Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3485/17.2T8ENT.E1
Relator: VICTOR SEQUINHO
Descritores: CAIXA DE PREVIDÊNCIA
ADVOGADO
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 01/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Os tribunais judiciais são incompetentes em razão da matéria para as acções executivas através das quais a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores vise obter a cobrança das contribuições devidas pelos seus beneficiários.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3485/17.2T8ENT.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Execução do Entroncamento
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) instaurou a presente acção executiva para pagamento de quantia certa contra (…), advogado, com vista à cobrança da quantia de € 96.362,39, correspondente a contribuições em dívida, acrescida de juros de mora. Como título executivo, a exequente apresentou uma “certidão de dívida de contribuições” emitida pelo seu órgão dirigente.
O tribunal recorrido proferiu despacho mediante o qual, invocando o disposto nos artigos 726.º, n.º 2, alínea b), 96.º, alínea a), 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, e nos artigos 1.º, n.º 1, e 4.º, n.º 1, alínea o), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, se declarou materialmente incompetente para a presente execução e, em consequência, indeferiu liminarmente o requerimento executivo.

A exequente recorreu desse despacho, formulando as seguintes conclusões:
1. A CPAS “(…) é uma instituição de previdência autónoma, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa (…)”.
2. A CPAS não está sujeita a um poder de superintendência do Governo, mas a um mero poder de tutela meramente inspectiva.
3. A CPAS não faz parte da administração directa ou indirecta do Estado.
4. Os seus membros directivos não são designados pelo Governo, mas eleitos «pelas assembleias dos Advogados e dos associados da Câmara dos Solicitadores».
5. A CPAS não é financiada com dinheiros públicos, sejam oriundos do Orçamento do Estado e/ou do Orçamento da Segurança Social.
6. A CPAS está sujeita a um regime jurídico específico, o que nos permite concluir pela autonomia do regime privativo de previdência aqui em causa.
7. A CPAS tem uma forte componente privatística, sendo o litígio aqui em apreço de natureza privada.
8. As contribuições para a CPAS não têm natureza tributária, na medida em que assentam na pessoalidade, pois emergem do facto do sujeito passivo ser Advogado ou Solicitador; resultam da vontade do beneficiário, que opta pelo montante da contribuição a pagar, para além do escalão mínimo; são estabelecidas com base numa relação sinalagmática, consubstanciada entre o montante das contribuições pagas e a futura pensão de reforma a ser recebida pelo beneficiário; e não se destinam a garantir a satisfação de um encargo público do Estado.
9. A sentença do Tribunal a quo, conclui que a competência para julgar a presente acção executiva pertence aos Tribunais Administrativos e Fiscais.
10. Todavia, o n.º 2 do artigo 148.º do Código de Procedimento e Processo Tributário impõe, para que se possa fazer uso o processo de execução fiscal, no caso de “dívidas a pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo”, que a lei estipule expressamente os casos e os termos em que o pode fazer.
11. E, o artigo 179.º do Código de Procedimento Administrativo prescreve que “Quando, (…), devam ser pagas prestações pecuniárias a uma pessoa colectiva pública, (…), segue-se, na falta de pagamento voluntário fixado, o processo de execução fiscal (…)”.
12. Contudo, no Novo Regulamento da CPAS, como vimos, não existe norma que, de forma expressa, determine que as dívidas à CPAS sejam cobradas através de processo de execução fiscal a correr nos serviços de finanças.
13. O que foi confirmado, já depois da entrada em vigor do Novo Regulamento da CPAS, pela Autoridade Tributária e Aduaneira à Direcção da CPAS, conforme resulta da informação junta sob doc. 1.
14. Também não colhe, igualmente, o entendimento vertido no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 22/04/2017, segundo o qual a cobrança das contribuições da CPAS deveria ser concretizada através de processo de execução fiscal a promover pela Segurança Social, pois inexiste norma que a habilite, de forma expressa, a instaurar processos de execução fiscal sobre esta matéria.
15. E porque, nos termos do n.º 2 do artigo 2.º do Código de Processo Civil “A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada”, não resta à CPAS outro caminho senão recorrer aos tribunais judiciais, como no presente caso, para cobrar as contribuições em dívida por parte dos seus beneficiários, isto sob pena de ficar sem tutela jurisdicional efectiva para o apontado propósito.
16. Assim a interpretação das referidas normas de modo a concluir pela incompetência do Tribunal a quo, acarretaria o incumprimento de preceito constitucional, constante do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, que estipula que “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (…)”.
17. Tendo em conta este preceito constitucional e a interpretação conjugada da alínea o) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do n.º 2 do artigo 148.º do Código de Procedimento e Processo Tributário, ou seja, de que apenas os tribunais administrativos e fiscais seriam competentes para dirimir os litígios entre a CPAS e os seus beneficiários, é inconstitucional por violação do disposto no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que, como vimos, conduziria a que a CPAS ficasse sem possibilidade de poder cobrar as contribuições em dívida dos seus beneficiários.
18. Pois, as dívidas à CPAS não poderiam ser cobradas judicialmente, por falta de norma habilitante para o efeito, nem nos tribunais administrativos e fiscais, nem por meio de execuções fiscais promovidas pela Autoridade Tributária e nem por meio de execuções fiscais promovidas pela Segurança Social.
19. A este propósito cita-se Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Portuguesa Anotada, em anotação ao artigo 20º “VI. A garantia da via judiciária consiste no direito de recurso um tribunal e de obter dele uma decisão jurídica sobre toda e qualquer questão juridicamente relevante. Este direito ao tribunal e à decisão judicial pressupõe, entre outras coisas: (…) (c) uma protecção judicial sem lacunas, não podendo a repartição da competência jurisdicional pelos vários tipos de tribunais deixar nenhum espaço sem cobertura (…)”.
20. A sentença recorrida violou, assim, o n.º 2 do artigo 2.º do Código de Processo Civil, os n.ºs 1 e 2 do artigo 179.º do Novo Código de Procedimento Administrativo e o n.º 2 do artigo 148.º do Código de Procedimento e Processo Tributário, o n.º 5 do artigo 81.º do novo Regulamento da CPAS, a alínea o) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto do Tribunais Administrativos e Fiscais e, além disso, a interpretação normativa extraída do referido conjunto de preceitos legais é inconstitucional por violar o artigo o n.º 1 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
21. Assim, o Tribunal a quo é o tribunal competente para a decisão e tramitação deste processo executivo.

O recurso foi admitido.

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o objecto deste e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Está em causa saber se a competência material para a presente acção cabe aos tribunais comuns ou aos tribunais administrativos e fiscais.

A questão da competência material para as acções executivas propostas pela CPAS, contra os seus beneficiários, com o objectivo de cobrar as contribuições por estes devidas, tem, nos tempos mais recentes, vindo a ser suscitada com frequência nos nossos tribunais superiores, os quais a têm decidido, tanto quanto sabemos, de forma unânime, no sentido de considerar que tal competência cabe aos tribunais administrativos e fiscais. Nesse sentido decidiram os acórdãos da Relação do Porto de 20-06-2016 (processo n.º 6988/16.2T8PRT.P1), da Relação de Lisboa de 09-03-2017 (processo n.º 17398/15.9T8LRS.L1-2) e de 02.11.2017 (processo n.º 9354-16.6T8LSB.L1-8) e do Tribunal dos Conflitos de 27-04-2017 (processo n.º 037/16).
Aderimos a esta orientação jurisprudencial, pois os argumentos que a sustentam são, a nosso ver, irrefutáveis.
Resulta dos artigos 211.º, n.º 1, da Constituição, 64.º do CPC e 18.º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, que a competência destes últimos é residual. Ou seja, são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
O artigo 212.º, n.º 3, da Constituição, estabelece que “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. O artigo 1.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais estabelece que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”. A alínea o) do n.º 1 deste último preceito legal dispõe que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a “Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”.
Portanto, a resolução da questão da competência material para a presente acção está dependente da caracterização das relações que se estabelecem entre a CPAS e os seus beneficiários como jurídico-administrativas e fiscais ou, ao invés e como a recorrente pretende, como jurídico-privadas. Na primeira hipótese, aquela competência cabe aos tribunais administrativos e fiscais; na segunda, cabe aos tribunais judiciais.
Com vista a tal caracterização, comecemos por atentar nos artigos 1.º e 3.º do Regulamento da CPAS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/2015, de 29.06, dos quais decorre a natureza jurídica daquela. A CPAS, criada pelo Estado através do Decreto-Lei n.º 36550, de 22.10.1947, e então designada como “Caixa de Previdência da Ordem dos Advogados”, é uma instituição de previdência autónoma, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa, e visa fins de previdência e de protecção social dos advogados e dos associados da Câmara dos Solicitadores (artigo 1.º, n.º 1). Rege-se pelo seu Regulamento e, subsidiariamente, pelas bases gerais do sistema de segurança social e pela legislação dela decorrente, com as necessárias adaptações (artigo 1.º, n.º 2). Tem por fim conceder pensões de reforma e subsídios por invalidez aos seus beneficiários (artigo 3.º, n.º 1), pode conceder subsídios por morte e de sobrevivência aos familiares dos seus beneficiários e outros subsídios de acordo com as disponibilidades anuais do fundo de assistência (artigo 3.º, n.º 2) e, em complemento dos benefícios referidos nos números anteriores, promove a celebração, com instituições de seguro, de contratos de grupo, com vista à cobertura de riscos dos seus beneficiários (artigo 3.º, n.º 3).
A CPAS é, assim, uma pessoa colectiva pública, que visa fins de previdência e de protecção social. Sendo a previdência uma das componentes do sistema de segurança social, é evidente que as instituições com fins de previdência realizam uma função de segurança social. É um subsistema de segurança social específico para determinados profissionais. São-lhe, por isso, subsidiariamente aplicáveis, com as necessárias adaptações, as bases gerais do sistema de segurança social e a legislação delas decorrente. Assim se justifica que a CPAS esteja sujeita à tutela do Governo e goze das isenções e regalias previstas na lei para as instituições de segurança social e de previdência e das estabelecidas na alínea c) do n.º 1 do artigo 9.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (artigos 96.º, n.º 2, 97.º e 98.º do Regulamento).
Sendo essa a natureza da CPAS e das suas atribuições, impõe-se a qualificação das relações que a mesma estabelece com os seus beneficiários como jurídico-administrativas e fiscais e não como jurídico-privadas. No âmbito dessas relações jurídicas, a CPAS actua no exercício de poderes de autoridade que a lei lhe confere e não no mesmo plano que os seus beneficiários, como se se tratasse de relações jurídicas entre entidades privadas.
Tendo as relações jurídicas que se estabelecem entre a CPAS e os seus associados natureza administrativa e fiscal, a competência material para o conhecimento dos litígios delas emergentes cabe aos tribunais administrativos e fiscais, nos termos do citado artigo 4.º, n.º 1, al. o), do ETAF, e não aos tribunais comuns. Entre esses litígios incluem-se, naturalmente, os decorrentes da falta de pagamento das contribuições devidas pelos beneficiários da CPAS, que estão na origem das acções executivas tendentes à cobrança coerciva dessas mesmas contribuições e legais acréscimos. A confirmá-lo, o artigo 81.º, n.º 5, do Regulamento da CPAS, estabelece que a certidão da dívida de contribuições emitida pela direcção constitui título executivo e deve obedecer aos requisitos previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário, sinal evidente de que é o processo de execução fiscal o meio próprio para se obter a referida cobrança coerciva, em termos idênticos aos estabelecidos para a cobrança coerciva das dívidas à segurança social. Se assim não fosse, não teria sentido a referida exigência legal de cumprimento dos requisitos previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário.
Mais, o citado artigo 81.º, n.º 5, do Regulamento da CPAS, demonstra que é errado o entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira, referido nas alegações de recurso, segundo o qual inexiste norma habilitante para propor execuções com vista à cobrança das contribuições em causa. O referido artigo 81.º, n.º 5, é a norma habilitante que a Autoridade Tributária e Aduaneira afirma não existir. Logo, nem sequer se coloca a questão, suscitada nas conclusões 15.ª a 20.ª das alegações de recurso, da inconstitucionalidade do entendimento sufragado pela decisão recorrida por violação do direito à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
Conclui-se, assim, que os tribunais comuns são incompetentes em razão da matéria para tramitar processos mediante os quais a CPAS vise a cobrança coerciva de contribuições devidas por beneficiários seus. A decisão recorrida não merece, pois, censura, devendo manter-se, com a consequente improcedência do recurso.

Decisão:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique.
Évora, 25 de Janeiro de 2018
Vítor Sequinho dos Santos (Relator)
Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura