesas mensais fixas se situam em € 1.720,00 deve ser fixado em dois salários mínimos nacionais o dito rendimento indisponível. (Sumário do Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Proc.º 462/22.5T8OLH.E1 Acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora Recorrente: (…) * No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Comércio de Olhão - Juiz 1 o insolvente, ora recorrente pediu a exoneração do passivo restante.Deu cumprimento formal às exigências do artigo 236.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Nenhum credor se opôs à exoneração. Após apreciação, o tribunal a quo decidiu o seguinte quanto ao montante do rendimento indisponível: No que concerne à cessão de rendimentos, o Tribunal assenta a sua decisão nos seguintes factos relativos às condições socioeconómicas do Insolvente e do seu agregado familiar, que emergem da análise de toda a prova documental constante dos autos: - O Insolvente tem atualmente 68 anos de idade e é casado. - O Insolvente encontra-se a auferir uma pensão de reforma, por velhice, no valor de € 1.628,00. - O Insolvente despende mensalmente cerca de € 1.000,00 em alimentação, saúde, vestuário, eletricidade, água, comunicações e transportes. Perante este quadro factual, e a natureza e finalidades da exoneração do passivo restante, o Tribunal considera adequado e proporcional excluir do valor a ceder a quantia mensal correspondente a uma vez e meia a retribuição mínima mensal garantida, que se destina ao sustento do insolvente e do seu agregado familiar. * Decisão:Em face do exposto, o Tribunal decide: a) Admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante; b) Nomear para as funções de fiduciário o(a) Senhor(a) Administrador(a) de Insolvência nomeado(a) nos autos (artigos 240.º a 242.º do CIRE), atribuindo-lhe a tarefa de fiscalizar o cumprimento pelo devedor das obrigações que sobre este impendem, com o dever de informar os credores em caso de conhecimento de qualquer violação; c) Determinar que o rendimento disponível que o devedor venha a auferir, no período de 3 anos a contar da data de encerramento do processo de insolvência (período da cessão), se considere cedido ao fiduciário ora nomeado, com exclusão da quantia mensal correspondente a uma vez e meia a retribuição mínima mensal garantida, que se destina ao sustento do insolvente e do seu agregado familiar. d) Determinar que, durante este período de três anos, o devedor fica obrigado, sob pena de não lhe ser concedido no final o benefício de exoneração do passivo restante, a: i) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património, na forma e no prazo em que isso lhes seja requisitado; ii) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente trabalho remunerado quando não o tiver, não recusando algum emprego para que seja apto sem motivo razoável; iii) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão; iv) Informar o Tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; v) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores. * Ao abrigo do disposto nos artigos 230.º, n.º 1, alínea e) e 233.º, n.º 7, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, declara-se encerrada a insolvência, limitando os efeitos do encerramento, por ora, à determinação do início do período da cessão decorrente da exoneração do passivo restante que, por isso, inicia com o trânsito em julgado do presente despacho.* Notifique, registe e publicite – artigo 247.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. (…)* Não se conformando com o decidido, o recorrente apelou formulando as seguintes conclusões, que delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, artigos 608.º/2, 609.º, 635.º/4, 639.º e 663.º/2, do CPC: I. A decisão recorrida desconsiderou o valor global das despesas mensais suportadas pelo recorrente, conforme sustentado e comprovado pelo mesmo na sua PI. II. Nomeadamente, não considerou na decisão agora em crise, o valor da despesa correspondente ao necessário e imprescindível pagamento da renda habitacional, no valor de € 500,00 mensais, o que faz com que o valor normal das despesas suportadas mensalmente pelo recorrente seja de 1.720,00 euros. III. Ora, o valor fixado de 1,5 salários mínimos, corresponde a € 1.140,00, valor este que é insuficiente para financiar aquelas despesas mensais apresentadas e comprovadas. IV. Assim para vida minimamente condigna do recorrente, deverá ser alterado o valor fixado para dois salários mínimos mensais. V. A decisão proferida violou a norma contida no artigo 239.º/3, alínea b), (i), destinada a garantir uma subsistência minimamente digna do devedor e seu agregado familiar. Nestes termos, deve assim ser concedido provimento ao recurso, alterando-se a decisão recorrida. * A questão que importa decidir é a de saber se, em face das despesas do agregado do insolvente, o rendimento indisponível deve ser de 2 salários mínimos nacionais. * A matéria de facto fixada na 1ª instância é a que consta do relatório inicial.*** Conhecendo.A exoneração do passivo restante é um regime exclusivo da insolvência das pessoas singulares, visando permitir ao devedor o perdão das suas dívidas que não sejam integralmente pagas no processo de insolvência, após a liquidação do património do devedor e nos três anos seguintes ao encerramento do processo (artigo 235.º e seguintes do CIRE). Possibilita o ordenamento um recomeçar de novo ao insolvente com o perdão das suas dívidas (fresh start), à exceção das que são enunciadas no artigo 245.º/2, aproximando o direito continental (civil law baseado essencialmente na lei como fonte de direito) da common law anglo-americana (baseada na lei mas também no precedente, de que é exemplo nos EUA o discharge do Bankruptcy Code), onde a insolvência não tem a mesma carga negativa, o que permite às empresas e pessoas singulares reerguerem-se, após uma experiência negativa, sem o estigma social do insucesso. É também o que se espera aconteça na sociedade portuguesa, com o fomento do assumir do risco nas relações económicas, com as possibilidades que um recomeçar de novo proporciona. O pedido é formulado ao juiz logo no requerimento de apresentação à insolvência, nos termos do artigo 236.º, sendo a concessão da exoneração concedida se estiverem reunidos os requisitos do artigo 237.º. Concedida a exoneração do passivo restante (restante porque se refere às dívidas que restaram e não foram pagas no processo de insolvência), por despacho chamado de inicial, determina-se que o rendimento disponível que o devedor venha a auferir, nos três anos seguintes, se considera cedido a entidade designada fiduciário, para pagamento das dívidas aos credores, mas a exoneração só se torna efetiva no despacho final. Todos os rendimentos auferidos pelo devedor, nesse período de três anos, integram o rendimento disponível para pagamento das dívidas (n.º 3 do artigo 239.º), à exceção do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder três vezes o salário mínimo nacional (alínea b) i)). O insolvente veio requerer que seja alterado para dois salários mínimos nacionais o montante mínimo para o sustento do seu agregado familiar, vivendo em casa arrendada pela qual paga 500,00€ mensais, o que não foi ponderado pelo tribunal a quo, não obstante ter tal facto sido alegado em sede de petição inicial. O artigo 239.º/3, b), iii), do CIRE dispõe que, integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: b) Do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; O conceito vago e indeterminado de “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”, previsto no artigo 239.º/3, b), i., do CIRE, terá que ser densificado pelo aplicador do direito e apreciado no caso concreto, em função das circunstâncias económicas e encargos do insolvente e do respetivo agregado familiar, tendo como subjacente o reconhecimento do princípio da essencial dignidade da pessoa humana, ínsito no artigo 1.º da CRP. O sustento minimamente digno tem de estar conexionado com o conceito objetivado de salário mínimo nacional, uma vez que este salário é o que a comunidade entende, em cada momento e na medida da sua evolução económica, ser o valor que permite ainda uma vida em condições minimamente dignas. Tudo porque a lei fundamental e a lei ordinária não iluminam de forma mais eficaz o que se deve entender por “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”. Para a jurisprudência constitucional, a fixação do salário mínimo nacional tem subjacente a ponderação da situação económica da comunidade e representa, segundo o legislador ordinário, o “estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador”. De onde se infere que se pode densificar o conceito do que seja estritamente indispensável para assegurar um mínimo de dignidade a cada pessoa, e que será o correspondente a um salário mínimo nacional, a que tem de acrescer algo mais se o agregado for constituído por mais pessoas para além do insolvente. Considera-se ainda que, se a exoneração do passivo restante não pode considerar-se um prémio aos insolventes, porque se poderia confundir com um incentivo à continuação de uma vida não adaptada ao nível efetivos dos rendimentos; também não pode ser entendida como uma licença aos credores para concederem créditos com análises de risco cada vez mais superficiais, com o inerente acumular das dívidas que se tornam insustentáveis para devedores desprevenidos. Ora, voltando ao caso dos autos, o agregado é constituído pelo insolvente e a sua mulher, suportando o agregado as seguintes despesas mensais: - Renda: ______________________ € 500,00 - Água: _______________________ € 25,00 - Eletricidade: __________________ € 80,00 - Gás: _________________________€ 30,00 - Internet, telefone e TV Cabo: _____ € 83,00 - Alimentação (dieta diabética): _____€ 350,00 - Vestuário e outros bens essenciais _ € 100,00 - Transportes públicos: ___________€ 132,00 - Seguro de saúde: _______________ € 20,00 - Despesas de saúde: _____________€ 400,00 O que perfaz a quantia mensal de € 1.720,00. Esta factualidade foi alegada pelo insolvente no artigo 24º da petição inicial, sendo que tal factualidade não foi impugnada por qualquer dos intervenientes processuais, pelo que deve ser dada como provada, sendo que, para além do mais, segundo critérios que resultam das regras de experiência comum que são facilmente percecionadas por qualquer cidadão, mostrando-se ajustada ao nível do custo de vida atual, mormente em época de agressiva inflação. Desconhece-se por que motivo o tribunal a quo não considerou a renda de casa alegada pelo insolvente, uma vez que não se demonstrou que seja proprietário de qualquer imóvel. Assim sendo, julga-se justo e equitativo alterar o rendimento indisponível para dois salários mínimos nacionais. Em consequência, a apelação é procedente, pelo que se revoga o despacho recorrido, devendo ser fixado em dois salários mínimos nacionais o valor do rendimento indisponível do insolvente e seu agregado. No mesmo sentido, Ac. TRE de 31-05-2012, Proc.º 4008/11.2TBSTB-E1 e de 26-04-2018, Proc.º 3062/16.5T8STR-E.E1: O mecanismo legal da exoneração do passivo restante funciona sempre em favor dos devedores e sempre contra os credores, pelo que não se pretende que ele se erija num prémio a quem não cumpre ou num incentivo ao acumular das dívidas. *** Sumário: (…) *** DECISÃO. Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga a apelação procedente e revoga a decisão recorrida, fixando-se o rendimento indisponível do insolvente/recorrente em dois salários mínimos nacionais. Custas pela massa insolvente. Notifique. *** Évora, 15-06-2023 José Manuel Barata (Relator) Maria Rosa Barroso Isabel de Matos Imaginário |